Santa Gema Galgani: Entre Deus E O Diabo 4p6rq

SUMÁRIO

Capa

Folha de rosto

Preâmbulo

Introdução

I. A Igreja e a sociedade na época de Santa Gemma

II. A região onde nasceu e viveu Santa Gemma Galgani

III. A família de Santa Gemma e outras famílias importantes em sua vida

IV. A infância espiritual de Santa Gemma Galgani

V. A vida na escola e a escola da vida: êxitos e percalços nos estudos de Santa Gemma Galgani

VI. Santa Gemma Galgani e os sacramentos: desdobramentos de sua consagração religiosa

VII. Santa Gemma Galgani na adolescência: perdas e ganhos

VIII. As debilidades e os sofrimentos de Santa Gemma Galgani

IX. O irmão Heitor, a dispersão da família e o ressurgimento da mística Santa Gemma Galgani para o mundo

X. Santa Gemma Galgani e o seu anjo da guarda

XI. Santa Gemma Galgani e a sua conexão com São Gabriel da Virgem Dolorosa

XII. Santa Gemma Galgani e os seus contatos com Nossa Senhora das Dores

XIII. As experiências de Santa Gemma Galgani com Jesus

XIV. Santa Gemma Galgani e o diabo

XV. Os fenômenos paranormais de Santa Gemma Galgani

XVI. Os laços do diabo: pecados de uma santa

XVII. Santa Gemma Galgani e os desejos frustrados de se tornar freira

XVIII. O sonho de Santa Gemma Galgani: um mosteiro ionista em Lucca

XIX. Os últimos dias e a morte de Santa Gemma Galgani

XX. O funeral de Santa Gemma Galgani e os seus primeiros indícios de santidade

XXI. O processo de canonização de Santa Gemma Galgani e seus obstáculos

XXII. Resumo biográfico de Santa Gemma Galgani por ordem cronológica

Bibliografia consultada

Coleção

Ficha catalográfica

Notas

Landmarks

Capa

Folha de rosto

Sumário

Preâmbulo

Introdução

I. A Igreja e a sociedade na época de Santa Gemma Galgani

II. A região onde nasceu e viveu Santa Gemma Galgani

III. A família de Santa Gemma e outras famílias importantes em sua vida

IV. A infância espiritual de Santa Gemma Galgani

V. A vida na escola e a escola da vida: êxitos e percalços nos estudos de Santa Gemma Galgani

VI. Santa Gemma Galgani e os sacramentos: desdobramentos de sua consagração religiosa

VII. Santa Gemma Galgani na adolescência: perdas e ganhos

VIII. As debilidades e os sofrimentos de Santa Gemma Galgani

IX. O irmão Heitor, a dispersão da família e o ressurgimento da mística Santa Gemma Galgani para o mundo

X. Santa Gemma Galgani e o seu anjo da guarda

XI. Santa Gemma Galgani e a sua conexão com São Gabriel da Virgem Dolorosa

XII. Santa Gemma Galgani e os seus contatos com Nossa Senhora das Dores

XIII. As experiências de Santa Gemma Galgani com Jesus

XIV. Santa Gemma Galgani e o diabo

XV. Os fenômenos paranormais de Santa Gemma Galgani

XVI. Os laços do diabo: pecados de uma santa

XVII. Santa Gemma Galgani e os desejos frustrados de se tornar freira

XVIII. O sonho de Santa Gemma Galgani: um mosteiro ionista em Lucca

XIX. Os últimos dias e a morte de Santa Gemma Galgani

XX. O funeral de Santa Gemma Galgani e os seus primeiros indícios de santidade

XXI. O processo de canonização de Santa Gemma Galgani e seus obstáculos

XXII. Resumo biográfico de Santa Gemma Galgani por ordem cronológica

Bibliografia consultada

Coleção

Ficha catalográfica

Notas

preâmbulo

“Não procuro nada, não quero nada, senão aquilo que Deus quer.” Santa Gemma Galgani

No dia 14 de setembro de 2019, juntamente com um grupo de peregrinos, parti de São Paulo rumo à Itália para uma peregrinação por alguns santuários daquele país, entre eles o santuário de Santa Gemma Galgani, na cidade de Lucca, região da Toscana. A maioria do grupo não conhecia Santa Gemma, mas, ao fazer o roteiro, fiz questão de colocar a visita a Lucca com um objetivo primordial: coletar material e informações para escrever uma biografia atualizada da primeira santa do século XX, que vem há décadas fascinando tantas pessoas e convertendo-as pela sua estreita conexão com Deus. Quem conhece Santa Gemma se apaixona de imediato pela sua vida e pela mística espiritual que ela lhe imprime. Este livro que você agora tem em suas mãos é fruto de uma vasta pesquisa bibliográfica e de campo, e nele busquei registrar com o máximo de fidelidade a vida dessa santa. Nessa viagem, tivemos provas de que Santa Gemma é uma santa milagrosa, pois recebemos algumas graças, as quais relato ainda neste preâmbulo. Vamos, então, conhecer um pouco Santa Gemma Galgani, por meio de uma viagem geográfica, espiritual e etnográfica à cidade de Lucca.

Chegamos a Lucca no dia 17 de setembro, um dia esplêndido, de céu azul, sem nenhuma nuvem, e um clima agradável de vésperas de outono, com as árvores já começando a pintar suas folhas de amarelo, prenúncio da nova estação que começaria em apenas cinco dias. Tivemos um primeiro impacto ao entrar na cidade: ela surpreendeu-nos não somente pela beleza da sua arquitetura em estilo medieval, mas também pela limpeza das ruas e, sobretudo, pelas gigantescas muralhas que cercam a cidade antiga, que não demorou a aparecer tão logo o nosso ônibus entrou em Lucca. Essa primeira boa impressão se confirmou, e nos surpreendeu ainda mais, quando adentramos os meandros da cidade antiga, intramuros, e percorremos as ruas que Santa Gemma Galgani percorreu.

O ônibus em que nosso grupo estava deu uma volta, circundou o majestoso santuário de Santa Gemma, anexo ao convento das monjas ionistas, e parou numa das entradas da cidade antiga para aguardar a guia, Simona, que nos acompanharia pelas ruas estreitas da cidade velha.As ruas pareciam labirintos, de tão estreitas que eram. Ela não demorou a nos contatar por telefone, dizendo que estava numa das entradas principais, a porta São Pedro. Nós nos dirigimos até lá e fomos recebidos por uma pessoa simpática que nos conduziu para dentro dos muros da cidade antiga, relatando a história do local e falando sobre seus pontos turísticos, bem como os lugares sagrados que descreverei mais adiante.

Assim que atravessamos a porta São Pedro, de estilo medieval, com paredes gigantescas, dantes inimagináveis, ficamos ainda mais surpresos ao avistar a cidade antiga. Tudo se mostrava impressionante! Era beleza que não cabia nos olhos; além do encanto arquitetônico, havia um quê espiritual que emanava dos ares da cidade. Até os mais céticos sentiriam que aquela não era uma cidade qualquer, e não poderia ser mesmo, pois nela nasceram e viveram importantes santos, como Santa Zita, São Giovanni Leonardi e as beatas Elena Guerra e Maria Domingas Brun Barbantini, além de Santa Gemma Galgani, uma de suas filhas mais ilustres. Isso sem contar outras pessoas importantes, como o compositor Giacomo Puccini, autor de famosas árias – por exemplo, La Bohème (1896) e Madama Butterfly (1904), entre tantas outras –, cuja estátua hoje se encontra na piazza Cittadella, via de Poggio, 34, em Lucca. Contudo, não foi ele que nos levou a Lucca, e sim Santa Gemma Galgani, a mística da paixão e primeira santa do século XX.

À medida que adentrávamos a cidade antiga, tudo nos surpreendia. A beleza era de tirar o fôlego. A vontade era ficar por ali, por muito tempo, pois tudo era tão agradável, havia um sentimento de paz. Era um pouco do “paraíso” de Gemma Galgani que começávamos a descobrir. Visitamos algumas praças e uma feira, onde compramos guloseimas típicas de Lucca, de sabor de anis, que se pareciam com batatas fritas. Talvez Gemma tenha apreciado muitas vezes aquele tipo de biscoito, já que a guia que nos acompanhava disse ser aquela uma guloseima tradicional da cidade.

Como não podia deixar de ser, visitamos algumas igrejas e amos em frente à igreja da Irmandade da Rosa, a última que Gemma frequentou antes de morrer, na qual o lugar onde ela se sentava está demarcado com uma corda e uma foto da santa. Não tivemos tempo de entrar para ver esse lugar, mas a guia nos informou disso depois. Porém, a igreja que eu mais esperava visitar era o santuário dedicado a Santa Gemma Galgani, pois lá eu iria encontrar a maior parte das informações sobre ela, sobretudo no museu, que guarda muitas de suas relíquias.

Após o eio pela cidade velha, nos dirigimos ao santuário, mas combinei com algumas pessoas do grupo que voltaríamos à noite para rever a cidade com mais calma, pois naquela tarde tudo fora muito rápido. Não seria difícil retornar, pois fomos informados de que o hotel em que estávamos hospedados não ficava muito longe.

Deixamos o centro antigo e seguimos rumo ao santuário de Santa Gemma, fora dos muros da cidade. Assim que cruzamos de volta a muralha, o santuário se apresentou logo ao lado, imponente, mas, como não tínhamos agendado a visita, não havia ninguém para nos receber naquela hora. Enquanto a guia do grupo foi procurar alguém que pudesse nos dar mais informações sobre o local e a santa, aguardamos no interior do santuário e aproveitamos para rezar em silêncio. Tudo estava calmo por ali, pois não havia naquele momento grande fluxo de turistas. O local estava praticamente vazio, exceto por umas poucas pessoas que rezavam em silêncio. Do interior do claustro, vinha o som do canto gregoriano das monjas ionistas que rezavam as vésperas da liturgia das horas.

Assim que entramos, sentimos um cheiro agradável de perfume, mas ninguém comentou nada sobre isso. Depois, contudo, alguém mencionou o odor, e outros confirmaram que também tinham sentido um cheiro agradável de flores enquanto rezavam, embora não houvesse flores no local naquele momento. Dizem que os santos exalam perfume desde o momento de sua morte, e aquele odor era, sem dúvida, Santa Gemma Galgani nos dando as boas-vindas, afinal, havíamos vindo de muito longe para vê-la em seu esquife. Esse foi um dos

primeiros sinais que Santa Gemma nos deu nessa visita, e outros viriam depois.

Não demorou muito e a guia do grupo voltou com um padre ionista que atendia aquela igreja e se dispôs a nos acompanhar e explicar tudo sobre o santuário, o mosteiro e o museu que guardam as relíquias de Santa Gemma. Com o celular nas mãos, para gravar imagens e falas, eu não perdia uma palavra do que ele dizia, buscando registrar tudo para depois colocar neste livro, cujo propósito é descrever com o máximo de fidelidade a vida de Santa Gemma e seus sofrimentos para adentrar nos céus.

O padre nos falou primeiro sobre a construção do mosteiro e, posteriormente, do santuário, confiado ao arquiteto Ítalo Baccelli, e sobre a influência espiritual que Gemma Galgani teve nesse processo, algo que eu descreverei mais adiante, com riqueza de detalhes e depoimentos da própria santa. Ele prosseguiu dizendo que a cúpula e a torre do sino daquela igreja são uma réplica da catedral de Berlim, e que essa parte coube ao arquiteto Adriano Marabini, que só a concluiu em 1965. Depois, nos levou até onde está o corpo da santa, que se encontra embaixo do altar principal do santuário, em uma urna esculpida por sco Nagni. Nesse local, encontra-se um retábulo com um afresco que mostra Cristo colocando os estigmas em Gemma Galgani, enquanto ela é amparada pelo anjo da paixão, o seu anjo da guarda. Esse afresco é obra de Primo Conti, um artista futurista italiano.

À esquerda do altar onde se encontra o esquife com o corpo de Santa Gemma, estão algumas esculturas em mármore, representando a paixão de Cristo. As obras são de Tommaso Gismondi, outro artista italiano, conhecido como o escultor do papa pelas obras criadas por encomenda dos papas Paulo VI e João Paulo II. O padre que nos guiava mostrou-nos também onde estava o corpo do diretor espiritual de Santa Gemma, Pe. Germano de Santo Estanislau, e de seu confessor, monsenhor Giovanni Volpi.

Saímos do santuário e nos dirigimos ao museu, que fica em um anexo do templo.

Lá havia muitos dos objetos que Santa Gemma usou: suas vestes manchadas de sangue, que saía dos seus estigmas; a luva que ela usava para ocultar os estigmas; várias peças de suas vestes e outros objetos pessoais, como pente e calçados; mechas de cabelo; alguns móveis usados por ela, como uma pequena cama, uma escrivaninha com cadeira, entre outros; livros que ela usava para rezar; o cilício que ela usava para se autoflagelar etc. Ali eu pude recolher muitas imagens e informações, boa parte fornecida pelo padre que nos acompanhava no santuário e no museu, e as coloco neste escrito, por meio do qual os leitores poderão conhecer melhor Santa Gemma e saber mais sobre o que ela viveu num latente processo de santidade.

Já no final daquele dia, 17 de setembro, uma terça-feira, fomos para o hotel com a certeza de que voltaríamos à noite para a cidade, porém num grupo menor e sem nenhum guia. Iríamos descobrir a cidade de Santa Gemma por conta própria, guiados espiritualmente por ela. O hotel ficava, aproximadamente, a dois quilômetros do centro histórico de Lucca, aonde pretendíamos retornar à noite. Durante o jantar, definimos como faríamos para voltar ao centro histórico e quem gostaria de ir. Apenas cinco pessoas manifestaram o desejo de retornar, as demais estavam cansadas da viagem e queriam repousar mais cedo. Chamamos um táxi na portaria do hotel, adequado para cinco pessoas, e seguimos rumo ao centro. Pedimos que o taxista nos deixasse na porta São Pedro, no mesmo lugar em que havíamos estado pela tarde, mas, contrariando o nosso pedido, ele nos deixou em outra entrada, dizendo que estávamos perto de onde queríamos ficar. Como estávamos mesmo sem destino, desembarcamos ali e pedimos seu número de telefone para, quando decidíssemos retornar ao hotel, ele nos levasse de volta, já que táxis para cinco pessoas não eram muito comuns. Não sei por qual razão, ele cobriu a placa do carro e pediu que fotografássemos o número que estava logo acima. Além disso, ele cobrou um preço maior do que havíamos combinado ao sair do hotel.

De posse do número do táxi, saímos pelas ruas de Lucca naquela noite agradável. A cidade parecia ainda mais bela à noite, iluminada por lâmpadas amarelas, tipo candeeiros, o que conferia um charme todo especial às ruas e valorizava ainda mais sua arquitetura histórica. Tínhamos a pretensão de ear e tomar um café, ou um sorvete, em um dos inúmeros estabelecimentos da

cidade, mas, para a nossa surpresa, todos aqueles lugares que vimos abertos durante a tarde estavam agora fechados. A cidade parecia não ter muita vida noturna, pelo menos naquele ponto onde ficamos.

Caminhamos por um tempo sem rumo por aquelas ruas de calçamento de pedras, que brilhavam como se alguém tivesse ado cera, refletindo as luzes da cidade. Não estávamos com muita pressa, apesar de já ter ado das 22h. Além de estarmos relativamente perto do hotel – pelo menos era o que imaginávamos –, bastava tomar um táxi e em poucos minutos estaríamos de volta.

O mais inusitado desse eio noturno foi que, caminhando sem rumo, nós fomos parar em frente à casa em que Santa Gemma Galgani viveu os seus últimos dias. Sem perceber, paramos diante de uma residência que trazia sobre sua porta uma foto de Santa Gemma numa moldura e, abaixo, uma placa com alguns dizeres. Na placa estava escrito que no segundo andar daquela casa estava o pequeno quarto no qual Gemma Galgani, depois de ter agonizado como Jesus, partiu para o abraço divino, em 11 de abril de 1903, e que os ionistas haviam transformado em um oratório. Ficamos sem palavras com a grata surpresa. Só podia ter sido obra de Santa Gemma ter nos conduzido até aquele lugar. Não pudemos entrar, porque já era tarde e tudo estava fechado, mas valeu a experiência do encontro desse lugar sagrado. Era um sinal de que Santa Gemma estava conosco e nos guiava por aquelas ruas que ela conhecia tão bem.

Fiz questão de fotografar, para mostrar para os demais do grupo que não estavam conosco que tínhamos encontrado um lugar especial. Registrei também o nome da rua, para ter certeza de que se tratava mesmo da casa onde ela viveu seus últimos dias, e não a casa de um devoto qualquer.

Saímos da frente da casa tão alegres que nem percebemos que já faltava pouco para a meia-noite. A cidade já estava completamente silenciosa, um deserto. Foi então que nos demos conta de que precisávamos retornar para o hotel, mas não havia ninguém nas ruas, muito menos táxis. O que nos levara não iria nos

encontrar ali, pois já tínhamos andado muito desde o lugar onde ele havia nos deixado e não tínhamos nenhuma referência para dizer a ele, caso nos atendesse, onde estávamos.

Andamos mais duas ou três quadras e avistamos uma praça, com algumas pessoas. Pedimos informação sobre a direção da porta São Pedro, uma das saídas principais dos muros da cidade, e nos informaram de que estava, aproximadamente, a um quilômetro dali. Tentamos ligar para o número que o taxista nos dera, mas informavam que aquele número não existia. Tentamos várias vezes, e nada. Nesse instante, avistamos um táxi de cinco assentos que acabava de deixar um ageiro. Aproximamo-nos e perguntamos se ele poderia nos levar até o hotel. Quando o taxista viu o endereço, nos informou de que não poderia, pois seu táxi era de outro município, Pisa, e, de acordo com a lei do país, ele não podia transportar ageiros de um município diferente, no caso Lucca, onde estávamos. Ele só poderia nos levar se estivéssemos indo a Pisa, o município onde seu táxi estava registrado.

Havia ainda um único estabelecimento aberto naquela praça, uma pizzaria, que aguardava a saída dos últimos clientes para fechar. Com muito custo, conseguimos nos comunicar com os atendentes e explicar que queríamos um táxi, ou encontrar a porta São Pedro, onde possivelmente haveria mais táxis. Eles tentaram nos ajudar de todas as formas, mas não conseguiram. Nenhum táxi que eles contataram transportava cinco pessoas. Por fim, nos deram um mapa de como sair do centro e chegar à porta São Pedro.

Fomos caminhando àquela hora da noite, e a porta São Pedro parecia cada vez mais distante. Para piorar, algumas pessoas do grupo não estavam com calçados adequados para caminhar em ruas de pedras, pois não havíamos saído com a pretensão de andar tanto. Além disso, não sabíamos se era perigoso ou não caminhar àquela hora pelas ruas desertas. Vez por outra, cruzávamos com uma pessoa. Para uma delas perguntamos se estávamos muito longe da saída, e ela nos indicou a direção. Nós estávamos perto, graças a Deus e a Santa Gemma, que nos guiava. Porém, ainda não era o fim do nosso desconforto. Quando

atravessamos a tão procurada porta São Pedro e amos para o outro lado da cidade, ela nos pareceu mais deserta ainda. Havia apenas alguns jovens que saíam de alguma festa. Tentamos procurar na internet empresas de táxis para ligar, mas poucas atendiam, e as que atendiam não disponibilizavam táxis para cinco pessoas.

Para agravar a situação, nem sabíamos o rumo do hotel, pois, em último caso, poderíamos retornar a pé. Tentamos todas as possibilidades, e nada. Para complicar a situação ainda mais, a carga dos nossos celulares estava chegando ao fim. Em pouco tempo, estaríamos também sem telefone. Tentamos ligar para o hotel e explicar o ocorrido e onde estávamos, para que eles chamassem um táxi, mas foi em vão. Depois de várias tentativas, a portaria do hotel atendeu nossa ligação, mas disse que não poderia enviar um táxi.

Esgotadas todas as possibilidades, saímos caminhando mais uma vez sem rumo e avistamos outra pizzaria que ainda estava aberta, mas também já encerrando suas atividades, pois não havia mais nenhum cliente no local, somente os entregadores, que conversavam na esquina aguardando o estabelecimento fechar. Fomos até lá, mostramos o endereço do hotel onde estávamos e pedimos encarecidamente que chamassem um táxi para cinco pessoas. O proprietário, um árabe, entendeu nosso desespero, sentiu compaixão e tentou várias vezes chamar um táxi, mas, àquela hora da madrugada, estava difícil. Por fim, ele decidiu que nos levaria até o hotel no seu carro.

Que alívio! Alívio por supostamente termos encontrado uma boa alma que nos socorresse, mas, ao mesmo tempo, um pouco de preocupação, pois era um estranho, e ainda por cima alguém que não era nativo do local. Enquanto íamos até o carro com ele, alguém do grupo manifestou baixinho sua preocupação, mas não tínhamos alternativa senão essa, ou então voltar a pé para o hotel, que nem sabíamos a que distância ficava ou em qual direção.

O carro do “bom samaritano” estava repleto de papéis, caixas e notas de dinheiro

espalhados por toda parte. Assim que ele abriu a porta traseira, os papéis e várias notas de dinheiro caíram e se espalharam pela calçada. Ele chamou dois de seus funcionários, também com traços árabes, que ajudaram a recolher o que havia caído, colocando tudo no porta-malas, e nós fomos acomodados, os cinco, no seu carro. No trajeto até o hotel, o silêncio era total, num misto de insegurança, medo e dificuldade de comunicação. Quebramos o silêncio perguntando o nome dele, que se identificou como Kaiser. Tínhamos a impressão de que ele estava nos levando para outro lugar, e não para o hotel, pois já tínhamos rodado um bom tempo e nada de ele aparecer. Pelo mapa que havíamos consultado antes de sair, o hotel estava a menos de dois quilômetros, e aquele carro já havia rodado mais de dez minutos.

Entreolhávamo-nos preocupados e receosos, e não ficamos confortáveis, nem física nem psicologicamente, principalmente quando ele atendeu o celular e começou a falar, em árabe, com outra pessoa. Pensei: “Ele deve estar arquitetando algo com alguém a nosso respeito, acho que estramos numa fria!”. Os piores pensamentos avam pela nossa cabeça, mas tínhamos que confiar. Por fim, para o nosso alívio, avistamos as bandeiras da entrada do hotel onde estávamos hospedados. Estávamos, enfim, chegando, graças à proteção de Santa Gemma Galgani, que operou mais esse milagre, colocando um anjo no nosso caminho.

Ao desembarcarmos em frente ao hotel, agradecemos e quisemos deixar uma contribuição em dinheiro por tamanha generosidade, mas o homem não quis aceitar. Na verdade, o que ele fez por nós não tinha preço, foi por pura bondade, pela graça de Deus. Mesmo assim, deixamos sobre o banco do carro uma pequena quantia. Respiramos aliviados e arrependidos por ter desconfiado daquele homem que Deus colocou no nosso caminho. Naquele instante, tivemos a certeza de que em todos esses acontecimentos estava a intervenção de Santa Gemma, nos protegendo e nos acompanhando. E é essa santa tão especial que eu convido você, a partir de agora, a conhecer.

Vamos embarcar, a seguir, de volta à Itália do século XIX e início do século XX,

para conhecer não apenas Santa Gemma Galgani, mas também sua família, seus amigos e confidentes, bem como os lugares onde ela viveu.

INTRODUÇÃO

Santa Gemma Galgani (1878-1903) é uma das santas mais enigmáticas do século XX e, também, da história da Igreja. Viveu dramas espirituais que a levavam, em frações de segundo, do céu ao inferno. Foi tida como louca e fanática por alguns e como santa por muitos e pela Igreja. Foi rejeitada e amada, sofreu preconceitos e foi aceita, experimentou o céu e o inferno ainda neste mundo, e ela mesma acreditava que para subir aos céus era preciso descer aos infernos, o que, na espiritualidade da paixão, indica a essência da teologia da cruz: não há ressurreição sem a cruz. Foi essa espiritualidade que moveu toda a vida de Santa Gemma e sua vocação à santidade. Sim, Gemma Galgani tinha vocação para a santidade! Nasceu para ser santa e viveu já neste mundo esse processo que culminou na sua canonização (1940). Tudo o que ela mais queria era ser santa, e para isso fazia os maiores sacrifícios e as maiores renúncias. Não bastassem as limitações físicas, de saúde, ela fazia penitências severas que a deixavam ainda mais debilitada.

Destacavam-se em sua vida, por um lado, seus frequentes encontros com Deus, por meio de seus mediadores, São Gabriel da Virgem Dolorosa e Nossa Senhora das Dores, sem contar um anjo que, segundo ela, vinha constantemente visitá-la, trazendo-lhe recados de Deus, e a presença do próprio Cristo crucificado, que falava com ela em suas dores. Por outro lado, havia o diabo, que vinha também com a mesma frequência, até disfarçado de anjo ou de seu confessor, para tentála e desviá-la do caminho. Não que ela assim quisesse, mas ela via esses encontros com o diabo como provação para a sua santidade. Todos os encontros, com Deus e com o diabo, ela descrevia com riqueza de detalhes, como podemos conferir em seu Diário e na sua Autobiografia. Melhor do que ninguém, ela descreveu a face de Cristo crucificado e a do diabo. De Cristo, queria imitá-lo, e do diabo, queria evitá-lo.

Na maior parte do tempo, ela descrevia Jesus no seu sofrimento. Era com o Cristo crucificado que ela tinha contato direto. Relatava o rosto de um Cristo

sofredor, chagado, de cuja dor ela se compadecia, e pedia para que ele retirasse a coroa de espinhos e nela a colocasse, para que ela pudesse sentir a sua dor.[1] Descrevia ora um rosto triste, ora um rosto alegre.[2] Em certos momentos, ele se apresentava a ela afetuoso, sorrindo, abraçava-a com carinho e a abençoava, [3] e, em outros momentos, se apresentava severo e, descontente com as suas faltas, a corrigia. Severo, mas sem perder a ternura. Descrevia as chagas das suas mãos, das quais saíam raios de luz, como mencionou Santa Faustina ao descrever a imagem de Jesus misericordioso. [4]

Diz um provérbio “que o diabo não é tão feio como se pinta”, mas Santa Gemma o descreveu de modos e características horripilantes de fazer inveja a Dante.[5] Vemos isso em trechos de seu Diário. Descrevia-o como um homem pequeno e muito feio que a deixava horrorizada.[6] Em outros momentos, ela dizia que ele tinha a forma de um grande cão preto, que colocava as patas sobre seus ombros. [7] Em outros ainda, voltava a reforçar a imagem de um homenzinho, bem pequeno,[8] com o corpo todo coberto de pelos pretos.[9] E dizia também: “O demônio era tão horroroso que fechei os olhos para não o ver mais”. [10]

Se o diabo era descrito de modo a lhe causar repulsa e dor – porque vez por outra a agredia fisicamente –, Cristo era descrito como sofredor, Crucificado, com todas as dores da crucificação. Em seus êxtases, ela o recebia e assumia as suas dores, recebendo a coroa de espinhos sobre sua cabeça, chegando mesmo a ar a noite com ela, segundo seus relatos. Ela queria sentir, mesmo que apenas por alguns momentos, as dores de Cristo, porque isso a fazia sentir-se mais perto dele, mais perto do céu e longe do diabo. Se o diabo a fazia ver o inferno, o Crucificado a fazia vislumbrar o céu.

Além dos frequentes momentos de êxtase, fato intrigante na vida de Santa Gemma, ela também desenvolveu estigmas, um fenômeno raríssimo na vida dos santos, reservado a apenas alguns privilegiados de Deus, como São Francisco de

Assis (1181-1226), Santa Catarina de Sena (1347-1380), Santa Rita de Cássia (1381-1457), São Pio de Pietrelcina (1887-1968) e Santa Faustina (1905-1938), entre outros poucos. É importante destacar que quase todos eles tiveram em comum a devoção a Cristo crucificado e traziam consigo símbolos da paixão de Cristo, como a coroa de espinhos, crucifixo, pregos, chagas, entre outros.

Assim, Santa Gemma Galgani caiu nas graças de Deus e de muitos que a veneram e a têm como intercessora. Ela é a santa do século XX que ascendeu de modo surpreendente no século XXI, sobretudo depois de algumas publicações, como sua Biografia,[11] escrita pelo seu diretor espiritual, Pe. Germano de Santo Estanislau, , seu Diário[12] e sua Autobiografia,[13] a qual chamava de O caderno dos meus pecados. Este último foi roubado pelo diabo, o qual tentou destruí-lo no fogo, mas foi recuperado. Falarei sobre esse episódio mais adiante, porque é um dos fatos mais intrigantes da sua história.

Assim, Santa Gemma angariou uma legião de devotos por todo o mundo, inclusive no Brasil, onde estão muitos de seus seguidores. Mas ainda há muito a se descobrir a seu respeito. Muitas coisas sobre ela ainda não foram reveladas, e este livro tem também este objetivo: descrever fatos ainda não conhecidos sobre ela, extraídos dos arquivos da Casa Geral da Congregação da Paixão de Jesus Cristo (ionistas), em Roma, e do mosteiro das monjas ionistas, em Lucca, Itália, onde ela foi sepultada. Em Lucca, encontra-se também o santuário a ela dedicado.

Santa Gemma tem um perfil cativante e, ao mesmo tempo, misterioso e fascinante. Os que a conhecem am a amá-la. É inexplicável esse fascínio que Santa Gemma desperta, e, em vista disso, resolvi escrever este livro, que não pretende ser biográfico, mas mais espiritual, embora traga muito de sua biografia, ou seja, de sua história de vida e dos lugares onde viveu, porque é difícil separar sua vida, sua curta história, da sua espiritualidade e santidade.

O recorte deste livro sobre Santa Gemma Galgani busca evidenciar a paradoxal

relação dela com Deus e com o diabo. Talvez seja isso o que mais fascina os devotos desta santa que viveu o propósito da santidade e morreu no auge da juventude, com 25 anos, deixando para a Igreja um legado místico e espiritual que ainda está sendo descoberto, e ajudará a muitos na busca da santidade. “Sede santo, como vosso Pai celeste é santo” (Lc 6,36; Mt 5,48; 1Pd 1,16; Lv 11,44), eis a proposta de Jesus tão levada a sério por Santa Gemma que deve ser o propósito de todo cristão. E, para ser santo, nada melhor que ter diante de si o exemplo de uma santa que foi ao extremo na busca pela santidade. É este também o propósito deste livro: ajudar-nos a sermos mais santos.

Neste livro, conheça um pouco melhor Santa Gemma, sua espiritualidade e sua relação com Deus e o diabo e, assim, esteja mais fortalecido nas adversidades da vida, mais perto de Deus e mais perto da santidade. Descubra, por meio de Santa Gemma, como Deus pode se manifestar na sua vida pessoal, mesmo que você se sinta longe da santidade, e veja como são frequentes as tentações do diabo, que usa muitos disfarces para nos tentar. Essas manifestações beligerantes, de Deus e do diabo, podem não ocorrer na sua vida do mesmo modo como Santa Gemma as experimentou, mas elas estão aí, não há dúvidas. Cabe a cada um identificálas e discernir entre o bem e o mal. Optar pelo bem é parte do processo de santidade.

Que este livro o ajude no seu processo de santidade, tendo diante de si o exemplo de Santa Gemma. Aqui, falaremos sobre os três momentos de sua vida: infância, adolescência e juventude. Santa Gemma não conheceu a maturidade, ou a idade adulta, e muito menos a velhice, pois morreu no auge da juventude. Como seus pais também morreram relativamente jovens, a velhice não fez parte de sua vida, nem direta nem indiretamente.

A jovem de destacada beleza, elogiada pelos seus olhos azuis e rosto angelical, viveu somente para Deus e queria a ele se consagrar na vida monástica ionista, mas não foi aceita devido à sua frágil saúde. Essa e tantas outras rejeições não a fizeram desistir da missão de consagrar-se a Deus. Não conseguindo fazê-lo oficialmente, como monja, consagrou-se pessoalmente, e

viveu essa consagração até a morte, sendo mais tarde reconhecida pelas monjas ionistas de Lucca, e pelo mundo, como uma das mais autênticas ionistas, pois melhor que ninguém soube viver em sua carne mortal as dores imortais de Jesus crucificado.

Descubra, agora, um pouco mais da vida e da espiritualidade desta santa e veja como o seu exemplo ajuda a iluminar tantas outras vidas.

I

A Igreja e a sociedade na época de Santa Gemma Galgani

Talvez o leitor, ávido por conhecer melhor Santa Gemma, queira logo saber quem ela foi, o que fez, como viveu, quais foram os seus dramas espirituais e como ela enfrentou o diabo. Porém, peço paciência e convido você a fazer antes uma viagem à Itália do século XIX, para descobrir como eram aqueles tempos, como eram a sociedade e a Igreja, quais foram os acontecimentos marcantes não apenas da Europa, mas também do “mundo” em que vivia a família Galgani, e em que contexto nasceu e viveu Gemma Maria Humberta Pia Galgani, que mais tarde se tornaria Santa Gemma Galgani, canonizada em 2 de maio de 1940 pelo então papa Pio XII. Esses dados são importantes para a compreensão da vida dessa santa e de sua relação com Deus e o diabo.

Ficou conhecida como “Gemma Galgani, a Joia”, pois gemma, em italiano, significa “pedra preciosa”. Ela nasceu numa terça-feira, em 12 de março de 1878, oito anos após o período da unificação da Itália pelo movimento conhecido como Ressurgimento (em italiano, Risorgimento), que foi de 1815 a 1870. Esse movimento de unificação, com duas fases, trouxe grandes mudanças na geografia política italiana, entre elas a declaração de um Reino da Itália e a anexação de Roma a esse reino, em 1870.

A Igreja católica, devido a sua importância e predominância como religião oficial do Estado, foi envolvida nesse movimento, que acirrou a disputa entre Igreja e Estado, por meio da chamada Questão Romana, uma disputa territorial ocorrida entre o governo italiano e o papa que durou de 1861 a 1929 e culminou, mais tarde, na criação do Vaticano pelo tratado de Latrão, durante o governo de Benito Mussolini.

A Igreja sofreu várias perdas, inclusive territoriais e financeiras, e, em 13 de março de 1871, o rei Vítor Emanuel II (1820-1878), também conhecido como

“Pai da Pátria”, ofereceu ao papa Pio IX (1792-1878), sumo pontífice da época, como compensação pelas perdas, uma indenização e o compromisso de mantê-lo como chefe do Estado do Vaticano, até então um bairro de Roma onde ficava a sede da Igreja católica. Porém, consciente de sua influência sobre os católicos italianos, e desejando conservar o poder da Igreja, o papa recusou as duas ofertas e declarou-se prisioneiro voluntário do Estado italiano; além disso, proibiu os católicos italianos de votar nas eleições do novo reino. No entanto, essa é uma longa história que aqui não nos interessa muito, e a refiro apenas para contextualizar o tumultuado período do nascimento de Gemma Galgani e mostrar o que se ava na Igreja e na sociedade italiana do seu tempo, o que, direta e indiretamente, influenciava a vida de todos, inclusive da família Galgani, de origem nobre e profundamente católica.

Gemma Galgani nasce nessa época de rivalidades políticas entre Igreja e Estado, um mês após a morte do papa Pio IX, o papa com o pontificado mais longo da história (31 anos e 7 meses) e o primeiro a ser fotografado, segundo registros históricos, pois foi nesse século que surgiu a fotografia, mais precisamente em 1826. Pio IX faleceu em 7 de fevereiro de 1878, e Gemma nasceu em 12 de março desse mesmo ano, ou seja, 33 dias após a morte do sumo pontífice. Assim, quando Gemma nasceu, já havia acontecido o conclave, que elegeu imediatamente o italiano Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci-ProsperiBuzzi, o papa Leão XIII, que governou a Igreja de 20 de fevereiro de 1878 a 20 de julho de 1903, ou seja, quase o mesmo período da vida de Gemma Galgani, que foi de 12 de março de 1878 a 11 de abril de 1903. Gemma Galgani morreu num Sábado de Aleluia, às 13h, ou seja, três meses e nove dias antes da morte de Leão XIII. Ela estava com 25 anos completos.

O papa da época de Gemma Galgani, Leão XIII, ficou famoso pelas encíclicas sociais. A mais conhecida é a Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891, sobre os direitos e os deveres do capital e do trabalho. Essa encíclica marcou o início da sistematização do pensamento católico, chamado até os dias de hoje de Doutrina Social da Igreja.

Leão XIII trouxe grandes avanços para a Igreja da época, que repercutem até os dias atuais, com contribuições filosóficas, econômicas, sociais e religiosas. Daí a sua relevância na história da Igreja e do mundo, inclusive da Europa, que recebia fortes reflexos do socialismo e do comunismo, sob a influência de um dos seus principais mentores, o filósofo e economista alemão Karl Marx (1818-1883), que havia publicado uma das suas obras mais relevantes, O Capital (1867). O papa Leão XIII argumentava as falhas tanto do capitalismo quanto do comunismo e apontava nas suas encíclicas sociais os caminhos da Igreja e sua filosofia, combatendo a filosofia marxista. Em 1880, em contraposição ao marxismo, ele declara o tomismo (filosofia de Santo Tomás de Aquino), conhecido como escolástica, a filosofia oficial da Igreja e, portanto, das escolas e universidades católicas, sobretudo na formação do clero, por meio da Carta Encíclica Aeterni Patris. Dessa forma, desperta novamente o interesse pelo tomismo, que tinha sido muito vigente no Concílio de Trento (1545-1563).

A escolástica é a filosofia que se caracteriza pela tentativa de conciliar o aristotelismo com o cristianismo, procurando integrar o pensamento do filósofo Aristóteles e o pensamento neoplatônico aos textos bíblicos, gerando, assim, uma filosofia do ser, inspirada na fé, bem como uma teologia que se pretendia científica, porém sem se distanciar dos dogmas da Igreja. Desse modo, no pontificado de Leão XIII, filosofia e teologia, os dois pilares do conhecimento, estavam entrelaçadas, sendo a teologia considerada a “mãe” de todas as ciências, inclusive da filosofia, favorecendo, assim, o florescimento de certos tipos de mística e de espiritualidade que iriam influenciar a vida dos santos dessa época, inclusive de Santa Gemma.

Nesse contexto de acentos místicos e espirituais dados pelo papa, que favoreceram a manifestação dos fenômenos desenvolvidos por Gemma Galgani, recordo que é também do papa Leão XIII o ato de consagração solene de todo gênero humano ao Sagrado Coração de Jesus, a pedido da irmã Maria do Divino Coração (1863-1899, beatificada em 1975), religiosa da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor. Depois de ter tido revelações privadas, irmã Maria do Divino Coração pediu ao papa, em cartas, que consagrasse o mundo inteiro ao Sagrado Coração de Jesus, e Leão XIII considerou essa consagração solene o maior ato do seu pontificado.

Esses fatos mostram quão favoráveis eram os tempos de Santa Gemma para o florescimento da espiritualidade e da mística, pois vemos nesse ato a abertura do papa a fenômenos dessa natureza, os quais vão ser amplamente desenvolvidos por Santa Gemma, como êxtases, estigmas, glossolalia religiosa, visões e revelações etc. Vemos, assim, que Leão XIII era um papa sintonizado com a sociedade e com a espiritualidade da sua época. Igreja e sociedade não eram instituições separadas, segundo ele, pois a religião tinha uma grande influência na sociedade, embora a Igreja não estivesse mais atrelada ao Estado italiano, apenas ao Estado do Vaticano, a partir de 1929, quando o Vaticano se tornou um país independente.

A influência social e espiritual do papa não se estendia somente à Itália ou à Europa, mas ao mundo todo. Um dado que comprova essa influência foi o fato de ele conceder a sua alteza imperial, a princesa Isabel, filha de D. Pedro II, uma rosa de ouro, símbolo de generosidade, por ela ter publicado a Lei Áurea (1888), que extinguiu oficialmente a escravidão no Brasil. A princesa era devota de Nossa Senhora Aparecida e, em 1868, tinha oferecido à imagem de Nossa Senhora uma coroa de ouro cravejada de brilhantes. Há quem diga que a rosa de ouro doada a ela pelo papa Leão XIII se encontra no museu de Aparecida, mas o que se comprova é que as rosas de ouro que lá se encontram são as que foram doadas pelo papa Paulo VI (1967), pelo jubileu dos 250 anos do encontro da imagem; por Bento XVI (2007), por ocasião da Conferência de Aparecida; e pelo papa Francisco (2017), pelos trezentos anos de Aparecida.

De volta à sociedade da época de Gemma Galgani, a Igreja vivia essa relação de influência com o Estado, alimentada, como já dito, pelas inúmeras encíclicas sociais de Leão XIII, que apontavam os novos rumos da Igreja e, consequentemente, da sociedade italiana, majoritariamente católica. Ao mesmo tempo, vivia-se um forte apelo espiritual, sentido diretamente na família Galgani, pois os pais de Gemma eram católicos fervorosos, de missas frequentes e orações diárias em casa — fato que tratarei mais adiante — e, na mais tenra idade, Gemma aprendeu deles, sobretudo da mãe, Aurélia Landi, a orar incessantemente diante de Jesus crucificado.

Gemma nasceu praticamente no final do século XIX, o século das grandes invenções. Em 1802, o inglês George Bodley havia inventado o fogão a gás, mas a família Galgani ainda cozinhava no fogão a lenha, como a maioria das famílias daquela região. No inverno italiano da Toscana, os filhos de Henrique Galgani e Aurélia Landi se reuniam em torno do fogão para se aquecer. Ainda no começo desse século (1804), foi inventada por sir Richard Trevithick e aperfeiçoada por George Stephenson a locomotiva, meio de transporte empresarial e industrial mais usado no período em que viveu Gemma Galgani, embora, para transportar pequenos grupos e famílias, o predomínio mesmo fosse das carroças com tração animal, que iam das mais simples até as mais sofisticadas, conferindo à histórica cidade de Lucca e seus arredores um ar cosmopolita, como o das grandes cidades da Europa. Na rua da farmácia do pai de Gemma, no subúrbio de Lucca, o fluxo delas era constante, bem como dos bondes, que iam e vinham de um lado a outro da cidade.

O endoscópio foi inventado também no início daquele século (1805), por Philipp Bozzini, na tentativa de observar interiormente, e diretamente, o corpo humano vivo, através de um tubo. No começo, esse aparelho era conhecido por lichtleiter, e somente mais tarde ou a se chamar endoscópio. Sua função era examinar o trato urinário, a bexiga, o reto e a faringe e tratar doenças dessas partes internas do corpo humano. Apesar de, na época, os farmacêuticos exercerem funções similares às dos médicos, o químico e farmacêutico Henrique Galgani não fazia uso dessa invenção de seu século, que naquela altura já estava bem aperfeiçoada. O avô de Santa Gemma, o Sr. Carlos Galgani, que era médico, chegou a conhecer esse aparelho. Embora não fosse médico como o pai, mas farmacêutico, o Sr. Henrique teve que lidar com muitas doenças na família, inclusive a doença da filha preferida, Gemma, como veremos mais adiante.

Ainda no âmbito da saúde, o século XIX teve como marco a transfusão de sangue. Em 1818, James Blundell, após realizar com sucesso experimentos em animais, fez a transfusão de sangue em mulheres com hemorragia pós-parto. Porém, no final daquele século, problemas com a coagulação do sangue e reações adversas continuavam a desafiar cientistas e médicos. Nesse século

também teve origem a anestesia, não nos moldes como a conhecemos hoje, mas os princípios elementares que seriam posteriormente desenvolvidos. Seu marco inicial está registrado em 1846, com William Thomas Green Morton, que realizou uma anestesia baseada em éter num paciente para que fosse tirado um tumor que lhe tomava a glândula submaxilar e uma parte da língua. Hoje o éter não é mais usado como anestésico, mas esse produto foi, naquela época, o precursor da anestesia.

Nesse século, era inventada também a seringa, que já tinha sido pensada séculos antes, mas que foi de fato usada com eficácia em 1853, quando o médico francês Charles Pravaz desenvolveu a seringa hipodérmica, que possibilitava injetar diretamente no organismo os remédios, que antes eram tomados somente por via oral. Mas foi o médico londrino Fergusson o primeiro a usar uma seringa de vidro que permitia acompanhar a saída do medicamento da injeção. Em 1869, o médico francês Luer fabricou a primeira seringa todinha de vidro, facilitando muito os procedimentos médicos. Alguns anos mais tarde, essas invenções no campo da medicina chegavam à região de Lucca, onde viviam o farmacêutico Henrique Galgani e sua família.

Quero lembrar também que, no início daquele século (1809), foram inventadas as lâmpadas de arco voltaico, as mesmas que deram origem mais tarde às modernas lâmpadas de descarga de mercúrio e sódio, comercializadas entre os anos de 1888 e 1920, e usadas na iluminação pública e de ambientes. Embora a iluminação na casa dos Galgani, em Camigliano, pequena aldeia da Toscana, fosse à vela ou lamparina, a cidade de Lucca, perto dali, já tinha uma iluminação mais moderna para a época. O aperfeiçoamento da lâmpada, contudo, se deu apenas em 1879, quando Gemma tinha um ano de idade, com a invenção de Thomas Edson, que conseguiu criar uma lâmpada que podia ser comercializada.

Gemma Galgani viveu pouco tempo à luz de velas em Camigliano, porque, quando ela tinha apenas um mês de vida, seu pai se mudou com a família para o subúrbio de Lucca, onde, como vimos, já havia iluminação de lâmpadas. O motivo da mudança era a preocupação de Henrique Galgani com a educação dos

filhos, pois ele era um homem previdente, à frente de seu tempo, e já vislumbrava uma educação de qualidade aos seus filhos. Tanto é que, morando em Lucca, ele colocou Gemma e Gino, dois de seus filhos prediletos, numa conceituada escola para meninos e meninas. Mais tarde, os outros menores também foram matriculados nessa escola, que era dirigida por duas mulheres solteiras de boa índole, Hercília e Helena Vallini, conhecidas e amigas do Sr. Henrique desde a mocidade, quando ele ainda morava com seu pai, o médico Carlos Galgani.

Nessa época, Gemma tinha apenas dois anos de idade, e ela permaneceu nessa escola, sob os cuidados das duas donas da escola, até os cinco anos. Era uma escola particular, de período integral, e Gemma ava o dia todo no local, só retornando para casa à noite. Esse dado mostra outro fator preponderante nessa época de desenvolvimentos e grandes invenções: o avanço da educação.

A educação do século XIX, mais especificamente do final desse século, na Itália, era marcada pelo rigor. Embora ainda não fosse tão comum as mulheres terem incentivo nos estudos, Gemma não só era incentivada pelo pai, como ela mesma tinha um gosto surpreendente pelo conhecimento, pelas letras, que mais tarde iriam lhe favorecer nos seus poucos, mas fecundos, escritos. Seu forte mesmo era a espiritualidade, os escritos espirituais, que foram incentivados pela mãe. Desde a mais tenra idade, falar e escrever sobre as coisas de Deus era seu melhor atempo.

Voltando um pouco ao início do século XIX, no âmbito da educação, havia sido lançado na Itália o plano de ensino geral, que decidiu estabelecer no Reino da Itália uma escola em cada departamento da cidade e em cada cidade com mais de dez mil habitantes. Lucca foi beneficiada por esse projeto porque, em 1871, a cidade já contava com uma população de 70.537 habitantes, segundo o ISTAT (Istituto Nazionale di Statistica). Segundo esse mesmo Instituto de Estatística, em 2011 Lucca estava com 87.200 habitantes, ou seja, embora grande e desenvolvida na época de Gemma Galgani, a cidade não teve muita expansão demográfica nos últimos 150 anos.

Ainda sobre a educação, os primeiros programas nessa área foram aprovados em 1860, e entre os temas centrais, como era de se esperar, estava a religião, além da busca pela alfabetização cultural básica para toda a população. Em 1867, os programas foram submetidos a uma análise inicial, em que se notou uma profunda crise entre a Igreja e o Estado. Assim, a educação religiosa começou a perder espaço para a educação cívica,[1] mas não na casa dos Galgani, onde se mantinha firme o viés religioso na educação dos filhos, inclusive de Gemma, que não precisava de incentivo algum para estudar religião.

Por fim, para encerrar este capítulo inicial sobre a sociedade e a Igreja da época de Gemma Galgani, quero destacar o fenômeno da emigração italiana, conhecida também como “diáspora italiana”. Esse foi um fenômeno social que eu não poderia deixar de fora desta obra, devido a sua relevância. Ele se iniciou exatamente no período em que viveu Gemma Galgani, ou seja, nas últimas décadas do século XIX, e continuou até meados do século XX. Historiadores afirmam que a diáspora italiana foi o maior movimento migratório não forçado da história. Entre os anos de 1880 e 1976, perto de treze milhões de pessoas deixaram a Itália para ir morar em outros países, entre eles o Brasil, que recebeu 1,5 milhão de italianos, inclusive um dos irmãos de Gemma Galgani, Heitor Galgani, nascido em 21 de março de 1873, que foi localizado em Araraquara, no interior do estado de São Paulo, episódio que descreverei mais adiante.

II

A região onde nasceu e viveu Santa Gemma Galgani

A Itália é um país fecundo em santos. São inúmeros os santos italianos, a começar pela lista de papas canonizados, muitos deles italianos, como mostra o Anuário Pontifício, publicado pela Secretaria de Estado do Vaticano. Há os santos e santas italianos fundadores de institutos, congregações e ordens religiosas, e há também os santos de origem italiana membros dessas instituições, das várias regiões da Itália.

Santa Gemma é uma santa italiana, a primeira do século XX. Nasceu em Borgonuovo di Camigliano, uma aldeia de Capannori, na província de Lucca, na região da Toscana, mais precisamente na via Pesciatina, onde atualmente funciona um orfanato, com o quarto de Gemma transformado em capela. Gemma, porém, viveu pouco tempo nesse lugarejo, pois, com aproximadamente dois meses, seus pais se mudaram para o subúrbio de Lucca, na via de Borghi. Vamos, então, conhecer essa região, que é considerada uma das mais belas da Itália.

A Toscana fica na região central da Itália. Atualmente congrega, aproximadamente, 3,7 milhões de habitantes e possui 22.997 km², tendo como capital a cidade de Florença, que fica a 78,5 km de Lucca. Florença, ou Firenze, em italiano, é a maior cidade da região da Toscana e foi considerada por muito tempo a capital da moda, título hoje atribuído a Milão. A cidade de Florença é considerada o berço do Renascimento italiano e é tida como uma das cidades mais belas do mundo. Nessa cidade nasceu Dante Alighieri, o autor de A divina comédia, poema de viés épico e teológico, marco da literatura italiana e universal, escrito provavelmente entre os anos 1304 e 1321, e dividido em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Florença tem origem num povoado etrusco e foi governada pela família Médici, da qual fala Nicolau Maquiavel (14691527), também importante figura florentina, que se destacou no campo da literatura, sobretudo em O príncipe (1513), um tratado político, em que faz uma dedicatória a Lourenço de Médici II, duque de Urbino (1492-1519). A família

Médici governou Florença desde o início do século XV até meados do século XVIII.

O mapa da Itália lembra uma bota de cano longo, salto pontiagudo e boca larga, e dentro dela, bem no centro, ou um pouco mais acima, está a região da Toscana, que apresenta uma forma triangular, cobre uma vasta extensão, conforme citado, e é banhada pelo mar da Ligúria e pelo mar Tirreno. O relevo da região é formado por 66,5% de morros e colinas, que lhe conferem um charme especial, de rara beleza, sobretudo suas formações montanhosas, que ocupam 25,1% da região. São poucas as áreas de planícies, apenas 8,4%, mas não menos belas que as demais. O ponto culminante da região da Toscana é o monte Pisanino, com 1.946 m de altura, localizado nos Alpes Apuanos. A região é cortada pelo rio Arno, que atravessa as cidades de Florença e Pisa, que, embora seja outra província, também é muito relevante na região da Toscana, sobretudo por causa da torre pendente da catedral, um importante ponto turístico. A região da Toscana é composta por doze províncias, entre elas a província de Lucca, onde nasceu Gemma Galgani.

A província de Lucca tem, aproximadamente, 372.244 habitantes nos tempos atuais. Na época em que viveu Gemma Galgani, esse número era menor, mas não saberia precisar a demografia exata dos fins do século XIX e início do século XX. É bom lembrar que a Itália, como outros países europeus, não tem grande crescimento demográfico. Pelo contrário, a população até diminui em algumas cidades, devido a vários fatores, entre eles, a forte emigração, já citada no capítulo anterior, e o envelhecimento da população. Embora as famílias italianas sejam conhecidas pelo grande número de filhos, e isso não foi diferente com a família Galgani, que teve oito filhos, esse quadro mudou na atualidade, e as famílias italianas, seguindo a tendência de toda a Europa, já não têm uma prole numerosa como antes. Sobre a família Galgani falarei em capítulos posteriores.

A província de Lucca está dividida em 35 comunas, algo equivalente a município no Brasil, sendo Lucca a capital da província. Vemos, assim, que

Lucca é também uma cidade importante da região, por ser sede de província e pela sua história. Antes de ser província era o principado de Lucca (1805-1815), depois, ducado (1815-1847), e, mais tarde, província de Lucca, como é atualmente. A cidade de Lucca é hoje relativamente populosa, comparada a outras cidades históricas da região. Sua população é de aproximadamente 90.000 habitantes, ou um pouco mais. Pela grande movimentação na cidade, esse número parece ser maior, devido à quantidade de turistas que visitam diariamente o local, apesar de Lucca estar fora dos grandes fluxos turísticos da Itália.

Lucca traz em sua história algumas personalidades, como o compositor de ópera Giacomo Puccini (1858-1924), um dos maiores expoentes das chamadas “óperas realistas”, que nasceu em Lucca, mas morreu na Bélgica. Ele foi um contemporâneo de Gemma Galgani, mas, embora tenham vivido parte de sua vida na mesma cidade, não encontrei nenhum registro de que tenham se conhecido, até porque Puccini e Gemma, além de viverem em mundos muito distintos, tinham uma grande diferença de idade, e Puccini se mudou para Milão em 1880, quando Gemma tinha apenas dois anos.

Puccini vivia no mundo da música, nos grandes salões de ópera e teatros, no luxo e em viagens pelo exterior, enquanto Gemma vivia num mundo muito , de simplicidade, para não dizer de pobreza, apesar de seus nobres ancestrais. Ela estava praticamente confinada entre as muralhas de Lucca, nos s espaços de seu convívio, que iam da simples casa onde vivia ao colégio e à igreja. Porém, ambos têm algo em comum: a casa onde Puccini viveu em Lucca é hoje o Museo Casa Puccini, e parte da casa onde Gemma viveu é hoje o museu dela, onde estão relíquias da santa, como as luvas que ela usava para cobrir os estigmas; o cilício com que ela se mortificava; seus sapatos; livros que ela usava para as suas orações, que não eram poucas; e partes de suas vestes, com manchas que indicam o seu sofrimento devido à tuberculose, doença que a levou à morte; entre outros objetos pessoais. É um museu simples e pequeno, mas emana uma grande aura de espiritualidade que toca até os mais incrédulos visitantes. Nessa casa onde Gemma viveu, chamada de “Casa Galgani”, estão preservadas muitas coisas de sua época, inclusive o colete ortopédico que ela usava por causa da doença na coluna, seu pente, uma bela colcha que ela mesma

confeccionou, entre outros objetos, que, por se tratarem de objetos de uma santa, se recobrem de significados.

Quero destacar ainda que Lucca é uma cidade histórica, um verdadeiro sítio arqueológico, como muitas cidades da Itália, e que guarda indícios de civilizações antigas, por exemplo, dos povos lígures, um povo antigo, relacionado com as construções megalíticas. Daí o destaque para a arquitetura de Lucca, que reserva traços desses povos e dos etruscos, que se destacaram pela arte. Assim, uma das belezas de origem ancestral de Lucca está na arquitetura e na arte, preservadas, em partes, até hoje, e que fazem valer a pena visitá-la e realizar essa viagem ao ado. Senão a um ado remoto, pelo menos aos fins do século XIX e início do século XX, quando viveu Santa Gemma Galgani, que, para os seus devotos, é a principal atração do local.

Ainda em relação à história de Lucca, dizem que o seu primeiro registro oficial foi feito pelo historiador Tito Lívio, o influenciador do filósofo italiano Maquiavel, que escreveu a célebre obra Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, uma obra de história política e filosofia, do início do século XVI, que se tornou um clássico no mundo todo. Tito Lívio era de Pádua, e registrou, além de Lucca, a história de Roma, desde o momento tradicional da sua fundação (753 a.C.) até o início do século I da era cristã, o que colocou seu nome nos anais da história. Lucca tem essa referência nos registros históricos de Tito Lívio, o que confere a ela mais importância ainda.

Lucca, como toda cidade de porte médio, tem áreas periféricas, bem como povoados, ou vilas adjacentes. Essa característica ainda é bem comum no interior da Itália, e não é diferente na região da Toscana e na província de Lucca. Entre esses povoados está Borgonuovo de Camigliano, ou Camigliano, como é chamado esse lugarejo na maioria dos livros sobre Santa Gemma. Camigliano era, portanto, um povoado da comuna de Capannori, na província de Lucca. Não obtive informações demográficas desse povoado na época em que lá nasceu Gemma Galgani, mas o que sabemos é que era um lugar bem pequeno, quase um burgo, ou, como disse de modo redundante o biógrafo de Santa Gemma,

“Camigliano é uma pequena aldeia da Toscana, perto da cidade de Lucca”.[1] Essa “pequena aldeia” teve o privilégio de ver nascer uma santa, e hoje seu nome está por toda parte, tornando-a visível. A menina nascida em Camigliano deixou seu nome em escolas, creches, ruas, farmácias, ambulatórios, igrejas, mosteiros e santuários, pela região e pelo mundo. Gemma Galgani é uma figura muito conhecida não apenas nesse lugar onde ela viveu por apenas dois meses, mas em todo o mundo.

Atualmente, em Camigliano, se encontra a casa-mãe das religiosas do Instituto das Irmãs de Santa Gemma, fundado em 1939 por Eufêmia Giannini, uma monja ionista que deixou o mosteiro para fundar esse instituto. Na mesma região está o mosteiro das monjas ionistas, localizado na via di Tiglio, fora das muralhas da cidade de Lucca. Esse mosteiro é o mesmo em que um dia as monjas recusaram Gemma, devido a sua doença, e depois, após sua morte, a receberam com honras de santa, conforme ela mesma tinha previsto em um de seus escritos: “As ionistas não me quiseram receber, mas eu quero estar com elas, e de fato estarei depois da minha morte”.[2] Os restos mortais de Santa Gemma se encontram sepultados nesse mosteiro que um dia a recusou, e seu coração, intacto, está num relicário, no santuário a ela dedicado, em Madri, na Espanha. Falarei sobre esses fatos mais adiante, com mais detalhes.

De volta a Lucca, cidade onde viveu e morreu Gemma Galgani, quero destacar ainda alguns outros aspectos históricos e arquitetônicos, sobretudo a sua muralha, que faz a fama dessa cidade no mundo todo. Dá para imaginar uma cidade cercada de muros? Na atualidade, há condomínios que são verdadeiras cidades, cercados de muros, mas a muralha de Lucca forma algo diferente. É uma muralha histórica, construída no período do Renascimento italiano para conter invasões territoriais de povos vizinhos. Desde a Idade Antiga, era frequente cidades atraentes como Lucca serem cobiçadas por vizinhos que visavam à conquista de territórios. Dizem, inclusive, que a muralha que lá está não foi a primeira da cidade, pois antes existiram outras, inclusive na Idade Romana, com a mesma finalidade, que foram destruídas para dar lugar a outras mais fortes. A que ficou preservada até os dias atuais é do período do Renascimento, e sua construção teve início no verão de 1513.

Naquela época, havia muitas invasões, e as antigas muralhas não eram suficientes para contê-las. Exércitos estrangeiros atravessavam a Itália e invadiam territórios, fato que preocupava os habitantes de Lucca e seus governantes. Lucca era, na época, uma cidade-Estado cobiçada. O exército florentino, em 1429, já havia dado sinais de que queria ocupar a cidade. A cidade vizinha, Pisa, a apenas 23 km de Lucca, já havia sido assediada e tomada em favor de Florença, fato que ajudou a convencer os es de Lucca e seus habitantes, os lucchesi, de que era preciso derrubar as muralhas antigas e construir novas, agora mais resistentes, pois as muralhas medievais poderiam não resistir a um novo ataque. Já havia ocorrido uma tentativa de destruição dessas muralhas pela Florença, quando Filippo Brunelleschi, famoso arquiteto da cúpula do Duomo de Florença, a pedido das autoridades florentinas, construiu uma espécie de represa e um grande canal que desviava as águas do rio Serchio no intuito de derrubar as muralhas medievais de Lucca. Porém, a tentativa de Florença faliu e serviu de alerta para que os habitantes de Lucca pensassem na construção de uma nova muralha, agora mais fortificada, à prova da força da água e de outros tipos de ataque. Foi construída uma muralha tão resistente que dura até hoje, com a mesma resistência de antes. Quem a vê não imagina que ela tem mais de 400 anos.

Essa muralha foi planejada para resistir a armas de fogo, canhões florentinos ou outros ataques de qualquer invasor. Porém, a sua construção não se deu da noite para o dia, e levou mais de um século para que ela fosse terminada, cercando, assim, toda a cidade, como a vemos hoje. A construção teve início em 1513, como já foi dito, e foi concluída em 1650, mas há quem diga que a sua conclusão se deu, aproximadamente, cem anos antes, em 1565. Essa obra monumental foi um projeto do arquiteto Alessandro Resta, que pensou em todos os detalhes, como os dois leões de mármore colocados acima do portão central, por onde avam as correntes que o elevavam na hora da sua abertura ou fechamento. Além de ornamental, esses leões tinham funções específicas, mostrando que havia uma preocupação com a estética, além da segurança. Porém, essa proteção com pretensões milenares teve um preço, exigindo muito dinheiro, quantidades enormes de materiais, muita mão de obra, muito empenho e, consequentemente, muitas perdas. Para a sua construção, foi preciso fazer muitas desapropriações no entorno da cidade. Foram derrubados muitos edifícios, muitos deles

históricos, inclusive igrejas, e foram destruídos dois burgos, pequenos povoados de características fechadas e com certo poder econômico que deram origem aos termos “burguês” e “burguesia”. No entanto, parece que tantos esforços valeram a pena. A cidade ficou de fato bem protegida, garantindo à República de Lucca certa paz e tranquilidade, até a chegada das tropas de Napoleão, mas esta é outra história que aqui deixo para os historiadores.

Com as muralhas, a cidade de Lucca lembra a agem bíblica do livro do profeta Isaías que diz: “Nós temos uma cidade forte. Para salvá-la, Javé a protegeu com muro e contramuro” (Is 26,1). No entanto, não bastava a muralha, era preciso cuidar para que ela não fosse transposta pelos invasores. Assim, à noite a vigilância era redobrada, e ao entardecer as portas que davam o à cidade eram fechadas, deixando do lado de fora quem chegasse depois do horário de fechamento dos portões. As chaves das três entradas para a cidade que existiam na época ficavam com o chefe do governo. Até hoje é possível caminhar sobre as muralhas, e há uma escada que conduz os turistas para esse caminho sobre elas. Na época, dois grupos de patrulha percorriam a muralha, em direções opostas, supervisionando e verificando do alto toda a cidade e seus arredores. Havia soldados guardando as canhoneiras e os parapeitos, que utilizavam um tipo de comunicação entre eles, sobretudo à noite, por meio de sinos dispostos nas torres de guarda. Se ocorresse algo suspeito, os sinos eram tocados, e assim os moradores podiam dormir tranquilos. De manhã, tocavam-se tambores, anunciando que as portas da muralha estavam sendo abertas. Havia em média trezentos soldados que cuidavam das muralhas, e para cada portão eram designados trinta soldados. No século XVIII, aproximadamente cem anos antes do nascimento de Gemma Galgani, as muralhas de Lucca eram compostas por um arsenal de artilharia com, aproximadamente, 120 canhões. Depois, essa artilharia foi desviada para Mantova e nunca mais voltou para Lucca. Hoje a muralha não serve mais para a proteção da cidade, mas está lá como um registro de sua história.

Enfim, as muralhas de Lucca representam uma realidade única no panorama da arquitetura e do planejamento urbano europeu. Trata-se de um dos maiores exemplos de fortificação do Renascimento italiano. Quem vai à região da Toscana não pode deixar de visitar essa cidade e suas muralhas, e voltar no

tempo das grandes invasões, para conhecer os sistemas de proteção da época. A muralha, além de ponto turístico, é hoje um recurso urbano de grande importância para a cidade de Lucca. É uma construção de 4,2 km de extensão e 12 m de altura, sobre a qual é possível caminhar, correr, andar de bicicleta, descansar, ou simplesmente ver a cidade do alto. Tornou-se, na verdade, um grande parque público arborizado que delimita a cidade e confere a ela um aspecto único, encantando os visitantes. Embora os turistas se surpreendam quando a veem pela primeira vez, seus moradores já estão acostumados com ela e não se surpreendem ao vê-la todos os dias. Talvez por essa razão os biógrafos de Santa Gemma não se refiram a ela em nenhum momento, mesmo sabendo que Gemma nasceu fora das muralhas e depois ou a viver dentro da cidade, até sua morte. Para ir ao convento das ionistas, por exemplo, ela tinha que atravessar as muralhas, pois o convento, que hoje abriga também o santuário dedicado a Santa Gemma, fica fora da cidade. Embora a muralha seja algo relevante na geografia da Toscana, construções dessa natureza não eram novidade na Antiguidade italiana e europeia, sobretudo em Roma, como podemos conferir na basílica papal de São Paulo, entre outras, que fica fora dos muros aurelianos, construídos para proteger a cidade.

Além da muralha e dos lugares onde viveu e morreu Santa Gemma, Lucca tem outros pontos turísticos, por exemplo, o já citado Museo Casa Puccini, a Torre Delle Ore, com cinquenta metros de altura, aberta à visitação, e a piazza dell’Anfiteatro, considerada uma das mais belas praças da Toscana, que foi construída sobre o antigo anfiteatro romano do século II d.C. Nesse espaço acontece, nos dias atuais, entre outras coisas, a feira de flores, em comemoração do dia de Santa Zita, uma das padroeiras de Lucca.

Santa Zita, outra personalidade de Lucca, para quem não sabe, é padroeira das domésticas. De família pobre, aos 12 anos foi trabalhar como empregada doméstica na casa da abastada família Fatinelli, onde permaneceu por 48 anos, até sua morte, em 1272. Coincidentemente, ou providencialmente, Gemma também ou por experiência similar em sua vida, a qual aceitou como processo de purificação para a santidade. Aos 18 anos, após a morte do pai, em apuros financeiros, ela foi trabalhar na casa de Mateo Giannini, como empregada doméstica, para poder se sustentar. Falaremos disso mais adiante, com mais

detalhes.

De volta aos pontos turísticos de Lucca, há também a Torre Guinigi, com 44 metros de altura e 225 degraus, em cujo topo há um belíssimo jardim pênsil, de onde é possível ter uma das vistas mais belas de Lucca e da região. Essa torre, considerada o símbolo de renascimento da cidade, foi construída pela família Guinigi, uma importante e influente família de comerciantes e banqueiros de Lucca.

Em Lucca há também a catedral de San Martino, de arquitetura românica, com muitas colunas, que se destaca na arquitetura da cidade, por seus traços que fogem aos das demais construções, e que merece um estudo a parte. Porém, não é esse o objetivo deste livro sobre Santa Gemma, que com certeza rezou muito nessa igreja. Aqui é pretendido apenas contextualizar a região e o lugar onde viveu essa santa e mostrar que toda a sua beleza vem de um berço de outras belezas e contrastes. Quem vai a Lucca para saber mais sobre Santa Gemma e respirar os ares que ela respirou, naturalmente, vai se deparar com esses monumentos históricos que fizeram parte de sua vida.

Para finalizar este segundo capítulo, eu recordo outro importante lugar a ser destacado: Porcari. Ali, na estrada Pesciatina, nasceu e viveu parte de sua vida Henrique Galgani, o pai de Gemma. Porcari é um extenso subúrbio do território de Lucca, e esse lugar guarda parte da história da família Galgani, da qual falarei no capítulo seguinte.

III

A família de Santa Gemma e outras famílias importantes em sua vida

A família é a base da sociedade. É na família que se aprendem as primeiras e mais importantes lições para a vida em sociedade. Famílias desestruturadas formam uma sociedade desestruturada, e sociedades desestruturadas são geradoras de desrespeito, violência e morte. Por essa razão, a Igreja se preocupa tanto com a família, que deve estruturar-se fundamentada em princípios religiosos, seguindo as orientações da Igreja. Foi assim com a família Galgani, que era fiel aos ensinamentos da Igreja, e com as famílias que, direta ou indiretamente, fizeram parte da vida de Gemma Galgani, por meio de relacionamentos amistosos de proximidade e solidariedade nos momentos de dificuldade. Vamos, então, neste capítulo, conhecer um pouco da família de Gemma Galgani e de algumas outras famílias que tiveram uma participação importante em sua vida.

Gemma soube o valor da família, e, quando a perdeu, Deus colocou em sua vida outras famílias, inclusive famílias religiosas, como as irmãs visitandinas, ou freiras da Visitação, que pensavam em iti-la na congregação; as irmãs de Santa Zita, com as quais Gemma pensou muitas vezes em se encerrar no convento; e as monjas ionistas, com cujo carisma Gemma nutria profunda identificação, embora não tenha sido aceita na congregação devido a sua enfermidade. Gemma considerava a família religiosa uma via para se chegar ao céu, mas, antes de falar dessas famílias religiosas, vamos saber um pouco mais sobre a família de sangue de Gemma Galgani e suas famílias do coração, para entender melhor como contribuíram para o seu processo de santidade.

Gemma era filha de Henrique Galgani e Aurélia Landi, a quarta na lista dos filhos e a primeira mulher. Henrique e Aurélia eram de origem nobre. Os pais de Henrique, avós de Gemma, chamavam-se Carlos Galgani e Margarida, e, além de Henrique, o casal tinha mais três filhos: Helena, Elisa e Maurício Galgani. Carlos tinha duas irmãs, Carmela e Fosca, que eram freiras da ordem Carmelita,

ali mesmo em Borgonuovo, confirmando a indiscutível tradição religiosa da família. Além disso, Carlos era um conceituado médico de Lucca, seguindo a tradição do seu pai, bisavô de Gemma, que também tinha sido médico. Quando Gemma nasceu, seus avós Carlos e Margarida viviam em Lucca com o único filho ainda solteiro, tio e depois padrinho de Gemma, Maurício, que na época tinha 42 anos. Foi ele quem ajudou a escolher o nome da afilhada na ocasião do batismo, sugerindo aos pais o nome de Gemma Maria Humberta Pia Galgani, com a seguinte justificativa: Gemma, porque era como uma pedra preciosa (gemma, em italiano, significa “joia”, “pedra preciosa”). A princípio, a mãe achou o nome um tanto quanto esquisito e, religiosa como era, disse não conhecer nenhuma santa com aquele nome. Mais tarde, o pároco de Gragnano, Pe. Olívio Dinelli, a confortou dizendo: “Talvez um dia ela venha a preencher essa falha, esse vazio”. De fato, sua previsão se confirmaria mais tarde, e Gemma se tornaria a primeira santa com esse nome. O nome Maria dispensa explicações, pois era em honra da Virgem Maria. Já o nome Humberta era em homenagem ao novo rei da Itália, Humberto I (Humberto Ranieri Carlos Emanuel João Maria Fernando Eugênio), que havia subido ao trono naquele ano, 1878, e que alguns anos mais tarde, em 1900, com apenas 56 anos, seria assassinado. O nome Pia era em honra ao papa Pio IX, que havia falecido recentemente.[1] Com essas justificativas, a família aprovou os nomes, aos quais foi acrescido Galgani, sobrenome do pai.

Como já foi dito, a família de Gemma, da parte paterna, era da área da saúde. Além de seu avó e bisavô serem médicos, seu pai era farmacêutico, e outros membros da família, ou próximos dela, como Matheus Giannini, do qual falarei daqui a pouco, também eram dessa área. Gemma iria mais tarde precisar muito desses profissionais em sua vida, pois viria a ter muitos problemas de saúde. Porém, não obstante uma família de médicos e farmacêuticos, seu médico primordial era Jesus crucificado, como veremos adiante. Jesus crucificado, Nossa Senhora das Dores, São Gabriel da Virgem Dolorosa e um anjo de Deus formavam outra família na vida de Gemma, que a confortava nos momentos mais dolorosos.

Henrique Galgani, seu pai, era descendente pelo lado materno da família de João Leonardi, ou João Leonardo, na época em processo de canonização. Peço a

compreensão do leitor porque vou dedicar um espaço aqui para falar desse santo, com parentesco distante de Santa Gemma, mas que tem uma importância e uma influência significativas em sua vida. Na época de Gemma Galgani, João Leonardi já era beatificado, e sua beatificação se deu aproximadamente uma década e meia antes de seu nascimento, em ١٨٦١. Porém, ele só foi canonizado em ١٩٣٨, pelo papa Pio XII, e ou a se chamar São João Leonardi, ou São João Leonardo, como aparece em alguns lugares. Embora tenha vivido em um tempo muito distante (1541-1609) de Gemma, deixou certo legado de boas influências religiosas para a família dos Galgani. João Leonardi era também natural dos arredores de Lucca e tinha sido farmacêutico. Por esse motivo, o papa Bento XVI, em 8 de agosto de 2006, o proclamou patrono de todos os farmacêuticos, título que havia anos vinha sendo pleiteado pela família religiosa ionista para Santa Gemma Galgani, devido à sua história e ao convívio com uma família de farmacêuticos. No Brasil, por exemplo, ela é tida como a padroeira dos farmacêuticos, embora não haja nenhuma declaração oficial da Igreja sobre isso. Vemos, assim, que a profissão do pai de Gemma vinha de uma tradição familiar de muitos séculos.

São João Leonardi, ou Geovanni Leonardi, nasceu num lugarejo, um burgo, chamado Borgo a Mozzano, uma comuna da região da Toscana, província de Lucca, em 1541, em uma família de ricos fazendeiros. Trabalhou como farmacêutico, mas depois decidiu que queria ser padre. Entrou para o seminário e se dedicou aos estudos de filosofia e teologia, sendo ordenado sacerdote em 22 de dezembro de 1572. Durante seu sacerdócio, muitas de suas ações se destacaram, entre elas sua dedicação na assistência aos idosos abandonados e aos peregrinos. Foi nomeado pelo papa Clemente VIII, em 1596, visitador apostólico e comissário, com um mandado para a Reforma Protestante, de acordo com os cânones do Concílio de Trento. Juntamente com o padre espanhol Juan Bautista Vives y Marjá, deu origem a um movimento missionário que, após a sua morte, levou à criação do Colégio Missionário de Propaganda Fide, que viria a se transformar em 1624 na Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma, especializada na formação do clero missionário e de estudantes do território de missão, e à construção da Sagrada Congregação para a Propagação da Fé (1627). Ele também fundou a ordem dos Clérigos Regulares da Mãe de Deus, que tinha já na sua fundação, ainda como congregação, o carisma da missão e da formação dos padres.

Essa congregação religiosa fundada pelo então Pe. João Leonardi, em 1º de setembro de 1574, chamava-se, no início, Congregação dos Padres Reformados da Santíssima Virgem, dedicada ao apostolado e à formação do clero, como foi dito. Ela foi elevada a ordem religiosa pelo papa Gregório XV, em 3 de novembro de 1631, quando assumiu definitivamente o nome de ordem dos Clérigos Regulares da Mãe de Deus, popularmente conhecidos como bernardinos. Sua fundação se deu na igreja Santa Maria Della Rosa, em Lucca, a mesma igreja em que Gemma, mais tarde, ao perder os pais e ir morar com a família Giannini, frequentava as missas, pois ficava bem próxima à sua casa. Era, portanto, uma igreja bem familiar. Ali, em torno dessa igreja na qual seu ancestral São João Leonardi deu grande contribuição ao mundo, ela viveu a maior parte de sua vida, frequentou as missas até a sua morte e teve as suas mais relevantes manifestações espirituais, que a conduziriam depois, como a seu parente distante São João Leonardi, aos altares da Igreja.

João Leonardi faleceu em Roma, em 1609, e seu corpo foi transferido em 1662 para a igreja de Santa Maria no Pórtico, ou Santa Maria in Portico, em Campitelli, sua igreja titular. Em 25 de abril de 1951, foi erigida a igreja de São João Leonardi, na praça dos Cisnes, em Roma. Seu processo de canonização se deu nos seguintes os e espaços de tempo: em 1701 foi declarado venerável pelo papa Clemente XI; em 10 de novembro de 1861, foi beatificado pelo papa Pio IX; e, em 17 de abril de 1938, foi canonizado pelo papa Pio XI. Em 2006, o papa Bento XVI o declarou padroeiro dos farmacêuticos, definindo a sua comemoração, sua festa litúrgica, para o dia 9 de outubro.

De volta à família de Gemma Galgani, seu pai tinha então um distante parentesco com esse santo da Igreja, mas nunca imaginara que também teria uma filha santa, embora visse o quanto Gemma rezava e se dedicava a levar uma vida santa. Talvez ninguém nasça santo, mas faça jus à santidade pelo modelo de vida que leva, e esse modelo de vida é influenciado diretamente pela família. O Sr. Henrique e a Sra. Aurélia eram pessoas de muita oração. Tinham modos distintos de rezar, mas ambos eram pessoas de muita oração, que se concretizava em ação, sendo exemplo de dedicação a Deus e ao próximo e pessoas de integridade

ilibada. Gemma herdou tudo isso da família, agregando ao que ela tinha de particular e especial. O biógrafo e diretor espiritual de Santa Gemma, Pe. Germano de Santo Estanislau, escreve em sua biografia: “Conforme o louvável costume de pais verdadeiramente católicos, esses bons cônjuges foram sempre solícitos em dar logo aos seus filhos recém-nascidos a graça do batismo”.[2] Logo que os filhos nasciam, e foram oito, eles eram levados para receber o batismo. Esse procedimento não foi diferente com Gemma, como veremos mais adiante ao tratarmos da sua formação religiosa.

A mãe de Gemma, Sra. Aurélia Landi, também pertencia a uma respeitável família, a família Landi. Gemma tinha uma especial ligação com a mãe, que lhe ensinava muitas orações e também a amar Jesus crucificado, pois Aurélia era uma mulher muito piedosa. Deve-se a educação católica de Gemma a essa santa mulher que soube preparar a filha para a santidade. Aos cinco anos, Gemma já lia o Ofício de Nossa Senhora e o dos defuntos, tudo ensinado pela sua mãe, que viveu tão pouco ao lado da filha primogênita, pois, depois do nascimento de Júlia, em ١٨٨٣, quando Gemma tinha apenas cinco anos, a mãe adoeceu gravemente e foi aos poucos se definhando. Gemma acompanhava o calvário de sua mãe e desejava estar no seu lugar. A mãe a tomava nos braços e dizia: “Pedi tanto a Jesus que me desse uma menina, e ele me consolou, mas muito tarde”. [3]

Deus concedeu a Aurélia e Henrique não apenas uma menina, mas três. Além de Gemma, a primeira, também Ângela e Júlia, a caçula. Ângela nasceu em 30 de setembro de 1881, e Júlia, em 30 de outubro de 1883. Essa bondosa senhora adoeceu muito nova, e, durante sua enfermidade, Gemma esteve o quanto pôde ao seu lado, mas foi afastada em alguns momentos, porque a doença da mãe, tuberculose, era contagiosa. Num desses afastamentos, o último deles, Gemma foi ficar na casa da tia, irmã de sua mãe, Helena Landi, que vivia em São Januário, ficando por lá até receber a notícia da morte da mãe, em 17 de setembro de 1886. A tia Helena queria ficar com Gemma junto dela para sempre, pois amava a menina, mas o irmão Gino sentia muita falta dela, e o pai decidiu trazer de volta os filhos que estavam dispersos pela enfermidade da esposa, para tê-los junto de si, como antes. E assim o fez.

A família Galgani havia gerado oito filhos, sendo cinco meninos e três meninas. O primeiro filho do casal, Guido, nasceu em 30 de maio de 1871. Heitor, o segundo, nasceu em 21 de março de 1873; o terceiro filho, Gino, nasceu em 5 de junho de 1876. Em seguida, nasceu Gemma, em 12 de março de 1878; Antônio, o quinto filho, nasceu em 14 de março de 1880; Ângela nasceu em 30 de setembro de 1881, e Júlia, a caçula, nasceu em 30 de outubro de 1883. Quanto ao oitavo filho, que recebeu o nome de Carlitos, em homenagem ao avô, Carlos Galgani, não há registros da sua data de nascimento e morte, mas sabe-se que ele viveu apenas sete anos e que não era o filho caçula da família, segundo seu diretor espiritual. Quase todos eles morreram jovens, pois quase todos tinham saúde debilitada. Gino e Gemma eram os preferidos dos pais, talvez porque fossem os que mais tinham problemas de saúde. O pai se preocupava tanto com eles que dizia: “Eu só tenho dois filhos, Gemma e Gino”.[4] Isso talvez machucasse os demais, pois qual filho não se sente desprezado, ou não amado, ao ouvir um pai fazer tal afirmação? Mas essa preferência se dava não porque o pai não amasse os demais, mas devido à debilidade de ambos, Gemma e Gino, e porque esses eram de fato os filhos que mais agradavam o pai pela bondade, amor e dedicação. Esse pai talvez pressentisse que eles iriam partir muito cedo deste mundo. Gino morreu com apenas 18 anos, quando Gemma estava com apenas 16, e Gemma morreu aos 25 anos, quando seu pai já havia falecido.

Além da sua própria família, Gemma recebeu o apoio e o amparo de outras famílias que foram muito importantes em sua vida, sobretudo nos momentos mais cruciais. Entre elas a família de suas tias, já citadas, e de outra tia, Carolina Lencioni, que vivia em Camaiore, uma cidade pertencente à província de Lucca. Essa tia possuía boas condições financeiras e recebeu Gemma na sua casa quando esta havia perdido também o pai. Ela a tratou muito bem, tão bem quanto Gemma era tratada quando vivia na casa de seus pais, e eles tinham prosperidade. Nesse período, ela se dedicou aos trabalhos e às orações com afinco, mas algo a incomodava, porque ela não podia ir com tanta frequência à igreja, devido à distância. Além disso, apareceu na sua vida um rapaz que se afeiçoou a ela e pretendia pedir autorização da tia para namorá-la. Gemma recusou veementemente e pediu para retornar à antiga casa paterna, mesmo sabendo que lá iria ar dificuldades.

Outra família de suma importância na vida de Gemma Galgani, para não dizer a mais importante depois de sua família de sangue, foi a família dos Giannini. Essa era para Gemma sua segunda família, que a adotou como filha. Seus patriarcas, Matheus Giannini e sua esposa Justina Bastiani, tinham onze filhos, sendo a mais velha Anita, com dezenove anos, e a mais nova Helena, com apenas um ano. Além delas, havia ainda Carlos, com quatro anos; Maria, com cinco anos; Martinho, com sete anos; os gêmeos Guilermina e Mariano, com nove anos; Prisca, com onze anos; Dina, com treze anos; e Eufêmia, com quinze anos.[5] Eufêmia entraria depois para o convento e se tornaria monja ionista. Mais tarde, ela fundaria o Instituto das Irmãs de Santa Gemma, exatamente onde nasceu Santa Gemma Galgani. Além de Eufêmia, as filhas Dina, Prisca e Maria também entraram para a vida religiosa. Dina entrou para a ordem das Clarissas; Prisca, para a Congregação das Irmãs de Santa Zita; e Maria, para uma congregação fundada em Lucca, cujo carisma era cuidar dos doentes. Tudo isso aconteceu quando Gemma ainda estava entre elas, o que aguçava ainda mais seu desejo de se consagrar à vida religiosa.

Além desses onze filhos, Matheus Giannini tinha uma irmã, Cecília Giannini, que teve uma participação especial na vida de Gemma Galgani. Cecília era uma pessoa dedicada às boas obras e logo se afeiçoou a Gemma, da qual até então só tinha ouvido falar. Ela se afeiçoou tanto a ela que a levou para sua casa e cuidou dela como uma filha legítima.

O Sr. Matheus Giannini era farmacêutico e havia se formado no ano em que Gemma nasceu. Ele era proprietário de uma farmácia e de uma casa de velas e, além de sua profissão, dedicava-se profundamente à caridade e à missão. Tanto é que, um pouco antes de Gemma chegar à família, ele havia hospedado em sua casa, como de costume, os missionários ionistas que estavam em missão em Lucca. Após a partida dos missionários, os Giannini tiraram uns dias de férias, deixando a farmácia e a fábrica de velas sob a responsabilidade de Cecília Giannini, que convidou Gemma para auxiliá-la. Na volta das férias, Cecília pediu ao irmão que recebesse em sua casa Gemma, e ele a recebeu como a sua duodécima filha.[6] De início, ela apenas ava o dia na casa dos Giannini e

depois, à noite, retornava para sua casa. Gemma sentia certo constrangimento, porque a família era numerosa, ao todo 21 pessoas sentavam-se à mesa, e ela sentia certo incômodo. Sua timidez a silenciava e ela se sentia envergonhada até para se alimentar. Foi preciso que Matheus a advertisse: “Gemma, ou comes ou terei de te preparar uma infusão de ervas para abrir-te o apetite!”. [7]

Além dessas famílias, Gemma queria fazer parte de alguma família religiosa, consagrando-se definitivamente a Deus, mas isso não se concretizou, apesar das várias tentativas, como veremos mais adiante. Portanto, fiquemos apenas com alguns aspectos dessas famílias que fizeram parte diretamente da vida de Gemma Galgani e tiveram participação direta ou indireta no seu processo de santidade, pois foi na casa dos Giannini que ocorreram os episódios mais marcantes dos fenômenos espirituais vividos por Gemma. Voltaremos a citá-los em outros momentos, sobretudo para mencionar alguns aspectos que aqui ficaram de fora, mas que são relevantes na trajetória desta santa por este mundo.

IV

A infância espiritual de Santa Gemma Galgani

Gemma Galgani nasceu num período de grandes acontecimentos religiosos e florescimentos espirituais, como relata Pe. Fernando Piélagos no seu livro sobre Santa Gemma.[1] Ele recorda que, naquele ano, Bernadete Soubirous, a vidente de Lourdes, completava 34 anos, vindo a falecer no ano seguinte (16/4/1879). Esse fato é relevante porque marca o fim de um século de muitos acontecimentos espirituais que iriam se firmar no século seguinte, revelando pessoas que tiveram um contato especial com o sagrado e desenvolveram fenômenos espirituais que fariam dessa virada de século um marco de acontecimentos transcendentais, mudando a vida de muitas pessoas. Gemma Galgani está inserida nesse contexto.

Além das recentes manifestações de Nossa Senhora, em Lourdes, e da morte da vidente Bernadete, mais tarde Santa Bernadete (8/12/1933), outros acontecimentos do gênero e fenômenos espirituais marcaram a história da Europa e do mundo, entre eles a vida e as obras de Santa Teresinha do Menino Jesus (1873-1897), Teresa de Lisieux, a santa da “pequena via espiritual”, que descomplicou o caminho para chegar ao céu, mostrando modos simples de proceder que nos fazem ir até Deus, sem muitas complicações. Sem saber, Santa Gemma fez uso desse método na sua vida e o vivenciou sem nunca o ter explicitado com a mesma maestria com que o fez Santa Teresinha. Essa pequena via, da simplicidade, mas um caminho extremamente profundo, fez com que Teresa de Lisieux se tornasse doutora da Igreja. Usando uma expressão de Santa Teresinha do Menino Jesus, Gemma parece ter bebido nessa fonte para encontrar o “elevador” que a conduziria a Deus.

Assim, quando falamos de “infância espiritual”, lembramos logo de Santa Teresinha do Menino Jesus e da sua pequena via, uma espiritualidade muito similar à que Gemma Galgani viveu, desejando permanecer pequena para o mundo para se tornar grande diante de Deus. Nas palavras de Teresa de Lisieux, “apliquei-me especialmente à prática das pequenas virtudes, pois não

tinha condições de realizar as maiores”. Optando pelas pequenas virtudes, ela se tornou grande, e era esse também o propósito de Gemma Galgani.

Conforme os propósitos divinos, Deus fez com que Santa Teresinha do Menino Jesus, a padroeira das missões, fosse contemporânea de Santa Gemma Galgani. Quando esta nasceu, em Camigliano, na Itália, em 1878, já vivia em Alençon, na França, também num pequeno povoado, uma menina de cinco anos, de nome Teresa Martin. Desde muito cedo, semelhante a Gemma Galgani, Teresa sentiu o chamado para a vida religiosa, entrando para o mosteiro das Carmelitas, em Lisieux, também na França, em 1888, com apenas quinze anos de idade; daí o nome pelo qual ela ficou também conhecida: Teresa de Lisieux. Enquanto Teresa realizava seu desejo, Gemma não teve a mesma sorte, mas viveu nessa expectativa até seus últimos dias. Realizou seu sonho depois de morta, pois, aos 25 anos, seu corpo adentrou o tão sonhado mosteiro das ionistas, em Lucca, onde permanece até hoje.

Quanto a Teresa Martin, seu sonho se realizava bem cedo, e, após o noviciado, ela recebeu o nome de Teresa do Menino Jesus da Santa Face. O que elas tinham em comum? Várias coisas, entre elas o desejo de trilhar o caminho da santidade. Teresa entrou para o Carmelo de Lisieux com a determinação de tornar-se uma santa. Gemma tinha desde pequena essa determinação, mesmo que para alcançála ela tivesse que fazer muitas renúncias e isso lhe custasse a vida. Teresa, no final de 1894, após seis anos como carmelita, percebeu quão pequena e insignificante ela era e sublinhou as limitações de seus esforços, permanecendo todo esse tempo se sentindo pequena e muito distante do amor infalível que desejava praticar no início. A pequenez de Teresa e seus limites acabaram por se tornar motivos de fé e esperança, e não de desencorajamento, pois ela fez das fraquezas sua fortaleza e seu caminho para a santidade. Isso era algo que também fortalecia Gemma Galgani quando ela era por alguém diminuída, e não foram poucas as situações em que ela sofreu humilhação, por exemplo: quando a chamavam de altiva e soberba por causa do seu recolhimento em certos momentos; quando foi rejeitada na vida religiosa, por causa das suas manifestações espirituais, pois diziam que ela não ava de uma histérica; ou ainda quando, humildemente, pediu às monjas que a deixassem pelo menos trabalhar no convento como serviçal, e mesmo assim foi rejeitada, entre tantas

outras situações que mostrarei aos poucos neste livro, sobretudo, por meio de trechos de seu diário e de sua autobiografia, nos quais ela descreve alguns desses momentos dolorosos de humilhação. Até o diabo a humilhava, mas ela ia descobrindo o seu caminho cheio de pedras e espinhos.

Quanto a Teresa de Lisieux, no “Manuscrito C”, de sua autobiografia, ela deu à sua descoberta o nome de “Pequeno Caminho”, dizendo: “Procurarei buscar meios de chegar ao céu por um pequeno caminho – muito curto e muito reto, um pequeno caminho que é totalmente novo”. [2] E dizia mais:

Vivemos numa era de invenções. Atualmente, os ricos não precisam mais sequer subir escadas, pois têm elevadores para isso. Bom, eu tentarei encontrar um elevador pelo qual eu possa ser elevada a Deus, pois sou muito pequena para escalar a íngreme escada da perfeição. [...] Teus braços, então, ó Jesus, são o elevador que deverão elevar-me até o céu. Para chegar lá, não preciso crescer; ao contrário, preciso permanecer pequena, preciso me tornar ainda menos.[3]

Gemma também enxergava nos braços de Jesus crucificado o “elevador” de sua alma a Deus, como relata em vários de seus escritos, inclusive em um registro feito no seu diário, do dia 16 de agosto, em que descreve seu diálogo com Jesus:

Enquanto eu estava com Jesus e sofria, e ele também, veio-me um forte desejo, quase a não poder resistir. Jesus percebeu e me perguntou: “Que deseja que eu faça?” E eu logo: “Jesus, por piedade, diminui os sofrimentos da madre Maria Teresa”. E Jesus: “Já o fiz. Quer mais?”, dizia-me. Então me animei e disse-lhe: “Jesus, salva-a, salva-a”. E Jesus assim me responde: “No terceiro dia depois da Assunção da minha santíssima Mãe, verá também essa aprisionada do purgatório, e a levarei comigo ao céu”.[4]

Nesse trecho, Gemma dialoga com Jesus e pede que ele diminua o sofrimento de

madre Teresa, que está agonizando no leito de morte. Sente-se pequena por não poder ajudá-la, sem saber que, com sua intercessão, já estava ajudando. A Gemma intercessora junto a Deus já se revela em vida, o que mostra seu poder como santa intercessora.

De volta à infância de Gemma Galgani e à sua espiritualidade na mais tenra idade, quero destacar alguns fatos relevantes que mostram uma menina prodígio desde o nascimento. Ela foi batizada um dia após o seu nascimento: nascida no dia 12 de março, no dia seguinte, 13 de março de 1878, foi levada para receber o sacramento do batismo. Seu batismo foi feito na paróquia de São Miguel, em Lucca, pelo Pe. Pedro Guilici, pároco. Mais tarde, esse mesmo sacerdote iria arcar com os custos de impressão das primeiras edições da biografia de Santa Gemma, escrita pelo seu diretor espiritual, Pe. Germano. [5]

Seu batismo é narrado pelo Pe. Fernando Piélagos,[6] ionista, como um acontecimento especial na família Galgani, e de fato foi. A pressa em batizá-la se deu não porque Gemma estivesse na iminência da morte, como recomenda a Igreja a crianças que correm risco de vida, mas porque seus pais tinham consciência de que ela só seria de fato cristã, católica, como eles, se estivesse batizada. Naquela época, não havia a exigência de preparação para pais e padrinhos de batismo, e, no caso da família Galgani, nem era preciso, pois o Sr. Henrique e a Sra. Aurélia estavam mais que preparados, e o padrinho escolhido também.

Como já foi dito, o padrinho escolhido foi o irmão solteiro de Henrique, Maurício Galgani, de 42 anos, também profundamente religioso, e a ele coube a incumbência de escolher o nome da menina, como também já foi descrito. Gemma não era um nome comum, e, como ocorreu com Isabel e Zacarias, na Bíblia, ao escolher o nome do filho, João (Lc 1,60-63), a Sra. Aurélia também estranhou o fato de Maurício escolhê-lo, pois não havia nenhum parente seu e nenhuma santa com esse nome. Era tradição nas famílias católicas, sobretudo em famílias italianas, colocar nos filhos o nome de um santo, porém essa escolha

acabou mostrando-se providencial, já que Gemma seria, mais tarde, a primeira santa com esse nome.

Naquele momento, no entanto, seu padrinho Maurício escolheu esse nome porque Gemma tinha sido muito esperada por todos e era recebida como uma pérola preciosa. Os pais ansiavam por ter uma menina, pois já tinham tido três meninos (Guido, Heitor e Gino), que naquele momento estavam com sete, cinco e dois anos. Gemma era o quarto filho, mas era a primeira menina da família. Assim, recebeu o nome Gemma, que em italiano significa “pedra preciosa”, porque foi para toda a família uma joia rara, preciosa. De fato, essa preciosidade se confirmou, fazendo jus ao nome escolhido pelo padrinho Maurício Galgani.

Era comum também naquela época, nas famílias italianas, os filhos receberem mais de um nome, e não foi diferente com Gemma. Assim, além do sobrenome, a esse primeiro nome foram agregados outros três (Maria, Humberta e Pia), que completavam a importância daquela que acabara de nascer. Tão logo Gemma começasse a ter os primeiros entendimentos, aria a amar Maria, numa devoção incondicional à Mãe de Jesus na figura de Nossa Senhora das Dores. Sua estreita relação com Nossa Senhora aparece em todos os seus escritos, e se há uma pessoa mariana de fato ela se chamava Gemma Maria Humberta Pia Galgani. Os outros dois nomes, Humberta e Pia, como já mencionamos, também destacavam a sua importância: Humberta devido ao rei da Itália, Humberto I, e Pia devido ao papa recém-falecido Pio IX, que viria depois a ser beatificado.[7] Ambos os nomes, vindos de pessoas importantes da história, revelavam que ali estava nascendo uma estrela, alguém muito importante, que iria ligar a terra ao céu pela sua santidade e conduziria muitas almas à salvação pela sua intercessão.

Tudo isso, no entanto, eram apenas prenúncios, ou indicativos imperceptíveis até então, pois naquele momento o que estava evidente era o amor que a família tinha pela recém-nascida Gemma Galgani. Amor que foi, sem dúvida, um degrau importante para o seu processo de santidade, porque onde existe amor, existe Deus, e onde está Deus, o céu já abriu suas portas. Assim, no dia do seu batismo, em 13 de março de 1878, as portas do céu se abriram para Gemma Galgani, que

iria, aos poucos, galgar a íngreme escada que a conduziria até lá, ao mais alto dos céus, finalizando esse seu peregrinar 62 anos depois, no dia 2 de maio de 1940, com a sua canonização.

O dia do batismo de Gemma foi, sem dúvida, um dia de alegria e festa. Foi uma espécie de segundo nascimento, pois esse é também o sentido do batismo. Não apenas seus pais, mas também os seus avós, Carlos Galgani e Margarida, e o tio e padrinho Maurício estavam radiantes. Haviam recebido mais um presente de Deus, a primeira filha de Henrique e Aurélia, neta de Carlos e Margarida, bem como a primeira sobrinha e afilhada de Maurício. Carlos tratou logo de recomendar às suas irmãs carmelitas, Carmela e Fosca, que eram monjas, orações para a neta que acabara de nascer e ser batizada. Essas duas monjas foram as primeiras a rezar por Gemma Galgani, e suas orações com certeza chegaram a Deus, que concedeu a ela o maior prêmio que um ser humano poderia receber: a santidade. Após o batismo, houve, com certeza, uma bela comemoração festiva na casa dos Galgani, que, como toda família italiana, não deixariam de festejar tão importante acontecimento.

Com o ar dos dias, Gemma foi confirmando a preferência que os seus pais tinham por ela. Diz seu biógrafo, Pe. Germano, que, aos olhos de Henrique e Aurélia, “Gemma foi sempre a primeira dentre todos os irmãos e irmãs, parecendo que lhe dedicavam maior e mais terno afeto”.[8] De fato, eles dedicavam a ela um afeto extraordinário.

Henrique e Aurélia tinham uma preocupação especial com a pequena Gemma, mas isso não os fazia negligenciar os demais filhos. Eles se preocupavam com todos. Tanto é que ainda não se tinha completado um mês do nascimento de Gemma, e Henrique, seu pai, quis se mudar com a família para Lucca, preocupado com a melhor assistência para os filhos, pois Lucca oferecia mais recursos, sobretudo na saúde e na educação. Uma das principais preocupações dos pais era a educação religiosa dos filhos, e não é preciso dizer que Gemma, desde cedo, se destacou dos demais nessa área. Sua mãe ensinou-lhe rezar desde muito cedo e amar a Jesus e a Nossa Senhora. A espiritualidade cristológica e a

devoção mariana foram as bases sólidas da formação religiosa de Gemma, que iriam se consolidar mais tarde, quando ela tivesse contato com freiras e padres e com outras pessoas religiosas do seu tempo.

Como foi dito anteriormente, com apenas dois anos de idade, Gemma foi matriculada na escola particular de duas antigas amigas de seu pai, Hercília e Helena Vallini, ambas solteiras e dedicadas à educação civil e religiosa de crianças de famílias distintas. A escola estava localizada no n. 2 da praça de São Francisco, em Lucca, que recebeu esse nome devido à igreja de São Francisco e ao mosteiro dos franciscanos que lá se encontram. Atualmente, o complexo franciscano do convento se transformou na Faculdade de Estudos Avançados de Lucca (IMT), com pós-graduação e doutorado, uma instituição pública de pesquisa. Esse endereço não ficava muito distante da rua dos Borghi, onde estava a casa da família Galgani.

A escola de Hercília e Helena Vallini era completa e ensinava desde a ler e escrever até religião e costura. Gemma se mostrava virtuosa em tudo o que lhe era ensinado. Suas duas mestras falavam muito bem de Gemma e do seu desempenho nos estudos. No âmbito religioso, elas diziam: “[...] decorou depressa, e desde o princípio, todas as orações que se costumava recitar cotidianamente no instituto, sendo elas tantas que duravam cerca de meia hora”. [9] E diziam mais:

Aos cinco anos de idade tomava o breviário e lia o Ofício da Santíssima Virgem e também o dos defuntos com a facilidade e perfeição de uma pessoa madura, tanta era a diligência que a santa menina empregava naquele estudo, sabendo que o breviário é um tecido de louvores ao Senhor.

Esses relatos confirmam a infância espiritual de Gemma Galgani e mostram como ela “crescia em sabedoria, em estatura e graça, diante de Deus e das pessoas” (Lc 2,52), que se encantavam ao ver sua desenvoltura espiritual.

Outro fato intrigante relatado pelas irmãs Hercília e Helena Vallini mostra o poder da oração de Gemma ainda criança. Gemma e mais quatro de seus irmãos estavam matriculados na escola dessas irmãs quando a região foi acometida por um surto de coqueluche, uma doença bacteriana altamente contagiosa que compromete o aparelho respiratório, incluindo traqueia e brônquios, provocando uma tosse seca, que Hercília e Helena descreveram como sendo uma “tosse convulsa”. Na época, o tratamento para essa doença era precário, pois ainda não existiam os antibióticos, que só viriam a ser descobertos no início do século XX. [10] Por conta disso, essa era uma doença que poderia levar à morte e, por ser altamente contagiosa, dizimar populações inteiras, como ocorria com outras doenças contagiosas graves daquele tempo, por exemplo, a tuberculose, que já acometera a mãe de Gemma nessa época. As irmãs Hercília e Helena assim relatam esse episódio:

Estando ela conosco na escola, apareceu em Lucca a tosse convulsa e todos de nossa família foram atacados. Tratando-se de uma doença contagiosa, em consciência, não podíamos conservar mais no colégio aquelas cinco crianças. Não sabendo o que fazer, consultamos o pároco da freguesia da família Galgani, que nos aconselhou que não as abandonássemos, tanto mais que a mãe estava gravemente enferma naquela ocasião. Aceitei seu conselho; a querida Gemma rezou a pedido nosso e a doença cessou sem que nenhum dos alunos sofresse. [11]

Essa descrição mostra uma espécie de “milagre” alcançado pela intercessão de Gemma Galgani ainda criança, o que revela precocemente seus fenômenos espirituais, que viriam a se manifestar mais tarde.

Seus familiares e outras pessoas mais próximas acompanhavam com interesse os progressos espirituais de Gemma e as suas virtudes excepcionais. Eles agradeciam a Deus e acompanhavam com ternura o desenrolar da sua infância espiritual, que iria culminar em fenômenos que chocariam a muitos, como veremos mais adiante. Papel importante na vida espiritual da menina Gemma

teve sua mãe Aurélia, a qual Pe. Germano, seu diretor espiritual na juventude, classificou como sua primeira diretora espiritual.[12] Gemma não titubeava em declarar que devia à sua mãe o conhecimento de Deus e o amor à virtude. A Sra. Aurélia “explicava-lhe as verdades da nossa fé, o valor das almas, o horror ao pecado, a felicidade de pertencer toda a Deus e de fugir da vaidade dos bens terrenos”. [13]

Eu disse antes que o amor a Jesus crucificado, marca evidente da espiritualidade de Santa Gemma, foi um legado de sua mãe, como foram também os ensinamentos relacionados à devoção a Nossa Senhora. Dizia a Sra. Aurélia a sua filha Gemma: “Vês, Gemma, como o nosso amantíssimo Jesus morreu por nós na cruz”. E, tomando a imagem de Jesus crucificado, ensinava a Gemma o amor de Jesus por nós, demonstrado por meio de suas dores.

Havia um profundo empenho da parte da mãe para que Gemma não só aprendesse de cor as orações, mas desenvolvesse uma vida espiritual. Pe. Germano disse, ao escrever a biografia de Santa Gemma Galgani, que a mãe, “adaptando-se à inteligência da menina, esforçava-se para fazê-la compenetrarse do mistério do amor de Deus, e o modo por que todo cristão deve-lhe corresponder”.[14] Disse também que, “depois, ensinava-lhe rezar, e para habituá-la, orava juntamente com ela, logo ao levantar da cama, à noite antes de dormir, e muitas vezes durante o dia”.[15] Ou seja, a infância de Gemma Galgani foi regada por profundos e constantes ensinamentos espirituais da parte de várias pessoas que a cercavam, mas, sobretudo, da parte de sua mãe, que, como já foi dito, era uma pessoa piedosa e de profunda vida de oração. Não é à toa que seu diretor espiritual dizia que sua mãe era a sua mestra de oração.

Outro dado intrigante na vida da infante Gemma Galgani era o fato de ela não se aborrecer com as orações, algo que não é comum entre as crianças, uma vez que quase não se aquietam em exercícios que demandam concentração. Com Gemma era diferente: ela não só não se aborrecia em rezar, como se comprazia com as orações. Seu maior prazer estava na oração, e isso ela já revelava desde pequena,

ao fazer horas ininterruptas de oração. Disse o seu biógrafo e diretor espiritual:

Naqueles primeiros exercícios de piedade cristã, achava toda a sua ventura, pelo que jamais se cansava de ouvir e de rezar. Até mesmo quando a mãe sentia-se fatigada, ou tinha que atender aos trabalhos domésticos, a fervorosa menina lhe segurava pelo vestido, dizendo: “Mamãe, fale-me mais um pouco de Jesus”.[16]

Ela não se cansava de ouvir falar de Jesus, e mostrou isso no decorrer de seus anos de vida, sobretudo quando começou a manifestar seus êxtases, ocasiões em que tinha a oportunidade de falar diretamente com ele, aquele ao qual ela tinha aprendido a amar incondicionalmente desde pequena. Quanto à mãe, “quanto mais sentia aproximar seu fim, pelo progresso da grave enfermidade de que sofria, tanto mais ardor e zelo empregava na educação religiosa de seus queridos filhos” e, de um modo especial, de sua querida Gemma. Gemma, por sua vez, se apegava cada vez mais à mãe, pois, apesar de tão pequena, já enxergava nos seus sofrimentos os sofrimentos de Jesus, que ela havia conhecido por meio dos ensinamentos maternos. Aurélia, aos poucos, amalgamava as suas dores às dores do Crucificado, e a filha Gemma assistia a tudo pacientemente, porém, angustiada por não poder aliviar as dores da mãe e fazê-las suas, como Jesus havia feito por ela e por todos.

Gemma se preparou em casa para receber os sacramentos da confissão, comunhão e crisma, e quem a preparou foi a sua mãe, mestra e catequista. O zelo pela educação religiosa dos filhos a consumia. Pe. Germano escreveu que, “todos os sábados, ela mesma os levava à igreja; quando não podia ir, mandava alguém acompanhá-los, querendo que os maiores se confessassem (embora alguns não tivessem ainda, como Gemma, atingido os sete anos)”.[17] A mãe fazia isso “para acostumá-los bem cedo à frequência de tão grande e salutar sacramento”. Disse também que “ela própria os preparava, e quando era a vez de Gemma, ao ver a seriedade, o cuidado e a grande tristeza que mostrava pelas suas pequenas faltas, a santa mãe sentia-se comovida até as lágrimas”. [18]

Na busca da perfeição, Gemma era muito exigente com suas próprias faltas. Não se perdoava por ter errado, falhado ou feito algo que ela imaginasse ter desagradado a Deus. Esse procedimento foi ficando cada vez mais evidente e acentuado, chegando mais tarde a atitudes que beiravam a loucura aos olhos de algumas pessoas.

Antes de encerrar este capítulo sobre a infância espiritual de Gemma Galgani, eu reproduzirei um diálogo dela com a mãe sobre ir para o céu. A mãe, sabendo que sua hora estava chegando, e com o coração apertado por ter que deixar neste mundo a filha amada, perguntou a Gemma:

– Gemma, se eu pudesse levar-te para onde Jesus me chama, quererias ir comigo? – Para onde é? – indagou a menina. – Para o céu com Jesus e com os anjos! – respondeu-lhe a mãe.[19]

A resposta de Gemma não aparece no diálogo, mas seu diretor espiritual diz que essas palavras, esse convite, encheram de alegria o coração da menina, que daquele dia em diante não teve outra meta em sua vida senão a de ir para o céu. A cada ano que se ava, esse desejo aumentava no coração e na mente de Gemma, e ela chegava mesmo a se consumir para alcançar essa meta, como veremos mais adiante. Esse diálogo que ela teve com sua mãe, nos últimos dias de vida, foi decisivo para que Gemma direcionasse todo o seu ser e estar neste mundo rumo ao céu, e ela não sossegou enquanto não viu as portas do céu se abrirem para ela. Porém, antes que as portas do céu se abrissem, ela viu muitas vezes as portas do inferno, e como ela temia entrar por essa porta da perdição eterna. Esse temor, que a assombrava desde pequena, se acentuou na juventude, no ápice de seus fenômenos místicos e espirituais.

V

A vida na escola e a escola da vida: êxitos e percalços nos estudos de Santa Gemma Galgani

Começamos a falar no capítulo anterior sobre a desenvoltura de Gemma Galgani nas questões religiosas, mas ela também desabrochou muito cedo em outras áreas do conhecimento, revelando a jovem prodígio que viria a confirmar-se mais tarde. Pesquisando sua biografia e seus escritos, encontrei muitos elementos que confirmam seus êxitos nos estudos, mas também obstáculos que ela precisou enfrentar. Dentro desse processo de desenvolvimento, Gemma não perdia a oportunidade de aprender, tanto com a escola como com a vida fora dela. Tudo o que ela vivia era ocasião para aprender algo, e seus pais, mestres e amigos percebiam essa sua característica. Os inimigos também. Porém, Gemma não era pessoa de ter inimigos, apenas algumas rivalidades, que eram comuns em sua idade. Seu pior inimigo viria depois, o diabo.

Vimos que ela entrou para a escola muito cedo, com apenas dois anos. Ela permaneceu nessa mesma escola até os cinco anos de idade, e lá aprendeu as coisas básicas que iriam alicerçar sua vida futura e futuros conhecimentos, sobretudo com o amor dispensado pelas irmãs Hercília e Helena Vallini. Essas moças, proprietárias da primeira escola em que Gemma Galgani estudou, anos mais tarde, quando foi aberto o processo de canonização de Gemma Galgani, já idosas, deram importantes depoimentos sobre a inteligência e desenvoltura da menina nos seus primeiros anos de estudo. Elas disseram: “A querida Gemma só contava dois anos quando o pai no-la confiou para ser educada em nossa casa. Desde essa idade, revelou uma inteligência precoce, parecendo já estar nela desenvolvido o uso da razão”. [1]

Gemma não era, de fato, uma criança comum, como a maioria das crianças do seu colégio. Ela se destacava em tudo, sobretudo no aprendizado, e isso era percebido por todos, adultos e demais crianças da escola, o que fazia com que

Gemma ficasse um tanto quanto isolada de seus colegas . Ela agia muitas vezes como pessoa adulta, diziam as irmãs, e isso contribuía para o seu afastamento do meio das crianças de sua idade. Diziam também suas primeiras professoras que ela “era séria, refletida, cuidadosa com tudo o que fazia, e nada tinha em comum com as companheiras, nem mesmo com as mais crescidas”.[2] Com esses modos, dá para imaginar o que se ava na cabeça da menina Gemma nessas situações. Ela devia sofrer muito, mas, mesmo sofrendo, não deixava isso transparecer. Suas professoras relataram: “Ninguém a viu jamais chorar ou brigar; condescendente para com todos, conservava sempre o semblante sereno e risonho”. [3]

Gemma parecia não demonstrar sentimentos, mas isso não significava que eles não existissem. Na verdade, era uma forma de autoproteção, um recurso para enfrentar as mais variadas situações, inclusive as críticas pelo seu comportamento às vezes retraído. Desde pequena ela aprendeu em sua vida a lidar com os acontecimentos com firmeza e coragem, não fraquejando diante deles, embora se sentisse extremamente fraca em muitos momentos. Isso nós vamos ver nos seus escritos confidenciais, por exemplo, no seu diário, na sua autobiografia e nas inúmeras cartas que escrevia, das quais falaremos mais adiante. Ela desenvolveu escudos de proteção para poder ar as dores e os desafios da vida, e a escrita era um deles. Vemos também essa forma de autodefesa ao evitar demonstrar os sentimentos, como atestam essas mesmas professoras ao dizerem: “Quer a acariciassem ou repreendessem, mostrava-se invariavelmente a mesma; sua resposta era um sorriso, e sua atitude, de uma calma imperturbável”.[4] Porém, somente ela sabia o que sentia e por que assim procedia. Foi, portanto, uma santidade lapidada, formada na escola da vida, e as escolas que ela frequentou ajudaram a formar e formatar o seu caráter de menina santa, confirmado anos mais tarde.

Gemma Galgani foi desde muito cedo exigente e dura consigo mesma, pois não itia errar ou magoar alguém. Tudo fazia para se corrigir e se tornar melhor. Escreveram Hercília e Helena nos autos do processo de canonização:

Ela era dotada de gênio vivo e ardente. Em todo o tempo que nos foi dada a ventura de tê-la conosco, nunca foi preciso castigá-la, porque, nos pequeninos defeitos, próprios daquela idade, bastava uma leve advertência para logo atender ao que se lhe dizia.[5]

Essa postura ela também tinha fora da escola, seja em casa, seja na igreja ou em qualquer outro lugar. Estava sempre pronta a se desculpar, pedir perdão e assumir o propósito de não repetir o erro. O seu coração era pura bondade. O mesmo coração que, quinze dias após a sua morte, ao ter seu corpo exumado, foi encontrado intacto, sem nenhum sinal de decomposição, algo sobrenatural, pois a essa altura o corpo já está em profundo estado de decomposição. Esse coração intacto foi retirado, posto num relicário para veneração e, anos mais tarde, em 1985, transladado para o santuário a ela dedicado, no bairro de Chamartín, em Madri, na Espanha, onde até hoje, no dia 14 de cada mês, há uma grande peregrinação em devoção à santa, cujo coração em vida transbordava de bondade. Bondade essa relatada pelas suas primeiras professoras, que disseram também:

Estavam também na escola dois de seus irmãos e duas irmãs, com os quais não só nunca teve a menor questão, antes pelo contrário, cedia-lhes com bondade as melhores frutas de sua merenda, privando-se delas para dar-lhes prazer.[6]

Esse coração complacente refletia em seu rosto por meio de um doce olhar – seus olhos eram encantadores – e do sorriso nos lábios, que serviam muitas vezes como respostas apaziguadoras, confortando os mais duros corações, como vemos na continuação do relato de Hercília e Helena Vallini: “No jantar em comum, contentava-se com tudo, e o sorriso que lhe pairava constantemente nos lábios era, como dissemos, somente a sua queixa ou aprovação”.[7] Ela sorria quando aprovava e quando desaprovava algo. Era preciso, portanto, decifrar o enigma de seu sorriso.

O que Gemma tinha de força no espírito, tinha de fraqueza no corpo, no sentido de fragilidade física. Era frágil e um tanto quanto debilitada fisicamente, algo que veio a se agravar mais tarde com as doenças que desenvolveu. Ela era pura delicadeza, porém, isso não a impedia de se empenhar nos trabalhos que exigiam certa força física e nos estudos que lhe exigiam força intelectual. Tudo indica que isso não era problema para Gemma Galgani, que se empenhava com diligência para dar conta de tudo o que lhe era confiado, indo além daquilo que lhe pediam. Ainda nos relatos dessas professoras podemos ler:

Assídua no trabalho, prontamente aprendia tudo o que lhe ensinavam, embora fosse superior às suas forças. À vista de tão raras qualidades em uma menina, era Gemma ternamente amada na escola, especialmente pelas companheiras, que não se fartavam de estar ao seu lado.[8]

Vemos, assim, que, apesar de preferir a solidão para estudar e rezar, Gemma não repelia as pessoas que queriam estar ao seu lado. Ela sabia conviver com a presença e com a ausência das pessoas, mas, se fosse escolher, certamente escolheria estar na companhia de seus amigos espirituais, como veremos mais tarde nos seus momentos de êxtases e nas suas anotações. Quando criança, contudo, sempre esteve rodeada de amigos reais e dos irmãos, dos quais cuidava com muito carinho, porque muito os amava, sobretudo Gino, que era com quem Gemma mais tinha afinidades. E esse bem-querer era recíproco: Gino não conseguia ficar muito tempo longe da irmã.

Quando em casa, Gemma ficava em seu quarto, sozinha, estudando, trabalhando ou rezando, que era o que mais gostava de fazer, como disse em sua biografia seu diretor espiritual.[9] Sua presença era quase imperceptível, mas, quando ela não estava em casa, todos sentiam o vazio, sobretudo o seu pai, que, a essa altura, já viúvo, se apegou ainda mais à filha dileta. Ele continuou a incentivá-la nos seus estudos, mas não queria mais se apartar dela, colocando-a em algum internato. À vista disso, sua decisão foi matriculá-la, como aluna externa, no conceituado colégio das Irmãs de Santa Zita, conhecido na época como “colégio Guerra”, não porque lá houvesse guerras entre os alunos, apesar de que quem lá

estivesse matriculado tivesse que travar verdadeiras batalhas nos estudos, mas porque esse era o nome da sua fundadora, a então bem-aventurada Elena Guerra (1835-1914), beatificada mais tarde, em 1959, pelo papa João XXIII, que, inspirado nos seus escritos, convocou o Concílio Vaticano II, que pedia a renovação da Igreja com as maravilhas do Espírito Santo.

Elena Guerra ficou conhecida depois como Apóstola do Espírito Santo. Filha da cidade de Lucca, no ano de 1871, depois de ar por um período de grandes provações, dá início, juntamente com algumas amigas de oração, a uma nova experiência de vida religiosa comunitária, culminando na fundação da Congregação das Irmãs de Santa Zita, mais tarde Irmãs Oblatas do Cenáculo, ou Irmãs Obreiras do Espírito Santo, dedicada à educação cultural e religiosa da juventude. Assim, por desígnios divinos, Gemma estava sendo matriculada no colégio certo.

Nesse período, Gemma Galgani se tornou a aluna predileta das diretoras da escola, devido à sua dedicação nos estudos e à sua intensa vida espiritual. Ela era uma exímia aluna, sobretudo nas matérias de francês, aritmética e música, e em 1893 ganhou um troféu intitulado “Prêmio de Ouro”, por conhecimento religioso. Mais tarde, o diretor espiritual de Gemma Galgani, Pe. Germano, dirá em sua biografia:

Foi ótima essa lembrança do Sr. Henrique, de confiar sua filhinha àquelas excelentes educadoras, as quais, a par das letras e das artes, davam uma completa instrução religiosa às meninas, formando-as na mais sólida piedade cristã.[10]

Gemma amava a escola, os estudos, as religiosas e tudo o que cercava sua formação espiritual e intelectual. Certa vez, disse ao seu diretor: “Comecei a ir à escola das freiras que me era um paraíso”.[11] Estar entre as religiosas era seu maior prazer, porque lá ela encontrava uma intensa vida de oração. O ambiente da escola era tudo o que ela queria na vida, pois lá se respirava espiritualidade.

Também era intensa e completa a formação. Além dos diversos exercícios espirituais e práticas de piedade que entremeavam o estudo, havia outros trabalhos práticos, instruções variadas, como de costura e bordado, e oportunidade de conversas sadias e confidências com as religiosas, estreitando os laços entre elas. Seu diretor espiritual dirá mais tarde que Gemma, acostumada desde a mais tenra idade a viver mais no céu do que na terra, tinha, afinal, encontrado seu verdadeiro lugar.[12] Não porque Gemma vivesse com a “cabeça nas nuvens”, como podia parecer para os que não a conheciam, mas porque desde cedo ela descobriu que o seu reino não era deste mundo (Jo 18,36), seu mundo não era o mundo em que a maioria das pessoas estava acostumada a viver, o mundo das coisas rasas, limitadas e imanentes; ela vislumbrava o transcendente. Bem antes da manifestação de seus êxtases espirituais, Gemma já se deixava transportar por “outros mundos”, o mundo das coisas de Deus, inatingível para quem se limita às coisas superficiais deste mundo. Sua imaginação voava e chegava a tocar os céus, e o colégio das Irmãs de Santa Zita possibilitava essa imersão no transcendente. Por isso ela o comparou ao paraíso.

O colégio Guerra era um colégio para meninas. Funcionava em tempo integral, e havia alunas internas e externas. Gemma, como foi dito, fazia parte da turma das externas, mas isso não impedia que ela estreitasse laços e angariasse a simpatia de todas, tanto das internas quanto das externas, bem como das professoras e demais colaboradoras, que logo reconheceram as raras disposições e talentos da nova aluna, o que possibilitou que ela fosse irada e cortejada por todas. Seu diretor espiritual não fala de antipatias e ciúmes que possam ter surgido devido ao destaque que Gemma obteve nesse colégio, mas isso provavelmente existiu naquela ocasião, como existe em todas as relações sociais. Porém, se existiram tais situações, Gemma, com toda a certeza, soube lidar com maestria com elas, dada a sua habilidade em contornar ocasiões desagradáveis que surgiam na sua vida, como já vimos. Percebe-se que ocorreu algo dessa natureza quando o Pe. Germano escreve: “Gemma procurava disfarçar suas virtudes para esconder-se aos olhos de todos, mas não o conseguia porque a candura de sua bela alma transparecia em toda sua pessoa, principalmente nos olhos”. [13]

Gemma Galgani, além de ser uma excelente aluna e ter uma bela alma, tinha rara beleza física e olhos que não a deixavam mentir. Seus olhos eram radiantes, e seu rosto, de uma singeleza indescritível, como se pode perceber nas suas estampas ou fotografias. Vale lembrar que na época de Gemma Galgani já existia a máquina fotográfica, como vimos no início do livro, portanto, as imagens que temos dela são fotografias reais, e não pinturas ideais, como no caso da maioria dos santos que viveram antes do advento da fotografia. Gemma tinha um rosto oval, bem desenhado e emoldurado por cabelos castanhos, e olhos azuis que externavam uma constante expressão de doçura. Seu olhar era límpido e penetrante. Esse perfil de rara beleza fez com que ela fosse, recentemente, escolhida por um grupo de jovens italianos como a santa mais linda entre as santas. Essa característica externa não tinha nenhuma importância para Gemma, que se preocupava apenas com a beleza interior, a beleza espiritual. Essa, sim, era para ela muito importante. Porém, mesmo não sendo tão importante para ela, a beleza física não deixava de chamar a atenção das pessoas, o que lhe custou alguns dissabores, seja por ciúmes ou inveja de outras adolescentes da sua idade, seja pelo desejo dos rapazes de desposá-la, como veremos adiante, pois essa não era a sua intenção. O que ela desejava era a consagração a Deus e nada mais. Chamar a atenção por coisas efêmeras não estava nos seus planos. Ela só buscava as coisas do alto.

Na classe, embora fosse a mais nova, inspirava muito respeito e iração e era considerada a primeira entre todas. Uma de suas professoras fez o seguinte relato sobre a atuação de Gemma no colégio: “Era a alma da escola. Nada se fazia sem a sua coadjuvação durante todo o tempo em que ficou conosco. Todas as colegas lhe dedicavam sempre muito afeto e queriam que tomasse parte em suas festas e divertimentos”.[14] Vendo-a por esse ângulo que a professora a descreve, parece ser Gemma uma pessoa muito sociável e entrosada na turma, mas, como foi acenado antes, não era bem assim. Como toda pessoa que se destaca intelectualmente, e também em outros aspectos, é comum o isolamento devido à falta de pessoas similares para se relacionar. Isso faz com que os alunos especiais, “os gênios”, ou, como dizem atualmente, os nerds,[15] sejam alunos mais retraídos e isolados dos demais. Os nerds costumam formar um grupo à parte, isolado, e, quando não encontram um grupo, essas pessoas podem sofrer provocações. Esse aspecto também foi detectado em Gemma Galgani por essa mesma professora, que diz no final do seu relato: “[...] embora ela tivesse um gênio retraído, fosse de poucas palavras, firme, e algumas vezes aparentemente

incivil”.[16] “Incivilidade” é um termo aplicado a um comportamento social um tanto quanto indelicado, atribuído a pessoas que têm certa dificuldade de relacionamento. Gemma também tinha certa dificuldade de relacionamento, e sua santidade não garante que ela não tenha sido ríspida, descortês ou indelicada em algum momento. No entanto, isso não maculou a sua biografia nem sua vida, pois suas qualidades eram tantas que pequenos isolamentos ou situações de aborrecimento, próprias de qualquer ser humano, até mesmo dos santos, não diminuíram em nada a sua grandeza.

Seu diretor espiritual dirá depois, ao escrever a sua biografia, que “esse não era o seu comportamento. Ela falava pouco, com medo de que, deixando-se levar pelos sentidos, caísse na dissipação e viesse a ofender a Deus”.[17] Gemma tinha mais medo de ofender a Deus do que as pessoas, por isso talvez acabasse por ofendê-las pelo seu retraimento ou silêncio. Isso gerava em seu coração muitas angústias e tormentos, porque ela sabia que, ao ofender o semelhante, ela estaria ofendendo a Deus. Esse foi um dos dilemas de sua vida, que lhe custou muitas penitências e mortificações em busca do perdão e da salvação.

Diz ainda seu diretor espiritual: “Uma pessoa, vendo-a tão séria e reservada, chamou-a de altiva e soberba”.[18] Quantos não am por essa mesma situação, sobretudo os tímidos. Pessoas tímidas são muitas vezes tomadas por soberbas ou arrogantes, principalmente quando se destacam intelectualmente. A sabedoria nem sempre dissipa a timidez, e Gemma ou por isso algumas vezes em sua vida. Porém, nesse caso, ela encontrou coragem e questionou a quem a chamou de soberba: “Que quer dizer soberba? Eu nem penso nisso; não respondo, porque não sei o que dizer. Ademais, ignoro se respondo bem ou mal, assim prefiro estar calada; e adeus”.[19] Muitas vezes, ela preferia se calar e se afastar a dar alguma resposta que pudesse, porventura, ofender, tudo isso por medo de errar na resposta e magoar ou chatear alguém. Há palavras que ferem mais que uma agressão física, e Gemma sabia disso, daí a sua precaução.

Quando temos dúvida, o silêncio é sempre a melhor resposta, mas nem todos o entendem, porque ele dá margens para inúmeras interpretações. Este talvez seja

também um dos dilemas dos santos: falar ou calar? Se se fala, poderá machucar; se se cala, poderá dar margens para interpretações errôneas. Mas a sabedoria indica que o silêncio é sempre a melhor escolha quando se tem dúvida sobre o que vai responder, sobretudo se a resposta for a alguma agressão ou insulto. Gemma optava quase sempre pelo silêncio.

Sobre a acusação de soberba que recebia na escola, Gemma, certa vez, já crescida, reconhece esse pecado nos seus profundos exames de consciência e diz ao seu diretor espiritual:

Sim, eu tinha por demais esse pecado, mas Jesus sabe se eu o conhecia ou não. Frequentemente ia procurar as mestras, as outras alunas e a superiora para pedirlhes perdão desta falta; depois, ao recolher-me durante muitas noites, chorava sozinha, mas sem conhecer este pecado.[20]

Por ser ainda uma adolescente, ela não fazia ideia do que algumas de suas colegas a acusavam. Somente mais tarde, quando apurou sua revisão de vida e o desejo de conversão, isso lhe pesou na consciência. No entanto, seu diretor espiritual tratou logo de confortá-la, dizendo: “Oh! Tivessem todos esta soberba, cuja raiz produz tão belos frutos de humildade!”.[21] Sim, humildade era uma das qualidades mais evidentes de Gemma Galgani. Ela era capaz de reconhecerse errada e pedir perdão mesmo quando estava certa, e isso não é para qualquer um; essa é uma virtude apenas dos santos.

Os santos também foram pessoas firmes e enérgicas, e Gemma tinha esse lado, muitas vezes oculto pela sua serenidade e doçura. Seu diretor disse na sua biografia:

Quem atentamente a observasse reconheceria logo que o seu temperamento era ardente, fervendo-lhe o sangue nas veias; e que sem a violência que se fazia

continuamente a si mesma, teria sido, como diziam, uma criatura de gênio arrebatado.[22]

Vejam que interessante essa constatação do Pe. Germano! Ele enxergou nas rigorosas penitências que Gemma impunha a si uma forma de extravasamento dos sofrimentos que outros lhe causavam. Em vez de agredir quem a agredia, ela agredia a si mesma, e tudo isso sob o pretexto de penitência e mortificações, impostas para a sua conversão. Gemma experimentou muitas vezes o inferno nas relações conflituosas, em que as suas fraquezas eram expostas, sublimando e canalizando-as para a via da purificação. Se, alguns anos mais tarde, o filósofo existencialista e ateu Jean-Paul Sartre (1905-1980) sentenciou que o inferno são os outros,[23] Gemma viveu essas “relações infernais” muito antes dessa constatação, mas fez esses “infernos” se transformarem em “purgatórios” para os seus pecados, de modo que um dia ela pudesse chegar ao céu. Essas relações sociais intrinsecamente beligerantes, vividas por Gemma na escola e em outros lugares, vão ser depois transportadas ou transmutadas para outra dimensão, não mais social, mas espiritual, nas lutas que ela travou com o diabo, que queria desviá-la do caminho de Deus. Esses conflitos espirituais diabólicos, contudo, serão tratados em outro momento, e aqui atenho-me mais ao seu desenvolvimento intelectual na escola e na vida, entre êxitos e fracassos que a fizeram evoluir cada vez mais até atingir o grau da santidade. Santidade essa que foi reforçada pela seriedade com que recebeu e viveu os sacramentos, como veremos no capítulo seguinte.

VI

Santa Gemma Galgani e os sacramentos: desdobramentos de sua consagração religiosa

Os sacramentos foram a base da sólida formação religiosa de Gemma Galgani, e ela aprendeu o valor deles como via eficaz para se chegar a Deus e para Deus achegar-se a ela, sobretudo o sacramento da Eucaristia, um marco na sua vida religiosa, ao qual Gemma consagrara uma especial devoção. Dos sete sacramentos, Gemma recebeu cinco (batismo, crisma, confissão, Eucaristia e unção dos enfermos), e a todos conferiu grande valor, mas nada comparável ao valor que ela deu à Eucaristia. Neste capítulo, vou tratar desses sacramentos na vida de Gemma, com ênfase no sacramento da Eucaristia, e da sua importância na sua formação religiosa e na opção de vida que ela fez, de se consagrar inteiramente a Deus.

O primeiro sacramento recebido, o batismo, como foi dito antes, ocorreu no dia 13 de março de 1878, na paróquia de São Miguel no Fórum, em Lucca, hoje basílica. A igreja, localizada na praça de São Miguel (piazza San Michele), leva esse nome por estar situada no antigo fórum da cidade de Lucca. É uma basílica de estilo românico, com traços arquitetônicos similares à torre de Pisa, cidade vizinha a Lucca. As colunas dessa histórica igreja, com seus imponentes arcos, têm no topo uma grande escultura do século XIII, de São Miguel Arcanjo derrotando um dragão, ladeada por dois anjos, uma imagem que alude às grandes batalhas que Gemma travaria posteriormente com o diabo, sob a proteção dos anjos, figuras muito presentes nos êxtases que ela viria a ter mais tarde, quando desenvolveu os fenômenos espirituais que a caracterizaram como a santa mística do século XX. Há quem diga que não tenha sido essa a igreja onde ocorreu o seu batismo, mas apenas a sua crisma. Porém, seu diretor espiritual aponta na sua biografia a paróquia de São Miguel no Fórum e o vigário Pe. Pedro Guilici.[1] Em pesquisa na região, inclusive no povoado de Camigliano, não foi encontrada outra igreja com esse nome, a não ser essa imponente basílica no centro de Lucca, que teve como pároco naquela época Pedro Guilici. Portanto, tudo indica que, no dia do batismo, a família Galgani se deslocou do povoado de Camigliano, que fica a aproximadamente 8,5 km, até o centro da cidade de Lucca, para batizar a menina Gemma Galgani na igreja de São Miguel no

Fórum. Hoje essa distância é percorrida em 13 minutos de carro, mas, na época, provavelmente com veículo de tração animal, esse tempo era bem maior. Vale lembrar que, nos dias atuais, o centro histórico de Lucca é fechado para veículos, e apenas bicicletas e pedestres transitam por suas apertadas ruas.

Anos mais tarde, Pe. Pedro Guilici foi o padre que fomentou a publicação da primeira edição da biografia da santa que ele havia batizado. [2]

No assento do livro de batismo, está registrado o nome de Gemma Maria Humberta Pia Galgani, cuja escolha já foi explicada em capítulos anteriores. A partir de então, começa um processo de preparação espiritual da menina Gemma, que culminará na sua santidade definitiva, da qual eu tratarei detalhadamente em capítulos posteriores.

Após o batismo, Gemma era levada constantemente à igreja, caminho que ela gravou e nunca mais esqueceu, pois ir à igreja era o seu eio predileto, seja a da paróquia onde fora batizada, sejam outras igrejas e conventos da cidade. Lucca, apesar de ser pequena até hoje, é conhecida como a cidade das cem igrejas, porque elas estão por toda parte. Todos os sábados, sua mãe tinha o compromisso de levá-la à missa e, quando não podia ir, pedia que alguém a levasse. Gemma não ficava muitos dias longe da igreja, e quanto mais crescia, mais crescia a vontade de estar de alguma forma na casa de Deus.

A Sra. Aurélia não descuidava da educação religiosa dos filhos, e seus irmãos mais velhos também iam à igreja e tinham que se confessar. Gemma, por não ter atingido a idade para a confissão (ela não tinha sete anos), ainda não participava desse sacramento,[3] mas, vendo seus irmãos confessarem, apesar de tão pequena, já sentia curiosidade e interesse por esse nobre sacramento, o sacramento da misericórdia, ao qual mais tarde ela recorreria com frequência, embora tivesse tido algumas vezes resistências para confessar.

Quanto ao sacramento da crisma, Gemma Galgani o recebeu quando completou sete anos de idade. Naquela época, era comum receber esse sacramento antes da Eucaristia e da penitência. Em alguns lugares, o sacramento da crisma era ministrado junto com o batismo, logo após o nascimento. A cerimônia da crisma de Gemma Galgani também ocorreu na igreja de São Miguel no Fórum, e quem lhe ministrou esse sacramento foi o arcebispo dom Nicolau Ghilardi, no dia 26 de maio de 1885, tendo como madrinha a sua tia Helena Galgani.[4] Seu diretor espiritual afirma que “Gemma, embora de tão tenra idade, estava perfeitamente instruída para receber o sacramento da crisma”.[5] Quem a preparou foi sua mãe, que via nesse sacramento um dos últimos presentes a conceder à filha, uma vez que a Sra. Aurélia estava gravemente enferma. Nos seus últimos dias de vida, ela dizia: “Que poderei fazer de melhor do que entregar esta querida filha ao divino Espírito Santo antes de morrer? Separando-me dela, saberei a quem a confio”.[6] A mãe de Gemma queria partir deste mundo com a certeza de que havia deixado sua filha sob os cuidados do Espírito Santo, e isso a confortava enormemente.

Assim, a Sra. Aurélia preparou com esmero a filha para receber o sacramento da crisma, “mas, não contente ainda, chamou uma das mestras da doutrina cristã para que fosse todas as tardes à sua casa aperfeiçoar a sua obra”.[7] Essa mestra era irmã Camila.[8] Desse modo, além de sua mãe, Gemma teve outra catequista de crisma, cujo nome não aparece na sua biografia. Era, no entanto, uma pessoa bem preparada e empenhada, e ajudou Aurélia a concluir sua última missão, a de preparar a filha amada para o sacramento em que ela receberia o Espírito Santo Paráclito. Mais tarde, na sua autobiografia, Gemma vai escrever:

Mamãe preocupou-se com minha preparação para receber este sacramento, mas eu, mãezinha, não queria abandonar seu quarto, por isso a catequista tinha de vir à minha casa para me ensinar a catequese na presença de minha mãe doente.[9]

Gemma era muito apegada a sua mãe e, pressentindo que a hora dela estava chegando, não queria deixá-la por nenhum momento nem para ir à catequese, algo que ela tanto prezava. Cada momento era precioso para desfrutar da

presença daquela que dentro de poucos dias partiria para sempre, deixando-a órfã ainda tão criança.

O Pe. Germano, seu diretor espiritual, diz que, infelizmente, notícias exatas do dia da crisma, que ele chamou de “grande acontecimento”,[10] não foram conservadas. Mas ela mesma vai depois escrever em sua autobiografia informações relevantes sobre esse grande acontecimento, que só perdeu em importância para a sua primeira comunhão. Escreveu Gemma em sua autobiografia, que ela chamava de O caderno dos meus pecados: “Após a cerimônia da confirmação, a pessoa que me acompanhava quis ficar para a missa. Entretanto, eu receava que minha mãe morresse sem me levar com ela”. Gemma e a acompanhante tinham acabado de participar da missa da sua confirmação, mas, como haveria outra missa logo em seguida, aproveitando que já estavam lá, quiseram ficar, embora o coração de Gemma estivesse apertado de preocupação pela sua mãe. Não que ela não quisesse ficar na missa, mas porque estava angustiada por ter deixado num estado tão preocupante, em agonia, a sua mãe, e queria voltar o mais depressa possível, com medo de que ela morresse durante a sua ausência. Ela não apenas queria estar com sua mãe, como queria que sua mãe a levasse junto com ela para o paraíso, pois Aurélia lhe havia ensinado que o paraíso era um lugar muito bom. Disse seu diretor espiritual: “Tão grande desejo de morrer tinha para ver Jesus e ir ao céu, que seu confessor se viu na obrigação de lhe proibir que pedisse a morte”,[11] e dizia: “Que anseios prematuros numa criança! Que primor de piedade!”.[12] Depois da crisma, Gemma aria a se confessar, e teria como fiel confessor o padre João Volpi, que mais tarde se tornaria bispo de Arezzo,[13] uma comuna da região da Toscana, e aria a ser conhecido também como monsenhor Giovanni Volpi. Esse bispo, no final de sua vida, após a morte de Gemma, deixou em testamento uma vultosa quantia para a construção de uma capela em honra a ela.

Ainda nessa missa, no mesmo dia após sua crisma, antes de retornar para casa, Gemma aproveitou a ocasião de estar na igreja, seu lugar preferido, e rezou pela saúde de sua mãe. Assim ela registra em sua autobiografia esse momento: “Durante a missa, rezei por minha mãe”.[14] Essa oração não foi em vão. Deus não apenas ouviu sua oração, como também falou com ela. É um dos primeiros registros que se tem de um diálogo de Gemma com Deus. Assim ela descreveu

esse contato sobrenatural:

De repente, uma voz como que me segredou ao infinito do coração: – Gemma, dá-me a tua mãe? – Sim, se me levares com ela – respondi. – Por enquanto terás de ficar com o teu pai. Tua mãe, vou levá-la para o céu. Dá-me de boa vontade? [15]

É interessante observar que, nesse diálogo amistoso entre Gemma e Deus, o Senhor lhe fala com cautela, como que a pedir a sua autorização para levar a sua mãe. Deus demonstra-se carinhoso e afável e mostra que seu desejo é confortá-la diante da iminente perda de sua mãe. Gemma perderia a companhia de sua mãe, mas o céu ganharia uma valiosa alma, a alma daquela que gerou uma santa e que trazia em si um quê de santidade. Na continuação desse relato, da conversa entre Gemma e Deus, ela vai dizer na sua autobiografia: “Não tinha alternativa. Aceitei. Terminada a missa, regressei apressadamente a casa. Meu Deus!”. [16]

Seu diretor espiritual vai dizer depois que “a circunstância da crisma, isto é, da descida do Divino Espírito Santo naquela alma inocente é uma prova convincente de que foi o verdadeiro autor dessa revelação, mais tarde veridicamente demonstrada”.[17] O sacramento da crisma foi, assim, para Gemma, um dos marcos concretos da presença de Deus em sua vida, que viria a se confirmar em outros sacramentos, sobretudo na Eucaristia, que ela aria a receber desde então, e nas confissões, por meio das quais sentia profundamente a misericórdia de Deus que a purificava. Se, “na crisma, Deus falou-lhe ao coração, pedindo-lhe o que tinha de mais caro: sua mãe, desprendendo-a, assim, de todo o afeto terreno, por mais legítimo e puro que ele fosse, na sagrada comunhão fê-la gozar das doçuras celestiais, convidando-a à união perfeita com a Divina Majestade”.[18] Isso, no entanto, não aconteceu sem as duras provas e sofrimentos, como veremos mais adiante.

Após a crisma, Gemma ou a receber outro sacramento, a Eucaristia, que se torna seu principal alimento espiritual, além das orações, penitências e outros procedimentos espirituais que iam lapidando o coração e a vida dessa santa em formação. Seu amor pela Eucaristia era enorme, impossível descrever tudo o que ela representou em sua vida, mas busquei aqui reunir algumas de suas manifestações antes, durante e depois daquele momento que ela considerou o mais importante de sua vida: a primeira comunhão.

Logo que entrou para o colégio Guerra, Gemma ou a desejar ardentemente a Eucaristia.

Sua mãe tinha-lhe feito, de antemão, conhecer e saborear as delícias, e para inflamá-la cada vez mais nesse sentimento, frequentemente a levava consigo junto ao tabernáculo sagrado onde o Senhor costuma derramar celestes raios e chamas sobre aqueles que o procuram, especialmente as almas mais simples.[19]

Mas, apesar do incentivo primordial de sua mãe, ela ainda precisava de um pouco mais de preparação para esse sacramento, e as suas mestras se encarregaram disso. Enquanto ela não recebia a comunhão, seu coração ardia de desejo, conforme relatou seu diretor espiritual, Pe. Germano: “[...] parecia-lhe não poder esperar nem resistir mais tempo, e com lágrimas nos olhos suplicava todos os dias ao confessor, ao pai e à mestra que lhe dessem o seu Jesus”. [20]

Recordo que, embora já crismada, ela não recebeu de imediato a comunhão, porém, ela já tinha um confessor, Pe. Giovanni Volpi. Seu diretor espiritual lembraria mais tarde, ao escrever sua biografia, que não era comum naquela época “itir à Sagrada Mesa meninas de tão tenra idade, ainda mais que ela, pela delicada compleição, parecia só ter seis anos”.[21] Mas Gemma não desistia e voltava sempre a insistir que queria receber a comunhão, dizendo: “Dai-me Jesus, vereis que serei boa, que não cometerei mais pecados; não serei mais

como até aqui; dai-mo, que me sinto desfalecer e não posso mais”.[22] Relata o seu diretor espiritual, Pe. Germano, que, diante de tão extraordinária insistência, o seu confessor, Pe. Giovanni Volpi, diz ao seu pai que a deixe fazer a primeira comunhão, para não vê-la morrer de pesar. Assim, Gemma é autorizada a receber a comunhão e, diante da autorização, não se contém de alegria.

O fato de ter recebido a permissão para comungar fez com que ela intensificasse ainda mais as suas orações, agora em agradecimento a Jesus e Maria Santíssima, como relatou Pe. Germano. Gemma, ainda com tão pouca idade, decidiu que, antes da primeira comunhão, queria fazer um retiro espiritual em preparação “e, sem demora, resolveu encerrar-se no convento, junto às mestras de Santa Zita, onde, depois de um curso regular de exercícios espirituais na paz da solidão, melhor se poderia preparar para o grande ato”.[23] Seu pai não queria permitir que ela ficasse tanto tempo longe dele, mas Gemma não desistiu, e depois de tanto choro, pedindo que ele lhe permitisse fazer o retiro, o Sr. Henrique cedeu mais uma vez aos seus desejos, pois sabia que era para o seu bem.

Gemma descreve da seguinte maneira a permissão de seu pai e a experiência de retiro preparatório para a primeira Eucaristia:

Obtive a permissão à noite, e no dia seguinte, pela manhã, fui logo ao convento, onde fiquei dez dias. Durante este tempo não vi ninguém de minha família; mas, como me sentia bem! Que paraíso! Logo que cheguei ao convento julguei-me tão feliz; corri a agradecer a Jesus na capela e rezei com fervor para preparar-me bem para a sagrada comunhão. Então nasceu em meu coração o grande desejo de conhecer toda a vida de Jesus e sua paixão.[24]

Nasce e se confirma aqui, nesse retiro, a espiritualidade da paixão, que será a marca indelével de sua vida e de suas obras. A partir desse momento, Jesus crucificado a a ser o centro de sua vida, das suas orações, dos seus diálogos espirituais, e a arma que ela usará para lutar contra o diabo, pois, todas as vezes que ele vinha atormentá-la, ela recorria ao crucifixo para expulsá-lo, como

vemos nos registros do seu diário.

Seu diretor espiritual e depois biógrafo, Pe. Germano, refletirá sobre isso, se perguntando: “Mas quem teria ensinado a esta menina que o mistério da paixão do Salvador liga-se tão intimamente com o da Eucaristia? Que para chegar a esta, o melhor meio é ar por aquela?”.[25] E ele conclui que só poderia ter sido obra do Espírito Santo, porque não era possível alguém nessa idade ter entendido a essência da teologia da cruz e captado o cerne da espiritualidade da paixão. Aqui ele não tem mais dúvida de que Gemma sempre foi uma autêntica ionista, embora não tivesse sido oficialmente uma freira ionista nem tivesse estudado sistematicamente a teologia da cruz, como fazem os grandes teólogos. Ela não era teóloga, mas mística, e sua espiritualidade emanava da cruz de Cristo, que deu a vida pela humanidade, fazendo-se alimento, Eucaristia.

Esse insight da espiritualidade da paixão tido por Gemma é partilhado com a sua mestra durante o retiro, e esta a a orientá-la nessa linha, embora se surpreenda ao ver que Gemma começa a manifestar fenômenos “anormais”, que já eram prenúncios dos êxtases que viria a ter mais tarde. A própria Gemma vai descrever como partilhou com a sua mestra a experiência tida e como a mestra se chocou com o que presenciou:

Manifestei meu desejo à minha mestra, e ela começou, a cada dia, a dar-me algumas instruções, escolhendo para esse fim a hora em que as outras meninas estavam deitadas. Uma noite em que me explicava alguns pormenores da crucifixão, da coroação de espinhos e outros suplícios de Jesus, descreveu-os tão vivamente que senti uma intensa dor e me sobreveio uma febre violenta que me obrigou a ficar de cama no dia seguinte.[26]

Temos aqui o primeiro registro da manifestação dos seus fenômenos espirituais, que, mais tarde, seriam muito frequentes em sua vida. Porém, o que nos surpreende – e surpreendeu também a sua mestra – é a idade com que Gemma manifestou tais fenômenos. Ela era praticamente uma criança, às vésperas de

completar nove anos de idade.

Na continuação do seu relato, Gemma vai dizer: “À vista disso, a mestra desistiu das lições”. Ela a, então, a ouvir somente as prédicas do seu pregador de retiro, como relata:

Todos os dias o bom pregador dizia: quem se alimenta de Jesus viverá de sua vida. Essas palavras me enchiam de consolação, e assim raciocinava comigo mesma: então, quando Jesus estiver comigo, eu não viverei mais em mim, porque Jesus é quem viverá em mim! E morria de desejo de chegar a poder dizer depressa estas palavras: Jesus, vive em mim![27]

Que ânsia pela Eucaristia manifestava Gemma! Um desejo indescritível que só poderia vir de uma alma santa. Quem entre nós anseia por Cristo eucarístico como Gemma ansiava? São poucos os que conseguem sentir e viver o que Gemma sentiu e viveu diante da Eucaristia. Sua ansiedade para receber a Eucaristia era tanta que ela ava noites em claro. Ela mesma relata sua ansiedade incontrolável: “Outras vezes, meditando nesse assunto, ava a noite inteira em viva ansiedade”. [28]

Depois de se preparar espiritualmente para receber pela primeira vez a Eucaristia, ela também se prepara para a confissão e, antes de recebê-la, diz: “Preparei-me para a confissão geral, que fiz em três vezes ao Sr. Pe. Volpi; terminei no sábado, véspera do feliz dia, 17 de junho de 1887, para o qual se tinha transferido a festa do Sagrado Coração de Jesus”.[29] A preparação para a Eucaristia e a revisão de vida foram tão profundas que Gemma fez a confissão em três etapas. Quem lê essa afirmação imagina que ela fosse uma das pessoas mais pecadoras do mundo, mas não era isso; eram os seus escrúpulos em relação ao pecado e o medo de ofender a Deus que faziam com que ela se visse dessa forma. Para ela, não bastava uma simples confissão, teria que ser algo relevante,

porque a ocasião pedia.

Antes de sair do retiro em preparação para a primeira comunhão, Gemma escreveu as resoluções tomadas nesse tempo de exercícios espirituais. Foram cinco propósitos que norteariam sua vida espiritual após a primeira comunhão:

1) Confessarei e comungarei todas as vezes como se fosse a última; 2) Visitarei muitas vezes a Jesus Sacramentado, especialmente quando estiver aflita; 3) Preparar-me-ei para todas as festas da Santíssima Virgem, com alguma mortificação, e todas as noites pedirei a bênção à minha Mãe do Céu; 4) Quero estar sempre na presença de Deus; 5) Todas as vezes que ouvir o relógio das horas, direi três vezes: meu Jesus, misericórdia.[30]

Gemma queria mais do que esses cinco propósitos, porém sua mestra, temendo uma sobrecarga de penitências que afetaria a sua saúde, não permitiu que escrevesse outros, pois sabia que ela cumpriria com rigor tudo o que prometesse.

Depois de tanta espera e preparação, chegou o grande dia. Porém, em relação a esse dia exato, há certo desencontro de informações. Seu diretor espiritual e biógrafo coloca a sua primeira comunhão no domingo, dia 18 de junho de 1887, [31] e o Pe. Fernando Piélagos parece indicar que ela se deu na sexta-feira, dia 17 de junho desse mesmo ano, festa do Sagrado Coração de Jesus.[32] Há ainda outras fontes que dizem que sua primeira Eucaristia foi no dia ٢٠ de junho daquele ano.

O dia 18 de junho daquele ano, contudo, não caiu num domingo, conforme indica Pe. Germano, mas num sábado, embora ele transcreva um trecho de próprio punho de Gemma que diz ser domingo sua primeira comunhão. Já o Pe. Fernando Piélagos, cujos escritos sobre Santa Gemma também são bastante confiáveis, acerta em relação ao dia da semana em que se deu 17 de junho de

1887, sexta-feira, mas essa informação é incompatível com o relato de Gemma, apresentado a seguir, que indica que sua primeira comunhão foi num domingo, dia mais provável para um evento assim. No entanto, mais adiante, numa de suas cartas ao seu diretor espiritual, o qual ela chamava de “pai”, estando ela em êxtase naquele momento, faz memória de sua primeira Eucaristia referindo-se à festa do Sagrado Coração de Jesus, que, como escreveu Piélagos, foi numa sexta-feira, 17 de junho. Assim diz Gemma nessa carta: “Meu pai, não sei se já vos disse que o dia da festa do Sagrado Coração de Jesus é também o dia da minha festa”.[33] Ela diz isso numa referência direta ao dia da sua primeira comunhão. Mais adiante, nessa mesma carta, agora não mais em estado de êxtase, como afirma seu diretor espiritual, Gemma volta a dizer que sua primeira Eucaristia coincidiu com a festa do Sagrado Coração: “[...] Ao belo dia da minha primeira comunhão. Ontem, festa do Sagrado Coração de Jesus, senti de novo a alegria da primeira comunhão. Outra vez me foi concedida a felicidade do paraíso [...]”. [34]

Contradições sobre a data exata à parte, o importante é que ela fez a primeira comunhão e o que representou na sua vida esse sacramento, que ela relaciona com a festa do Sagrado Coração de Jesus.

Estão de comum acordo os seus biógrafos (Germano e Piélagos) sobre o fato de que ela recebe a primeira comunhão aos nove anos de idade. Seu diretor espiritual dirá mais tarde, ao escrever sobre o que causou no coração e na vida de Gemma esse sacramento:

Não acabaria mais, se se quisesse transcrever todos os pensamentos diversos com que ela voltava sempre ao mesmo assunto da primeira comunhão. Mas o que já tenho dito bastará para fazer conhecer seu coração e calcular a que altura já se elevava aquele anjo aos nove anos de idade.[35]

Assim, Gemma recebe o sacramento mais almejado com uma idade similar à que as crianças de hoje, na sua maioria, recebem a primeira Eucaristia. Nisso ela se assemelha a todas as crianças da sua idade.

Antes, porém, na véspera da primeira comunhão, ela quis que o pai particie desse momento sublime e escreveu uma emocionada carta a ele. Era tanta a sua comoção que lhe fugiram as palavras. Gemma acabou por escrever uma carta breve, mas surpreendente para uma criança da sua idade. Seu diretor dirá que “quando se sente muito, pouco se pode exprimir”, e foi exatamente isso que ocorreu com Gemma ao escrever essa carta ao pai. Ela se exprimiu resumidamente, mas deixou transparecer o quanto tudo aquilo que estava vivendo era importante. Vejam o teor da carta:

Querido papai. Estamos na véspera da primeira comunhão, dia para mim de inefável alegria. Escrevo estas linhas só para lhe assegurar o meu amor e pedir suas orações a Jesus, a fim de que, na primeira vez que ele vier à minha alma, ache-me disposta a receber todas as graças que me tem preparado. Peço-lhe perdão de todas as desobediências, de todos os desgostos que lhe tenha dado, suplicando-lhe que se esqueça de tudo esta noite, e me dê sua bênção. Sua filha afetuosíssima. Gemma.[36]

É uma carta breve, como podemos ver, mas com um conteúdo e uma forma de se expressar que não se parecem com os de nenhuma criança de nove anos. A escrita parece de uma pessoa adulta, com plena ciência dos acontecimentos. Essa breve carta revela não apenas a sabedoria de Gemma, mas o grau da sua excepcional espiritualidade. Ela revela que é uma criança que foge à “normalidade” das crianças da sua idade. Gemma era de fato uma criança diferente, muito bem preparada intelectual e espiritualmente, e a consciência que tem da Eucaristia é de fazer inveja a qualquer adulto formado na fé. Ao transcrever essa carta de Gemma ao pai, seu biógrafo pede que o leitor interrompa a leitura da sua biografia e recolha-se um pouco para refletir e irar a fé ardente de uma menina com tão tenra idade.[37] De fato, é inacreditável que alguém com nove anos de idade já tenha tamanha compreensão

do sacramento da Eucaristia e se expresse dessa maneira.

Mas as manifestações de fé de Gemma Galgani não param por aí. No dia da sua primeira comunhão, ela diz: “Chegou a manhã de domingo. Levantei-me depressa e corri para Jesus pela primeira vez... Foram afinal satisfeitos os meus suspiros. Compreendi então a promessa de Jesus: ‘Quem se alimenta de mim, viverá de minha vida’”. [38]

Voltando ao que disse antes sobre essa data, Gemma descreve que sua primeira comunhão foi num domingo pela manhã, um dia mais plausível para esse acontecimento, porém o que importa é a relevância do fato em sua vida, e não a data em si. Gemma está transbordando de alegria. Relatos similares a esse ela só fará por ocasião dos seus encontros físicos com Jesus, nos seus êxtases, mas o encontro espiritual com o Cristo eucarístico é, sem sombra de dúvida, a experiência mais sublime de sua vida até então, e ela vai cultivar essa emoção em cada comunhão recebida depois dessa memorável data. Gemma escreve ao seu diretor espiritual sobre a sua emoção:

Meu pai espiritual, o que se ou entre mim e Jesus naquele momento já não posso exprimir. Jesus se fez sentir com toda a força em minha pobre alma. Entendi, naquele mesmo instante, que as delícias do céu não são como as da terra. Apoderou-se de mim o desejo de tornar contínua aquela união com meu Deus. Sentia-me cada vez mais desapegada de tudo do mundo, e mais atraída ao recolhimento.[39]

Assim, a primeira comunhão de Gemma foi um divisor de águas em sua vida. A partir daquele momento, ela não quis outra coisa a não ser configurar sua vida à de Jesus, e esse propósito será levado até as últimas consequências, até o último momento de sua vida. Ela levou tão a sério a comunhão com Cristo que, a partir daquele momento, ela quis que essa união fosse contínua e para sempre, como

de fato foi. Seu diretor espiritual dirá que, “certamente, palavras como estas não saberia proferir quem as inventasse”. Diz ele ainda que “a arte não consegue elevar-se a tanta altura para se deixar escapar, pela pena, palavras tão ardentes de celestial amor”.[40] Ou seja, se ela estivesse mentindo, representando um papel ou algo parecido, não conseguiria pronunciar palavras tão profundas de significado teológico e espiritual nem registrá-las com tanta unção. Somente alguém que de fato estava vivendo tudo aquilo conseguiria descrevê-lo com tanta profundidade e beleza.

A impressão desse dia ficou para sempre em sua memória e em seu coração. Uma de suas professoras dirá mais tarde: “A querida menina recordava aquele belo dia com uma alegria inexprimível; até nas horas do recreio, conversando, a isto se referia, às puras e doces consolações que tinha gozado naqueles felizes instantes”.[41] Ela preservou isso na memória e o revivia a cada Eucaristia. Tanto é que no dia seguinte ela quis fazer sua segunda comunhão com o mesmo entusiasmo. Essa segunda comunhão, ela a fez na igreja matriz de São Frediano, a sua comunidade, mais tarde basílica de São Frediano, igreja que lhe era muito importante porque nela estavam, e estão até hoje, os restos mortais de Santa Zita, uma santa popular da cidade de Lucca, padroeira das empregadas domésticas, à qual já fiz neste livro referências. Na nave direita dessa basílica, destaca-se a capela dedicada a Santa Zita. Seu corpo mumificado, deitado em uma cama de brocado, está em exposição em um relicário de vidro. As paredes da capela são decoradas com várias telas dos séculos XVI e XVII retratando episódios da sua vida. Gemma se encantava com esses episódios e com a vida dessa santa, e fazer ali sua segunda comunhão tinha um significado todo especial.

Em suma, a partir da primeira comunhão, Gemma aria a cultivar uma grande devoção ao sacramento da Eucaristia, que a fazia vivenciar as doçuras celestiais ainda neste mundo. Além da Eucaristia, Gemma valorizava muito o sacramento da confissão, mas este não lhe era nada fácil. Falarei sobre isso em momento oportuno, por ora, quero encerrar este capítulo sobre os sacramentos na vida de Gemma Galgani e sobre seus desdobramentos na sua consagração lembrando o último sacramento, a unção dos enfermos, também importante em sua vida, pois, como já foi acenado, Gemma, depois de certa idade, embora muito jovem, começou a desenvolver várias enfermidades, e algumas delas bastante sérias.

Além da confissão e da Eucaristia, a unção dos enfermos era para ela um sacramento de grande conforto para o corpo e para a alma, que ela queria ver preparada para estar definitivamente com Jesus. Falarei mais sobre esse tema ao descrever a fase de enfermidades que Gemma Galgani precisou enfrentar na sua vida, como parte de seu calvário rumo à santidade definitiva.

VII

Santa Gemma Galgani na adolescência: perdas e ganhos

O sacramento da Eucaristia para Gemma, como vimos no capítulo anterior, foi um marco para uma nova fase em sua vida. Pode-se afirmar que, a partir da primeira comunhão, Gemma se firmou ainda mais no caminho de crescimento espiritual e em outros aspectos correlatos que iriam definir sua personalidade e sua maneira especial de ser e de viver. O amadurecimento na fé acompanhou seu amadurecimento pessoal, e eles foram fundamentais para que ela lidasse com firmeza com os desafios que viria em seguida a enfrentar, sobretudo as grandes perdas que sofreria, mas também as conquistas que obteria a partir desse crescimento físico e espiritual. Assim, tratarei neste capítulo dos acontecimentos mais relevantes da vida de Gemma Galgani nessa fase de transição da infância para a adolescência, e da adolescência para a juventude.

A transição da infância para a adolescência de Gemma foi marcada por várias perdas, e é impossível calcular qual lhe causou maior sofrimento. Pelos seus relatos, a perda da mãe foi um fato marcante, e Gemma, por ser ainda uma criança, ou pré-adolescente, teve muita dificuldade de lidar com ela. Mas essa perda não foi a única: ela perdeu também outras importantes pessoas da sua família e dos seus círculos de amigos, como professoras, tio e padrinho, irmãos e o pai. Todos esses fatos dolorosos contribuíram para o seu precoce amadurecimento e para que ela se aproximasse ainda mais da cruz de Jesus.

Uma das suas primeiras perdas foi a de um irmãozinho, que morreu logo ao nascer. Não se tem muita informação sobre esse fato. Seu biógrafo diz apenas que o casal Henrique e Aurélia teve oito filhos, “dos quais, um morreu no berço”,[1] mas não há registro da data de seu nascimento nem de sua morte. Mas as anotações de Pe. Germano na biografia de Gemma, que a colocam como a quarta na lista dos filhos do casal, indicam que ela ou por essa perda. No entanto, uma das mais relevantes foi, sem dúvida, a perda da sua mãe, da qual tratarei agora.

Gemma ainda era bem pequena quando sua mãe adoeceu. Uma das primeiras referências à doença da Sra. Aurélia encontra-se nas primeiras páginas da biografia de Gemma, quando ela era preparada pela sua mãe para receber a crisma, como vimos antes. Num desses momentos de catequese familiar, a mãe lhe confidencia: “Estou doente e em breve devo deixar-te; aproveita as lições de tua mãe”.[2] Gemma, embora ainda pequena, gravou essa recomendação na sua mente e no seu coração e buscou tê-la presente todos os dias de sua vida, sobretudo quando a mãe lhe disse que se pudesse a levaria consigo para o céu, com Jesus e os anjos. Esse desejo da mãe ou a ser o desejo da filha, que não fez outra coisa a não ser direcionar sua vida para o céu, com Jesus. Gemma amava a vida, mas não tinha medo da morte; ao contrário: ela viu a morte de perto várias vezes e, em vez de rejeitá-la, a desejava para si. Não a morte da alma, pois essa era a que ela mais temia, mas a morte do corpo, matéria perecível que para ela não tinha valor algum, a não ser como meio de purificar a alma, sacrificando-o.

Aurélia tinha contraído tuberculose, uma doença grave até nos dias atuais, mas naquela época ainda pior, porque não existiam antibióticos, como dissemos no início do livro. Portanto, quem tivesse essa doença só sobreviveria por um milagre. Nesse caso, a morte era uma questão de tempo, dependendo da imunidade da pessoa e de suas condições físicas. Aurélia já vinha sofrendo com a doença havia cinco anos,[3] mas naquele momento a enfermidade se agravara, e Aurélia já via o fim de seus dias.

Todos sabem que essa doença é contagiosa, transmitida por via aérea praticamente na totalidade dos casos. A infecção ocorre a partir da inalação de gotículas contendo bacilos expelidos pela tosse, fala ou espirro do doente com tuberculose, que entram pelas vias respiratórias e atingem o pulmão e, posteriormente, outros órgãos. Desse modo, deve-se evitar o contato direto com pessoas acometidas por essa enfermidade, sobretudo evitar permanecer no mesmo ambiente sem a devida proteção, porque ao tossir, falar ou espirrar, o doente pode contaminar outras pessoas com a tuberculose.

Por esse motivo, “logo que os médicos tiveram conhecimento da moléstia, proibiram terminantemente aos filhos aproximarem-se do leito da enferma”.[4] Podemos imaginar o sofrimento dessa mãe, que, além de ter que enfrentar uma grave doença, via-se privada da presença dos filhos. Mas não foi somente de Aurélia esse sofrimento; era também dos seus filhos, sobretudo de Gemma, que, muito apegada à mãe, “afligiu-se amargamente, vendo-se, de repente, afastada daquela a quem amava duplamente: como mãe e como mestra”. [5]

Gemma, desde criança, costumava assumir o sofrimento alheio, fazendo dele o seu próprio sofrimento, vivendo profundamente o sentido da palavra compaixão, que significa sofrer com aqueles que sofrem, fazer do sofrimento do outro o seu próprio sofrimento. Essa lição de Jesus ela aprendeu na prática, porque o sofrimento de sua mãe era o seu próprio sofrimento. Ela viria a vivenciar isso em outras situações, ou seja, em outras perdas, e também com o sofrimento de Jesus, que ela tão vivamente experimentaria em seus êxtases. Mas, em relação à enfermidade da mãe, quando a proibiram de se aproximar dela, Gemma disse chorando: “E agora, quem me ensinará a rezar e a amar Jesus?”.[6] Seus apelos para ver a mãe foram tantos e tão comoventes que lhe abriram uma exceção. Sobre essa permissão, Gemma diria mais tarde: “Aproximava-me de minha mãe, ajoelhava-me à sua cabeceira e rezava”,[7] sem consciência ou medo de ser contaminada. Para ela, isso não importava. O que importava era estar com sua mãe e rezar com ela. Gemma não imaginava que vinte anos depois ela morreria com a mesma doença da mãe, do irmão Gino e de outras pessoas próximas a ela. Mas esses são acontecimentos para o final deste livro.

A doença de Aurélia piorava a cada dia, mas ela não desistia de viver e amar os seus filhos, mesmo privada de abraçá-los ou de tê-los presentes ao seu lado, na cama. Como é confortante ter ao lado da cama, quando se está na iminência da morte, aqueles a quem se ama! Gemma era a única que permanecia ali, a maior parte do tempo, pois os demais tinham sidos proibidos. Até mesmo no dia da sua crisma, como vimos anteriormente, Gemma não queria ficar muito tempo longe

da mãe, por medo de que ela morresse durante a sua ausência.

Na missa, após a crisma, ela recebeu de Deus o aviso de que sua mãe estava prestes a partir, e essa foi a primeira vez que Gemma ouviu sua voz. Mais tarde, ela o ouviria muitas vezes, mas, nessa primeira vez, Deus lhe anunciou uma grande dor, uma grande perda, uma espada que transaria o seu coração, como o coração daquela Maria que ela aria a amar com todas as suas forças: Nossa Senhora das Dores. Ao ouvir a voz de Deus, Gemma voltou correndo, “entrou em casa e achou a mãe no fim da vida. Ajoelhou-se perto da cama, derramou algumas lágrimas pela força da dor, rezou com o coração trasado de angústia, e declarou não poder mais abandonar aquela cabeceira até receber os últimos suspiros de sua mãe”. [8]

Apesar do agravamento da enfermidade, Aurélia ainda resistiu alguns dias, e Gemma não saiu do seu lado, acompanhando as agruras da mãe em seus últimos momentos. Sobre isso, escreveu seu diretor espiritual: “Gemma continuava sempre firme com toda a ternura, junto àquele leito do qual, nem por instantes, queria se afastar”.[9] No entanto, seu pai estava muito preocupado com o estado da filha, pois temia que ela viesse a ser contaminada e morresse antes da mãe, tão amalgamado estava o sofrimento de ambas.

Diante dessa preocupação, Henrique decidiu retirar Gemma do quarto e levá-la para outro lugar, fora de casa. Porém, convencê-la a se afastar da mãe não foi nada fácil, e ele precisou obrigá-la a sair. Obediente como era, mas não sem dor, Gemma acatou as ordens do pai, e esse momento pode ser descrito como um dos seus grandes sofrimentos. Afastar-se da mãe nos seus últimos momentos causoulhe um dor incomensurável, que somente bem mais tarde ela conseguiria elaborar e descrever. Ao sair daquele quarto, Gemma viu a mãe pela última vez, e seu coração pressentia isso. Ela saiu chorando com o coração dilacerado, e o pai levou-a para a casa da tia Helena Landi, irmã de sua mãe, que morava em São Januário, onde ela ficou até receber a notícia da morte da mãe.

Aurélia Landi, mãe de Gemma Galgani, morreu aos 17 dias do mês de setembro do ano de 1886, quando Gemma estava com oito anos e seis meses.

A triste notícia foi imediatamente dada a Gemma, ainda na casa da tia, e tanto mais irável foi a resignação com que aquela criança de apenas oito anos a recebeu, quanto mais cruciante foi a dor que dilacerou seu terno coração com tão cruel separação.[10]

Essa separação, essa perda, foi irreparável na vida de Gemma, mas Deus concedeu-lhe a força necessária para lidar com essa situação. Deus sempre dá a força necessária, mesmo que não entendamos de onde ela vem nem como amos tais perdas. Deus já havia preparado o coração daquela criança para viver essa perda irreparável, recompensando-a com outras graças e com a herança religiosa que sua mãe lhe havia deixado. No final do primeiro capítulo de sua biografia, o seu diretor espiritual, Pe. Germano, comovido com o relato dessa memória, desabafa: “É assim, meu Deus, que vos apraz fazer sofrer as almas que vos são mais caras, desde os seus mais tenros anos”.[11] Ele parece não entender tamanha dor em uma santa e inocente criança. Gemma Galgani, mais tarde, compreenderá que os propósitos de Deus são insondáveis, ou imperscrutáveis, e nem sempre os compreendemos, a não ser pelo dado da fé. Se não fosse essa fé grandiosa, Gemma não aria tão grande perda.

Não há dúvidas de que Gemma sentiu muito a falta de sua mãe, pois ela estava sempre presente em sua vida, e era ela quem a levava bem cedo para a igreja. Depois da morte da mãe, Gemma sentiu por não ter ninguém que a levasse de manhã cedo para rezar na casa de Deus, por isso chorava, com saudades do tempo em que sua mãe a levava. Sobre isso, Pe. Germano escreverá: “Querendo ir de manhã cedo à igreja, não achava quem, naquela hora, a quisesse acompanhar”.[12] Sobre o choro pela falta da mãe a própria Gemma escreverá mais tarde em sua autobiografia.

Agora, sem a mãe, Gemma procurava intensificar sua vida de oração. Queria estar todo o tempo com Deus, e para isso precisava estar sozinha, em silêncio, em constante retiro, porém as pessoas não deixavam que ela ficasse por muito tempo a sós. Elas se preocupavam com ela, queriam distraí-la da dor, mas Gemma só encontrava consolo na oração, e não na companhia das pessoas que queriam lhe proporcionar distrações. O que lhe dava segurança e conforto eram as orações e o contato com Deus.

Apesar das intensas orações, Gemma se sentia cada vez mais pecadora e buscava constantemente a confissão para se livrar dos pecados que acreditava ter cometido. Queria confessar quase todos os dias, embora ninguém entendesse por que alguém que emanava tanta santidade, que tanto rezava, teria necessidade de se confessar tanto. No entanto, a confissão consistia também num especial momento de falar com Deus, de estar com Deus, e de senti-lo misericordioso. Na verdade, ela encontrava conforto na confissão. Além disso, ela podia dizer ao seu confessor as suas agruras, as suas misérias e dores, e ouvi-lo falar de Jesus. Pe. Germano dirá que, “à exceção de seu confessor, não havia quem lhe falasse de Jesus, sendo esse o único assunto que lhe agradava”. [13]

Deus, porém, vai dirimir aos poucos as suas dores e colocar na sua vida pessoas que lhe serão valiosas. Entre elas, a sua tia Helena Landi, irmã de sua mãe, a mesma que a acolheu em sua casa nos últimos momentos de Aurélia e que agora se propunha a adotá-la como filha, pois se afeiçoara a ela enormemente. Mas isso não se concretizou porque o irmão Gino e o pai, ambos muito apegados a Gemma, não queriam ficar longe dela. “Gemma voltou à casa paterna entre lágrimas de alegria de todos os seus, e principalmente do extremoso Gino”. [14]Assim, o Sr. Henrique reuniu novamente os filhos dispersos pela enfermidade e morte da esposa, trazendo-os de volta para casa, no seu convívio. Gemma e os demais voltaram todos para casa, e a vida seguiu seu curso normal, em uma nova etapa, apesar de a de Gemma ter constantes anormalidades.

Foi nessa época que Gemma foi matriculada, como aluna externa, no colégio

Guerra, das irmãs de Santa Zita, como foi descrito antes. Ali ela amadureceu na fé e na inteligência, obteve um padre confessor, João Volpi, e se preparou para a primeira comunhão, como já foi descrito no capítulo anterior. Depois da primeira Eucaristia, apaixonou-se por esse santíssimo sacramento e não podia viver mais sem ele. No entanto, quanto mais se aperfeiçoava na disciplina religiosa, mais se achava pecadora, e ou a intensificar os atos penitenciais e as confissões. Sentia-se bem se humilhando diante de Jesus, e dizia: “Meu Jesus, ainda me ais? Quanto mais penso na minha falta de merecimento tanto mais me confundo e não acho razão alguma para tranquilizar-me, senão recorrer depressa à vossa compaixão. Ó misericordioso Jesus!”. [15]

Seus êxtases tiveram início nesse período de sua vida e foram se intensificando com o ar dos anos. Seu comportamento em relação à oração e à purificação dos pecados se tornaram tão intensos que, nos dias de hoje, talvez ela fosse diagnosticada com TOC (transtorno obsessivo compulsivo), um tipo de distúrbio mental em que a pessoa a a desenvolver obsessões, ou compulsões, em sua rotina, com ideias fixas sobre algo que precisa ser feito constantemente. Normalmente, essas ideias, ou ações, são acompanhadas por um sentimento de culpa, medo ou angústia, e Gemma ficava angustiada se não fizesse metodicamente as orações e não se confessasse frequentemente. Ela tinha muito medo de pecar, de cometer falhas, e se enxergava como a pessoa mais pecadora do mundo.

Diz o seu diretor espiritual que “uma vez foi visitá-la um médico. Vendo-a tão modesta, recolhida e reservada, sem permitir que a tocassem, tomou-a por fanática”.[16] Alguns do seu tempo, e até dos nossos, enxergavam e ainda enxergam em Gemma uma figura com certos distúrbios, sintomas de origem patológica que lhe geravam certa obsessão religiosa. Mas o que parecia fanatismo, ou distúrbio mental, era, na verdade, um jeito de ser peculiar da menina que estava no caminho da santidade, e ela sempre tinha argumentos para o seu recolhimento e a sua rigidez nas orações e demais atitudes em relação a Deus. Nesse mesmo relato sobre a visita do médico a Gemma, Pe. Germano diz:

[...] E, concluída a visita, pôs-se a apresentar-lhe alguns dos seus argumentos tirados da escola do mundo, para convencê-la de que ela estava errada. Gemma, que até então se tinha reservado calada, animou-se de repente. E com raciocínios lógicos e prontos, expressos com palavras veementes, rebateu de tal modo um por um daqueles fracos argumentos, que o sábio doutor não soube como replicar, retirando-se em grande confusão.[17]

As pessoas que viram a cena ficaram iradas com tamanha sabedoria com que Gemma se manifestou em resposta à atitude do médico. O seu diretor espiritual dirá depois que muitas vezes Gemma também o deixou confuso com seus argumentos. A menina era tão prodigiosa que recebia o reconhecimento de quase todos, inclusive de suas mestras, mulheres instruídas na fé, entre elas a madre superiora Elena Guerra, que tinha sido professora de Gemma entre os anos 1891 e 1892, no curso mais adiantado da escola. Elena Guerra, como já dissemos, nasceu em Lucca, em 1835, e morreu em 1914, com 75 anos. Seu corpo está sepultado na igreja de Santo Agostinho, também em Lucca. Ela foi beatificada pelo então papa João XXIII, em 26 de abril de 1959. Em 1882, ela fundou em Lucca um instituto dedicado a Santa Zita, voltado para a educação de meninas. Gemma era uma de suas alunas, talvez uma das mais brilhantes.

Outra pessoa importante na vida de Gemma Galgani foi a irmã Camilla Vangliensi, religiosa de rara santidade, segundo Pe. Germano.[18] Em março de 1888, Deus a chamou para si, e Gemma sofreu mais uma perda. Porém, Deus não a desamparou, e, como diz um provérbio, “quando uma porta se fecha, abrese uma janela”. Nova janela se abriu na vida de Gemma, por meio de outra irmã, Júlia Sestini, que chegou para substituir a mestra que havia falecido. Mais tarde, a irmã Júlia Sestini escreveu um relatório sobre Gemma Galgani, anexado ao seu processo de canonização, atestando suas qualidades. Reproduzo aqui uma curta frase desse relatório, cujo texto na íntegra pode ser lido na biografia escrita pelo Pe. Germano: “Desde os primeiros dias em que a conheci, considerei-a como uma alma muito privilegiada de Deus, mas oculta aos olhos do mundo”.[19] A irmã Júlia Sestini, uma religiosa da congregação das oblatas do Espírito Santo, foi uma das professoras mais influentes na vida espiritual de Gemma Galgani,

sobretudo na sua devoção à paixão de Cristo. Ela dizia a Gemma: “A meditação sobre a paixão deve ser a devoção mais cara”. [20]

Júlia Sestini teve a graça de estar presente na canonização de Santa Gemma Galgani, em 2 de março de 1940. Ela foi uma das que conseguiu perceber primeiro em Gemma o que as outras professoras não tinham ainda percebido: sua alma privilegiada, sua precoce santidade e seu amor por Cristo crucificado. O que ela fez então foi alimentar aquela chama que se avolumou e chegou ao céu, iluminando a terra com seu exemplo de amor e dedicação à paixão de Cristo.

Gemma era, de fato, uma pessoa excepcional, não porque tivesse alguma deficiência, pelo contrário, porque tinha demasiadas qualidades espirituais, que não eram comuns a qualquer pessoa. Ela queria imitar os que estavam no caminho da santidade, como a Venerável, hoje santa, Bartolomea Capitanio (1807-1833), que, juntamente com Santa Vincenza Gerosa (1784-1847), fundou a Congregação das Irmãs da Caridade, conhecida como irmãs de Maria Menina. Gemma as tinha como modelo, segundo os relatos de irmã Júlia Sestini, mas colecionava exemplos de outros santos, como Santa Zita, a padroeira de Lucca. Um dos mais amados era São Gabriel da Virgem Dolorosa, que na época ainda não tinha sido canonizado, e que Gemma conheceu por inspiração divina num de seus êxtases, estreitando, com ele, laços de santidade, como veremos adiante, num capítulo à parte.

Assim, a imitação dos santos se estendeu para a imitação de Cristo, e mais tarde Gemma ou a desejar seguir e imitar Jesus na radicalidade, a ponto de se manifestarem em seu corpo os estigmas da crucificação, de que também tratarei posteriormente. Sobre a imitação de Cristo, seu diretor dirá: “Como não pode haver sólida e verdadeira santidade que não seja formada aos pés da cruz do Senhor, Deus lhe inspirou um vivo desejo de conhecer cada vez melhor este grande mistério”.[21] Foi ao pé da cruz que Gemma veio a consolidar a sua espiritualidade e a desenvolver todos os seus fenômenos místicos e espirituais,

dos quais falarei com detalhes em outros capítulos.

Ainda sobre as perdas de Gemma nessa fase de transição de sua vida, destaco a morte de seu avô, Carlos Galgani, em 1888, mesmo ano da morte da irmã Camilla Vangliensi, antecessora de Júlia Sestini. Dois anos depois, em 1890, faleceu seu tio e padrinho Maurício Galgani.

Porém, ainda nesse ano de perdas, Deus concedeu a Gemma a graça de suas tias Helena e Elisa irem morar com o irmão Henrique, seu pai. Diz seu diretor que, “desde que elas entraram em casa, a boa Gemma sentiu-se consolada por ter a sua guarda a elas confiada”.[22] A partir de então, ela ou a ter uma assistência especial, como no tempo de sua mãe. Elas iam todos os dias com Gemma à missa, rezavam diante do santíssimo e faziam muitas orações em casa. Foi um tempo muito importante na vida de Gemma, que ajudou a solidificar ainda mais a sua espiritualidade.

Gemma queria comungar todos os dias, embora naquela época isso não fosse permitido. Percebendo seu grau de santidade e de fidelidade a Deus, contudo, seu confessor lhe deu licença para a comunhão diária, o que muito a alegrou, e ela ou a comungar diariamente.

A comunhão de Gemma não era uma simples comunhão. Ela dizia não apenas sentir Jesus, mas também falar com ele. Escreveu ela: “Jesus se fazia sentir cada vez mais em minha pobre alma, e me dizia tão belas palavras que me faziam desfrutar de grandes consolações”.[23] Seu diretor espiritual dirá sobre ela: “No ano de 1891, em que Gemma completou 13 anos, já havia chegado a um grau de virtude tão alto que dificilmente é concedido a outros depois de longo tempo e de assíduas fadigas”. [24]

Mas Gemma não se contentava com esse grau de perfeição. Ela queria mais, e sempre se considerava imperfeita, por isso não perdia oportunidade de fazer retiros e outras práticas espirituais que a aperfeiçoavam cada vez mais, a ponto de alguns acharem que de fato ela tinha certos distúrbios. No entanto, ela não se abatia por isso, e anotava as suas experiências espirituais, sobretudo as que fazia nos retiros.

Num dos retiros, feito em 1891, Gemma fez a seguinte anotação: “Lembro-me de que o pregador nos mandou fazer uma meditação sobre o pecado. Então, conheci bem o quanto eu merecia que todos me desprezassem; via-me ingrata para com o meu Deus e carregada de tantos pecados!”.[25] Vemos nesse relato o quanto Gemma tinha anseio pela perfeição e como ainda se achava muito pecadora, e até merecedora do inferno, como vemos na anotação seguinte, na qual ela diz: “Fizemos depois a meditação sobre o inferno; reconheci-me merecedora dele e fiz o seguinte propósito: farei também durante o dia vários atos de contrição, especialmente se tiver cometido qualquer falta”.[26] Ao término do retiro, Gemma faz o seguinte propósito:

1) Farei, todos os dias, a visita a Jesus Sacramentado, falando-lhe mais com o coração do que com a língua; 2) Aplicar-me-ei, o mais que puder, em não ter conversações indiferentes, mas falarei só em assuntos celestiais.[27]

Que belos propósitos Gemma Galgani fez ao concluir o retiro. Eles deveriam servir de modelo para qualquer cristão que deseja a conversão e a perfeição diante de Deus. Se o sacramento da confissão nos pede um propósito de mudança e conversão, nos retiros também deveríamos fazer o mesmo.

Entre perdas e conquistas, destaco também o grande prêmio de ouro de religião que ela conquistou nos anos de 1893 e 1894. Esse prêmio era concedido apenas aos melhores alunos, que tivessem tirado sempre nota dez durante todo o ano, e Gemma foi agraciada com ele por ter tirado a nota máxima em doutrina cristã, como descreveu em sua biografia o seu diretor espiritual.[28] Mas não era

apenas nessa matéria que Gemma ia bem. Ela era exímia aluna nas matérias de aritmética, francês e poesia, como foi dito em capítulo anterior, e em redação, fazendo belíssimas composições e excelentes apresentações de trabalho, em nada parecida com a menina tímida e retraída. Apesar de, por extrema humildade, não gostar dessas exposições, gostava muito de estudar: “Conta-se que seus parentes, vendo-a tão aplicada, muitas vezes a censuravam, dizendo: ‘mas para que mais estudos? Já sabes tanto e ainda não te basta?’”. [29]

Ainda em se tratando das perdas que Gemma sofreu nessa fase da vida, recordo o que se ou com seu irmão Gino, o seu dileto irmão, que já estava no seminário e já havia recebido as ordens menores, se preparando agora para receber as ordens maiores, quando foi acometido pela doença. Sobre ele, Gemma vai dizer mais tarde: “Eu o amava mais do que a todos os outros. Estávamos sempre juntos nos dias de feriados e nos divertíamos em fazer altarzinhos e festas”. [30]

Gino havia contraído a mesma doença da mãe, tuberculose, estando, portanto, condenado à morte. Ele voltou para casa e, apesar do perigo de contágio, Gemma não se separava do seu leito, dia e noite, ajudando-o naquilo que ele necessitasse, além de confortá-lo com belas orações e pensamentos que o ajudavam a se preparar para a morte. Escreveu o seu diretor: “Com invejável morte, o inocente jovem deixou de viver em setembro de 1894”,[31] mais precisamente no dia 11 de setembro. A morte do irmão querido deixou Gemma debilitada e, alguns dias depois, ela ficou gravemente enferma, tendo que ar três meses de cama, correndo risco de vida. Tudo indica que, nessa época, ela também já tivesse contraído a enfermidade do irmão. Porém, não seria ainda dessa vez que Gemma partiria para junto da mãe e do irmão querido. Deus ouviu as fervorosas preces de seu pai e lhe concedeu mais alguns anos de vida, que seriam muito fecundos.

Aos 16 anos, ela cuidava com profunda dedicação dos irmãos menores e da casa, mas sem se descuidar da vida de oração. Aos 17 anos, começou a ter visões de um anjo que vinha lhe visitar e conversar com ela. Logo em seguida, vieram as constantes visitas do rei dos Anjos, o próprio Jesus, que Gemma via e cuja voz ouvia por ocasião dos seus êxtases. Aos 18 anos, ela já se consumia de amor por Cristo crucificado, mas a esses fatos dedicarei um capítulo à parte. Agora, eu refiro-me a eles apenas para registrar os ganhos incomensuráveis que Gemma obteve nessa época de perdas.

Porém, não obstante esses fenômenos maravilhosos ocorridos em sua vida, os quais ela tanto apreciava, Gemma sofreu outra grande perda, a de seu pai, que adoeceu por conta de um câncer na garganta e, aos 57 anos, veio a falecer, no dia 11 de novembro de 1897. Nesse contexto, Gemma escreveu: “Chorei muito, mas naqueles dias de dor, Jesus se fazia sentir ainda mais perto à minha alma; depois, ao ver meu pai tão resignado a morrer, deu-me tão grande força que ei a acerba desgraça com bastante tranquilidade”. [32]

Teria aqui uma lista infinda de outras perdas e ganhos nessa fase de sua vida, mas vou deixá-las para outros momentos, pois, nesse período, Gemma já estava vivenciando aquilo que de mais intrigante aconteceu em sua vida e que é o propósito deste livro: sua relação beligerante, física e espiritual, com Deus e com o diabo. Antes, porém, vamos falar um pouco sobre suas debilidades, isto é, suas enfermidades físicas e suas fraquezas espirituais, as quais ela via como uma porta de o ao diabo.

VIII

As debilidades e os sofrimentos de Santa Gemma Galgani

As histórias dos santos são, geralmente, marcadas por debilidades, fraquezas e tentações, e a de Santa Gemma Galgani não foi diferente. Ela teve muitas fraquezas, sobretudo físicas, porque foi uma pessoa acometida por várias enfermidades, mas havia também fraquezas espirituais que, embora aos olhos de pessoas comuns não assem de exagero, eram vistas por ela como o motivo de o diabo não a abandonar, pois este vivia tentando-a para que ela fraquejasse e se desviasse do caminho de Deus. Além disso, Gemma, como disse antes, se via como uma pessoa muito pecadora e indigna das graças de Deus. Tudo isso causava-lhe sofrimento, porém ela acreditava que tudo que sofria era para a sua purificação e santificação. Ao final, tudo indica que ela tinha razão, porque Gemma Galgani, como o seu próprio nome diz, por tudo o que ou, foi uma joia lapidada por Deus.

Seu diretor espiritual dirá que “Gemma não era noviça na árdua escola do sofrimento”.[1] Ela já estava calejada na árdua escola da vida que muito a fez sofrer, mas também lhe ensinou muito, como disse antes, ao tratar das perdas que sofreu. E não foram somente esses sofrimentos; muitos outros vieram e não foram registrados. Aqueles que foram apontados, contudo, já são assustadores, e é difícil imaginar como um ser humano conseguiria ar tantas provações.

Embora ela tenha sido preciosa aos olhos de Jesus desde a infância, isso não a isentou do sofrimento. Pelo contrário, sofreu muito com isso, pois geralmente os preferidos de Deus são os que mais sofrem. Assim ela partilhou com o seu diretor espiritual: “Posso dizer, sem exagero, que após a morte de minha mãe, nunca ei só um dia sem sofrer alguma coisa por Jesus”.[2] A morte da mãe foi um delimitador de dor, ou um marco crucial para uma sequência de outros sofrimentos que viriam depois, fazendo de Gemma uma pessoa marcada pela dor, uma jovem de sofrimento, experimentada na dor, como o servo sofredor do livro do profeta Isaías (Is 53,3), com a diferença de que Gemma tinha aparência e beleza que atraíam os olhares e a simpatia das pessoas, que a apreciavam,

embora ela escondesse o rosto e baixasse os olhos nessas situações, como veremos adiante.

A atitude mais comum das pessoas diante da dor é fugir, porque ninguém gosta de sentir dor. Tudo se faz para evitar a dor e o sofrimento, mas com Gemma era diferente: ela procurava a dor, queria sofrer fisicamente, e pedia a Jesus que lhe provasse na dor. Seria uma atitude masoquista, a de querer sofrer? Gemma acreditava firmemente que sem dor não haveria redenção, sem sofrer não se chegaria ao céu, sem a cruz não haveria ressurreição, e sem dor física a alma não se purificaria para chegar à santidade. Por isso, ela pedia sofrimento e, quando ele vinha, queria ainda mais, queria ver-se consumida pela dor, pelo sofrimento, como Cristo na cruz, algo que é difícil de entender nos dias de hoje, em que evitar a dor é o que mais se deseja. Muitos questionam se era isso mesmo que Deus queria dela, mas ela não duvidava disso. Deus a queria com uma alma pura, e essa pureza só poderia ser obtida pela via do sofrimento. Por isso, a cruz lhe era tão cara, tão importante e tão significante.

Assim, trato de descrever neste capítulo a fase da juventude de Gemma Galgani e suas dores, as voluntárias e as involuntárias, as provocadas, buscadas, e as que vieram naturalmente, mas que ela via como resposta de Deus ao seu pedido para sofrer as dores de seu Filho Jesus. Nesse sentido, Nossa Senhora das Dores ganhou relevância na sua devoção, e São Gabriel da Virgem Dolorosa lhe foi um exemplo de fé e superação. Sobre as suas dores, o seu diretor espiritual, Pe. Germano, escreverá em sua biografia: “Agora que tinha saído da infância e era já moça, o Senhor, querendo satisfazer os vivos desejos e os incessantes pedidos da sua serva, aperta a sua divina mão e dá-lhe golpes de mestre”. [3]

Esse trecho indica que Gemma, a exemplo de Jó, aria por duras provas, maiores do que as que já tinha enfrentado até então. Não que o personagem bíblico Jó tenha pedido sofrimento, mas os sofrimentos recaíram sobre ele para prová-lo em seu amor e fidelidade a Deus, pois o diabo dizia que Jó só amava a Deus porque nada lhe faltava. É fácil amar a Deus quando tudo se tem. Quando

se tem saúde, dinheiro, amigos, beleza, boa família e muito mais, amar a Deus não significa nenhum desafio. Mas, quando nada se tem, ou quando se perde tudo, aí provamos como o ouro no crisol a nossa fé. No diálogo de Deus com Satã, no livro de Jó, quando Deus diz a Satã que na terra não existe nenhum homem como o seu servo Jó (Jó 2,3), ele lhe responde: “Estende, porém, a mão e o atinge na carne e nos ossos. Garanto que ele te amaldiçoará na cara!” (Jó 2,5). Jó tinha tudo que alguém poderia desejar nesta vida, mas, para provar sua fidelidade a Deus, perdeu tudo. Perdeu dinheiro e todos os seus demais bens; perdeu a sua saúde e a sua beleza; perdeu a sua família e os seus amigos, ficando só com a velha roupa em um corpo coberto de feridas. Jó ou no teste, Deus mostrou a Satã que Jó lhe era um servo verdadeiramente fiel, e o final do livro diz: “Javé lhe mudou a sorte e duplicou todas as posses. [...] E Javé abençoou Jó, mais ainda do que antes” (Jó 42,10.12).

Diferentemente de Jó em certos aspectos, Gemma pedia para sofrer. Não lhe bastava o que já tinha sofrido. Ela também perdeu tudo: perdeu a família e suas posses, perdeu a saúde, perdeu em certo momento a beleza (seu cabelo caiu quase todo), mas, como Jó, não perdeu a fé. Ao contrário, tudo isso a fez ter ainda mais fé.

Um dos seus primeiros sofrimentos físicos foi uma enfermidade no pé, “uma necrose ou cárie de osso, acompanhada de agudíssimas dores”.[4] Ela não deu tanta importância, julgando não ser nada grave e crendo que logo aquilo se resolveria por si e ela estaria bem. Pensando dessa maneira, ava pacientemente as dores. Sempre que ela tinha alguma dor física, ela a entregava a Jesus, pois sabia que as dores dele tinham sido muito mais intensas, e que aquilo que ela sentia era um nada perto do que Jesus sofrera por ela. Assim se consolava, e isso ajudava a dirimir a sua dor.

De fato, há enfermidades que se curam por si, desde que não seja algo grave, mas o problema que ela teve no pé não era uma simples torção, e sim uma enfermidade séria, que carecia de médico. Assim,

em consequência desse descuido, inflamou-se o pé, estendeu-lhe a cárie e foilhe, afinal, preciso pôr-se nas mãos de um cirurgião. Este, ao ver o estrago profundo ocasionado pela gangrena, assustou-se e disse que provavelmente seria necessário amputar todo o pé.[5]

Gemma recebeu a notícia serena, vendo em tudo isso a mão de Deus provando-a na sua fé.

Durante a operação, Gemma sofreu muito, sentiu muitas dores físicas. Naquela época, não existiam as modernas técnicas de anestesia para as cirurgias. Usavase clorofórmio, um composto químico (CHCl3), que é um anestésico externo muito tóxico se ingerido ou se expirados os seus vapores. Porém, “a paciente não quis ser cloroformizada, e ou corajosa aquele martírio”.[6] Aguentou firme a cirurgia e a raspagem dos ossos, sem nenhum tipo de anestésico. Escreve seu diretor que, durante a cirurgia, feita em casa – naquela época existiam os médicos de família que atendiam em casa a seus pacientes –, “arrepiavam-se de horror todos os de casa; só ela se conservava imóvel e quase insensível. Escaparam-lhe, é verdade, alguns gemidos, quando a operação era mais dolorosa. Mas, ao olhar para a imagem do seu Jesus crucificado, acalmava-se logo, pedindo-lhe perdão daquela fraqueza”. [7]

Gemma tinha na parede de seu quarto a imagem de Jesus crucificado e nela encontrava a força necessária para ar a dor. Ela via nessas dores a resposta ao seu pedido para sofrer, pois Gemma muito havia importunado Deus para que lhe mandasse sofrimento. Assim, essa doença e as dores da cirurgia eram-lhe uma espécie de “consolo de Deus”, que havia atendido ao seu pedido. “Porém, sobrava-lhe ainda muito no amargo cálice da sua paixão para satisfazer a sede daquela alma justa, depois de libertada daquele primeiro sofrimento corporal”. [8] Ela iria sofrer muito ainda, como veremos.

Depois de realizada a cirurgia, não precisando amputar o seu pé, Gemma foi aos poucos se recuperando e não teve nenhuma sequela da enfermidade. Foi mesmo apenas um sofrimento, sem que seu corpo tivesse sido mutilado por ele. Porém, os sofrimentos não pararam por aí. Vieram outros, de diferentes modos. O próximo sofrimento iria atingir a sua família e, consequentemente, todos os seus membros, inclusive Gemma. “Houve longas e dispendiosas enfermidades na família”,[9] e seu pai, o Sr. Henrique, gastou muito com elas, assim como com outros problemas istrativos. Ele era um homem muito bom, de coração generoso, uma pessoa que não media esforços para ajudar os outros, no entanto, há sempre pessoas perversas que se aproveitam da bondade alheia. Henrique emprestava dinheiro às pessoas que a ele recorriam, por isso precisou hipotecar bens para pagar dívidas e os gastos com doenças, inclusive a dele, que era uma grave enfermidade.

Deste modo, quando chegou o tempo do vencimento das hipotecas, estas não puderam ser pagas e foi a ruína completa. Todos os bens, móveis e imóveis foram sequestrados, e a numerosa família caiu em lamentável pobreza.[10]

Como se não bastasse, nessa época sua doença se agravou, e ele veio a falecer vítima de um câncer na garganta, deixando os seus amados filhos completamente órfãos e na miséria. “Mal chegou esta notícia aos credores, mandaram meirinhos[11] e soldados fechar a farmácia e sequestrar os poucos móveis que ainda havia na casa. E então ficaram reduzidos à mais desamparada penúria”. [12] Gemma assim descreveu essa difícil fase de sua vida:

Entramos no ano de 1897, ano tão doloroso para toda a família. Eu, sem coração, permanecia indiferente a tantas desgraças. O que principalmente entristecia aos outros, era ficarem privados de todos os meios, ao mesmo tempo que nosso pai lutava contra tão grave doença.[13]

Ela parecia estar anestesiada diante de tanto sofrimento, e se culpava por isso. Gemma se sentia “sem coração” por não estar sofrendo mais do que ela estava.

Dizia se sentir indiferente diante de tudo o que vinha acontecendo e parecia julgar as preocupações alheias, ou seja, ela via que o que mais preocupava os outros era a privação de recursos materiais. Ela, contudo, parecia não ser afetada por isso, pois fora aprendendo no decorrer de sua vida a desapegar-se. O apego era para ela um fator de distanciamento de Deus. Deus ia lhe mostrando a duras penas que ela tinha que se desapegar de tudo, de coisas e de pessoas, e até de si mesma, e talvez por isso tudo lhe parecesse um tanto quanto irrelevante ou indiferente, mas ela se culpava por isso.

Em meio a todos esses transtornos, ela disse: “Compreendi, numa manhã, a grandeza do novo sacrifício que Jesus ia exigir de mim”.[14] Gemma chorou muito por aquele sacrifício que lhe foi pedido, mas disse ter sentido sua alma mais perto de Jesus e uma grande tranquilidade que só poderia ter vindo de Deus.

Como se não bastassem as perdas materiais, a perda de seu pai lhe foi tremendamente dolorosa, mas ela não se deu nem o direito de chorar, dizendo: “No dia em que ele faleceu, Jesus proibiu que me entregasse a prantos inúteis. ei-o, então, rezando e muito conformada com a Santíssima Vontade de Deus, que naquele instante tomava para si o ofício de Pai celeste e terrestre”. [15]

A sua fé a fez entender que, daquele momento em diante, ela só teria a Deus como Pai, e isso lhe bastava. Foi uma entrega total da sua vida nas mãos de Deus, e ela sabia que ele não lhe daria uma cruz maior do que as suas forças, mas sabia também que os sofrimentos não terminariam ali, com a morte de seu pai. Ela conclui dizendo: “Depois da morte de meu pai, achamo-nos sem coisa alguma, nem tínhamos com que viver”.[16] Essa constatação revela que ainda havia muito sofrimento e provações por vir.

Gemma agora se via humanamente sozinha, com os seis irmãos, igualmente

desamparados, sem terem para onde ir. Com esses acontecimentos, os irmãos se dispersam. “Heitor emigra para o Brasil com a promessa de voltar somente quando enriquecesse”[17] e acaba por abandonar a fé. Falarei desse episódio mais adiante porque algo relevante ocorre com esse irmão. Guido, que cursava farmácia, na cidade vizinha, Pisa, precisou interromper o curso por falta de recursos, “mas, para a tristeza de Gemma, esse irmão, inserido em um ambiente laico e anticlerical, acaba por abandonar a prática religiosa”.[18] Júlia e Ângela, suas irmãs mais novas, ficaram com outras tias. Gemma e seu irmão Antônio foram acolhidos na casa de uns tios em melhores condições de vida, Carolina Galgani e Domingos Lencioni, donos de uma loja em Camaiore, na mesma província de Lucca. Eles tinham condições de tratá-la tão bem quanto era tratada na época em que seus pais tinham certo poder aquisitivo, ou até melhor. Muitos anos depois, essa loja se tornaria uma grande loja de eletrodomésticos e ostentaria um letreiro com os seguintes dizeres: “A beata Gemma Galgani, de peregrina heroica pobreza, foi acolhida nesta casa por piedade de sua tia Carolina”. [19]

Mas, apesar de viver em Camaiore, com certa abundância, Gemma não se alegrava com isso, pois não era apegada a bens nem ao conforto. “Seu único prazer, como sempre, era dedicar-se aos trabalhos, orar e viver retirada com Jesus”.[20] Gemma intencionava viver ali como se estivesse num mosteiro, mas não foi possível, porque se angustiava com os afazeres que lhe tiravam o tempo para a oração. Além disso, estava longe de Lucca e da igreja, não podendo confessar e comungar com a mesma frequência de antes. Estava também distante de seu confessor, e não queria abrir seu coração a outra pessoa nem a outro padre que não conhecia a sua vida e o que já tinha ado. Tudo isso foi lhe angustiando cada vez mais. “Em tais angústias, voltava-se para Jesus com amorosas e sentidas vozes; mas Jesus, para experimentar a virtude de sua serva, aparentava não ouvi-la, deixando-a com profunda aridez”.[21] Gemma não media esforços para agradar a Deus, mesmo tendo o sentimento de que não era ouvida nas suas orações. Quando lhe permitiam, ela ia com uma prima à igreja vizinha para visitar Jesus no sacrário e rezar diante do santíssimo sacramento. Pe. Germano, ao escrever a biografia de Gemma, disse que os padres do santuário da abadia de São Pedro, de Camaiore, gostavam de mostrar o lugar onde Gemma devotamente costumava rezar. Nesse santuário, encontra-se um

ícone mariano denominado Nossa Senhora da Piedade, e Gemma costumava se prostrar diante dele e rezar para a Santíssima Virgem e para a alma de seus pais.

Nessa época, outro episódio abalou Gemma, agora de outra natureza. Um jovem do local se encantou com sua beleza e começou a segui-la por toda parte. Era um rapaz bom e de boa família, inclusive família de posses. Ele chegou a pedi-la em casamento à tia. Gemma, porém, não queria saber de namoro ou casamento; queria mesmo se consagrar inteiramente a Deus e, no seu coração, já havia feito esse voto de consagração, apesar de não ter com quem falar sobre o que vinha ocorrendo, a não ser com Deus. Ela decidiu, então, que iria embora daquele lugar, mas não via alternativa, e seus argumentos não eram suficientes para convencer a tia. Nas suas orações, ela pedia que Deus lhe apontasse um caminho, uma saída, e esta chegou por meio de outra dor, outro sofrimento. Disse seu diretor que, “para tirá-la daquele perigo, permitiu que a piedosa virgem começasse a sentir-se doente, com fortes dores na espinha e nos rins. Nesse estado, animou-se a falar, e, dissimulando a verdadeira causa, suplicou à tia que a deixasse voltar para Lucca”.[22] Gemma sabia que ia ar dificuldade, que aria até fome, pois não havia mais nada em Lucca que lhe amparasse. O tribunal, impiedoso, havia levado todos os móveis e esvaziado os quartos. Ela teria que dormir no chão. A casa estava completamente vazia, mas mesmo assim Gemma queria voltar.

Diante de súplicas chorosas, a tia consentiu sua volta para a casa paterna, que estava completamente abandonada. “Mal Gemma chegou a casa, começou a sentir-se pior. Às dores da espinha e dos rins acrescentou-se a curvatura da coluna vertebral, depois terríveis perturbações de meningite, completada pela perda da audição, queda dos cabelos e, afinal, a paralisia”.[23] Dizem que “desgraça pouca é bobagem”, e Gemma soube muito bem o que esse provérbio significa, embora não enxergasse aqueles sofrimentos como desgraças, mas, sim, como graça. Deus estava purificando a sua alma, dizia ela, para lhe agraciar com os bens celestes.

Outro fato intrigante é que Gemma escondia a doença por medo de ser

examinada ou tocada pelos médicos, lembrando o que aprendera na infância: “nosso corpo é templo do Espírito Santo”. Por isso, não queria que ninguém tocasse nela, nem mesmo os médicos. Porém, vendo que a enfermidade se agravava, a tia pediu, sem que ela soubesse, que o médico fosse examiná-la. O médico chegou, entrou em seu quarto e tentou convencê-la a deixar que a examinasse, mas foi em vão. Não obtendo consentimento, quis examiná-la à força, mesmo assim ela resistiu. Precisou que a tia fosse enérgica com ela, dando ordens expressas para que deixasse o médico examiná-la. “Gemma ofereceu a Deus o seu sacrifício” e deixou que o médico a examinasse. “Descobriu o médico um grande abscesso na região lombar que parecia chegar até os rins, por cujo motivo assustou-se e quis que consultassem outros sábios professores, declarando, desde logo, que a doença era de natureza muito grave e difícil de ser curada”.[24] Apesar dos medicamentos receitados, o estado de saúde de Gemma não melhorava, e ela teve que ficar vários dias de cama, sem fazer movimentos. Enquanto sofria, rezava voltando seu pensamento a Jesus e agradecia a Deus que a tinha atendido, “satisfazendo seus ardentes votos de sofrer por seu amor”. [25]

Como se não bastassem as dores físicas, ela sofria pela dor dos seus pecados. Gemma ficou totalmente dependente de outras pessoas e, enquanto se consumia de dor no seu leito, rezava e se entregava a Deus. Em meio a essas dores indescritíveis, Gemma dizia receber a visita de um anjo da guarda que vinha consolá-la. O anjo lhe dizia: “Se Jesus te aflige o corpo, é para mais te purificar no espírito; sê boa!”.[26] Isso era o que mais confortava Gemma, pois tudo o que ela queria era purificar seu corpo e sua alma para Deus, e ela via nesses sofrimentos a forma mais eficaz de purificação.

Assim, começou nesse leito de agonia a sua relação mística com o anjo da guarda que, desde então, ou a ser uma presença constante em sua vida. Esse anjo era mediador de Deus, trazia-lhe recados de Deus e dizia como ela tinha que se comportar, mas falaremos disso mais adiante.

Durante o tempo em que esteve acamada, Gemma recebia a comunhão em casa.

Num desses momentos, após receber a comunhão, e fortalecida por ela, Gemma disse ter sido censurada por Jesus, que lhe disse que ela tinha uma alma fraca: “É o teu defeituoso amor próprio que se ressente por não poderes fazer o mesmo que os outros, ou é a demasiada confusão que sentes em teres necessidade do socorro alheio. Se estivesse morta a ti mesma, não ficarias tão inquieta”.[27] O sentimento de ainda não estar totalmente desapegada de si, das coisas e das pessoas fez com que Gemma ouvisse de Jesus tal repreensão, pedindo que ela fizesse ainda mais renúncias, a ponto de morrer para si mesma. Quão exigente era Gemma para consigo mesma, e essa exigência era projetada em Deus!

Nesse período, Gemma recebeu muitas visitas, pois a notícia de sua doença havia se espalhado pela cidade de Lucca, e muitos conheciam as suas virtudes e queriam vê-la. Gemma recebia a todos com muita paciência e atenção e, apesar das dores que sentia, não reclamava. Dentre essas visitas, a de uma boa senhora lhe chamou a atenção. Ela lhe trouxe para a sua distração os escritos sobre a vida de um jovem, na época bem-aventurado, de nome Gabriel da Virgem das Dores, ionista, nascido em Assis no ano de 1838, que havia morrido muito cedo, com apenas 24 anos, no dia 27 de fevereiro de 1862, vítima de tuberculose. Ela nunca tinha ouvido falar sobre ele e não se entusiasmou de imediato, apesar da sua fama e de seus milagres já conhecidos por toda a Itália. Diz seu diretor que Gemma “não se mostrou logo muito devota, deixando que sua família começasse a invocá-lo com fé”.[28] Sua devoção ao Bem-aventurado Gabriel, mais tarde São Gabriel da Virgem Dolorosa (1920), se deu em meio a um assalto do diabo, como veremos adiante. Quando o diabo a tentou pela primeira vez, Gemma recorreu ao Bem-aventurado Gabriel, e ele lhe ofereceu as armas contra o inimigo. Desde então, Gemma ou a ter uma estreita relação de devoção com Gabriel, e este ou a interagir com ela, de modo muito eficaz, tornando-se assim um de seus melhores amigos espirituais.

Por tantos sofrimentos e provações ainda aria a pobre Gemma, que eu precisaria dedicar mais tantas páginas somente a esse tema, mas por ora limitome a narrar apenas esses. Porém, voltarei em outras páginas a apontar novas situações de provação e de sofrimento pelas quais ela ou em sua vida antes de ganhar definitivamente o céu. Tratarei, a seguir, de outros episódios relevantes de sua sofrida vida, como a dispersão da família após a morte do pai.

IX

O irmão Heitor, a dispersão da família e o ressurgimento da mística Santa Gemma Galgani para o mundo

Enquanto o Sr. Henrique, pai de Gemma, estava vivo, os filhos permaneciam de certa forma unidos, mas, depois que ele faleceu (11/11/1897), a família foi se dispersando aos poucos. Gemma lutou para manter essa unidade, mas foi em vão. A única unidade que ela conseguiu manter foi a da sua fé, e isso foi fundamental em sua vida e em sua morte. Nessa dolorosa etapa, de verdadeiro calvário, Gemma se viu à beira da morte, em vários sentidos, de forma literal e figurada, pois empobreceu a ponto de não ter o que comer, e adoeceu gravemente, sendo desenganada pelos médicos. Ressurgiu, contudo, com uma força pessoal e espiritual incomensurável, definindo seus novos rumos espirituais e se tornando a pessoa ímpar que sempre tinha sido, cuja espiritualidade emanava do seu contato direto com Deus, e não por ouvir falar dele. Mas não pensem que nesta nova etapa ela viveu somente o céu. Ao contrário, o inferno continuou a atormentando de forma tão próxima quanto o céu.

No capítulo anterior, acenei para algumas dessas dispersões da família de Gemma de que trato neste capítulo, mas agora quero tratá-las com maior profundidade, sobretudo a dispersão de seu irmão Heitor, o segundo filho do casal Henrique e Aurélia. Essa foi uma das dispersões mais radicais de um membro de sua família, porque, além de ele ter se dispersado da fé, o que a fez sofrer muito, Heitor se dispersou geograficamente, indo para muito longe da família, para o outro lado do oceano, para outro continente, deixando Gemma e os demais irmãos sem notícias, apenas na lembrança e na saudade.

Heitor nasceu no mesmo mês que Gemma, ou seja, em março. Gemma era do dia 12 de março de 1878, e Heitor, do dia 21 de março de 1873, sendo, portanto, cinco anos mais velho do que ela. O biógrafo de Gemma, o padre ionista Germano Ruoppolo, mais conhecido pelo nome religioso de Pe. Germano de Santo Estanislau, não vai dizer muita coisa sobre esse irmão, mas falará

brevemente dele na dispersão da família, ocasião em que Gemma, apesar de suas debilidades físicas, precisa assumir certas funções que caberiam aos irmãos, já que esses tinham de alguma forma se dispersado. Guido, o primogênito, estava revoltado por ter que abandonar os estudos e por perder certas regalias devido às dificuldades financeiras da família. Heitor, o segundo filho, decidiu que iria embora não apenas de Lucca, mas da Itália, para a América. [1]

Aproximava-se a virada do século, e a imigração de italianos na América, sobretudo no Brasil, estava no auge. Os italianos, impulsionados pelas transformações socioeconômicas em curso no norte da península italiana, que afetaram, sobretudo, a propriedade de terra, devido às consequências da unificação da Itália, iam para a América em busca de melhores condições de vida, no anseio de enriquecer no novo continente. No Brasil, o governo brasileiro prometia terras aos imigrantes, mas, na verdade, o que se pretendia era substituir a mão de obra escrava e iniciar no país um processo de branqueamento. Dava-se prioridade a imigrantes brancos e católicos, e os italianos se enquadravam nesse perfil, tendo, portanto, esses elementos facilitadores para a entrada no país.

Assim, a maioria veio para substituir a mão de obra escrava nas lavouras cafeeiras da região Sudeste, embora nem todos soubessem disso. O contexto do Brasil na época era o seguinte: com a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, foi proibido o tráfico negreiro, portanto, não vinham mais escravos para o Brasil e o trabalho pesado tinha que ser feito pelos que aqui estavam. Em 1871, foi assinada a Lei do Ventre Livre, conhecida como Lei Rio Branco, que, a partir da data da sua promulgação (28/9/1871), concedia alforria às crianças nascidas de mulheres escravizadas no Brasil. Em 28 de setembro de 1885, foi promulgada a Lei dos Sexagenários, também conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe, que garantia liberdade aos escravos com sessenta anos de idade ou mais. E, por fim, em 13 de maio de 1888, foi assinada pela princesa regente do Brasil, dona Isabel, a Lei Áurea, conhecida oficialmente como Lei Imperial, que extinguia definitivamente a escravidão no Brasil. Vale lembrar que o Brasil foi o último país independente do continente americano a abolir completamente a

escravatura. Com o processo abolicionista, a mão de obra foi ficando cada vez mais escassa, abrindo, assim, possibilidades para a entrada de imigrantes. Os italianos foram os que mais se dispam a vir, incentivados pelo governo brasileiro, porque a Itália havia ado recentemente por um período crítico de reestruturação chamado Risorgimento, que, como vimos no início do livro, teve duas grandes fases, a última culminando, em 1870, com a unificação da Itália, anexando Roma como a sua capital e dando fim às relações políticas e diplomáticas entre Igreja e Estado. Assim, depois de um longo período de mais de vinte anos de lutas para a unificação do país, sua população, particularmente a rural e mais pobre, tinha dificuldade de sobreviver, quer nas pequenas propriedades que possuía, ou onde simplesmente trabalhava, quer nas cidades, para onde se deslocava em busca de trabalho. Nessas condições, portanto, a emigração era não só estimulada pelo governo italiano, mas também uma solução de sobrevivência para as famílias. Assim, é possível entender a saída de cerca de sete milhões de italianos no período compreendido entre 1860 e 1920.

Nesse contexto de ressurgimento e unificação da Itália, que fomentou a emigração, muitos navios lotados de emigrantes saíam periodicamente dos portos da Itália rumo ao Brasil e outros países da América do Sul. Num deles estava Heitor Galgani, o irmão de Gemma Galgani.

Segundo Fernando Piélagos, “Heitor emigra para o Brasil com a promessa de voltar somente quando enriquecesse”.[2] Esse era o sonho de todo italiano que vinha para o Brasil. Muitos enriqueceram de fato, e Heitor também conseguiu se estabelecer bem – se ele não ficou rico, pelo menos os relatos indicam que tinha uma vida confortável. Mas, como ocorreu com a maioria dos imigrantes, as coisas não lhe foram fáceis. Ao chegar ao Brasil, no porto de Santos, foi direcionado para o interior de São Paulo, para onde eram levados os imigrantes que iriam trabalhar nos cafezais. Os italianos que chegavam ao porto de Santos separados de suas famílias, como foi o caso de Heitor, que chegou sozinho, iam geralmente para os cafezais do interior. Os que vinham com a família eram, na sua maioria, conduzidos ao Sul do Brasil, formando colônias de povoamento nas áreas de difícil o. Lá eles se tornaram proprietários de terras, enquanto os italianos que iam para os cafezais do interior paulista substituíam a mão de obra escrava nas grandes fazendas. Assim, os sonhos de Heitor não se realizaram de

imediato, embora não haja registro de que ele tenha ido de fato para as lavouras de café. Sabe-se que ele nunca mais voltou à sua terra natal, em Lucca, mas a sua história não termina aqui.

Antes de vir para o Brasil, para a tristeza de Gemma, e seguindo o exemplo do irmão mais velho, Guido, Heitor já havia abandonado a fé e só pensava nas coisas do mundo. No afã de se enriquecer, aventurou-se em uma viagem para terras brasileiras, partindo do porto de Gênova, a 155,8 km de Lucca, no fim do século XIX, sem informação da data de chegada, que poderá ser checada com precisão no Museu da Imigração do Estado de São Paulo, antiga hospedaria dos imigrantes, no bairro da Mooca, onde estão registradas as chegadas dos imigrantes italianos que permaneceram em São Paulo, ou que foram levados para o interior do estado, como é o caso de Heitor Galgani.

Ao chegar ao porto de Santos, Heitor e todos os demais foram conduzidos para a capital, São Paulo. Dali eles eram distribuídos para o interior do estado. Heitor foi para Araraquara, uma região cafeeira próspera, a 270 km da capital, cidade recém-elevada à categoria de município (6/2/1889). Do ponto de vista históricoeconômico, Araraquara e região, na primeira metade do século XIX, ostentavam as grandes propriedades rurais, características deste século, mas ainda não tinham sido atingidas pelo surto cafeeiro. Plantavam-se a cana-de-açúcar, o milho, ao lado de outros cereais, o fumo e o algodão. Os rebanhos eram constituídos em sua maioria por suínos e bovinos. A maior parte da produção servia para abastecer as “casas de secos e molhados” da cidade que estava se formando. Por volta de 1850, a plantação de café substituiu a de cana-de-açúcar e cereais, tornando-se o produto de maior importância na economia local, carecendo de muita mão de obra, que, com a abolição da escravatura, era suprida pelos imigrantes italianos que chegavam de trem pela Estrada de Ferro Araraquara, fundada por um grupo de fazendeiros da região, cujas atividades tiveram início em 1896. Em um desses trens chegou Heitor Galgani, irmão de Santa Gemma Galgani.

Com seu trabalho em Araraquara, “Heitor conseguiu angariar uma pequena

fortuna. Casou-se somente no civil, e não queria saber de Deus nem de outra religião”.[3] Ou seja, tornou-se uma pessoa sem religião, algo que muito entristecia Gemma, apesar de ela não ter tido mais notícias dele desde que partiu. Porém, como ele já a havia deixado nessas condições, Gemma imaginava que ele continuasse sem Deus, como, de fato, continuava. Por essa razão, desde que o irmão deixou a Itália, Gemma não cessou de rezar pela sua conversão, e nas suas orações pedia a Deus que o trouxesse de volta a ele, fosse pelo amor ou pela dor. E Deus o trouxe pela dor. Heitor, que tinha levado até então uma vida afastada de Deus, envolto em atividades revolucionárias, caiu gravemente enfermo.

Corria o ano de 1923, e, naquela ocasião, acontecia em Araraquara (SP) uma missão dos religiosos redentoristas, que havia três anos tinham se estabelecido na cidade e estavam em plena atividade missionária naquelas terras. Os redentoristas já tinham estado em missão naquelas terras alguns anos antes, em dezembro de 1905, e em 1909 já pensavam numa fundação naquela cidade. Não deu certo, devido à distância e às dificuldades de locomoção, mas, mesmo assim, Pe. Antônio Lisboa Fischhaber e seu irmão Teodoro ficaram um ano numa casa alugada ao lado da capela de Santa Cruz, antes de irem embora. A fundação redentorista nesse local só veio a se concretizar, aproximadamente, dez anos depois, em 1920. A primeira comunidade dos redentoristas em Araraquara (SP) teve como superior o Pe. Luís Weiss (1920-1921), e no ano daquela missão estava como superior o Pe. Oscar das Chagas Azeredo (1922-1924). Essa comunidade religiosa local juntamente com mais alguns missionários de outras comunidades da província de São Paulo empreenderam um árduo trabalho de visitas às famílias da cidade e da zona rural, tendo como coordenador da missão o Pe. José Afonso Zartman, homem extremamente religioso e devoto de Gemma Galgani.

Pe. Zartman tinha sido ordenado sacerdote havia vinte anos (20/9/1903), e era um dos maiores missionários que a província redentorista de São Paulo tinha naquele momento. Com vasta experiência em pregar missões populares, por onde ava, realizava grandes trabalhos de conversão. Era um exímio pregador, com seu modo peculiar de ser e de atuar, não tendo medo de anunciar o Evangelho. No início, até era visto com certa reserva pelos seus superiores, devido a sua imponência na fala e ousadia missionária. Zartman acolhia muito

bem o povo, fazia visitas domiciliares e atendia os doentes, inclusive os que não eram de prática católica. E foi numa dessas visitas missionárias em domicílio que ele conheceu Heitor Galgani, irmão de Gemma Galgani. Assim relatou esse episódio Pe. Fernando Piélagos: “Certo dia, o Pe. Zartman, ao visitar os doentes, foi à casa de Heitor, que também estava gravemente enfermo. Olhando em volta, deparou-se com a estampa de Gemma Galgani, por quem nutria especial devoção”.[4] Escreve Piélagos que, “por desígnio da Providência, um imigrante italiano trouxe ao Brasil uma estampa de Gemma Galgani, que foi parar nas mãos de Heitor. Este mandou fazer um lindo caixilho onde colocou a imagem, não porque era santa, mas simplesmente por ser sua irmã”.[5] Quando o Pe. Zartman entrou em seu quarto e deparou-se com a estampa sobre a estante, ficou muito surpreso, achando que o enfermo, embora tido como sem religião, também fosse devoto da serva de Deus, como ele. Naquela época, Gemma Galgani era praticamente desconhecida no Brasil, pois, apesar de seus milagres na região de Lucca, ela ainda não era canonizada. Pe. Zartman, surpreso, perguntou se ele sabia algo sobre Gemma Galgani, e Heitor informou-o sobre seu parentesco com ela. “O bom missionário ficou espantado, e não entendia como aquele homem, tão indiferente às coisas de Deus, podia ser irmão de uma santa!”[6] Sentando-se ao seu lado, pôs-se a explicar sobre Gemma Galgani, pois ele conhecia muito bem a sua história, seus feitos miraculosos, e sobre o seu processo de canonização, que estava em tramitação (Gemma Galgani seria canonizada em 1940). O Pe. Zartman “relatou aspectos de sua vida de heroicas virtudes, dos fenômenos extraordinários que nela se operaram e dos milagres que Deus estava realizando por sua intercessão”.[7] Piélagos escreve que “o enfermo ficou estupefato diante de tais revelações e pensou: ‘minha irmã é uma santa, e eu ando tão afastado de Deus?!’”. [8]

Naquele instante, por meio desse missionário redentorista, Gemma começou a operar mais um milagre, que foi trazer de volta o seu irmão para a Igreja. Diz Pe. Fernando Piélagos que, “tocado pela graça divina, decidiu imediatamente entrar na igreja. Naquele momento, as pessoas ficaram assombradas, pois nunca imaginaram ver na casa de Deus aquele revolucionário que tantos crentes desviara da fé!”.[9] Naquele dia, o irmão de Gemma, há tanto tempo afastado, estava de volta à casa de Deus. Gemma deve ter se rejubilado no céu ao ver seu irmão retornar à casa do Pai como o filho pródigo (Lc 15,11-32). Piélagos

escreve que “ele se ajoelhou, fez a preparação conscienciosa para a confissão e confessou-se, mostrando que estava muito compungido de suas faltas”. [10]

Mas o episódio miraculoso não cessou aí, e não foi apenas a conversão de seu irmão que ela conseguiu. Por meio do missionário, Gemma obteve outra façanha: o êxito na missão do Pe. Zartman e o aumento no número de fiéis naquela igreja. Piélagos diz que “desde aquele dia, a igreja começou a encher-se de fiéis, e a missão acabou por ter um êxito retumbante!”.[11] Mais que coincidência, mas providência, a igreja em que ocorreram esses fatos milagrosos era dedicada à Santa Cruz e tinha sido inaugurada em 1920, com a chegada desses primeiros redentoristas àquela região, embora ainda estivesse inacabada na época da missão (1923). Gemma Galgani, que era devota da Santa Cruz e fez dela seu principal caminho para o céu, faz também os primeiros milagres de que se tem notícia no Brasil, na igreja de Santa Cruz, em Araraquara.

Depois desse episódio, Heitor ainda viveu mais quatro anos e se tornou um fiel membro dessa igreja. Embora não tenha conseguido retornar à Itália para rever a família, enquanto viveu agradeceu à irmã, Gemma Galgani, a intercessão junto a Deus para a sua conversão. Heitor morreu em Araraquara (SP) no ano de 1927, e seu corpo está sepultado no cemitério municipal daquela cidade.

Quanto aos outros irmãos e irmãs de Gemma, eles também se dispersaram depois da morte do pai (1897), como vimos antes. Gino, o irmão mais próximo de Gemma, e aquele que lhe era o mais querido, tinha ido para o seminário, mas, devido à enfermidade que o acometeu, teve que voltar para casa e morreu nos braços da irmã, Gemma Galgani, de tuberculose, em setembro de 1894, três anos antes de seu pai falecer, quando Gemma tinha 16 anos. Guido, o irmão mais velho, precisou interromper o curso de Farmácia em Pisa, revoltou-se com a escassez da família e se afastou da Igreja. Como se não bastasse, ou a blasfemar porque lhe faltavam os meios habituais de divertimento e o conforto de antes. Gemma o repreendia, e certa vez ele se descontrolou e reagiu dandolhe um murro no olho. Gemma sofreu calada e ofereceu esses contratempos a

Jesus.[12] Depois, ele se alistou no exército e seguiu por outros caminhos, com atitudes anticlericais, para a tristeza de Gemma.

As irmãs Júlia e Ângela ficaram com as tias, irmãs de seu pai, Helena e Elisa Galgani, e Gemma foi com o irmão Antônio para a casa de outra tia, de maior poder aquisitivo, Carolina Lencione, em Camaiore, como vimos antes. Lá ela foi assediada por um jovem da cidade e precisou retornar a Lucca, para a antiga casa paterna, que ela encontrou totalmente dilapidada, tendo que improvisar até o local onde dormiria. Além das privações materiais, ela ou por um período de grave enfermidade e foi desenganada pelos médicos, mas como a fênix, da mitologia grega, ressurgiu do leito de morte com uma tremenda força espiritual, que faria dela uma pessoa excepcional no que diz respeito aos fenômenos espirituais.

A cura de Gemma é atribuída à intervenção milagrosa da então beata Margarida Maria Alacoque, que em vida teve a graça de ver Jesus se manifestar com o peito aberto, apontando com o dedo o seu coração e lhe dizendo: “Eis o Coração que tem amado tanto aos homens a ponto de nada poupar até exaurir-se e consumirse para demonstrar-lhes o seu amor. E em reconhecimento não recebo senão ingratidão da maior parte deles”.[13] Gemma, que tinha profunda devoção ao Sagrado Coração de Jesus, recorreu a ele por meio da intercessão de Margarida Maria Alacoque, e foi atendida.

Assim, esse tempo de dispersão marcou uma nova etapa na vida de Gemma. Ao retornar para Lucca, ela ou a desenvolver sua espiritualidade, por meio de fenômenos espirituais paranormais, como as conversas com um anjo, que se tornaram habituais, os êxtases, os estigmas, as levitações, entre outros, os quais eu tratarei a seguir.

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Santa Gemma Galgani e o seu anjo da guarda

Desde muito cedo o anjo se manifesta na vida de Gemma Galgani. Uma de suas primeiras aparições, ou manifestações, se deu por ocasião da sua crisma, como já citado, quando Gemma tinha por volta dos sete anos. Vimos que naquele dia tão marcante de sua vida, após ter recebido o sacramento da crisma, Gemma ficou mais um pouco na igreja e, a convite da pessoa que a acompanhava, não obstante a preocupação com a mãe enferma que ela havia deixado sozinha em casa, aproveitou para participar de outra missa. Foi quando ela ouviu pela primeira vez ecoar em seus ouvidos uma voz que não era humana. Essa voz, atribuída ao anjo, que mais tarde lhe seria familiar, anunciava que sua mãe iria morrer muito em breve. Vimos que, naquele dia, Gemma teve um diálogo com essa voz e negociou com Deus, pedindo que, se fosse levar sua mãe, levasse-a também junto com ela. Deus respondeu dizendo que Gemma teria que esperar mais um pouco neste mundo, mas que aquele era o momento de sua mãe.

Depois disso, durante um bom tempo, o anjo de Deus não se manifestou a ela novamente. Somente a partir dos dezessete anos Gemma começou a ter sucessivas visões do anjo: suas experiências angélicas se tornaram contínuas, e o anjo se tornou muito familiar em sua vida.

Essa familiaridade com o anjo da guarda é uma característica da espiritualidade de Gemma, comparada com poucos santos da hagiografia cristã. Essa presença do anjo em sua vida tem características interessantes, as quais eu apontarei neste capítulo, que será um pouco mais longo que os demais devido à relevância do tema na vida de Santa Gemma Galgani.

Para falar da experiência angélica na vida de Gemma Galgani, eu recorro aos escritos de seu diretor espiritual, Pe. Germano, ao Diário espiritual de Gemma, escrito a pedido de seu confessor, e aos escritos de Antônio Maria Artola, outro

sacerdote ionista que disse que as visões que Gemma tinha do anjo eram sempre desencadeadas nos seus momentos de êxtase. Sobre seus êxtases eu falarei em um capítulo à parte, embora na maior parte dos momentos em que Gemma dialogava com o anjo ela entrasse em êxtase. Disse Artola que bastava que ela levantasse os olhos e olhasse o rosto do anjo para cair imediatamente na mais profunda perda dos sentidos e entrar em êxtase.[1] Não se sabe ao certo se era o anjo que provocava seu estado de êxtase ou era o seu estado de êxtase que fazia com que ela visse o anjo. Na afirmação de Artola, o anjo a colocava em estado de êxtase: ela ficava extasiada ao ver o anjo, e este a colocava num estado sobrenatural, ou seja, transportava-a para outro estado, totalmente fora da sua normalidade, e ali eles interagiam como duas pessoas comuns. Seu diretor espiritual dirá que, “cada vez que Gemma falava com o anjo, ou este com ela, verificava-se uma metamorfose cognitiva, elevando-a a um nível de experiência diferente, e mais profundo do que é uma conversa normal”. [2]

Embora Gemma descreva, nos seus relatos, uma conversa normal com o anjo, como se ele fosse uma pessoa comum, quem estava por perto a via de forma totalmente diferente, como se ela tivesse sido tomada por algo, ou alguém sobrenatural, algo similar ao que ocorre em situações de possessão. De fato, ela era tomada por algo sobrenatural, pois o anjo tomava posse dela e a retirava da realidade na qual estava, embora fisicamente ela permanecesse no mesmo local. Por essa razão, o comportamento de Gemma foi estudado por vários teólogos, a começar pelo seu confessor e pelo seu diretor espiritual, entre outros que estudaram seus fenômenos. Não foi de imediato que eles concluíram que Gemma era alguém especial, com verdadeiros contatos com o sobrenatural, e não faltou quem a chamasse de louca ou a acusasse de possuir sérios distúrbios psicológicos.

Artola vai dizer que, em cada um dos níveis de êxtase que vivia a santa, a presença do anjo tinha sempre uma imprescindível função preparatória. O anjo a preparava para ar uma dimensão transcendente, fosse para falar com Nossa Senhora das Dores ou com algum santo, como São Gabriel da Virgem Dolorosa, fosse para falar com o próprio Jesus. Artola afirma “que isso concorda com a

doutrina geral que considera a atuação angélica como dispositiva para o recolhimento oracional”.[3] Ou seja, a atuação do anjo na vida de Gemma a preparava para um momento de intensa oração, tão intensa que ela era transportada para um mundo espiritual fora da sua realidade concreta, chamado de êxtase, mas isso não era uma alucinação, era algo de que, após o ocorrido, ela tinha plena consciência, relatando tudo o que tinha vivido com riqueza de detalhes, como vemos nos seus escritos e nos seus diálogos com o seu diretor espiritual.

Gemma tinha plena consciência de seus contatos sobrenaturais, mesmo que, com o ar do tempo, eles tenham se transformado em algo “natural”, ou “normal”, na sua vida. Artola acentua também que a experiência que Gemma tinha com o anjo era uma experiência diferente da que ela tinha com Jesus. O anjo era sempre um intermediário entre a santa e Jesus. Era o anjo que levava os recados de Gemma a Jesus e que a preparava para o contato direto com Jesus, “agendando” os encontros. Em outras palavras, o anjo agia como se fosse um “secretário executivo” de Jesus. Diz ele que, “na experiência da santa que tinha como objeto a pessoa de Jesus, tudo era divino, luminoso, superior, imaterial, nada simples”.[4] Assim relata a própria Gemma sua experiência com Jesus, num desses encontros agendados pelo anjo:

Quando vejo Jesus, vejo (nunca com os olhos) uma luz, uma luz infinita, que por nenhum ser mortal pode ser vista; ouço uma voz que ninguém pode ouvi-la, e sinto um bem-estar imenso. [...] Não é uma voz articulada, mas é uma voz que faz com que o meu espírito a ouça. É mais forte que palavras pronunciadas.[5]

Assim é a experiência mística de Gemma com Jesus, que ela busca palavras para descrever, embora seja indescritível.

Esse relato de Gemma mostra a transcendência de sua experiência com Jesus, diferente da experiência que ela tinha com o anjo. Com o anjo era algo mais real, palpável, como se ela estivesse conversando com uma pessoa qualquer, de carne

e osso, uma pessoa especial, mas terrena, e não com um ser sobrenatural. Com o anjo tudo era mais simples, porém dotado de uma singular elevação, sutileza e estilização, no sentido de que, embora tivesse certa semelhança com uma conversa humana, era ao mesmo tempo algo diferente, com um estilo próprio, que transcendia as relações imanentes, mas continuava sendo um diálogo simples, que em nada se parecia com os contatos ou diálogos que ela tinha com Jesus. Com o anjo era algo mediador, ou intermediário, entre o humano e o divino. Com Jesus era o contato direto com o divino, e Gemma tentava expor em palavras o que seus sentimentos viviam, embora elas fossem sempre insuficientes, diferentemente dos relatos que ela fez dos seus contatos com o anjo.

Artola dirá que, com toda a simplicidade com que Gemma descreve o anjo em seus escritos, daria para escrever uma teologia da “forma imaterial”, sobretudo em seus textos sobre sua experiência direta e pessoal com o anjo, que são as melhores ilustrações daquela bela definição que traz a carta aos Hebreus (Hb 1,14): “Espíritos servidores com a missão de assistir aos que hão de herdar a salvação”.[6] Para Gemma, o anjo aparece como o espírito encarregado de indicar o caminho do céu e como um facilitador da salvação por ela tanto almejada. Por essa razão, Gemma não vai medir esforços para obedecer ao anjo, mesmo que este lhe exija duros sacrifícios. Vamos ver isso em contatos nos quais, além de orientar Gemma, ele a alerta sobre os perigos que ela corre, porque o diabo vive à espreita, às vezes até se disfarçando de anjo para confundi-la.

Retomo alguns dos relatos feitos pelo seu diretor espiritual, Pe. Germano de Santo Estanislau, sobre a relação de Gemma Galgani com o seu anjo, chamado de anjo custódio, cuja função, como o próprio qualificativo diz, era guardar e proteger Gemma das tramas do diabo. Escreve seu diretor:

Ora, sendo a nossa Gemma, nos Conselhos da Divina Providência, escolhida para ocupar um lugar muito elevado, superior ao comum dos eleitos, é natural que o anjo destinado pelo céu à sua guarda tivesse para com ela uma solicitude

muito particular.[7]

Gemma tinha, portanto, um anjo à sua disposição, protegendo-a. Germano dirá mais adiante que toda pessoa tem um anjo que a protege, mas, devido às nossas faltas, não o percebemos, ou não permitimos que ele se manifeste. O grau de manifestação do anjo na vida de Gemma se deu pelo grau de perfeição que ela alcançou com as exigentes correções dos seus pecados.

Assim, esse personagem, o anjo, foi figura de suma importância em sua vida espiritual. Por meio dele, Gemma ia conhecendo os desígnios de Deus e as trapaças do diabo. Ela era a protegida do anjo, como dirá seu diretor: “De fato, o anjo da guarda acharia na sua venturosa protegida qualidades que a aproximavam da natureza angélica, de modo que, sem muito abaixar a sua santidade, podia entreter-se familiarmente com ela”.[8] Vemos, assim, que Gemma ganhou as graças do anjo porque Deus já a tinha agraciado como sua eleita. Ela também era como uma espécie de “anjo” e, por ser uma joia em processo de lapidação, facilitou ao seu protetor protegê-la, não lhe dando muito trabalho, embora isso não seja tão evidente, pois não foram poucas as vezes em que o anjo se aborreceu com Gemma.

Deve ser difícil a missão de um anjo da guarda quando a pessoa é rebelde, desobediente ou cabeça-dura, mas não era o caso de Gemma, que era extremamente dócil e obediente a Deus e ao seu anjo. Por essa razão, o anjo se sentiu em casa com ela, e o seu diretor espiritual falará inclusive de uma relação familiar entre Gemma e o anjo. Ele era como um irmão para ela, só que numa outra dimensão, no âmbito espiritual, transcendente, mesmo que ela o visse de modo imanente, como um ser humano. Germano dirá que “o que havia de irável nesta intimidade era a presença sensível do anjo. Gemma o via com seus próprios olhos, tocava-o com suas próprias mãos como se fosse um ente humano, e conversava com ele como com um amigo”.[9] Esse dado é relevante na vida de Gemma Galgani porque quase não se vê na história dos santos relações dessa natureza, tão íveis.

Nas suas orações, Gemma pedia a Jesus que nunca a separasse de seu anjo da guarda, dizendo: “Jesus, não me deixe só; faz com que o meu anjo custódio esteja sempre comigo”.[10] Nos seus diálogos com o anjo, Gemma demonstrava o quanto estimava a sua presença e proteção, dizendo:

– Se alguma vez eu for má, ó meu querido anjo, não te zangues, quero te ser grata. – Sim, eu serei teu guia e companheiro inseparável. Não sabes quem te confiou à minha guarda? Foi o misericordioso Jesus – dizia o anjo.[11]

Diálogos como esse com o anjo eram ocasiões de Gemma ficar em êxtase. Como disse antes, a presença do anjo era sempre um aviso de que ela iria entrar em êxtase, mas, antes que isso acontecesse, ela o via, o sentia e o tocava como a um ser comum, como já foi dito antes. Isso mostra que o anjo abria os canais para que Gemma tivesse o ao transcendente, a Jesus, porque ele era um enviado de Jesus. Após sair do êxtase, Gemma dizia: “Ficávamos ambos com Jesus. Oh! Se estivesses também ali, meu pai”.[12] Gemma desejava partilhar aqueles momentos divinos, mas só lhe restava suspirar e lamentar por ser uma experiência apenas dela e de mais ninguém. Seu diretor dirá que as palavras “ficar com Jesus” significavam que Gemma, nos momentos de êxtase, mergulhava com o coração e com o espírito no oceano imenso da divindade, e ali sentia os inefáveis mistérios de Deus. Gemma ia da terra ao céu em frações de segundo e experimentava o mais sublime de todos os sentimentos que alguém pode sentir: a experiência do céu sem ter deixado definitivamente a terra. Gemma, ainda neste mundo, vislumbrou o céu muitas vezes, mas nem sempre encontrava palavras para descrevê-lo.

O anjo lhe aparecia de diferentes maneiras. Algumas delas foram descritas pelo seu diretor, depois de ouvi-la: “Aparecia-lhe ora suspenso no ar com as asas abertas e as mãos estendidas sobre ela, ou unidas em ato de oração, ou ajoelhado ao seu lado”.[13] O anjo aparecia e interagia com ela, principalmente quando esta estava em oração. Diz seu diretor espiritual: “Se eram orações vocais que fazia, recitava-as alternadamente com ela, se aspirações ou jaculatórias, apostavam quem exclamaria mais alto”.[14] Essas são reproduções, segundo seu

diretor, das palavras de Gemma. E eles diziam juntos: “Viva Jesus! Bendito seja Jesus! [...] e outras afetuosas aspirações... e Jesus mostrava-se tão contente”. [15]

Gemma ia se aperfeiçoando cada vez mais na oração, com a orientação do anjo. Diz seu diretor espiritual que, “nas horas de meditação, o bom anjo lhe sugeria luzes altíssimas e lhe dava fervorosos sentimentos para que a fizesse com perfeição”.[16] Como não aperfeiçoar-se na oração com tão exímio mestre? Gemma tinha esse privilégio. Ela já tinha aprendido com a mãe a meditar sobre a paixão do Senhor, e essa era a sua meditação preferida, mas o anjo a fez aperfeiçoar-se de tal forma que a paixão do Senhor ou a ser a sua própria paixão. Ela ou a ver e a sentir todas as chagas e dores no seu próprio corpo, como veremos mais adiante, ao tratar dos seus estigmas. O anjo lhe dizia: “Olha quanto Jesus sofreu pelos homens; considera uma por uma suas chagas; foi o amor que as abriu. Vê quanto é terrível o pecado, cuja expiação custa tanta dor e tanto amor”.[17] Com o anjo, Gemma foi aprendendo e aprofundando-se na meditação da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio das suas chagas.

Pe. Germano descreve algumas observações muito interessantes em relação às conversas de Gemma com o anjo, presenciadas por ele: “Tendo eu mesmo assistido muitas vezes a estas meditações de Gemma com o seu anjo custódio, pude convencer-me pelo que observei da realidade do que assevero, ainda que ela não me tivesse comunicado”.[18] Seu diretor, ao vê-la em transe, não teve dúvida de que Gemma não estava representando um papel e de que aqueles diálogos eram de fato sobrenaturais. E diz mais: “Notei também que cada vez que ela levantava os olhos para contemplar o anjo, para ouvi-lo ou falar-lhe, ainda mesmo fora da meditação, ou oração, perdia os sentidos; e nesses momentos podiam sacudi-la, picá-la e queimá-la sem que voltasse a si”.[19] Gemma ficava totalmente fora de si, como se estivesse hipnotizada, ou mais, anestesiada. O anjo lhe era hipnotizador, como mostra seu diretor: “Depois, retirando dele o olhar, ou cessando o colóquio, imediatamente recuperava os sentidos, e se cem vezes ela o contemplasse, embora rapidamente, outras tantas se repetia o fenômeno do êxtase”.[20] Ou seja, o anjo a colocava em estado de êxtase, mas, como afirma seu diretor, “sua intimidade com o anjo não era

produto da sua imaginação”,[21] como veremos em outro momento, ao tratarmos exclusivamente dos êxtases de Gemma Galgani em outras circunstâncias.

Alguns podem imaginar que Gemma só falava com o anjo quando estava em oração, mas não era bem assim. Ela não tinha hora marcada para falar com o seu anjo, porque sua vida era uma constante oração. Podia acontecer quando ela estava à mesa, ou nos afazeres de casa, ou em qualquer outro lugar, por mais inusitado que fosse. Ela simplesmente se desligava da realidade, e todos que estavam à sua volta percebiam, mesmo que fosse algo breve, embora às vezes a conexão com seu anjo pudesse levar um longo tempo. “O anjo estava sempre à disposição de Gemma, e esta, pronta a recebê-lo”,[22] não importando o dia, a hora nem as circunstâncias, disse seu diretor espiritual.

Outro dado a ser observado, segundo o seu diretor, é que ela não dava nenhum sinal prévio de que iria conectar-se com seu anjo custódio e, durante a conexão, não esboçava sinais de que algo estava acontecendo, a não ser por seu olhar, que ficava diferente, e por sua imobilidade, como se estivesse em uma cena congelada, dessas que se fazem em gravações. Diz ele que “nenhum sinal exterior revelava seus santos colóquios, além da imobilidade absoluta da vidente e o brilho sobrenatural de seus olhos, e convinha tocá-la para compreender que estava conversando com os espíritos celestes, fora deste mundo”.[23] A facilidade com que Gemma se transmutava deste para outro mundo era surpreendente.

Muitas vezes, os colóquios de Gemma com seu anjo se tornavam uma verdadeira sabatina, de tanto que ela o interrogava, como mostra esta outra transcrição de seu diretor espiritual:

Diga-me, meu anjo, que tinha esta manhã o meu confessor que estava tão sério, e que não me quis ouvir? Quando o padre responderá de Roma a carta urgente em que eu lhe pedia conselhos para proceder naquele ponto? Diga-me, meu querido

anjo, quando converterá Jesus aquele pecador pelo qual tanto me interesso? Que devo eu responder àquela pessoa, que me pede um conselho? E de mim que vos parece? Jesus está contente comigo? Que devo fazer para lhe agradar?[24]

Gemma bombardeava o anjo com perguntas, mas ele não se aborrecia com ela e, na medida do possível, dava-lhe respostas. Porém, suas perguntas eram sempre voltadas para questões espirituais, pois em outros assuntos não falavam, conforme destaca seu diretor espiritual.

Pe. Germano constatará que “o anjo da guarda era para Gemma como outro Jesus. Ela expunha as suas necessidades e as dos outros; em suas tribulações, queria-o sempre a seu lado, em particular nas lutas contra o inimigo”,[25] que não eram poucas, pois, como veremos adiante, ela travou muitas lutas com o inimigo, espirituais e corporais.

Outro fato intrigante sobre a relação de Gemma com o anjo é que ela pedia-lhe favores, como mediador entre ela e Jesus, ou entre ela e Maria. Escrevia-lhes cartas e entregava ao anjo para que as levasse, e ficava esperando respostas. Era algo incompreensível aos olhos das pessoas, mas as cartas eram escritas e entregues de fato, como são entregues a um carteiro. Assim disse seu diretor sobre isso: “Encarregava-o de diversos negócios para com Deus, sua divina Mãe e os santos advogados; confiava-lhe também cartas fechadas e reservadas para Jesus e Maria, pedindo-lhe que lhe trouxesse a resposta em breve; e as cartas eram de fato levadas”.[26] Seu diretor é convicto ao afirmar que havia ali, sem dúvida, uma relação sobrenatural, e não era apenas um ato de alguém que estava fora de suas faculdades mentais. E Gemma não desistia de pedir favores ao seu anjo, custasse o que custasse. Quando a resposta não vinha, ou demorava a vir, ela se aborrecia, mas não desistia. Em matéria de pedir coisas a Deus, Gemma era muito perseverante e persistente, e sempre pedia em favor dos outros, quase nunca para si mesma. Num de seus escritos, ela se manifesta da seguinte maneira sobre um pedido que não obteve resposta:

Entretanto, há tantos dias já que lhe mandei dizer pelo anjo. Como não fez ainda nada? Ao menos podia mandar dizer, mesmo por ele, que não lhe era possível ocupar-se com este negócio. Em todo caso, não vos zangueis se insisto de novo nesta carta, porque se trata de assunto muito importante.[27]

Parece que Gemma dá uma bronca no destinatário da carta porque ele a ignorou. É uma relação mais parecida com aquela que existe entre duas pessoas comuns do mundo virtual do que com a relação de uma pessoa com Deus. Diz seu diretor espiritual:

Este celeste mensageiro andava sempre em embaixadas e de bom grado a satisfazia. Ainda sem ser invocado, acudia a todas as suas necessidades e perigos, refreava a audácia do demônio, que com refinada malícia queria sempre fazer-lhe mal, e lutava com ele para tirá-la das suas mãos.[28]

Este talvez seja um dos pontos essenciais da custódia do anjo: proteger e defendê-la das artimanhas do diabo, porque, com a mesma frequência com que o anjo vinha acudi-la, vinha o diabo atormentá-la, como veremos mais adiante.

Seu diretor espiritual narra um acontecimento intrigante: certo dia, Gemma, estando à mesa, ouviu de uma pessoa ao seu lado uma blasfêmia contra o santo nome de Deus; ao ouvir tal agressão, desmaiou e ia batendo a cabeça no chão, mas foi socorrida imediatamente pelo anjo, que a amparou e a confortou com palavras consoladoras. Em outra ocasião, ela se atrasou na igreja e, já sendo tarde, voltou para casa amparada pelo anjo, que a advertiu sobre os perigos de andar sozinha àquela hora. Em outra ocasião, Gemma, ao fazer as suas orações, foi agredida pelo inimigo, o diabo, recebendo fortes pancadas que a deixaram incapaz de fazer qualquer movimento. Nesse instante, “veio o anjo ajudá-la para que pudesse deitar, e depois ficou à sua cabeceira, aguardando-a”.[29] O anjo a protegia e a defendia nessas horas de agressões do diabo, como confirmou seu diretor em outro momento: “Em outras circunstâncias em que sua vida corria perigo, ele a prevenia e aconselhava para que empregasse as devidas cautelas

para evitá-lo”. [30]

Essa proteção de Deus era necessária, porque Gemma, além de ser uma pessoa ingênua, não cuidava de si. Ela se preocupava muito com as outras pessoas, mas não cuidava tanto de si mesma. Tanto é que o próprio anjo lhe diz ternamente: “Pobre menina! És tão inexperiente! Tens necessidade de que alguém continuamente te proteja; quanta paciência preciso ter contigo!”.[31] Sem essa ajuda ou intervenção celestial, como diz seu diretor espiritual, ela teria facilmente sido vítima de alguma desgraça. Que seria de Gemma sem a proteção do seu anjo da guarda? Aquela que era tão amada por Deus era também muito tentada pelo diabo, que não lhe dava trégua.

No entanto, a preocupação primordial do seu anjo da guarda, ou anjo custódio, como ela mesma costumava dizer, era com a sua alma. Gemma, nas mãos do anjo, era um instrumento de santificação de Deus, e ele estava ali para moldá-la como o barro nas mãos do oleiro (Jr 18,2-4). Gemma era refeita e modelada constantemente, num doloroso processo de perfeição, e o anjo estava ali, como mediador do Oleiro Supremo, Jesus. “Assim, enquanto por um lado a defendia, por outro servia-lhe de excelente mestre de perfeição cristã. Aproveitava-se de todos os ensejos para dar-lhe conselhos, instruí-la e guiá-la com celestial sabedoria”. [32]

O anjo era tão presente e tão real na vida de Gemma que certa vez pediu que ela anotasse por escrito as suas orientações, para que não as esquecesse. Sobre isso, seu diretor espiritual, que ela chamava de “pai espiritual”, vai dizer:

Uma vez, para que ela não perdesse nem uma sílaba, quis o santo anjo que escrevesse alguns pontos ditados por ele, e lhe ordenou que tomasse papel e pena

e se assentasse à escrivaninha, enquanto ele, em pé diante dela, como um menino na escola junto à sua mestra, ia ditando.[33]

Dá para imaginar a cena do anjo ao lado de Gemma ditando as regras de comportamento diante de Deus e do mundo. São lições de profunda sabedoria, mas também de grandes desafios. Tomo a liberdade de reproduzir a carta ditada pelo anjo a Gemma, que na verdade não é bem uma carta, mas uma espécie de mandamento, meio Decálogo, ou uma espécie de estatuto. Esses “mandamentos” poderão servir a todos os que desejarem levar uma vida de perfeição. Veja o que disse o anjo a Gemma:

Recorda-te, minha filha, que quem ama verdadeiramente a Jesus fala pouco e a tudo; Ordeno-te em nome de Jesus que nunca dês a tua opinião se não te perguntarem, e não sustentes o teu modo de pensar, mas ceda logo; Quando cometeres alguma falta, acusa-te sem esperar que outros te precedam; Obediência pontual ao confessor e a quem fizer suas vezes, sem nada replicares, e sinceridade com ambos; Lembra-te de guardar a tua vista, pensando que os olhos mortificados verão a beleza do céu.[34]

Diante desse estatuto do anjo, Gemma vai dizer: “O meu anjo é um pouco severo, mas eu o estimo que seja assim. Ultimamente, ele me tem repreendido três a quatro vezes por dia”.[35] Não pensem que a relação de Gemma com o anjo era apenas um mar de rosas. Ela era muitas vezes dura e áspera, e não era fácil seguir normas com tanto rigor. Elas pediam um profundo esvaziamento de si, quase um aniquilamento, e isso não é para qualquer um. Havia momentos em que a relação do anjo com Gemma era muito exigente, e ela se via no limite de suas forças. Às vezes, ela era tão repreendida pelo anjo que se sentia mal, humilhada ou aniquilada, como podemos ver neste outro relato que reproduzo na

íntegra, para que tenhamos noção do grau de exigência do anjo com Gemma e dos sentimentos que dela se apoderavam nessas horas. O anjo de Gemma era mais exigente e severo que o treinador de um atleta para as olimpíadas. Descreveu Gemma:

Ontem, durante a refeição, levantei os olhos e vi meu anjo, que me observava com um olhar tão severo que me assustou! Disse-me: “Não tens vergonha de cometer essas faltas em minha presença?”. Lançava-me olhares tão ameaçadores... Caí num pranto e suplicava a meu Deus e a minha Mãe celeste que o tirasse dali, porque eu não podia resistir mais tempo a este suplício. De quando em quando ele me repetia: “Tenho vergonha de ti”. Eu rezava para que ninguém o visse com aquele aspecto, porque se o tivessem visto, ninguém mais se aproximava de mim. Sofri um dia inteiro, foi-me impossível recolher-me um só instante, não tinha coragem de lhe dizer uma palavra, vendo que sempre que levantava os olhos ele continuava tão severo. Tinha vontade de lhe pedir perdão, mas quando ele está assim, irado, não há esperanças de que me perdoe. Ontem à noite não pude conciliar o sono. Enfim, pelas duas horas da manhã, vi-o aproximar-se e colocar a mão sobre minha fronte, dizendo-me: “Dorme, má!”, e desapareceu.[36]

Esse relato mostra um perfil de um “anjo vingativo”, que não perdoa falhas, por menor que sejam, mas não é bem assim. Essa severidade do anjo com Gemma era similar à de um pai que quer o bem de seus filhos e, por isso, os corrige com firmeza. Gemma sabia disso e se sentia às vezes desconfortada e amedrontada com tanta rigidez, mas era o preço que ela pagava pela busca da perfeição. Ela não escondia nada do seu anjo, nem podia, mas nem tudo dizia ao seu confessor. O anjo, porém, não lhe dava trégua, e pedia que ela nada escondesse de seu confessor. Sobre isso, Gemma relata: “Repugnava-me tanto a penitência que ele me impôs de comunicar certos segredos ao confessor, mas obedeci, meu pai, fizme violência e fui muito cedo dizer-lhe tudo, e assim me venci; e o anjo ficou tão satisfeito que se tornou amável comigo”.[37] Quando ela era obediente ao anjo, este a recompensava com a amabilidade, e ela o amava muito, recorrendo sempre a ele para que a protegesse em todos os momentos. Seu nome estava sempre nos seus lábios, e se o anjo lhe perguntava por que ela recorria tanto a ele, ela respondia: “Porque me ensinais a ser boa, e a conservar-me humilde, e a

agradar Jesus”.[38] Era esse amor pelo anjo que o fazia tão familiar, tão próximo, como um amigo íntimo. Gemma não tinha nenhuma formalidade com o seu anjo da guarda, e falavam de igual para igual. Certa vez, seu diretor espiritual a repreendeu por isso, dizendo que não eram modos de tratar um espírito celeste, e Gemma prometeu-lhe corrigir tanta informalidade no trato com seu anjo amigo, dizendo: “Tem toda razão, meu pai, eu me corrigirei. De hoje em diante tratarei sempre por vós ao anjo e lhe darei todas as denominações de reverência e me conservarei a cem os de distância quando o tornar a ver”. [39] E Gemma se esforçou para mudar, mas não sem antes advertir o anjo: “Tenhamos paciência, querido anjo, o diretor não quer... e é preciso mudar procedimentos”. [40]

Outro diálogo de Gemma com seu anjo da guarda é digno de ser reproduzido porque a mostra discutindo com o anjo como um casal de namorados discutem. O perfil da relação de Gemma com o anjo era similar a uma relação ional, e ela também era muitas vezes dura com seu anjo querido, como mostra este escrito dela ao seu diretor espiritual:

“Aquele bendito anjo me fez ficar inquieta porque eu não queria falar-lhe, mas ele insistiu muito. Afinal, me disse: ‘Deus te abençoe, ó alma confiada à minha guarda’. Imagina, meu pai, eu lhe respondi assim: ‘ó santo anjo, ouvi, não mancheis vossa mão comigo, retirai-vos, ide procurar outras almas que saibam corresponder ao dom de Deus. Eu nada sei fazer’. Enfim, fiz com que me compreendesse. Ele me perguntou: ‘Mas que temes?’. ‘Desobedecer’, respondi. ‘Não receies’, retorquiu ele, ‘que é teu diretor que me manda’”. Ela disse apenas: “Perdoe-me, meu anjo, não o posso ouvir”.[41]

Em outras palavras, Gemma está dizendo ao seu anjo: “eu não mereço sua proteção, vá buscar outra pessoa que o mereça, me deixe em paz”. Isso mostra que Gemma vivia muitas vezes um dilema entre o que seu diretor dizia e o que o anjo lhe dizia. Custou-lhe perceber que havia uma sintonia entre seu confessor, seu diretor e o anjo que a protegia. Seu diretor espiritual descreveu outro diálogo

interessante de Gemma com seu anjo. Nele o anjo confirmou a Gemma que Jesus a amava muito e pediu-lhe também que dedicasse louvores a Nossa Senhora. Esse proceder do anjo confortou o coração de Gemma, que disse:

Eu estava de cama, sofrendo muito, quando senti subitamente apoderar-se de mim um grande recolhimento: com as mãos postas e com todo o fervor de meu pobre coração, fiz um ato de contrição, com viva dor de meus inumeráveis pecados. Meu espírito estava absorto nas ofensas feitas a Deus, quando vi o anjo perto de mim. Envergonhei-me de estar na sua presença. Ele, pelo contrário, me falou com muito agrado e disse: “Jesus te quer muito bem, ama-o deveras”. Depois continuou: “Ama a Mãe de Jesus. Saúda-a muitas vezes; ela aprecia muito as saudações e não cessa de retribuí-las a nós todos; se não as percebes é para experimentar tua fidelidade”. Abençoou-me e desapareceu.[42]

Gemma relacionava-se com essa facilidade e familiaridade com o seu anjo. São inúmeros os relatos desses momentos, que revelam a sua proteção angelical, como este que transcrevo a seguir:

Enquanto eu fazia as minhas orações da noite, o anjo da guarda aproximou-se de mim, e batendo-me no ombro, disse-me: “Gemma, como sentes tanto desgosto pelas orações?”. “Não”, respondi, “não é desgosto; há dois dias que não me sinto bem”. Ele acrescentou: “Cumpre com seus deveres com aplicação e verás como Jesus te amarás ainda mais”. Pedi-lhe então que fosse perguntar a Jesus se lhe dava a licença de ar essa noite comigo. Desapareceu logo, e tão logo recebeu a permissão de Jesus, voltou no mesmo instante. Oh! Como se mostrou bom! Chegando a hora de partir, eu lhe pedi que se demorasse ainda mais, mas respondeu: “Convém que eu vá”. “Pois bem”, lhe disse, “saúda então a Jesus por mim”. Lançou-me um último olhar e me disse: “Não quero que tenhas mais conversações com as criaturas, quando quiseres falar, fala só com Jesus e com o teu anjo”.[43]

Vemos nesse diálogo que o anjo lhe coloca restrições não só relacionadas a como

falar, mas também a com quem falar. Falar somente com ele, o anjo, e com Jesus, fato que fazia com que Gemma se fechasse ainda mais em relação às pessoas ao seu redor. Seu diretor espiritual dirá:

Do mesmo feitio são quase todas as outras aparições de que Gemma nos deixou a descrição, ou foram colhidas de sua boca estando em êxtase. Donde se depreende quanto era agradável aos olhos de Deus esta virgem, para ser visitada, assistida e dirigida no caminho de santidade pelos espíritos angélicos.[44]

Ele diz também que esse privilégio de Gemma pode ser alcançado por qualquer pessoa, desde que leve uma vida de pureza, humildade, simplicidade de coração, fé e árduo desejo de perfeição. O anjo de Deus, então, se manifesta, pois todos nós recebemos de Deus um anjo da guarda para nos guardar e proteger. É isso que deveríamos aprender quando aprendemos a oração do santo anjo da guarda: “Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador, já que a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, guarda, governa e me ilumina. Amém!”.

No seu Diário, há vários registros em que Gemma descreve a sua relação com o seu anjo da guarda, sobretudo quando o diabo a atacava. No dia 21 de junho, sábado, ela escreve que, estando em oração, o diabo chegou e começou a espancá-la. Não fosse o anjo vir e defendê-la, ela teria morrido nas mãos do diabo. Em 22 de julho, a cena se repete, pois ela é espancada novamente pelo diabo, e o anjo a censura, dizendo que isso ocorreu porque talvez ela tivesse cometido alguma falta. As falhas eram brechas para o diabo entrar na sua vida. Numa quarta-feira, 25 de julho, Gemma é novamente censurada pelo anjo, que pede que ela seja mais humilde. No dia seguinte, Gemma é novamente reprovada por ele, e ela se penitencia, mortificando o seu corpo. Em 28 de julho, sábado, recebe santas oestações do anjo pedindo que ela se prepare para a comunhão. No dia seguinte, domingo, continua sendo assistida pelo anjo, porém, não se achando preparada, não comunga nesse dia e é reprovada por Jesus. Ela entra em êxtase e relata sua conversa com Jesus, que vale a pena conferir no seu Diário. Na segunda-feira, dia 30 de julho, ela acorda angustiada e é reconfortada pelo anjo, que a anima a sofrer e meditar cada dia a paixão de Jesus. Nos dois

primeiros dias de agosto, ela está temerosa em cometer erros, em se enganar, mas o anjo a tranquiliza. Em 6 de agosto, segunda-feira, o anjo da guarda se entretém com ela toda a noite e a exorta a oferecer cada sofrimento ao Senhor pelas almas do purgatório. Em 8 de agosto, quarta-feira, o anjo a tranquiliza pela consciência que tem de seus pecados, dizendo-lhe que deixe tudo a juízo do confessor. No dia seguinte, quinta-feira, 9 de agosto, o anjo da guarda lhe recomenda obediência ao confessor. Nesse dia, Gemma deve sofrer mais em sufrágio pela falecida madre Teresa, monja ionista que havia falecido recentemente. No final de semana de 18 e 19 de agosto, sábado e domingo, Gemma relata no seu diário que a monja falecida, madre Maria Teresa, acompanhada por Jesus e pelo seu anjo da guarda, vem agradecer-lhe as orações, e voltam para o céu. Porém, no dia 20 de agosto, segunda-feira, Gemma recebe reprovações de seu anjo e tem um terrível assalto diabólico. Apesar do susto e da luta incansável com o diabo, ela supera bem, invocando as virtudes do preciosíssimo sangue de Jesus. Sente dor pelos seus pecados, mas recebe a assistência fraterna e ensinamentos do seu anjo. Em 22 de agosto, uma quartafeira, ela registra em seu diário que foi mais uma vez reprovada pelo seu anjo, mas que recebeu a visita de Jesus, que lhe falou de uma senhora chamada Josefina Imperial, da qual não encontrei nenhum registro para saber de quem se tratava. Nesse dia, ela registra a presença de outros anjos. Na sexta-feira, 24 de agosto, Gemma anota no seu diário sua relação muito próxima com Jesus, que tira a coroa de espinhos da cabeça e a coloca na cabeça dela. Enquanto isso, ele lhe fala do seu diretor espiritual, Pe. Germano. Nesse dia, Gemma também recebe assistência e ordem do seu anjo, que lhe ensina o modo de obter de Jesus uma visita de São Gabriel da Virgem Dolorosa. No sábado, dia 25 de agosto, Gemma é enganada pelo diabo, que lhe aparece na forma do seu anjo guarda. O diabo é tão ardiloso que busca confundi-la, se travestindo de anjo. Nesse dia, Gemma disse ter apanhado muito do diabo, pensando estar apanhando de seu anjo devido a alguma falha cometida. Porém, logo aparece seu anjo verdadeiro e a ampara, aconselhando-a para não ser mais enganada. Então, depois de tanto sofrimento, mas também de consolo, Gemma tem a visão de Nossa Senhora junto de si. No dia seguinte, o anjo volta com um rosto severo e lhe faz fortes reprovações. Como Gemma, tão santa e tão pura, poderia se deixar enganar pelo diabo? Porém, Gemma era tão santa quanto ingênua, e por isso caía em tramas como essa, armadas pelo diabo (seu diretor espiritual vai dizer muitas vezes quão ingênua era Gemma Galgani). No entanto, somente na segunda-feira, 27 de agosto, após Gemma receber a comunhão, ela saberá por meio de Jesus por que o seu anjo se mostrava tão severo. Na terça-feira, 28 de agosto, ela registra em seu diário que, depois da confissão, o anjo voltou a estar-lhe sorridente e amável

e lhe assegurou o perdão de Jesus. Na quarta-feira, 22 de agosto, ela escreveu uma carta a São Gabriel da Virgem Dolorosa, pedindo ao anjo que a entregasse. Pegando a carta, o anjo lhe disse que, no próximo sábado, ela teria a resposta de Gabriel. No sábado, 1º de setembro, Gemma relata em seu diário a ternura, severidade e reprovação do seu anjo da guarda. E no último dia em que há registro em seu diário, segunda-feira, 3 de setembro, ela descreve a manifestação do anjo e a sua benevolência e lhe pede conselhos espirituais. Todos esses registros, com riqueza de detalhes, estão no seu Diário,[45] cuja leitura eu recomendo. Selecionei aqui apenas os dias em que ela se refere diretamente ao anjo, mas há muitos outros contatos, tanto com Deus quanto com o diabo. São registros intrigantes que vale a pena conhecer.

XI

Santa Gemma Galgani e a sua conexão com São Gabriel da Virgem Dolorosa

Além do contato com seu anjo da guarda, Gemma Galgani tinha também contato direto com alguns santos, com Nossa Senhora e com Jesus. Neste capítulo, tratarei da relação que Gemma tinha com São Gabriel da Virgem Dolorosa, o qual ela chamava de coirmão, tão próxima era a relação que eles tinham no plano espiritual. São Gabriel foi de suma importância na vida espiritual de Gemma Galgani e no seu processo de santidade, e por essa razão eu falarei neste capítulo um pouco sobre a vida desse santo que não é muito conhecido no Brasil, mas que na Itália, país de Santa Gemma Galgani, é muito conhecido, além de ser reconhecido como o patrono da juventude italiana. Ele morreu tão jovem quanto Gemma, ela aos 25 anos, e ele aos 24. Até nesse aspecto eles eram parecidos, “almas gêmeas”, como se diz no senso comum.

Gemma aprendeu a ser devota aos santos e a Nossa Senhora ainda bem pequena, no seio da família, e com o ar dos anos foi aperfeiçoando essa devoção, que, no início, era quase nula, mas depois se avolumou e ultraou o limite devocional, tornando-se uma relação muito próxima. Se com seu anjo da guarda Gemma se relacionava como se fosse uma pessoa, com São Gabriel não era diferente. No começo, essa era uma devoção como outra qualquer, porém, depois, os atos devocionais foram evoluindo e se transformaram em verdadeiros contatos com o sobrenatural.

Foi no período em que Gemma estava enferma mais gravemente, desenganada pelos médicos, como disse antes, que ela começou a se apegar também aos santos, a pedido de pessoas amigas que a eles recorriam como intercessores, pedindo que intercedessem junto a Deus por Gemma, para que lhe concedesse a graça de ser curada. Gemma, no entanto, não se preocupava muito em ser curada e “dizia que se sentia igualmente satisfeita, quer voando logo para o céu, quer ficando nesta miserável terra para sofrer ainda mais, conforme fosse agradável a Deus”.[1] Porém, suas amigas não desistiam de pedir a intercessão dos santos e

invocavam-nos quase que em ladainhas para a cura de Gemma. Escreveu seu diretor espiritual: “Aquelas boas amigas, vendo também como era humanamente impossível a cura de Gemma, diziam-lhe muitas vezes que tivesse fé em uma graça singular do céu, por intercessão ora deste, ora daquele santo, segundo a particular devoção de cada uma”. [2]

Ainda nessa fase da vida, Gemma não tinha nenhuma especial devoção aos santos, ou não tinha nenhum santo especial de devoção. Seu feeling era com Jesus e Nossa Senhora, como nós veremos adiante, mas, como filha de boa família católica, e com tantas amigas católicas, não era de se estranhar que em algum momento ela elegesse algum santo de devoção. Foi então nessa época de grande debilidade física, e quase à beira da morte, que irmã Julia, sua antiga professora, contou-lhe “algumas agens da vida de um jovem ionista chamado Gabriel de Nossa Senhora das Dores”,[3] ou Gabriel da Virgem Dolorosa, como também era e ainda é conhecido. Gemma nunca tinha ouvido falar dele.

Gabriel ainda não tinha sido canonizado, mas, apesar da recente história, já estava em processo de canonização, devido aos milagres a ele atribuídos. Gabriel era seu nome religioso, mas seu nome verdadeiro era Francisco Possenti. Ele tinha esse nome porque nascera na cidade de um dos santos mais conhecidos do mundo, São Francisco de Assis. Nascido em Assis no dia 1º de março de 1838, era o décimo de treze filhos do casal Sante Possenti e Angese Frisciotti (em português, Inês Frisciotti). Com apenas quatro anos de idade, perdeu a mãe. Seu pai, Sante Possenti, além de ser um homem de certa posse financeira, era importante na sociedade e na Igreja. Sante Possenti era advogado e foi comandante da Guarnição Militar de Spoleto. Dizem que, devido à sua profissão, ensinou o menino Gabriel a manejar pistolas e fuzis, tornando-o, aos treze anos, um exímio cavaleiro e atirador. Depois da dança, a caça era seu lazer favorito. Além de militar, Sante Possenti era governador do Estado Pontifício e, devido à função, precisava mudar de residência com muita frequência, sempre que suas funções se faziam necessárias em outro departamento da Igreja. Mesmo assim, não descuidou da educação do menino Francisco, que, além de estudar com

afinco, era alegre e jovial e gostava de dançar e de ajudar os pobres.

Tendo como exemplo Francisco de Assis, o santo de sua cidade natal, Francisco Possenti, o futuro São Gabriel, se comovia diante do sofrimento e da miséria de seu semelhante, tirando a própria roupa do corpo, se preciso fosse, para cobrir os que não tinham o que vestir. Por ser um jovem alegre, e por gostar de dançar, mais tarde ele seria conhecido como o “santo bailarino”. Embora as imagens e estampas de São Gabriel mostrem um jovem com rosto piedoso, quase triste, ele não era um jovem triste. Mesmo fazendo votos de pobreza, castidade e radicais penitências, não transparecia tristeza, mas alegria pela escolha feita. Essa escolha foi resultado de uma promessa feita a Nossa Senhora quando ele estava com uma grave enfermidade, mas não entrarei aqui em detalhes porque o foco principal é Santa Gemma Galgani. No entanto, esses relatos sobre a vida de São Gabriel, amigo de Gemma, ajudam a entender melhor por que tanto se fascinou por ele.

Além de Assis, Gabriel, ou melhor, Francisco e a família residiram alguns anos na cidade de Spoleto, na província da Perúgia, na região da Úmbria. Ali ele estudou em colégios renomados, como o Colégio dos Maristas e dos Jesuítas. Em 1856, com 18 anos, entrou para o seminário dos ionistas, seguindo os os do fundador dessa congregação, São Paulo da Cruz. Com os ionistas, mudou de nome, deixando para trás Francisco, o nome do mundo, e assumindo o nome de irmão Gabriel, em homenagem ao anjo Gabriel. Ele não imaginava na época o tamanho da responsabilidade do nome assumido, que era a de ser um “homem forte de Deus”, um “mensageiro de Deus”, anunciador e protetor, que anunciaria boas notícias (Lc 1,26-38) e interpretaria visões (Dn 8,15-17). Foi essa a missão que assumiu na vida de Gemma Galgani, sendo o mediador ora entre ela e o anjo, ora entre ela e Nossa Senhora das Dores, ou até mesmo entre ela e Jesus, fazendo o papel de um verdadeiro anjo, embora Gemma tivesse o seu anjo da guarda. Gabriel a ajudaria muitas vezes a entender suas visões e muitas vezes lhe anunciaria a presença de Jesus na sua vida. Porém, nessa época de seminário, Francisco, agora irmão Gabriel, ainda não tinha clareza dessa missão.

Como complemento, ele assumiu o nome de Nossa Senhora das Dores, ando

então a ser chamado de irmão Gabriel de Nossa Senhora das Dores, porque ele tinha muito amor a Nossa Senhora, e era por uma promessa a ela que ele estava se consagrando a Deus. Além disso, na congregação ionista, Gabriel se encantou com a espiritualidade da paixão e, consequentemente, com Nossa Senhora das Dores, a Mãe de Jesus ao pé da cruz e diante de tantas outras dores. No seminário, Gabriel levava uma vida austera, de penitência e muita oração. Chegava a dormir no chão em noites geladas, e isso contribuiu para que adoecesse gravemente. Em 27 de fevereiro de 1862, três anos depois de ter chegado ao convento ionista da ilha de Gran Sasso, com apenas 24 anos de idade, Gabriel morreu vítima de tuberculose. Antes de morrer, deixou uma coleção de pensamentos da patrística, cerca de 40 cartas testemunhando sua devoção a Nossa Senhora das Dores, e um caderno com anotações de aulas, contendo dísticos latinos e poesias italianas.

Depois de sua morte, começaram a surgir milagres a ele atribuídos, que hoje estão registrados em sua biografia e em muitos outros escritos sobre sua vida. Gabriel foi beatificado em 31 de maio de 1908 e canonizado em 13 de maio de 1920, pelo papa Bento XV. Vinte anos depois, Gemma Galgani também seria canonizada. Na época em que viveu Santa Gemma, ele ainda não tinha sido declarado santo pela Igreja, mas quem o conheceu não duvidava da sua santidade, como era o caso das amigas de Gemma, irmã Júlia e Cecília Giannini, e do próprio Pe. Germano, seu diretor espiritual. Pe. Germano conheceu as virtudes heroicas do irmão Gabriel e tinha escrito a sua biografia, a mesma que, pela providência divina, viria a parar nas mãos de Gemma Galgani quando esta estava enferma.

Mas como Gemma veio a ter contato com a biografia do Venerável Gabriel? O fato se deu da seguinte maneira:

Sua antiga professora, irmã Júlia, conta-lhe, certa ocasião, algumas agens da vida de um jovem ionista chamado Gabriel de Nossa Senhora das Dores. Por obra da providência, Cecília Giannini empresta a Gemma a biografia do referido jovem, escrita pelo Pe. Germano, da mesma congregação, para que se entretenha

nas horas intermináveis de sua enfermidade.[4]

Mais tarde, seu diretor espiritual, Pe. Germano, vai escrever:

Gemma, que não conhecia ainda nada da vida deste santo nem de seus milagres, embora desde aquele tempo já fosse muito grande a sua fama em todo o mundo, não se mostrou logo muito sua devota, deixando que sua família começasse a invocá-lo com fé.[5]

Ou seja, não foi “amor à primeira vista”, como se diz no senso comum. Ela não se encantou de imediato pelo santo, apesar dos relatos da irmã Júlia e do empenho de Cecília Giannini para que o conhecesse. Gemma, com certa indiferença, pegou o texto e o colocou debaixo do seu travesseiro. Ela não imaginava o que lhe viria a ocorrer depois, conforme registrou mais tarde em sua autobiografia. Seus relatos são contundentes, pois nesse ínterim começa uma relação beligerante entre Gemma e o diabo, e Gabriel e seu anjo da guarda serão seus mediadores e protetores. Reproduzo, na íntegra, alguns relatos de Gemma sobre Gabriel e o diabo, extraídos da sua Autobiografia e de seu Diário espiritual. Aliás, é sua Autobiografia que o diabo vai tentar destruir, atirando-a ao fogo, mas ela é recuperada pelo seu diretor espiritual, a distância, por meio do exorcismo, como veremos mais adiante. Vejamos, agora, o que Gemma escreveu sobre essa relação com São Gabriel:

Naquele momento, na família, faziam tríduos, novenas, e os faziam pela minha cura; mas não obtinham nada. Eu mesma me mantinha indiferente: as palavras de Jesus me haviam fortalecido, mas não me convertido. Certo dia, uma senhora, que vinha sempre me visitar, me trouxe um livro para ler. O peguei quase com desprezo e o coloquei sob a cabeceira; a senhora me pediu que eu me devotasse a ele, mas eu nem pensava nisso.[6]

Vemos nesse trecho da sua Autobiografia que ela não se animou, num primeiro momento, com a biografia do santo. Sua indiferença era total, inclusive ela se mostrava incrédula pela sua cura. Havia momentos em que ela achava que sua hora tinha chegado e que santo algum seria capaz de desviar os propósitos de Deus. Nem mesmo as palavras de Jesus a convertem, apesar de confortá-la. Percebemos, assim, a aridez em que se encontra Gemma devido ao sofrimento, e sabemos que nas horas de deserto, de aridez ou de debilidades, físicas ou espirituais, ou em ambas, o diabo entra em ação. Foi assim com Jesus no deserto (Lc 4,1-13), e é assim com todo discípulo seu. Oportunista, é nos momentos de fraqueza que o diabo costuma agir. Sobre esse episódio, Gemma escreve na sua Autobiografia:

Certo dia, eu estava sozinha, ava do meio-dia: veio-me uma forte tentação, e eu me dizia que estava entediada de estar de cama. O demônio se valeu destes pensamentos e começou a me tentar, dizendo que, se eu lhe houvesse dado ouvidos, ele me haveria curado, e eu teria feito tudo aquilo que queria fazer. [...] eu quase cedi; eu estava agitada, e me dava por vencida. Do nada, veio-me um pensamento: pensei no Venerável Gabriel, e disse bem forte: “Primeiro a alma e depois o corpo!”.[7]

Primeiro a alma, depois o corpo era a expressão que Gemma havia lido na biografia do Venerável Gabriel e que havia ficado na sua memória, como uma senha para afastar as tentações, como aquelas palavras mágicas que vemos em filmes de ficção, quando alguém, ao ser atacado pelo inimigo, diz uma palavra e o inimigo perde as forças e se aniquila. Ao dizer essas palavras, Gemma recobra as forças espirituais e derrota o inimigo, porém vemos que o diabo aproveita as circunstâncias para agir. Gemma sozinha, debilitada pela doença, com certo enfraquecimento na fé, devido ao fato de não ver resultado nas orações pela sua cura, desanimada e entediada com tudo e com todos, pensando em desistir, possibilita que o diabo entre em ação. Valendo-se da conjuntura de suas fraquezas, o diabo não perde a oportunidade. Como vimos nesse relato, ele já a havia tentado, prometendo-lhe a cura. Quantas pessoas se deixam influenciar pelo diabo nos momentos de fraqueza! Nessas horas, ele vem e promete felicidades e facilidades para resolver os problemas, pois isso é tudo o que se quer quando se está atravessando momentos difíceis. Até com Jesus não foi

diferente. Estando no deserto e tendo fome, o diabo lhe aparece e lhe promete poder para transformar pedra em pão; estando esvaziado de bens materiais, o diabo lhe promete todos os reinos do mundo, desde que ele se prostrasse diante dele e o adorasse; sentindo-se um tanto quanto enfraquecido espiritualmente, apesar de estar cheio do Espírito Santo, o diabo lhe promete amparo espiritual (Lc 4,1-13). Veja quão ousado é o diabo! Gemma quase lhe deu ouvidos, quase cedeu às tentações porque estava agitada, enfraquecida e dada por vencida. Era tudo o que o diabo queria para possuí-la de uma vez por todas. Foi nesse momento que ela se lembrou do Venerável Gabriel e a ele recorreu, usando uma frase sua que havia lido. Era a senha de que ela precisava para ar a proteção desse santo, que, daquele momento em diante, seria seu protetor, seu amigo e confidente. Contudo, o combate não foi nada fácil. Escreveu Gemma:

Mesmo assim, o demônio continuava com assaltos cada vez mais fortes: mil pensamentos feios bailavam em minha mente. Mais uma vez recorri ao Venerável Gabriel, e com sua ajuda venci; voltei a mim, fiz-me o sinal da santa cruz e em quinze minutos voltei a me unir ao meu Deus, tão desprezado por mim. Eu lembro-me que naquela mesma tarde comecei a ler a vida do coirmão Gabriel. A li muitas vezes: eu não me saciava de relê-la e irar as suas virtudes e seus exemplos. As metas eram muitas, mas os feitos, nenhum.[8]

Depois dessa intervenção divina mediada por São Gabriel, Gemma ou a devotar sua iração a ele, invocando-o nas suas necessidades. Ela não só leu a sua biografia, como mergulhou na sua vida de tal forma, que suas virtudes e exemplos aram a ser perseguidos por ela, que queria a cada dia que a sua vida se assemelhasse e se amalgamasse à vida dele. Gabriel tinha tudo o que Gemma inspirava para sua vida, e eram muitas as similaridades entre os dois. Ambos vieram de famílias semelhantes; ambos haviam perdido a mãe ainda crianças; ambos tinham profunda veneração por Nossa Senhora das Dores; ambos amavam a Jesus crucificado; enfim, eles tinham muitas coisas em comum, muitas semelhanças, e não foi por acaso que ela ou a chamá-lo de “coirmão”. Não sabia ela que morreria tão jovem quanto ele, mas gostavam das mesmas coisas; a identificação era tanta que ela ou a chamá-lo com um codinome que indicava familiaridade, irmandade, como vemos em sua Autobiografia e no seu Diário. Sobre isso, escreve Gemma:

Daquele dia, no qual meu novo protetor, o Venerável Gabriel, me salvou a alma, comecei a ter por ele uma forte devoção: de noite eu não conseguia dormir sem ter sua imagem sob o travesseiro, e comecei desde então a vê-lo perto de mim (aqui, meu papai, não consigo explicar: sentia a sua presença). Em cada ato, em cada ação má que eu tivesse feito, me voltava à mente o coirmão Gabriel, e eu me abstinha. Não deixava de rezar a ele todos os dias as seguintes palavras: “Antes a alma que o corpo”.[9]

Gemma o adotou definitivamente como seu santo protetor, como adotou seu lema de fé, “antes a alma que o corpo”, e levava muito a sério esse propósito, sacrificando o corpo para que a alma fosse salva. Gemma se apegou tanto a Gabriel que os escritos sobre sua vida haviam se tornado para ela inigualavelmente preciosos. Sua biografia transformou-se no seu “livro de cabeceira”, de forma literal e figurada: literal porque, desde o início, o livro ficava sob seu travesseiro, à sua cabeceira; e figurada porque havia se tornado o seu livro preferido. Era o livro que continha a receita certa para ser santo, algo que Gemma tanto almejava. Depois da Bíblia, a biografia do Venerável Gabriel tornou-se o livro espiritualmente mais importante para ela, tanto que não queria mais se desfazer dele. Porém, o livro não era seu, estava ali emprestado temporariamente, e, ao ter que devolvê-lo, Gemma disse:

Veio, certo dia, a dita senhora para tomar-me de volta a vida do Venerável. Ao tomá-la de sob o travesseiro, e entregá-la àquela senhora, não pude senão chorar; ela, vendo que me entristecia deixá-la, me prometeu que voltaria então para buscar somente quando quem lhe emprestou pedisse de volta. Voltou depois de alguns dias, mas mesmo ainda chorando, precisei entregá-la a ela; senti uma grande tristeza.[10]

Gemma devolveu o livro, mas o livro nunca mais saiu dela. Por meio da leitura de sua biografia, Gemma havia comungado, de fato, com o Venerável Gabriel, no verdadeiro sentido da comunhão. Com a leitura, suas almas se tocaram, e quando almas se tocam ninguém as separa. A transformação que esse livro

causou em sua vida ninguém nunca mais desfaria. Gabriel havia transformado de tal forma a vida espiritual de Gemma, que ela o teria a partir de então como sua referência mais contundente; além de espiritualmente, ela o teria como uma referência pessoal, pois aria a vê-lo fisicamente.

Essa identificação com Gabriel se deu, entre outras razões, pela espiritualidade da paixão que ambos comungavam. Gemma ainda não conhecia os ionistas, apenas as monjas ionistas. Foi a primeira vez que ela ouviu falar dessa congregação e da espiritualidade da paixão de uma forma tão encarnada, embora ela já a tivesse muito presente em sua vida. Gabriel abriu-lhe as portas daquilo que, a distância, Gemma já sabia por meio das monjas ionistas de Lucca, e ela ou a entender o que seriam esse carisma e essa espiritualidade a partir do seu contato espiritual e pessoal com coirmão Gabriel de Nossa Senhora das Dores. Assim Gemma descreve o seu primeiro contato pessoal com o então Venerável Gabriel:

[...] Mas aquele Santo de Deus quis bem depressa compensar o meu pequeno sacrifício; porém, não o reconheci. Ele, vendo que não o reconhecia, abriu sua veste branca e me mostrou o hábito ionista; não demorei, então, a reconhecê-lo. Permanecia eu em silêncio perante ele. Perguntou-me por que eu havia chorado quando me privaram do livro da sua vida: não me lembro o que respondi, mas ele me disse: “Veja o quanto me agradou teu sacrifício: me agradou tanto, que vim eu mesmo a visitar-te”. Me pediu que beijasse seu hábito e o terço, e foi embora.[11]

Ao ver o hábito de Gabriel, Gemma se encanta. Mais tarde, ela iria conhecer a história daquele hábito preto e do símbolo que Gabriel trazia no peito, o símbolo da congregação ionista, da qual Gemma aspirou arduamente fazer parte, pois sua identificação com esse carisma aumentava a cada dia, e Gabriel chegou à sua vida para esclarecer e consolidar aquilo que até então não lhe era muito claro. O pedido do santo nessa primeira aparição, para que ela beijasse o hábito e o terço, era o gesto simbólico de uma santa amizade que Gemma levaria para o resto de sua vida. Desde aquele dia, Gemma esperava ansiosa pela visita de Gabriel, mas

ela não se deu tão rápido, embora ela desejasse encontrá-lo todos os dias. Escreveu ela: “A fantasia continuava aumentando. Tive vontade, então, de aguardar por mais uma visita: não veio senão depois de muitos e muitos meses”. [12]

Quando se ama, um mês pode parecer uma eternidade, sobretudo se a pessoa está debilitada, como era o caso de Gemma. Ela continuava enferma e debilitada. Embora recebesse a ajuda de outras pessoas, tinha sede da ajuda espiritual de Gabriel, da sua presença física que não saiu mais de sua mente e do seu coração. Nesse ínterim, ela recebe a ajuda de freiras e sente um desejo profundo de se consagrar oficialmente, como monja, mas não era esse o caminho que Deus lhe havia reservado, e ela teria que se contentar com a consagração pessoal que já havia feito no seu coração.

Falarei posteriormente desse desejo de Gemma de ser freira, sobretudo do desejo de ser monja ionista, pois assim ela seria revestida em vida com o hábito do coirmão Gabriel, com o qual ela tanto se encantou quando o conheceu. Foi um encanto similar ao que São Paulo da Cruz, fundador da congregação ionista, sentiu ao ver Nossa Senhora vestida com esse hábito preto, que seria o hábito do instituto e depois da congregação por ele fundada. E Gemma ficou mais surpresa quando, em 1899, ao participar de uma missão na igreja de São Martino, realizada pelos missionários ionistas – que ela ainda não conhecia –, reconheceu neles o hábito do coirmão Gabriel. Esse foi um momento marcante e revelador de sua vida, também registrado na sua Autobiografia, como podemos conferir:

ou-se o mês de junho, e no final deste começaram as Santas Missões em São Martino. Sempre preferi deixar de lado essas missões para assistir às pregações do Coração de Jesus; enfim, estas terminaram, e comecei a ir às pregações em São Martino. Qual foi minha impressão ao ver aqueles sacerdotes pregarem, não sei descrever! A impressão foi maravilhosa, porque reconheci neles o hábito com o qual eu tinha visto vestido o coirmão Gabriel, na primeira vez que o vi. Senti um carinho especial por eles, tanto que daquele dia em diante não perdi nenhuma

pregação. [13]

Gemma, que antes não estava muito disposta a assistir às pregações dos missionários, agora se encanta com elas e sente uma profunda identificação. Era como se ela fosse um autêntico membro da família ionista, e de fato ela era, porque a sua identificação com o carisma da paixão a fazia ionista como seu amigo santo, Gabriel. Naquela missão, Gemma realmente fala com Jesus, que, a vendo tão encantada com o hábito dos missionários, e tão desejosa de se tornar uma filha da paixão, indica-lhe o seu primeiro orientador espiritual, o padre ionista Ignazio.

Estávamos no último dia das Santas Missões, e todo o povo estava reunido na igreja para fazer a santa comunhão geral; eu também, entre tantos, participei, e Jesus, a quem agradou muito isso, se fez sentir muito bem em minha alma e me perguntou: “Gemma, lhe agrada o hábito com o qual está vestido aquele sacerdote?”. (E me indicou um ionista que estava a poucos metros de mim). A Jesus eu não precisava responder com palavras: meu coração já falava com suas palpitações. “A alegraria (adicionou Jesus) também você ser vestida com o mesmo hábito?”. “Meu Deus!”, exclamei. “Sim – continuou Jesus –, você será uma filha da minha paixão, e uma filha predileta. Um destes filhos será seu pai. Vá e revele tudo...”. E aquele indicado por Jesus reconheci ser o padre Ignazio. [14]

No diálogo de Jesus com Gemma está a previsão de que ela seria uma “filha da sua paixão” e de que seria revestida com aquele hábito que tanto a encantara. Porém, não em vida. Na ocasião de sua morte, ela seria revestida com a veste que ela tanto desejou, como veremos adiante. Quanto ao padre indicado, Ignazio, foi seu primeiro diretor espiritual ionista, algo que já era uma aproximação maravilhosa com a espiritualidade que ela cultivava em seu coração, a espiritualidade e o carisma da paixão. Foi Pe. Ignazio quem apresentou à Gemma a Sra. Cecília Giannini, que viria a ser a sua segunda mãe e que, pela importância na vida de Gemma Galgani, merece um capítulo à parte.

Mas, de volta à conexão de São Gabriel com Gemma, em seu Diário ela também fará referências importantes à participação do santo em sua vida. A primeira referência ao coirmão Gabriel que nós encontramos no seu Diário data do dia 22 de julho, um domingo, um daqueles dias em que ela tinha sido açoitada pelo diabo e se sentia a pior pessoa do mundo. No final da anotação desse conturbado dia, ela diz: “O que me parece é que, em vez de ser boa e preparar-me para a visita de Nossa Senhora das Dores com o irmão Gabriel, por mais que me esforce, não me saio bem”.[15] No dia seguinte, 23 de julho, segunda-feira, após ser mais uma vez agredida pelo diabo, como veremos adiante, ela assim anota no diário:

Minha mente então voou logo para o coirmão Gabriel. Perguntei por ele, mas não me deu nenhuma resposta; deixou-me um pouco confusa e cheia de curiosidade. Finalmente me disse: “Mas se Jesus manda de verdade o coirmão Gabriel abençoá-la, o que fará? Não lhe falará, senão desobedecerá ao confessor”. Não, não falo, respondi impaciente; mas como pode abençoar-me o coirmão Gabriel? “É Jesus quem o manda; e também o tem mandado outras vezes para abençoá-la. Mas continuará calada e obediente?” Sim, sim, obedecerei; faça-o vir. Após alguns minutos ele veio. Como estava ansiosa! Eu queria..., mas fui boa, me detive. Abençoou-me com certas palavras latinas, que as tenho bem em mente, e depois, logo procurou se despedir. Não pude fazer outra coisa senão lhe dizer: “Coirmão Gabriel, peça à nossa Mãe que sábado venha e fique mais tempo comigo”. Voltou-se e me disse sorrindo: “Seja boa”, e dizendo assim tirou da cintura um cinto preto e me disse: “Quer?”. Agora sim que o quero de verdade: “faz-me tanto bem, dá-me”. Fez-me sinal que não, que me daria sábado e me deixou. Disse-me que aquele cinto era o que na noite ada havia me livrado do demônio.[16]

Gabriel, seu protetor, tinha surrado o diabo com o cinto que trazia na cintura, o mesmo que está no hábito dos religiosos ionistas e que vem acompanhado de uma cruz com o Crucificado. Gemma se sentiu ainda mais encantada com os símbolos da paixão que envolviam o hábito que ela tanto desejava ver um dia em seu corpo. Nesse dia, Nossa Senhora também esteve presente na sua vida e a confortou, mas dela falarei em outro momento. Por alguns dias, Gemma ficaria privada da presença de Gabriel, e nas anotações de seu diário, do dia 6 de agosto,

uma segunda-feira, se sentindo no “abismo do mundo”, o anjo a questionou:

“E o coirmão Gabriel?” Não o sei. “Quanto tempo faz que não o vê?” Há muito tempo. “Mas esta noite Jesus vai mandá-lo”. Como? Esta noite, não, desobedecerei: à noite o confessor não quer. Ó, como eu o desejaria! Devo, entretanto, obedecer. Pedi-lhe que o mandasse de dia e logo, para que pudesse escrever aquela carta ao padre Germano. Recomendei ao anjo da guarda que fosse até Jesus perguntar-lhe se ele permitiria que asse a noite comigo. Desapareceu subitamente.[17]

O confessor de Gemma, monsenhor Volpi, havia proibido que ela recebesse durante a noite essas visitas, mesmo que fossem elas no âmbito espiritual. Talvez para poupá-la no sono, pois Gemma precisava descansar, já que os momentos de êxtase deixavam-na um tanto quanto esgotada fisicamente. No dia seguinte, Gemma escreve no seu diário:

Ontem, durante o dia, o anjo da guarda prometeu-me que à tarde poderia falar com o coirmão Gabriel. Chegou então a tão suspirada tarde; antes de tudo, o sono queria vencer-me, depois fui dominada por uma tão grande agitação que me atemorizou. Mas, como Jesus estava perto para dar-me aquela consolação, agora, antes ou depois da consolação, sinto algumas dores. Seja sempre bendito.[18]

Gemma se demonstra ansiosa para receber o coirmão Gabriel e manifesta essa ansiedade com sentimentos como sono, grande agitação e certo temor. Tudo isso revela a ansiedade com que Gemma esperava o amigo santo, mas eram também sentimentos que antecediam o êxtase que estava por vir. Ela entra em êxtase, recebe a visita de Gabriel e descreve assim esse momento:

Acalmei-me bem depressa, senti logo o recolhimento e quase imediatamente sucedeu o êxtase, e me encontrei com o coirmão São Gabriel. Que consolação

foi aquela! Mas a obediência queria que me detivesse, sem me aproximar para beijar-lhe a veste. A primeira coisa foi perguntar-lhe por que havia ficado tanto tempo sem vir. Respondeu-me que é por minha culpa. Disto estou certa porque sou muito má.[19]

Não bastava o anjo corrigi-la e acusá-la de má, agora seu amigo santo também lhe mostra seu lado negativo. Porém, tudo era para que Gemma se aperfeiçoasse cada vez mais, afinal, ela estava na “escola da santidade”. Seus mestres eram muitos rigorosos, e, se eles lhe ocultassem as suas falhas, ela não progrediria na santidade.

Nesse dia, Gabriel lhe revelou a fundação do novo convento ionista, e Gemma registrou no seu diário as belas revelações, que para ela eram mais uma bênção de Deus:

Quantas coisas bonitas disse-me do convento, e me falava com tanto ardor que os seus olhos cintilavam. Por si mesmo, sem que eu o interrogasse: “Filha, entre poucos meses, com a exultação de quase todos os católicos, se realizará a inauguração do novo convento”. Como, entre poucos meses?, disse-lhe. Não faltam nem treze dias. “E são poucos”, completou.[20]

Depois, antes de partir, Gabriel rezou diante dela, conforme seu relato:

[...] Sorrindo, voltou-se a uma parte, ajoelhou-se, juntou as mãos e rezava assim: “Virgem bendita, veja: aqui na terra há uma emulação para a propagação do novo instituto; ouça-me, eu lhe peço, faça que aquelas que entrarem sejam repletas de copiosos dons e favores celestes. Conceda-lhes a fortaleza e também o zelo. Serão todos seus dons, ó Virgem bendita”.[21]

Gabriel pedia nessa oração pela santidade das monjas que entrariam nesse novo convento prestes a ser fundado. Depois desse encontro de Gemma com Gabriel, ela ficaria alguns dias sem vê-lo, mas no dia 21 de agosto, terça-feira, volta a aguardá-lo ansiosa: “Se não me engano, hoje receberei uma visitinha do coirmão Gabriel, e se acontecer, devo falar-lhe de muitas coisas. Jesus, ilumine, ilumine não a mim, mas ao padre Germano e ao confessor.[22] Gemma não diz se Gabriel apareceu ou não nesse dia, mas pede nas suas orações que Deus ilumine seu confessor e seu diretor espiritual para que autorizem a visita do santo. Porém, ela vai depois dizer que falou com Gabriel após alguns dias, numa sextafeira, ٢٤ de agosto, quando anota no seu diário um diálogo que teve com seu anjo, no qual menciona o desejo de falar com Gabriel. O anjo lhe pergunta:

“E se viesse coirmão Gabriel?” Seria o mesmo, respondi; mas ou Jesus ou ele, coirmão Gabriel, é preciso vê-lo; peça-lhe que me conceda esta graça: é-me necessária. Pode dizê-lo por mim? “Você mesma”, respondeu, “vá até Jesus e fale tudo, depois volte a falar-me”. Fez-me sinal que sim.[23]

E o anjo continua a dialogar, ou negociar, com Gemma sobre a vinda do seu amado Gabriel:

Há pouco me havia falado do coirmão Gabriel e, como sempre, ao ouvi-lo, melhor, só ao recordá-lo sinto-me toda feliz, não podendo senão exclamar: irmão Gabriel, quanto o espero, quanto o desejo! “E justamente por isto, porque tem este desejo tão forte, Jesus não quer contentá-la”. Então, rindo ensinou-me que, quando Jesus viesse, não me desse a conhecer que tenho a mania de ver coirmão Gabriel, pois assim lhe contentaria facilmente.[24]

Gemma sabia que o anjo estava brincando com ela e aguardou ansiosa a sua chegada. No dia 29 de agosto, quarta-feira, Gemma escreve uma longa carta ao coirmão Gabriel. Foi uma das últimas anotações sobre ele encontradas em seu diário. Escreveu ela:

Agora faço uma coisa: quero escrever um bilhete ao coirmão Gabriel depois do consentimento do anjo, e aguardarei a resposta. E isto será feito sem que Jesus o saiba; ele também me disse que não se dirá nada a Jesus. Escrevi uma carta bem longa, falei de todas as minhas coisas sem deixar nenhuma; depois avisei o anjo da guarda que estava pronta, e se a queria... Coloquei-a esta tarde, quarta-feira, sobre o lençol, e esta manhã, quando me levantei, não pensei em olhar, porque tinha em mente o melhor: estava com Jesus.[25]

A carta foi levada pelo anjo, e Gemma aguardou ansiosa a resposta, mas confortada, porque se sentia com Jesus, e quando ela estava com Jesus não precisava de mais nada.

Gabriel continuou sendo presença viva na vida de Gemma até seus últimos dias. Junto deles estava Nossa Senhora das Dores, a Mãe consoladora, na qual Gemma encontrava tanto amparo e tanta força, como veremos a seguir.

XII

Santa Gemma Galgani e os seus contatos com Nossa Senhora das Dores

Vimos no capítulo anterior a estreita relação de Gemma Galgani com São Gabriel da Virgem Dolorosa. Esse santo da Virgem, que na época ainda estava em processo de canonização, acentuou em Gemma a devoção a Nossa Senhora, que ela já tinha, mas que foi lapidada e desenvolvida a partir do contato com esse santo amigo, que lhe mostrou o verdadeiro caminho da devoção mariana.

Foi Gabriel quem levou Gemma a ter maior intimidade com Maria e, a partir dela, com Jesus. Assim, Gemma vai construindo um caminho que chega ao céu, fazendo tudo por Jesus, e nada sem Maria. Neste capítulo, falarei sobre os contatos e a intimidade que Gemma Galgani tinha com Nossa Senhora e também sobre como ela conquistou o coração da Mãe de Jesus, tornando-se sua filha dileta e, consequentemente, a filha amada de Jesus.

Para saber mais sobre a relação de Gemma com Nossa Senhora, recorro aos seus próprios escritos e anotações, a começar pelo seu Diário espiritual,[1] escrito a pedido de seu confessor, monsenhor Volpi. Esse foi, cronologicamente, o primeiro escrito oficial de Gemma, que teve início em 19 de julho de 1900, mas que, alguns meses depois, em 10 de setembro daquele ano, seu diretor espiritual, Pe. Germano Ruoppolo, achou por bem que ela interrompesse. Mais tarde, quando começa a escrever sua biografia, ele se arrepende da decisão tomada e reconhece o erro cometido, pois ali ele teria um rico acervo de informações sobre ela. Porém, ele só se deu conta desse erro quando começou a reunir materiais para escrever a biografia de Gemma Galgani, como ele mesmo diz em cartas[2] que escreveu à Sra. Cecília Giannini, pedindo que ela reunisse dados sobre Gemma, a quem ele chamou de “anjo que viverá pouco sobre a terra”. Mas essa é outra história. O que nos interessa neste capítulo é mostrar a relação que Gemma teve com Nossa Senhora, apontada nos seus escritos.

A primeira anotação de Gemma sobre Nossa Senhora data em seu Diário de 21 de julho de 1900, sábado. Sábado era o dia em que Nossa Senhora costumava aparecer, conforme escreve Gemma. Ou seja, mesmo sendo a primeira anotação dela, isso indica que Gemma já tivera outros contatos pessoais com Nossa Senhora. Assim escreve ela:

Hoje, sábado, 21 de julho, não conseguia de nenhum modo recolher-me. Mas assim que consegui ficar só, tentei rezar a coroa das dores; não sei a que ponto cheguei. A minha Santíssima Mãe Dolorosa fez-me uma visitinha (não me lembrava, porém, que era sábado, e neste dia ela costuma aparecer).[3]

Vemos, assim, que nesse dia Gemma recebeu a visita de Nossa Senhora. Mesmo sendo uma visita rápida, foi a visita da Mãe de Jesus, e não uma visita qualquer. Gemma descreve essa visita e o semblante de Nossa Senhora das Dores. Era, de acordo com ela, uma fisionomia de dor. Diz Gemma que Nossa Senhora lhe parecia triste, aflita, e como quem vai chorar:

Estava aflita; não sei, mas parecia chorar. Chamei-a mais vezes com o nome de mãe; não me respondia, mas quando ouvia dizer “mãe”, sorria; repeti várias vezes, enquanto pude, e ela sempre sorria; finalmente me disse: “Gemma, quer vir repousar um pouco sobre o meu seio?”. Fiz como se levantasse e ajoelheime, aproximando-me dela; ela também se levantou, beijou-me a fronte e desapareceu.[4]

O semblante de choro se dissipa ao ouvir Gemma chamá-la de Mãe. Aqui ela nos ensina que, se a tivermos como Mãe, ela se alegrará. Chamá-la de Mãe significa que devemos nos comportar como filhos e filhas, e Gemma se esforçava para fazer jus a esse nome: filha de Maria, filha de Nossa Senhora. Isso lhe conferia uma proximidade não apenas com Nossa Senhora, mas também com Jesus. Gemma fez com que a tristeza, a aflição de Nossa Senhora se dissie, transformando seu choro em riso. Gemma encontrou a palavra-chave para lhe dissipar a tristeza e a aflição de uma Mãe que sofre pelos seus filhos: o

nome “Mãe”. Esse nome é mágico, ele oculta, e ao mesmo tempo revela, uma relação indescritível que somente quem tem uma verdadeira Mãe sabe o que significa. Ao pronunciar essa palavra mágica, Gemma recebe o convite dela para repousar no seu seio, para se acalentar no seu colo, para estar nos braços da Mãe. Que conforto Gemma sente nessa hora. Ela se ajoelha diante de Nossa Senhora e por ela é beijada. A Mãe beija a filha amada na fronte, num gesto carinhoso de maternidade espiritual. Depois do beijo, ela desaparece, deixando no coração de Gemma a sensação indescritível de que é uma filha amada, mas também o sentimento de que essa Mãe se sente machucada com as desobediências de seus filhos. Gemma se sente uma filha deveras desobediente, fato que entristece Nossa Senhora, como vemos na anotação que ela faz a seguir no seu diário: “Estou de novo só, e segura de que minha Mãe me ama, mas é muito ofendida. Depois de todas estas coisas, sinto-me, sim, sempre aflita, mas muito resignada”. [5] O fato de se sentir desobediente afligia Gemma, mas ela resistia a essa situação e se esforçava para mudar e, assim, agradar Nossa Senhora, pois não queria vê-la ofendida.

No domingo, 22 de julho desse mesmo ano, depois de dizer ter sido espancada pelo diabo, Gemma termina a anotação no seu Diário dizendo: “O que me parece é que, em vez de ser boa e preparar-me para a visita de Nossa Senhora das Dores com o irmão Gabriel, por mais que me esforce, não me saio bem”. [6]

Vale lembrar também que nesse dia Gemma tinha se preparado para receber a visita de Nossa Senhora. Essa preparação era similar à preparação que fazemos na nossa casa quando estamos esperando visitas que nos são importantes: limpamos a casa; preparamos o melhor quarto; preparamos a melhor comida; colocamos a melhor roupa; cuidamos da casa e de nós. Enfim, começamos a ficar felizes desde o momento em que ficamos sabendo que as pessoas queridas virão nos visitar. Gemma Galgani também faz essa varredura e essa preparação interior para receber Nossa Senhora. Porque ela lhe fazia tão bem, Gemma queria oferecer o melhor de si e não se conformava por ainda cometer faltas, por menores que fossem. E Gemma sabia também que Nossa Senhora lhe exigia perfeição, como vemos em outra anotação de seu Diário, registrada uma semana

depois. No dia 28 de julho, sábado, dia em que Nossa Senhora costumava visitála, o anjo antecede essa ilustre visita e oesta Gemma, conforme ela anota no seu diário:

Quase à tarde, fui aos Quinze Sábados em Santa Maria; Nossa Senhora me disse que não me havia feito a costumeira visita porque nos dias ados eu havia desgostado Jesus. Disse-lhe que Jesus me havia perdoado, mas ela: “Eu não perdoo tão facilmente as minhas filhas; quero ardentemente que te tornes perfeita: quem sabe no sábado poderei vir com o coirmão Gabriel”; nem sequer me abençoou, e eu me resignei.[7]

Aqui Gemma mostra que Nossa Senhora vem visitá-la com o propósito de corrigi-la. É uma Mãe que ama e que por isso corrige seus filhos. Mãe que não corrige o filho quando erra, não educa. Nossa Senhora estava educando Gemma na fé e no caminho do céu, e Gemma, apesar de sofrer com isso, sabia que era para o seu bem. Na verdade, era uma correção materna, por mais dura que pudesse parecer. Mesmo que ela já tivesse sido perdoada por Jesus, a Mãe sabe que ela ainda precisa se corrigir, por isso diz não perdoá-la. Nossa Senhora sabia também o quanto Gemma era tentada pelo diabo e, por isso, buscava ajudá-la. No final das anotações desse dia, Gemma escreve que, depois que Nossa Senhora se foi, veio o diabo e zombou da sua cara, dizendo que ela não era santa coisa nenhuma e que o que ela escrevia era obra sua, e não de Deus. Gemma fica muito confusa e termina a sua anotação da seguinte maneira: “ei tão mal que no desespero jurei que, quando me encontrasse com a senhora Cecília, destruiria aquele escrito. Entretanto, tentei rasgar, mas não o consegui; não tive força, ou simplesmente não sei onde está”. [8]

Depois desse episódio, Gemma continua se sentindo mal. Na terça-feira, 31 de julho, ela registra no seu Diário a falta que sente de Nossa Senhora, mas acredita não ser digna da sua visita. Nesse dia, o próprio Jesus, após ela receber a comunhão, a questiona sobre a sua dignidade. Assim escreve Gemma:

[...] Corro para fazer a santíssima comunhão, mas em que estado! Prometi a Jesus ser boa e mudar de vida; disse-lhe, mas ele não me respondeu nada; disselhe também que me mande a sua Mãe e também minha, e respondeu-me: “É digna?”. Fiquei envergonhada e calei-me.[9]

No final das anotações desse dia, Gemma constata: “Que grande necessidade sinto da minha Mãe! Se Jesus quisesse me contentar, depois eu seria melhor. O que devo fazer estando tanto tempo sem a Mãe?”.[10] Gemma ama tanto Nossa Senhora que já não consegue mais viver sem ela. Por ela Gemma estava disposta a mudar, a ser ainda melhor. Desse modo, Nossa Senhora a ajuda no caminho da perfeição.

É sábado novamente, dia ٤ de agosto, o grande dia. Sábado é sempre um grande dia para Gemma, porque é dia de receber a visita de Nossa Senhora, mas ela não tem tanta certeza de que a Mãe vem. Gemma começa as anotações do seu Diário nesse sábado questionando: “Chegou o sábado: dia a mim destinado para ver a minha Mãe, mas que devo esperar?”. [11]

Sentindo-se ainda indigna de tão nobre visita, Gemma chega a duvidar de que Nossa Senhora voltará. Mesmo assim, ela se põe a rezar: “Ponho-me a rezar a coroa das dores; primeiro estava abandonada, quero dizer, conforme a vontade de Deus, ar também este sábado sem ver a Mãe Dolorosa”.[12] Ela está quase conformada em não receber a visita de Nossa Senhora nesse sábado, mas continua a rezar a coroa das dores. Durante a oração, entra em êxtase, e no êxtase eis que aparece a Virgem: “Não sei a que ponto da coroa senti recolherme interiormente; ao recolhimento, como sempre, sucedeu logo o êxtase, e sem perceber encontrei-me diante (a mim parece) da Mãe Dolorosa”.[13] Gemma diz que sentiu medo ao vê-la. Qual a razão do medo? A insegurança. Seria mesmo Nossa Senhora? Poderia ser o diabo travestido, pois o inimigo já lhe tinha pregado tantas peças e usado de tantos subterfúgios para enganá-la que ela agora

desconfiava de tudo e de todos. Essa desconfiança de Gemma serve de alerta, pois o diabo, para enganar, pode vir travestido das mais singelas formas, até mesmo com a aparência de uma divindade, anjo ou santo. Ele fez isso com ela quando se ou pelo seu anjo da guarda, e Gemma agora sente certa desconfiança até mesmo diante das aparições e manifestações de Nossa Senhora.

Assim escreve Gemma: “Primeiro, ao vê-la, causou-me um pouco de medo; fiz de tudo para me assegurar se era verdadeiramente a Mãe de Jesus: deu-me sinal para me orientar”.[14] Nossa Senhora tinha a senha para se identificar. Esse sinal dado a Gemma dissipou seus medos e a fez assegurar-se de que de fato era mesmo a Virgem Mãe que ali se encontrava. Essa certeza lhe causou muita alegria, pois essa visita era muito esperada. Gemma escreve: “Depois de um momento, fiquei toda contente; mas foi tanta a comoção que me senti muito pequena diante dela, e tanto o contentamento que não pude pronunciar palavra, senão dizer, repetidamente, o nome de ‘Mãe’”.[15] A alegria que Gemma sente ao ter a certeza de que quem estava diante dela era, de fato, Nossa Senhora é quase indescritível. Gemma fica emocionada e um tanto quanto eufórica, e descreve a reação de Nossa Senhora ao vê-la nesse estado:

Ela me olhava firmemente, sorria, aproximou-se para me acariciar e pedia que me acalmasse. Mas sim, o contentamento e a comoção cresciam, e ela, temendo que me fizesse mal (como outras vezes me aconteceu; uma das vezes, sem que eu notasse, pela grande consolação que experimentei ao ver Jesus, o coração começou a bater com tanta força que fui obrigada, por ordem do confessor, a colocar no lugar uma faixa bem apertada), deixou-me, dizendo que fosse repousar. Obedeci prontamente: num segundo fui para o leito, e ela não tardou a vir; então sosseguei.[16]

Gemma descreve a emoção desse encontro e os sentimentos que se apoderam dela quando ela está diante de Nossa Senhora. Na sequência do relato, Gemma escreve: “Agora é necessário dizer que, à primeira vista, estas coisas, estas figuras (que certamente poderiam enganar-me), inicialmente me causam medo; ao medo sucede logo a alegria. De qualquer modo que isto seja, é assim que

experimento”.[17] Depois que retorna Nossa Senhora, Gemma, já mais calma, dialoga com ela:

Falei-lhe de algumas coisas minhas, a principal, porém, foi que me levasse com ela ao paraíso; isso eu lhe falei muitas vezes. Respondeu-me: “Filha, deve agora sofrer”. Sofrerei lá em cima, quero dizer, “no paraíso”. “Não” respondeu, “no paraíso não se sofre mais; mas logo a levarei”, dizia-me.[18]

Gemma insiste que quer ir para o paraíso com ela, mesmo que fosse para continuar sofrendo lá, e recebe como resposta que não era ainda sua hora e que não há sofrimento no paraíso. O sofrimento é somente neste mundo, e Gemma deveria ainda sofrer antes de ir para o céu. Aqui podemos entender que o sofrimento neste mundo é uma purificação para o gozo eterno. Isso confirma aquilo que a teologia cristã, católica, sempre apregoou: sofrer neste mundo para rejubilar-se no mundo futuro. Essa é uma forma de encorajamento para enfrentar as lutas diárias deste mundo e não desanimar diante da dor e do sofrimento. Nesse dia, Gemma fica sabendo que os seus dias serão curtos neste mundo, pois Nossa Senhora lhe diz: “mas logo a levarei”. Gemma não se assusta com a proximidade da morte, pelo contrário, se alegra, pois assim poderá estar definitivamente com Nossa Senhora, com o coirmão Gabriel e, sobretudo, com Jesus. Ela nasceu e viveu para estar com Jesus.

Gemma continua a dialogar com Nossa Senhora como se estivesse dialogando com uma pessoa amiga, seu confessor ou o seu diretor espiritual, ou qualquer outra pessoa física que ela pudesse olhar nos olhos, abraçar e com quem pudesse falar de igual para igual. Era essa a relação que ela tinha com os seres sobrenaturais, inclusive com Nossa Senhora. Nessa conversa, aproveitando a proximidade dela em seu leito, Gemma reconhece a sua beleza, uma beleza que foge aos padrões humanos, que vem da alma, e recomenda a ela os pecadores, pois Nossa Senhora tem o poder de interceder por eles. Gemma escreve assim no seu Diário:

Estava perto do leito, era tão bela que não podia saciar-me em contemplá-la. Recomendei-lhe o meu pecador; então sorriu: foi bom sinal... Recomendei-lhe então várias pessoas a mim tão caras, particularmente aquelas às quais tenho um grande dever de reconhecimento. E isso o faço agora, por ordem do confessor, que a última vez me pediu que o recomendasse com insistência a Nossa Senhora das Dores, dizendo-me que eu não posso fazer nada por estes, mas a Mãe suplica por mim que lhes conceda toda graça.[19]

Gemma tinha um pecador em especial, para o qual dedicava as suas orações e recomendações. Ao estar com Nossa Senhora, é dele que ela se lembra primeiro. Ela não revela quem era esse pecador, mas sempre rezava por ele. Rezava também pelas pessoas caras da sua vida, as que a tinham de alguma forma ajudado. Mostra-nos, com isso, quão importante é rezar pelos outros e o poder da oração de intercessão. Se Gemma já intercedia pelos seus quando ainda estava neste mundo, quanto mais agora, estando no paraíso. Por isso eu digo: não tenham medo, receio ou insegurança de pedir-lhe a intercessão. Ela entende perfeitamente o que isso significa e fará de tudo para levar até Nossa Senhora e até Jesus o seu pedido.

Enquanto estava com Nossa Senhora, Gemma queria eternizar esse momento, e temia que ela a deixasse de súbito. Sobre isso, escreveu: “Temia que de um momento para outro me deixasse, e por isso a chamei várias vezes, e dizia que me levasse consigo”.[20] A presença de Nossa Senhora lhe era tão importante, tão relevante, que nesses momentos Gemma não se lembrava de mais nada nem de ninguém. Queria viver plenamente aquela presença singular. Com Nossa Senhora, ela era capaz de esquecer até do amado coirmão Gabriel, como ela mesma diz:

A sua presença me fez esquecer o meu protetor coirmão Gabriel. Perguntou-me por ele, como jamais havia feito; disse-me: “Porque o coirmão Gabriel exige-lhe a mais exata obediência”. Tinha que me dizer uma coisa para o padre Germano; a esta última palavra não me respondeu.[21]

A conversa chegava ao fim, e era hora de Nossa Senhora deixá-la. Essa despedida, mesmo que momentânea, era dolorosa, um sacrifício para Gemma, que queria estar o tempo todo com a Mãe do céu. Assim ela descreve esse momento: “Enquanto juntas conversávamos, e me tinha sempre pela mão, deixou-me; eu não queria que fosse, estava quase chorando, e então me disse: ‘Minha filha, agora basta; Jesus pede-lhe este sacrifício, por hora convém que a deixe’”. [22]

Momentos como esses eram para Gemma um prenúncio do paraíso. Mesmo sendo doloroso o seu término, e ela tivesse que voltar à realidade, a realidade depois disso era mais leve e repleta de paz, como ela mesma vai dizer em seguida: “A sua palavra deixou-me em paz; repousei tranquilamente: Pois bem, o sacrifício foi feito. Deixou-me”.[23] Depois que Nossa Senhora sai da sua presença, Gemma revive aqueles momentos, recordando a sua beleza. Todas as pessoas que tiveram a graça de ver Nossa Senhora, todos os videntes, são unânimes em descrever a sua beleza. Com Gemma Galgani não foi diferente. Ela dizia: “Quem poderia descrever pormenorizadamente quão bela, quão querida é a Mãe celeste? Não, certamente não existe comparação. Quando terei a felicidade de vê-la novamente?”. [24]

No sábado, 11 de agosto, Gemma espera mais uma vez pela visita de Nossa Senhora, como faz todos os sábados. Mas dessa vez ela não vem, e Gemma logo imagina que a sua ausência deve-se ao seu pecado, mais especificamente um pecado que ela havia cometido no dia anterior, sexta-feira. Tudo indica que era o suposto pecado de ter perguntado ao anjo o porquê de sua ausência quando a Sra. Cecília estava presente. O anjo lhe esclareceu que, quando Cecília estava com ela, Gemma não precisava da sua presença, porque ela já lhe era uma espécie de anjo protetor. Gemma se sente incomodada com isso e confessa esse sentimento ao seu confessor. Porém, apesar da confissão, ela acredita que Nossa Senhora não lhe tinha perdoado esse pecado, e por isso não viria nesse sábado. Nossa Senhora queria a perfeição de Gemma e estava tentando corrigi-la, privando-a da

sua presença nesse dia. Assim Gemma relata em seu Diário:

É sábado; vou fazer a santíssima comunhão. Que farei? De qualquer modo, obedeço. Se pudesse conseguir uma visita da minha Mãe! Mas não, lembro-me do pecado cometido ontem à tarde. É verdade que esta manhã fui logo confessarme, mas a Mãe particularmente não me perdoa tão facilmente. Deseja-me perfeita.[25]

O sábado vai chegando ao fim, e nada de Nossa Senhora aparecer. Ela se sente punida, castigada pela Mãe, e escreve: “Sábado à tarde; Deus meu! Que castigo! É o maior castigo que me possa dar, privar-me da visita de Maria Santíssima, é justamente perto do sábado que caio em tantas faltas”.[26] Gemma já havia dito em anotações anteriores no seu Diário que sexta-feira era o dia em que ela estava mais propensa ao pecado, e quando pecava se via privada da presença daqueles a quem mais amava. Isso a deixava muito para baixo, com certa aridez de espírito, como diz na anotação seguinte: “Véspera de domingo. Que moleza, que aridez! Mas não vou deixar minhas orações”.[27] Mesmo nesse estado de espírito, Gemma não deixa a oração, que é o seu combustível, a sua força. Deixá-la seria sucumbir ao pecado e abrir as portas para a ação do diabo.

Nossa Senhora volta a manifestar-se a ela num dia excepcional, uma quartafeira, não um sábado, como costumava ocorrer. Mas não era uma quarta-feira qualquer: era 15 de agosto, dia da sua Assunção. Nesse dia, Gemma já tinha recebido a presença de madre Teresa, que havia adentrado no céu e voltava para agradecer as orações de Gemma. Era, portanto, um dia especial, de contatos sobrenaturais. Gemma assim relata o encontro com Nossa Senhora, por volta das 11h daquela quarta-feira:

[...] A partir deste momento sofri até perto das 11h, a ponto de não poder estar só [...]. Finalmente, tive a suspirada permissão e fui ter com minha Mãe, mas por breves momentos – porém, momentos preciosos! Devido ao meu mau comportamento, Jesus não permitiu que Nossa Senhora viesse como sempre,

sorridente, mas, ao contrário, muito triste (por minha causa). Censurou-me um pouco, mas também se alegrou de uma coisa (que bem acredito não haver notado), e essa coisa deu tanta consolação a Jesus! E Nossa Senhora veio, justamente, para me premiar da mesma; e como eu disse, séria; disse-me algumas palavras, entre as quais estas: “Filha, quando eu for para o céu, esta manhã, levarei comigo o seu coração”.[28]

Gemma não poderia receber prêmio maior: ter o seu coração levado para o céu com Nossa Senhora. Isso significava que ela já teria uma parte dela no céu, ainda em vida. Valeu-lhe a pena esperar! Mesmo com o rosto triste, Nossa Senhora lhe proporcionou uma de suas maiores alegrias. Gemma descreve esse momento da seguinte maneira:

Nesse momento pareceu-me que se aproximasse... Tirou-me, tomou-o consigo, em suas mãos, e disse-me: “Não tema nada, seja boa; eu terei o seu coração sempre lá em cima comigo, e nestas minhas mãos”. Abençoou-me com pressa e, ao sair, pronunciou estas palavras: “Deu-me o coração, mas Jesus quer agora uma outra coisa”. “Que coisa?”, perguntei-lhe. “A vontade”, respondeu-me, e desapareceu.[29]

Tendo como exemplo Nossa Senhora, Gemma ia aos poucos sendo assunta ao céu. Nesse dia, ainda em vida, seu coração foi levado por Nossa Senhora, que lhe prometeu tê-lo junto dela, em suas mãos, e lhe disse que Jesus queria mais, queria também a sua vontade. Ou seja, ele queria que Gemma estivesse toda voltada para o céu, de corpo e alma. Podemos dizer que, a partir desse dia, 15 de agosto de 1900, festa da Assunção de Nossa Senhora, Gemma começou a ser elevada ao céu de um modo mais concreto e evidente. Ela conclui dizendo: “Encontrei-me por terra, mas sei muito bem quando isto acontece: quando faz sinal de aproximar-se e levar meu coração. Ainda que no princípio, quando estas coisas aparecem, causem-me medo, no final terminam sempre em infinitas consolações”.[30] Gemma sentiu-se infinitamente consolada com as visitas espirituais desse dia, que lhe foi memorável.

No sábado, 25 de agosto, em vez de receber primeiro a visita de Nossa Senhora, infelizmente Gemma recebe uma visita inesperada, a do diabo, que vem disfarçado do seu anjo da guarda e, depois de seduzi-la, a agride violentamente. Ela só percebe que está apanhando do diabo, e não do seu anjo da guarda, quando o seu verdadeiro anjo aparece. Durante a surra, ela clama por Jesus e pela Mãe, mas nada de resposta. Falarei sobre esse episódio mais adiante, quando descreverei as sucessivas peleias de Gemma com o diabo. Porém, ao falar sobre o episódio macabro desse dia, Gemma vai relatar também que Nossa Senhora a visitara no dia anterior.

A minha caríssima Mãe veio ontem à tarde, e foi muito breve a sua visita; mas me consolou muito. Pedi-lhe, mais que pude, que rogasse por mim, que me conduzisse ao paraíso; pelos outros também rezei fervorosamente. Como sorria para mim, quando repetidamente a chamava mamãe! Aproximou-se e acaricioume em companhia do anjo da guarda, que se manteve afável e alegre até pela manhã.[31]

Apesar do susto com o diabo, ela encerra o relato desse dia com essa alegre anotação da presença de Nossa Senhora, que tanto a confortava. A última anotação de Gemma em seu Diário sobre a aparição de Nossa Senhora data do dia 1° de setembro, também um sábado. Nesse dia, com filial confiança, Gemma manifesta à Mãe o quanto ama Jesus. Antes, porém, relata que foi surpreendida por ela, que a acordou logo cedo: “Esta manhã, por conta de si mesma me acordou, e me disse que hoje terei resposta. ‘De que modo?’, perguntei. ‘Verá’, disse-me rindo”.[32] Depois, Gemma continua o relato dessa boa e surpreendente visita, dizendo:

Quem jamais teria imaginado que a minha cara Mãe viesse ver-me? Nem eu imaginava, pois acreditava que a minha conduta não o permitia; entretanto, teve compaixão de mim, e logo senti um recolhimento interior; interiormente, aconteceu como muitas vezes, fiquei fora de mim mesma. Encontrei-me (pareceme) com Nossa Senhora das Dores. Que felicidade esses momentos! Como é bom poder proferir o nome “mãe”! Que doçura senti no coração nesses instantes!

Explique quem o puder. Após algum momento de comoção, pareceu que me recolhia no colo e me fazia pousar a cabeça sobre o ombro, onde eu permaneci por um pouco de tempo. O meu coração, nesse momento, ficou contente, repleto de felicidade. Nada mais se poderia desejar.[33]

Esse encontro com Nossa Senhora se dá num momento de êxtase de Gemma, como acontece muitas outras vezes, mas ela consegue registrar tudo. Seus sentimentos ficam gravados em sua memória, sobretudo a felicidade e a gratidão por poder vê-la e chamá-la de Mãe. Eram doces esses momentos, mas eram sentimentos inexplicáveis, nenhuma palavra seria capaz de expressar com exatidão o que ela estava sentindo.

Nesse último encontro registrado em seu Diário, Gemma tem um diálogo mais longo com Nossa Senhora, diferente dos demais. Ela parece mais descontraída, e até faz uma brincadeira com a Mãe, como podemos conferir neste relato seguinte, quando Nossa Senhora lhe pergunta se Gemma amava somente a ela:

“Ama somente a mim?”, perguntava-me de quando em quando. “Oh, não!” Respondia-lhe: “Antes de você, amo outra pessoa”. “E quem é?”, fingindo não saber, perguntou-me. “É uma pessoa para mim muito cara, mais do que qualquer outra; amo-a tanto que daria a vida por ela neste instante; por ela não temo entregar o meu corpo”. “Mas, diga-me, quem é?”, perguntou-me impaciente. “Se tivesse vindo ontem à tarde, poderia tê-la visto comigo. Veja, porém, vem tão raramente até mim, enquanto eu vou diariamente ao seu encontro, e mais vezes iria se fosse possível. Mas sabe, minha Mãe”, repeti, “por que faz assim? Por que quer ver se, estando distante, sou capaz de esquecê-lo? Ao contrário, quanto mais distante, sinto-me mais arrebatada por ele”. Repetiu-me: “Diga-me quem é”. “Não, não lhe digo.” Acrescentei: “Veja, minha Mãe, assemelha-se à senhora pela beleza, os cabelos têm a cor dos seus”. E a minha Mãe parecia que, acariciando-me, disse: “Mas, filha minha, de quem está falando?”. Exclamei forte: “Não me entende? Falo de Jesus. De Jesus”, repeti mais forte. Olhou-me sorrindo e me abraçou fortemente: “Ame-o, pois, ame-o tanto, mas ame somente ele”. “Não tema”, disse-lhe, “ninguém no mundo poderá sentir meus afetos, só

Jesus”.[34]

Depois desse longo diálogo com Nossa Senhora, Gemma desperta do êxtase e constata que está deitada no chão, abraçada ao crucifixo: “Novamente me abraçou, parece-me que me beijou na testa, e me acordei encontrando-me estendida por terra, com o crucifixo”.[35] E continua seu relato dizendo que tudo aquilo não podia ser real, que deveria ser fruto da sua imaginação. Ela mesma não acredita naquilo que vive nos seus êxtases, e conclui a anotação desse dia com a seguinte afirmação:

Repito novamente: quem lê, não acredite nestas coisas, porque são todas minha imaginação; de boa vontade me submeto a descrever tudo por obediência, entretanto, desejaria não o fazer. Gostaria que cessasse, dia por dia, a repugnância que sinto em escrever certas coisas, porém se tornam sempre maiores: é um sofrimento tão grande a ponto de não se poder resistir e quase morrer.[36]

Três dias depois, a pedido de seu diretor espiritual, Gemma deixa de fazer as anotações no seu diário. Disse ter escrito somente por obediência ao seu confessor, e não por prazer, porque não gostava de falar sobre essas coisas tão íntimas de sua vida espiritual. Escrever um diário tinha sido para ela um grande sofrimento. Esse foi o último relato dela sobre seus contatos com Nossa Senhora. Porém, o sofrimento de escrever sobre sua vida espiritual não tinha terminado. Algo ainda mais desafiador estava por vir: seu diretor espiritual, Pe. Germano Ruoppolo, iria lhe pedir que escrevesse sobre os seus pecados, numa espécie de confissão geral, o que a deixou um pouco desorientada, pois ela não esperava por isso. Depois de ter se arrependido de pedir-lhe que interrompesse as anotações do Diário, Pe. Germano lhe propõe que escreva sua Autobiografia, dando destaque às suas fraquezas espirituais. Se escrever sobre suas experiências espirituais com São Gabriel, o anjo, Nossa Senhora e Jesus, e até com o diabo, já lhe era difícil, imagine agora escrever sobre algo ainda mais íntimo, os seus pecados. Essa era uma das provas de obediência mais contundentes que Gemma daria. A esse escrito ela daria o nome de O caderno dos meus pecados, e ele se

tornaria um dos escritos mais célebres de Santa Gemma, não pelo tamanho do volume, porque é, na verdade, um pequeno caderno, de poucas páginas, mas pela densidade de seu conteúdo e pelo fato de ser o caderno que o diabo pretendia destruir, queimando-o, conforme já foi referido. Além disso, isso foi algo que lhe custou muito sofrimento, pois, como foi dito, Gemma não gostava de registrar ou expor seus sentimentos e sua vida. Nesse caderno com sua autobiografia, estranhamente, não encontramos praticamente nenhuma referência direta a Nossa Senhora, nem mesmo aquela em que Gemma escreve sobre a ausência de Nossa Senhora num sábado, devido a um suposto pecado cometido.

Gemma começa essa empreitada de escrever sua autobiografia em 17 de fevereiro de 1901, e para isso pede a ajuda de seu anjo da guarda. Foram apenas três meses, mas de profunda dedicação. Ela conclui os relatos autobiográficos em 15 de maio de 1901. Depois de sua morte, esses escritos autobiográficos, chamados de O caderno dos meus pecados, ou simplesmente Autobiografia, alcançaram notoriedade, sobretudo por conta das circunstâncias extraordinárias e misteriosas de sua composição e, posteriormente, de sua subtração e devolução. Refiro-me ao misterioso desaparecimento desse manuscrito da gaveta da escrivaninha onde ficava trancado à chave, pois Gemma temia que alguém além de seu diretor espiritual o lesse. Não sabemos qual a razão, mas o diabo pretendia destruir esse manuscrito. Tratarei desse episódio no momento em que falar das tentações de Gemma pelo diabo.

De volta ao tema de Nossa Senhora, Gemma Galgani tornaria a falar da Mãe de Jesus em suas cartas, que foram muitas. Essas cartas formam a parte mais importante de um acervo de textos místicos de Santa Gemma Galgani. Foram 131 cartas ao seu diretor espiritual, Pe. Germano Ruoppolo, ou Pe. Germano de Santo Estanislau; 67 cartas ao seu confessor, monsenhor João Volpi; e 35 cartas a pessoas diversas, entre elas pessoas amigas, como sua mãe adotiva, a Sra. Cecília Giannini, a madre Maria Josefa do Sagrado Coração e sua amiga Anita Giannini. Nessas 233 cartas, Gemma fala muitas vezes de Nossa Senhora. Trago aqui apenas uma referência, mas elas são diversas. Nessa carta, direcionada ao seu diretor espiritual, Pe. Germano, Gemma escreve: “Se eu recebo algum conselho, é Maria Santíssima Dolorosa quem me dá. Ela não deixa de vir me convidar a rezar todos os sábados, e ontem à tarde não veio só, mas com o

coirmão Gabriel, e por eles mandei dizer a Jesus o quanto eu o queria [...].”[37] O que Gemma coloca em sua carta está também no seu diário, pois vimos que sábado era o dia em que ela recebia a visita de Nossa Senhora. Nessas visitas, ela era aconselhada pela Mãe e acentuava sua vida de oração.

Em outras cartas, Gemma voltará a falar de Nossa Senhora ao seu diretor espiritual com a mesma ênfase e com a convicção de que, sem ela, sua vida espiritual não seria a mesma. Nas cartas a ele escritas no mês de maio, Gemma fala com mais convicção ainda da importância de Nossa Senhora em sua vida e da sua presença fundamental, que faz com que ela se sinta cada vez mais confortada e amparada. Essas são, portanto, algumas das manifestações de Nossa Senhora na vida de Gemma Galgani. Nossa Senhora abria caminhos para que ela tivesse o ao seu Filho Jesus, como nós veremos no capítulo seguinte, no qual selecionei os momentos em que Gemma teve contato direto com Jesus, com ou sem mediadores, e ele lhe falou do seu caminho para o céu.

XIII

As experiências de Santa Gemma Galgani com Jesus

Vimos até aqui que Gemma Galgani teve diversos contatos sobrenaturais, com seu anjo da guarda, com São Gabriel da Virgem Dolorosa, que ela chamava de coirmão Gabriel, tamanha era sua intimidade com ele, e com Nossa Senhora, que se manifestava na vida de Gemma como uma verdadeira Mãe. Além deles, Gemma teve contato com outras tantas entidades espirituais e realidades místicas, mas nenhuma se compara aos contatos, ou experiências, que teve com Jesus.

São poucos os santos ou místicos que tiveram o privilégio de ter contato pessoal com Jesus, de vê-lo face a face, sem ter ado antes pela morte. Santa Gemma Galgani teve esse privilégio, e isso a coloca em destaque no panteão dos santos, sobretudo por ser a primeira santa do século XX com essas características. Depois dela viriam outros, como Santa Faustina e Pe. Pio, mas Santa Gemma Galgani inaugurou nesse século uma modalidade de santidade que ava diretamente o céu, por ela chamado de paraíso.

Assim, neste capítulo, busco resgatar alguns dos inúmeros encontros pessoais que Gemma Galgani teve com Jesus, os quais eu classifico como “experiência de Gemma Galgani com Jesus”. Em cada um desses contatos, Gemma viveu momentos indescritíveis, embora tenha se esforçado para descrevê-los, mesmo contra a sua vontade. Porém, suas experiências nem sempre eram íveis de registros em sua totalidade, pois é impossível apreender todo o mistério divino, e Deus se deixa revelar apenas alguns aspectos. Mas Gemma tentou e, naquilo que lhe foi possível, deixou-nos um legado de experiências místicas que muito enriquece a nossa fé e fortalece a vida espiritual de seus devotos. Aqui vou transcrever experiências que Gemma registrou em diversos momentos de sua vida, mas, sobretudo, na fase de elaboração do seu Diário espiritual. Desse modo, priorizo aqui, como fonte básica dos seus encontros com Jesus, o seu Diário. Além dessa fonte, a sua Autobiografia também traz alguns relatos contundentes, e um deles eu reproduzo no final deste capítulo. As cartas que ela

escreveu a diversas pessoas também falam dessa experiência, mas não as citarei aqui. Além dessas fontes, há outros escritos, ou falas de Santa Gemma em que foram apontadas as manifestações de Jesus, sobretudo em conversas com o seu diretor espiritual, Pe. Germano de Santo Estanislau.

Desde pequena, Gemma amou profundamente Jesus e fazia tudo por ele. Ao escrever a sua biografia, Pe. Germano resgata muitos desses momentos, ouvidos diretamente dela, que mostram que Jesus era a sua meta principal, embora, para alcançá-la, Gemma precisasse de outras pessoas santas que a levassem nos seus ombros e de outros seres espirituais, como: o seu anjo da guarda, que não descuidava dela em nenhum momento; o Venerável Gabriel, que Gemma tinha como um irmão na fé, tamanha era a sua identificação com ele; e Maria, a Mãe de Jesus, que, como vimos antes, foi de fato uma verdadeira Mãe para Gemma Galgani. Todos eles foram meios para alcançar determinado fim, e esse fim era Jesus. Assim, vemos que Gemma conheceu pessoalmente Jesus antes mesmo de adentrar no céu.

O primeiro registro de Gemma no Diário é um relato de um encontro com Jesus crucificado, estando em êxtase. Ela vive nesse dia uma experiência da paixão, com Jesus, ou com o Jesus da paixão. Antes de descrever como se deu esse encontro, ou primeiro registro – vale destacar que esse não foi o primeiro encontro dela com Jesus, pois tudo indica que tenha havido outros antes, embora esse tenha sido o primeiro registrado no seu Diário –, ela descreve como está se sentindo nesse dia:

Esta tarde, finalmente, após seis dias de sofrimento pela falta de Jesus, estou um pouco recolhida. Comecei a rezar, como costumo fazer às quintas-feiras; gostaria de estar ajoelhada, mas a obediência queria que eu estivesse no leito e assim fiz; pus-me a pensar na crucifixão de Jesus. Inicialmente não sentia nada, depois de alguns minutos me senti um pouco recolhida.[1]

Pelo que Gemma descreve, ela tinha recebido a última visita dele seis dias antes.

Não sabemos se Gemma se referia ao encontro com ele na comunhão ou a um encontro físico, pessoal, mas, ao que tudo indica, ela já tinha tido um encontro pessoal com Jesus, como o que se deu nessa quinta-feira, 19 de julho. Esses encontros com Jesus eram sempre precedidos de um momento de oração, e nesse dia não foi diferente. Gemma descreve que está em oração, e até diz como deveria estar em oração, apontando que preferia rezar ajoelhada, mas que nesse dia alguém lhe havia pedido para que rezasse deitada. Essa posição favorece o relaxamento e, consequentemente, uma meditação mais profunda, ou seja, é uma forma eficaz para entrar em êxtase. Uma pessoa comum dormiria ao rezar nessa posição, porém Gemma, em vez de dormir, entra em êxtase, como vemos na sequência desse relato. O conteúdo dessa oração de meditação é a crucifixão de Jesus. Gemma mergulhava tão profundamente no tema que sentia na sua própria carne as dores do Crucificado. Porém, nesse dia, foi diferente. Gemma dizia que no início da oração não sentia nada, mas isso não foi motivo para ela desanimar. Mesmo quando a oração lhe parecia árida, ela não desistia e persistia. A perseverança na oração fazia com que ela, aos poucos, mudasse os seus sentimentos e se conectasse com Deus, e se conectasse de modo tão elevado que aquilo que parecia distante se apresentasse diante dela, de forma tão real que ela podia, além de ver, ouvir, sentir e tocar. Assim, sem que percebesse, ela foi entrando no clima da oração, se recolhendo de fato, mergulhando de corpo e alma nas profundezas de uma atitude orante. Desse modo, somente ao se encontrar nesse estado é que ela percebeu que Jesus estava ali por perto, como vemos na continuação do seu relato: “Jesus estava perto. Ao recolhimento me aconteceu como de outras vezes: entrei em êxtase e me encontrei com Jesus, que sofreu penas terríveis”.[2] Na profundidade da oração, no estado de êxtase, Gemma se encontra com Jesus sofredor. Vemos, portanto, que o encontro definitivo com ele se dá somente quando ela está em êxtase. Aqui trago novamente aquele questionamento feito antes: seria a presença de Jesus que a colocava em êxtase, ou seria o seu estado de êxtase que fazia com que ela visse Jesus presente? Pelo seu relato, ela o vê por perto antes de entrar em êxtase, mas o êxtase favorece a presença de Jesus. Não há como responder categoricamente, mas ao que as narrações indicam, o êxtase pode ser o resultado da emoção de vêlo. O êxtase pode, ainda, ser uma espécie de transe, e o transe possibilita que a pessoa incorpore desde divindades até o seu contrário. Não há estudos suficientes, nesse caso, para confirmar isso, mas autoridades religiosas descartam que os êxtases de Gemma Galgani fossem simplesmente um estado de transe.

Porém, ela só vai poder dialogar com Jesus, como dialogam duas pessoas comuns, quando ela está em êxtase. Em êxtase, ela não apenas assiste-o em suas dores, mas quer senti-las, quer participar delas como uma forma de amalgamar sua vida com a dele, e, de fato, ela participa. Assim, Gemma vai dizer ao vê-lo sofrer:

O que fazer vendo Jesus sofrer e não ajudá-lo? Senti, então, um grande desejo de sofrer e pedi a Jesus conceder-me essa graça. Contentou-me logo, e fez como fizera em outras vezes: aproximou-se, tirou de sua cabeça a coroa de espinhos, colocou-a na minha, depois me deixou.[3]

A proximidade de Gemma com Jesus é tanta que ela o toca e dele recebe a sua coroa. Não havia sentimento mais divino e profundo para Gemma do que este, sentir em si as dores de Jesus:

Via, pois, que eu o olhava calada, entendeu logo um pensamento que me ocorreu naquele momento; pensei: Talvez Jesus não me ame mais, porque, quando quer demonstrar o seu amor, aperta bem a coroa em minha cabeça. Jesus entendeu e com suas mãos apertou-a. São momentos dolorosos, mas momentos felizes. E assim me entretive uma hora a sofrer com Jesus.[4]

É difícil entender tal sentimento e tal atitude. Gemma só se sente amada por Jesus se este lhe faz sentir intensamente as suas dores. Quanto mais ela sofria as dores da crucifixão de Jesus, mais amada por ele ela se sentia. Ela queria viver literalmente a paixão de Cristo na sua carne. Sentia dor, mas se sentia feliz. O prazer em sentir dor é classificado como masoquismo, mas não era esse o caso de Gemma. Psicólogos afirmam que pessoas que cresceram em lares amorosos, mas com disciplina severa e figuras de autoridade rígidas ou agressivas, podem desenvolver prazer pela dor. Gemma Galgani se enquadra nesse perfil, pois a sua família, embora não tivesse sido agressiva com ela, era muito rígida. Seus pais eram severos e levavam muito a sério a religião. Nesse caso, o amor de Gemma era condicionado à obediência, e ela cresceu associando o amor à dor. Gemma só

se sentia amada por Jesus quando este a fazia sentir uma intensa dor. Quanto maior a dor, maior o amor. São muitos os fatores que podem levar uma pessoa a desenvolver esse sentimento, e vou indicar aqui apenas alguns que Gemma vivenciou na família: morte de alguém querido; problemas com a sexualidade; educação rígida e severa; baixa autoestima; sentimento de incapacidade; dificuldade de relacionamentos interpessoais, entre outros. Gemma teria tido esses problemas? Sim, alguns diretamente, e outros, indiretamente. Ela perdeu pessoas muito queridas na sua família, por exemplo, a mãe, quando ainda era criança, depois, Gino, o irmão mais querido, e o próprio pai, sua referência e amparo, além de ter visto os irmãos se dispersarem e se afastarem da religião e da família, entre outros fatores dessa natureza. Gemma teria tido problemas com a sexualidade? Diretamente, não, mas os escritos sobre sua pessoa mostram que ela se esquivava desse tema e que isso não era algo com que ela lidava com naturalidade. Quando algum jovem a procurava para namorar, ela se recusava de forma veemente, como ocorreu quando estava morando com a tia, em Camaiore. Naquela ocasião, um jovem de nome Romeu queria desposá-la. Depois de tanto sofrer com aquela situação, Gemma deixou o conforto da casa e voltou para Lucca, numa espécie de fuga, pois ela queria se consagrar inteiramente a Deus e não pensava em namorar, casar, ter filhos, como a maioria das moças da sua idade. Há outros momentos em que ela se sente constrangida quando se referem a essa questão, mostrando que cultivava uma inquestionável inocência em relação à sexualidade, e alguns interpretam isso como um complexo. Fernando Piélagos escreve que, numa ocasião, Gemma e a amiga Rosa Bartelloni vão confessar-se no santuário de Badia. Porém, para chegar até lá, elas “têm de ar por uma ponte, lugar de encontro de casais de namorados. Luís Bartelloni, irmão de Rosa, fica sabendo desse fato e aproveita a oportunidade para zombar dos pretensos amores de Romeu e Gemma, colocando um letreiro na porta da cozinha, com os seguintes dizeres: ‘Gemma e Romeu vão à ponte de Badia para celebrar o amor’”.[5] O fato não era verídico, não ava de fofoca, e o caluniador, depois, arrependido, pedirá desculpas a Gemma, mas isso a deixa profundamente constrangida.

Sobre a educação rígida, não há dúvida de que Gemma foi educada num ambiente de austeridade, mas não sabemos até que ponto isso influenciou seu comportamento de sentir prazer em sofrer, no entanto, pode ter influenciado. Quanto à sua baixa autoestima, não há nada que a comprove, mas há também certos indícios. Gemma, embora fosse uma jovem muito bonita, não se sentia

fisicamente bonita, tampouco demonstrava que isso lhe fosse importante. Ela queria ser bonita interiormente, para Deus. Ela se escondia para o mundo para ser vista por Deus, como se ser vista e cortejada pelas pessoas a impedisse de ser amada por ele.

Quanto aos sentimentos de incapacidade, Gemma não demonstrava tê-los, pois tinha sido excelente aluna no colégio, com as melhores notas, mas, em certos aspectos, ela se sentia incapaz, por exemplo, incapaz de amar a Jesus como deveria; incapacidade de deixar de pecar, embora não fosse de fato pecadora como imaginava; enfim, no âmbito espiritual, Gemma não se sentia à altura daquilo que almejava ser. E quanto à dificuldade de relacionamentos, seus biógrafos dirão que ela se relacionava bem com todos, mas gostava de se isolar, de ficar só, ou seja, ela preferia fugir do mundo para estar com seus amigos espirituais. Esse fator pode corroborar a tese de que Gemma tinha elementos suficientes para desenvolver traços como o supracitado, ou seja, de sentir prazer em sofrer.

Mas, de volta aos contatos de Gemma com Jesus, estes sempre no contexto da paixão, com o Jesus sofredor, Gemma continuará seu relato dizendo em seu Diário: “Desejaria estar sempre, toda a noite, mas, assim como Jesus ama tanto a obediência, ele mesmo se submete a obedecer ao confessor, e depois de uma hora me deixou: quero dizer que ele não me apareceu mais”.[6] Gemma sente tanto prazer em estar com Jesus e participar de suas dores que, quando ele a deixa, ela fica com o sentimento de querer mais. Nesse dia, Gemma relata um fato único: Jesus a deixa, mas deixa com ela, por mais quatro horas, a sua coroa de espinhos. Que prazer ela sente por isso, e descreve assim esse sentimento: “Aconteceu, porém, uma coisa que jamais havia acontecido. Jesus costuma, cada vez que põe a coroa em minha cabeça, levá-la quando me deixa; ontem, ao contrário, deixou-a comigo até perto das quatro horas”. [7]

Gemma encerra as primeiras anotações do seu Diário falando que sentiu dor, mas uma dor que a satisfazia tanto que ela não reclamou em nenhum momento:

“Para dizer a verdade, sofri um pouco, mas não me lamentei uma só vez. Jesus me perdoará se às vezes escapa algum lamento involuntário. Sofria muito a cada movimento: o que era só impressão”. [8]

Assim, o seu Diário é inaugurado com o relato de sua experiência com Jesus, a experiência de poder participar um pouco da sua dor. Porém, Gemma é tão humilde que não titubeia em dizer que esses encontros podem ser apenas fruto da sua imaginação, ou só impressão. Veja que isso ela diz por humildade, não por ser, de fato, uma verdade. Está mais que comprovado que havia, sim, em sua vida fenômenos místicos, e esses fenômenos consistiam, entre outras coisas, em ter contato com anjos, santos, Nossa Senhora, Jesus, e até com o diabo.

No dia seguinte, sexta-feira, 20 de julho, Gemma continua a narrar sua experiência com Jesus, fazendo memória desse encontro memorável: “Ontem, perto das quatro horas, senti desejo de unir-me mais um pouco a Jesus; tentei e logo consegui estar com ele. Para dizer a verdade, sentia tanta repugnância, porque estava esgotada, sem força [...]”.[9] Gemma se culpa por não estar como deveria ao se encontrar com Jesus. Depois desses encontros, ela revive cada momento e deseja ardentemente reencontrá-lo. Por essa razão, na sequência das anotações dessa sexta-feira, ela escreve:

Encontrei-me novamente diante de Jesus. Estava ao meu lado, mas não estava triste como à noite; estava alegre; acariciou-me um pouco, depois, bem contente, tirou a coroa de minha cabeça (sofri também agora, embora um pouco menos) e a repôs na dele, e não senti mais nada; retornaram minhas forças e me sentia melhor do que antes de sofrer.[10]

Jesus volta e repete o mesmo gesto de carinho e atenção para com ela. A cada visita de Jesus, Gemma sente suas forças se restaurarem. Esses encontros, embora dolorosos, eram profundamente prazerosos e faziam com que Gemma

recobrasse o sentido da sua vida.

Característica interessante desses encontros de Gemma com Jesus são os diálogos que eles travavam. Diálogos às vezes amistosos, às vezes mais severos, pedindo-lhe correções e perfeições. Diálogos variados, com características que mudavam de acordo com a situação e ocasião, mas sempre pautados pelo amor e pela correção fraterna. Nesse dia, eles conversam sobre confissão:

Jesus, então, perguntou-me diversas coisas; eu lhe pedi que não me mandasse confessar com o padre Vallini, porque eu não iria de boa vontade; Jesus ficou sério e um pouco zangado, dizendo-me que, quando necessário, eu fosse me confessar. Prometi-lhe e vou de boa vontade.[11]

Não é que Gemma não gostasse de se confessar, pelo contrário, ela confessava em demasia, mas, de um modo particular, não estava disposta a confessar com o padre Vallini.

Os encontros de Gemma com Jesus eram sempre insuficientes, porque ela dizia ter tanto a lhe dizer. “Tinha sempre tanta coisa para dizer a Jesus, e ele percebia que eu estava sempre faltando [...].”[12] Por isso Jesus sempre voltava, porque amava Gemma, e ela sabia disso. Esse amor era recíproco. E Jesus voltava nos seus momentos de oração, nos seus momentos de êxtase. Nesse seu retorno, que ocorre à tarde, Gemma descreve como Jesus está, e ele lhe revela quanto a ama:

Prometeu-me que logo mais, na oração da tarde, voltaria; desta vez estava muito contente: abriu-me o coração e eu vi escrito duas palavras que eu não entendia. Então, pedi-lhe explicação e ele me respondeu: “Eu a amo tanto, porque se assemelha muito comigo”. “Em que, ó Jesus?”, perguntei-lhe, “se me vejo tão diferente?”. “Em ser humilhada”, respondeu-me.[13]

Era tudo o que Gemma queria ouvir: ter semelhança com Jesus, mesmo que a semelhança fosse a humilhação. Seus esforços em configurar sua vida à de Jesus estavam dando resultados.

Depois que Jesus se foi, ao fazer memória desse encontro e registrá-lo no seu diário, Gemma escreve:

Entendi bem, e me veio à mente minha vida ada. Um grande defeito foi sempre a minha paixão, a soberba. Quando eu era pequena, aonde eu ia, ouvia as pessoas dizerem que eu era uma grande soberba. Mas Jesus, que meio usou para humilhar-me, especialmente neste ano? Enfim, entendi que sou verdadeiramente. Jesus seja sempre louvado.[14]

Gemma faz uma espécie de exame de consciência, chega à conclusão de que, de fato, precisava ser humilhada para combater sua suposta soberba e vê nas ações de Jesus um corretivo para a sua vida espiritual. No sábado à tarde, dia 21 de julho, Gemma anota no seu Diário que foi confessar com o Pe. Vallini, conforme tinha prometido a Jesus, num gesto de obediência e humildade contra a sua soberba.

Gemma volta a registrar a presença pessoal de Jesus em sua vida no dia 26 de julho, depois de ar por momentos de profunda aridez. Diz ela: “Comunguei, mas, meu Deus, em que estado! Não senti a presença de Jesus”.[15] Somente depois de um tempo, sofrendo e se sentindo culpada, é que vai receber, fisicamente, Jesus: “Por uma hora ou mais, Jesus permitiu que eu ficasse neste estado; chorava, estava aflita. Jesus então teve pena e veio; acariciou-me, fez-me prometer que não faria mais e me abençoou”.[16] Ela relata que Jesus possivelmente estaria chateado com ela, porque no dia anterior ela havia contado algumas mentiras. Mesmo assim, ele permaneceu com ela, conforme vemos na continuação do relato: “Estava deitada, como sempre, porque depois não seria

mais capaz de entreter-me com o meu caro Jesus, sofrendo com ele. Sofri muito; provou de novo o seu amor para comigo, presenteando-me até o final do dia com sua coroa de espinhos”.[17] O maior presente para Gemma era a coroa de espinhos de Jesus. Como uma criança se alegra ao ganhar um brinquedo, Gemma se alegrava em ganhar a sua coroa de espinhos, não como brinquedo, mas como prova da seriedade do seu amor. Era uma forma de Jesus mostrar seu amor por ela. Pelo menos era isso que Gemma sentia ao receber a coroa de espinhos. Por essa razão, após recebê-la dele, ela dirá: “Jesus, às sextas-feiras, me ama muito. À tarde, pois, trouxe-me a coroa dizendo-me que estava contente comigo, e me disse também, acariciando-me: ‘Filha, se junto-lhe outra cruz, não se aflija’. Prometi-lhe, e me deixou”.[18] A relação de Gemma com Jesus era pautada nas suas dores. Havia ali uma transmutação de dor, e Gemma, paradoxalmente, já se sentia no paraíso quando isso ocorria.

Se sábado era o dia em que Gemma se encontrava com Nossa Senhora, como vimos antes, na sexta-feira ela se encontrava com o Filho, Jesus. Nesses encontros é que comumente se manifestavam os seus estigmas, como as marcas dos pregos em suas mãos e as marcas dos espinhos em sua fronte. Estas chegavam até mesmo a sangrar, de modo que outras pessoas podiam ver o sangue escorrer. Falarei desses estigmas em outro momento, mas agora, por se tratar de uma marca, ou sinal, do seu encontro com Jesus, relato o que ela escreveu no seu Diário na sexta-feira, 27 de julho:

Nesta sexta-feira sofri muito mais, porque fui obrigada a fazer outros pequenos trabalhos, e a cada movimento parecia morrer. Antes a tia me havia mandado sair da água: custou tanta fadiga, me parecia (mas era toda minha ideia) que os espinhos me entrassem na cabeça, e começou a sair uma gota de sangue das têmporas. Percebi logo e me limpei às pressas. Perguntou-me se tinha caído e quebrado a cabeça; disse-lhe que havia me machucado com a corrente do poço. [19]

Gemma recebeu Jesus, mas relata que sofreu porque a tia lhe pediu alguns trabalhos no mesmo momento em que Jesus estava com ela. Pelo que indica o

seu relato, nesse dia a tia havia pedido que ela fosse retirar água do poço. Gemma diz que seu sofrimento se multiplicou; primeiro, porque teve que deixar Jesus para ir trabalhar; segundo, porque foi trabalhar com a coroa de espinhos na cabeça, o que lhe aumentava o sofrimento. Ao que tudo indica, era uma coroa só vista por ela, mas, mesmo assim, seus efeitos eram visíveis, porque a tia percebeu sua cabeça sangrando. Ou seja, os estigmas se manifestaram em Gemma nesse dia, mas ela teve que disfarçá-los, da mesma forma que buscava disfarçar os outros estigmas, como os das mãos, usando luvas. Para esconder esse estigma da cabeça, precisou mentir que havia se machucado com a corrente do poço. Essas mentiras faziam Gemma sofrer, e ela buscava a confissão para reparar o pecado de mentir sobre a verdadeira causa dos seus ferimentos. Porém, mesmo lidando com essa realidade dúbia, entre o mundo real e o mundo espiritual, Gemma continuava firme na fé e buscava contornar as situações.

Além das visitas físicas de Jesus, Gemma o recebia, obviamente, na comunhão. Muitas vezes, Jesus se manifestava a ela fisicamente por meio da comunhão eucarística, mas no domingo, dia 29 de julho, ela não havia comungado, por isso se sentia duplamente privada de sua presença, conforme relata: “Hoje, domingo, sinto uma grande necessidade de Jesus, mas já é tarde, e não tenho agora nenhuma esperança [de vê-lo]; espero nesta noite estar livre e só”.[20] Livre e só para receber Jesus, e ele veio de fato, causando-lhe muita surpresa por ter vindo mesmo sem ela tê-lo recebido na comunhão: “Veio, olha! Jesus; quanta reprovação porque não fiz a santa comunhão! Eis de que modo Jesus me reprova: ‘Por que, ó filha, tão frequentemente devo ser privado da sua visita? E sabe quanto desejo que venha a mim, quando é boa’”. [21]

Gemma gostava que Jesus a visitasse, mas ela mesma tinha deixado de visitá-lo no sacramento da comunhão naquele dia. Esse é um alerta de Jesus não somente para Gemma, mas para todos nós, cristãos católicos. Queremos que Jesus nos visite, que esteja conosco, mas nem sempre encontramos tempo para ir à missa e comungar. Ou, ainda, comungamos com o coração impuro. Vale a pena refletir um pouco sobre isso.

Diante da correção fraterna de Jesus e do seu perdão, Gemma assim se manifesta:

Ajoelhei-me diante de Jesus e, chorando, disse-lhe: mas como, meu Jesus, ainda não está cansado de sofrer com toda esta minha frieza? “Filha”, respondeu-me, “que de agora em diante não e dia sem que venha a mim, procurando ter o coração purificado e ornado com o maior cuidado possível. Conserve também o seu coração livre de todo amor a si mesma, e de toda coisa que não seja inteiramente minha, e depois venha sem temer”.[22]

Nesse encontro, Jesus pede que Gemma se dedique inteiramente a ele, sem reservas, sem medidas. Que ela renuncie a si mesma, tome a sua cruz e o siga de modo integral e sem medo. Não há o que temer, pois quem o encontrou, encontrou um tesouro, e Gemma vai lutar com todas as suas forças para estar livre para segui-lo.

Nesse dia, antes de sair, Jesus recomenda que Gemma seja forte contra o inimigo, porque ele está à espreita, usando de todos os meios para fazê-la cair. Por fim, diz também: “Obedeça, minha filha, obedeça logo e alegremente, e, para se sair melhor e vencer nesta bela virtude, reze à minha Mãe que tanto a ama”.[23] Depois dessa manifestação, Gemma volta a registrar sua presença no dia 17 de agosto, sexta-feira. Nesse dia, há um longo relato sobre Jesus e a sua presença. Selecionei aqui apenas alguns momentos. Entre eles, os questionamentos que Gemma faz sobre Jesus em sua vida e a constatação de felicidade plena:

Que momentos felizes se am com Jesus! Como retribuir os seus afetos? Com quais palavras exprimir o seu amor a esta pobre criatura? No entanto, dignou-se a vir. É justamente impossível, sim, é impossível não amar Jesus. Quantas vezes me pergunta se o amo e o amo de verdade. E duvida ainda, Jesus meu? Então se

une sempre mais a mim, me fala, diz que me quer perfeita, que me ama muito e que eu lhe corresponda.[24]

A presença de Jesus em sua vida é o caminho mais eficaz para a perfeição. Não há como não ser uma pessoa perfeita tendo, junto de si, a perfeição suprema. É essa a sensação que Gemma tem nos momentos em que está com ele, ou mesmo naqueles que antecedem ou sucedem a sua visita.

Ela diz também: “Hoje, pouco ou nada foi necessário para me recolher: minha mente já estava com Jesus, e logo também, o meu espírito. Como Jesus se mostrou afetuoso comigo hoje! Mas quanto sofrimento! Faço tanto para diminuílo, e desejaria fazê-lo, se me fosse permitido”.[25] Gemma sente muito por não poder diminuir o sofrimento de Cristo, e por essa razão ela quer ter os seus sofrimentos em seu próprio corpo. Os estigmas são, na verdade, esse desejo ardente e latente de Gemma de diminuir o sofrimento de Cristo. Ela tanto deseja isso que as chagas de Jesus am a ser dela também. Sobre essas chagas, Gemma vai dizer: “Hoje se aproximou, levou-me a coroa da minha cabeça, e depois não o vi, como sempre, repô-la sobre a cabeça dele; tinha-a em suas mãos, todas as chagas estavam abertas, mas não escorria sangue como sempre, eram belas”. [26]

Gemma via suas chagas e podia tocar nelas, porém nesse dia ela se surpreendeu, porque as chagas não sangravam como de costume. Ela logo imaginou que talvez, nesse dia, ela o tivesse alegrado mais, pois suas chagas sangravam pelos seus pecados, e nesse dia não estavam sangrando. As chagas de Jesus sangram cada vez que o ferimos, magoamos, desrespeitamos; cada vez que não nos solidarizamos com os irmãos que sofrem; quando não nos comprometemos com as causas com que ele tanto se comprometeu; enfim, essas e tantas outras são maneiras de fazermos as chagas de Jesus sangrarem. Indiretamente, Gemma nos fez um alerta com essa descrição das chagas de Jesus, que ora sangram, ora não sangram.

Outro fato intrigante registrado por Gemma nesse dia é que, ao se despedir dela, Jesus levantou a mão, e ela viu raios de luz resplandecente saírem de suas chagas. Gemma relata aquilo que Santa Faustina também viria a relatar: os raios que saem das chagas das mãos de Jesus misericordioso. Escreveu Gemma:

É comum abençoar-me antes de me deixar; de fato, tinha levantado sua mão direita; dessa mão então vi sair uma luz fulgurante. Ele conservava a mão levantada; eu permanecia com o olhar fixo nele sem saciar-me de contemplá-lo. Oh, se pudesse fazê-lo conhecer, mostrar a todos o quanto é belo o meu Jesus! Abençoou-me com aquela mesma mão que havia levantado, e me deixou.[27]

Vendo os raios saírem das mãos de Jesus e vendo-o abençoá-la, ela sente por outros não terem também essa mesma graça. Somente depois, Gemma se inteira, por meio do seu anjo da guarda, do significado daquele gesto e daquela bênção de Jesus:

Depois disto que me aconteceu, fiquei sabendo, com prazer, o que significava aquela luz que saía das chagas, em particular da mão direita, com a qual me abençoou. O anjo da guarda disse-me: “Filhinha, neste dia a bênção de Jesus derramou sobre você uma abundância de graças”.[28]

Enquanto Gemma anotava esses sentimentos vividos, Jesus se aproxima e lhe faz a seguinte recomendação: “Recomendo-lhe, minha filha, obedeça sempre e em tudo. Comunique todas as coisas ao confessor; diga-lhe que não a esqueça, mas a esconda [...]. Diga-lhe que Jesus quer que lhe dê muita atenção e cuidado, para se tornar capacitada”.[29] Gemma confirma a ele que sua vontade sempre será feita, porém ela se lastima por ter que relatar essas coisas. Como disse antes, Gemma não queria escrever nada sobre sua vida e suas experiências místicas. Isso lhe era um grande sofrimento, e ela não se cansava de reafirmar isso. No entanto, ela acata o pedido de Jesus e diz ao seu confessor tudo o que ele lhe

dissera. Seu confessor seria também o seu protetor, seria aquele que ocultaria essa pérola preciosa e dela cuidaria como quem cuida de um tesouro. Por meio de Jesus, Gemma recebe a confirmação do seu nome, “pérola preciosa”, e como tal seria protegida e preservada, de acordo com o pedido de Jesus.

No dia 24 de agosto, novamente uma sexta-feira, Jesus volta a estar com Gemma Galgani, e ela relata estar, nesse dia, mais uma vez com a sua coroa de espinhos na cabeça. No início das anotações desse dia, Gemma escreve: “Mais tarde, pois, Jesus voltou a retirar-me a coroa, mas veio muito depressa, dizendo-me que bastava, e porque eu não queria, porque não era a hora, respondeu-me que sou sempre pequena e faço sempre assim”.[30] Como disse antes, Gemma se comportava, às vezes, como uma criança diante de Jesus. E ela era, de fato, uma criança aos olhos de Deus, devido a sua pureza e inocência. Como uma criança que quer algo, ela quer a coroa e não quer abrir mão daquilo que deseja. Por isso, Jesus diz que ela é sempre pequena, pois sempre se comportava dessa maneira. Gemma tem consciência de que é muito pequena diante de Jesus, e isso a faz sofrer, mas Jesus a acolhe e a ampara como uma mãe ou um pai ampara e acolhe um filho pequeno, acariciando-o e consolando-o. Diz Gemma: “Sofri continuamente por muitas horas; Jesus me acariciou muito”.[31] Gemma está nos braços de Jesus, sendo consolada e, ao mesmo tempo, dialogando com ele, como uma filha conversa com o seu pai. Nessa conversa, Gemma intercede pelos seus, como vemos na sequência do relato:

A certo ponto da nossa conversa, pedi-lhe luzes para o confessor; então contei o que o anjo me falou. Havia dito pela manhã que o padre Germano tem certo conhecimento sobre mim e me quer bem. Sem pensar, contei a Jesus, e ele nada sabia do que o anjo havia dito: ficou sério e me disse que não queria que o anjo tratasse disso.[32]

Gemma sempre se desconcertava diante da fisionomia de Jesus sério, pois ela sabia que ele iria censurá-la por algo, como de fato a censurou, dizendo que não queria que o anjo tratasse de questões que competiam diretamente a ele. Porém, nesse dia, Gemma disse não ter ficado perturbada ou confusa, como comumente

ocorria. Pelo contrário, ela se sentiu próxima a ele, como dois confidentes. Escreveu ela:

Mas, enquanto assim falava, ao invés de confundir-me, como me acontece quando Jesus fica sério e severo, fui tomada, ao contrário, da mais profunda confidência para com ele e lhe perguntei: “Jesus, não podes...”, calei-me, crendo fazer-me entender sem falar, e Jesus entendeu logo e disse: “Não te aflijas, minha filha: padre Germano logo virá. Entendeu?”, perguntou-me. “Sim, respondi”. E por último me repetiu estas palavras: “Não temas, que logo ele virá”. Fez-me sinal com a mão que se despedia, e desapareceu.[33]

Assim, nessa sexta-feira, Gemma tem mais um diálogo amistoso com Jesus, que mostra o quanto ele lhe era próximo.

Em 30 de agosto, quinta-feira, Gemma volta a registrar em seu diário a presença de Jesus com a sua coroa de espinhos. Descreve: “Sinto um pouco de força, e um pouco de coragem quando percebo que Jesus, nessa hora, coloca-me a coroa de espinhos e me faz sofrer até o final da tarde de sexta-feira; porque isto ofereço pelas almas pecadoras, de modo particular pela minha”.[34] Antes Gemma havia relatado que Cristo sofre pelos pecados da humanidade. Quanto mais pecadora a humanidade, mais ele sofre, mais sangram as suas chagas, e ela se sentia um desses pecadores que as faziam sangrar. Sobre isso, ela escreverá:

[...] julguei que Jesus, naquela tarde, fez como costumava: sobre minha cabeça pousou os espinhos, causa de tantas penas ao meu caro Jesus, e os deixou por mais tempo. Causou-me um pouco de sofrimento, mas que digo, sofrer, apreciar. É um apreciar esse sofrer. Quanto estava aflito! E a causa: por tantos pecados que se cometem, e por tantas almas ingratas, que ele tanto beneficia, e depois recebe tudo ao contrário. Desta ingratidão quanto eu mesma me sinto culpada! Certamente, Jesus teria falado de mim.[35]

Gemma, como disse, sentia prazer em sofrer com Cristo, por Cristo e em Cristo. Era um sofrimento redentor, como o sofrimento de Cristo, e por isso Gemma se comprazia com ele.

Na maioria das vezes, a vinda de Jesus até Gemma era mediada pelo anjo da guarda, e nesse dia não foi diferente. As visitas de Jesus tinham um tempo certo, e o anjo controlava esse tempo. Nessa ocasião, Gemma diz:

Terminada a hora da obediência, o meu anjo da guarda me avisou; que fazer? Jesus se entretinha agora, mas bem via o embaraço em que me encontrava. Recordou-me a obediência, e para obedecer devo mandar Jesus embora porque a hora já ou. “Caminho”, disse-me Jesus, “dá-me um sinal no final da hora que sempre obedecerei”. Então exclamei: “Vai, pois, embora, Jesus, que agora não o quero”. E Jesus sorrindo abençoou-me [...].[36]

Jesus se retira, mas Gemma continua a sentir a sua presença. A presença física de Jesus preenchia também os momentos de sua ausência. O fato de Gemma não vê-lo fisicamente não significava que ele estava realmente ausente. Foi isso que ela disse no término das anotações desse dia em seu diário espiritual, e essa foi uma das últimas anotações do Diário em que Gemma registra a presença física de Jesus ao seu lado. Outros registros ela voltaria a fazer na sua Autobiografia, como quando descreve a ternura de Jesus. Aqui há um dos diálogos mais profundos e comoventes entre Gemma e Jesus, registrado naquele que ela chama de O caderno dos meus pecados:

“Filha – me dizia Jesus me abraçando –, eu me dou inteiro a você, e você será inteiramente minha?” Via bem que Jesus me havia tirado os pais, e às vezes eu me desesperava, porque achava que tinha sido abandonada. Naquela manhã me lamentei com Jesus, e Jesus, sempre muito bom, sempre com muita ternura, me repetia: “Eu, filha, estarei sempre contigo. Sou eu o seu Pai, e sua mãe é aquela... – e apontou Maria Santíssima das Dores. – Nunca faltará o auxílio paterno a quem está em minhas mãos; nada, portanto, faltará a você, embora lhe tenham

sido tirados todos os consolos e apoios nesta terra. Venha, chegue mais perto... seja minha filha... Não está feliz de ser filha de Jesus e Maria?”. Tamanho carinho que Jesus me fez nascer no coração me impediu de responder.[37]

De fato, Gemma iria precisar muito da proteção de Jesus e Maria, porque, apesar da presença deles em sua vida, nela havia também uma presença indesejada, a do diabo, de que tratarei no capítulo seguinte. Além dessas descrições da relação entre Gemma e Jesus, ela fala dessa presença nas inúmeras cartas que escreveu, mas creio que para o momento são suficientes esses episódios aqui apontados. A seguir, o a outro tipo de presença na vida de Gemma Galgani: a presença do diabo.

XIV

Santa Gemma Galgani e o diabo

Nem só da presença de Deus preencheu-se a vida de Gemma Galgani. Ela também teve presente em sua vida o diabo e os seus tormentos. Neste capítulo, trago alguns dos momentos em que Gemma viu-se torturada pela presença daquele que queria desviá-la dos caminhos de Deus, o diabo. Gemma viveu entre Deus e o diabo, mas optou por Deus. Isso não foi tão fácil, entretanto, porque as tentações foram muitas, e as agressões sofridas também. O diabo lhe aparecia quase que com a mesma frequência que os enviados de Deus, e vinha nas mais diferentes formas: ora como diabo, feio e assustador; ora disfarçado de anjo, e muitas vezes invisível, mas atuando fortemente por meio de tentações ou acontecimentos que deixavam Gemma confusa e enfraquecida. E era este mesmo o objetivo dele: confundir para enfraquecer e, enfraquecendo-a, possuí-la. O diabo age nas fraquezas humanas, nas carências e necessidades. Quem está bem, fortalecido espiritualmente, não está livre das tentações, mas dificilmente se deixa levar por elas.

Antes de tratar das tentações sofridas por Gemma Galgani, recordarei as tentações de Jesus no deserto, para mostrar que ninguém está livre de ar por isso, nem o Filho de Deus, quanto mais seus filhos adotivos. As tentações sofridas por Jesus servem para iluminar os momentos de tentação de qualquer ser humano, pois o diabo age nos nossos pontos fracos, mesmo que sejamos uma pessoa de Deus, ou repleta da sua presença, como Gemma e Jesus. Se eles, sendo uma filha tão próxima de Deus e o próprio Filho de Deus, foram tentados pelo diabo, quanto mais nós, simples mortais, que nem sempre temos as mesmas forças espirituais. Se não tomarmos cuidado, seremos engolidos pelo diabo e não nos daremos conta disso.

No Evangelho de Lucas (4,1-13), vemos Jesus voltando do rio Jordão, onde tinha sido batizado. Estava, portanto, pleno do Espírito Santo. Estar repleto do Espírito Santo significa que ele, assumindo a condição humana e suas tentações, mesmo sendo o Filho de Deus, agora estava amparado e respaldado pelo Espírito

Santo, ou seja, estava fortalecido. Esse dado é relevante para mostrar quão importante é estarmos fortalecidos na fé, com a presença e proteção do Espírito Santo, para enfrentarmos as tentações. Lucas destaca essa informação porque vai mostrar o contexto em que Jesus enfrentaria as tentações: o deserto. Deserto é lugar de aridez, seja no sentido literal, seja no figurado. Aqui o sentido é figurado. Jesus entra no deserto da vida humana, nas misérias e fraquezas humanas e, portanto, nas condições favoráveis para a tentação do diabo. Assim, o texto diz que, após ser batizado e ter recebido o Espírito Santo, Jesus foi conduzido por ele para o deserto, durante quarenta dias, e lá foi tentado pelo diabo. Jesus está ando por duras provas, sendo testado e provado para enfrentar posteriormente outras tantas inúmeras tentações e provações, até chegar à cruz e, por meio dela, entrar na glória, abrindo caminho para a humanidade. Se ele caísse em alguma das tentações do diabo, seria reprovado por Deus. Gemma Galgani, nas suas diversas tentações, se caísse numa delas, seria também reprovada por Deus. São testes, ou provas, para comprovar a santidade. Não que Jesus precisasse disso, mas como ele havia assumido a condição humana, experimentou também, como humano, as tentações do mundo, da humanidade.

Nesses quarenta dias de Jesus no deserto, que recordam os quarenta anos do povo hebreu, também no deserto, fugindo da escravidão do Egito, na busca da Terra Prometida, Jesus experimenta o que é de fato um tempo de deserto. Ele estava privado de bens humanos elementares, e o primeiro deles foi o alimento. No deserto, há escassez de comida. Assim, a primeira tentação está relacionada à comida, ao alimento, sem o qual o ser humano não sobrevive.

Quando Jesus estava no ápice da fome de alimentos materiais para o seu corpo humano, surgiu o diabo com uma proposta mirabolante: transformar pedra em pão. Que maravilha! Havia muitas pedras naquele deserto, e, se elas fossem transformadas em pão, o problema da fome estaria magicamente resolvido. É bom destacar que as propostas do diabo vêm sempre cercadas de facilidades, sem exigir esforços. Portanto, tome cuidado com propostas que garantem facilidade para obter os resultados. Este é um dos motivos pelos quais muita gente cai em tentação: a facilidade. Quem não quer obter aquilo que deseja com facilidade?

O diabo chega, então, provocando Jesus e questiona-o o tempo todo sobre a sua filiação divina. “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão” (Lc 4,3). O diabo, quando vem, vem com provocações. Não foi diferente com Gemma Galgani: quando ela estava mais debilitada é que ele aparecia e a atormentava. Mas ela também sabia provocá-lo: bastava recorrer aos símbolos sagrados, como o crucifixo, o escapulário de Nossa Senhora, a água benta ou outro símbolo religioso, e o diabo ficava irritadíssimo, porque esses elementos o enfraquecem. Aqui vemos, contudo, que o diabo espera os momentos de fraqueza para agir.

Com Jesus também foi assim. Naquele momento de necessidade de alimento material, ele foi tentado pela facilidade de transformar pedra em pão. Se Jesus fizesse isso, além de tornar-se apenas um mago, ele estaria obedecendo ao diabo, e obedecer ao diabo significa cair na sua tentação. Quando caímos em tentação, sem percebermos, estamos obedecendo ao diabo. Por essa razão, posteriormente, ao ensinar os seus discípulos a rezar, Jesus lhes diz para pedirem a Deus que não os deixe cair em tentação e que os livre do inimigo (Mt 6,13), porque quem tenta é o inimigo. Amigo não tenta, mas ajuda a desviar das tentações, alertando e conduzindo ao bom caminho. Assim, quando rezamos a oração do pai-nosso, fazemos memória e reavivamos esse ensinamento de Jesus, pedindo: “Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”.

Naquele momento de fraqueza humana, Jesus poderia ter exercido seu poder divino e transformado pedra em pão, mas não foi para isso que ele veio ao mundo, não foi para tentar Deus. Ele não veio ao mundo para fazer magias, e muito menos para obedecer ao diabo, mas para ser obediente somente a Deus. Por isso, ele recorda que “não só de pão vive o homem” (Lc 4,4). Pão é necessário, mas não é fundamental para a vida com Deus.

Privar-se do pão é muitas vezes necessário para entendermos nossas fraquezas humanas e corrigi-las, por isso a Igreja tem o jejum como forma de correção e conversão. Jesus resiste, mas o diabo não desiste. Não pense que o diabo desiste

facilmente, pois ele é muito persistente. Na vida de Gemma Galgani, vemos essa insistência do diabo, que não a abandonava nem mesmo quando ela se mostrava forte e resistente. Ao ser vencido, portanto, na tentação do pão, o diabo busca outra forma de tentar Jesus, agora utilizando o poder e a glória. Poder e glória são o que muitas pessoas mais querem. Não são poucos os que se vendem ao diabo para obter poder e glória, status, fama, visibilidade. Veja nos meios de comunicação, sobretudo no mundo virtual, o que as pessoas fazem para obter sucesso, visibilidade e fama, ou seja, poder e glória. Não basta o poder, é preciso ter glória.

Glória, no sentido mundano, é o mesmo que fama, o oposto da glória teológica. Tão em voga nos nossos dias, está presente no mundo há muito tempo e é expressa com clareza nessa tentação de Jesus. O diabo o leva para um dos lugares mais altos do deserto, de onde Jesus podia avistar uma imensidão de terras, os reinos da terra, reinos humanos, ou seja, poder humano e riquezas materiais. Ali, o diabo vai tentá-lo dizendo: “Eu te darei todo este poder com a glória destes reinos porque ela me foi entregue e eu a dou a quem eu quiser” (Lc 4,5-6). O diabo se mostra poderoso. Os poderes deste mundo de fato lhe pertencem. Quem quer a todo custo apenas os poderes deste mundo está sob a égide do diabo, e não de Deus.

Muitas pessoas seguem mais o diabo do que a Deus. Os poderes do mundo não têm nenhum valor para Deus, são um nada, mas para o diabo são tudo. Querer poder e glória é, portanto, querer as coisas que pertencem ao diabo. Um ser fraco na fé cai facilmente nessa tentação, porque ela é de fato tentadora. Também não são poucas as pessoas que em nome do poder e da glória são capazes de matar, direta ou indiretamente, o seu semelhante. Pelo dinheiro, por heranças, há quem seja capaz de matar os próprios pais ou outros familiares. São pessoas tentadas pelo diabo, que caíram na tentação do poder.

A condição que o diabo coloca para que as pessoas tenham o poder que desejam é a de que se prostrem diante dele e o sirvam, ou seja, o tenham como o “deus” da sua vida. Quantos são os que confundem o verdadeiro Deus com o “deus”

representado pelo diabo. Se Jesus fizesse isso, não seria o Filho de Deus, portanto, ele resiste a mais essa tentação e ensina os filhos de Deus a resistirem a ela. Gemma Galgani tinha muita clareza disso e, diante das tentações do diabo, lembrava-se de sua filiação divina e não se deixava cair nas suas tentações. Jesus, nesse momento, repleto do Espírito Santo e munido da Palavra de Deus, responde ao diabo: “Adorarás ao Senhor teu Deus, e só a ele prestarás culto” (Lc 4,8). Quem adora o diabo nem sempre percebe que o está adorando, pois essa adoração se revela nas suas ações. A busca desenfreada por poder e glória é um exemplo explícito de adoração e culto ao diabo. Quem coloca o dinheiro e a fama em primeiro lugar na sua vida mostra que está adorando e prestando culto ao diabo. Esses elementos não podem ser o fator determinante de nossa vida, como nos ensina Jesus ao resistir a mais essa tentação.

A terceira tentação que Jesus sofreu no deserto está relacionada ao fator religioso, à fé. Veja como o diabo é ardiloso, pois tenta nos atingir por todos os lados. Tentar pela fé, pela crença em Deus, é uma estratégia eficaz, e aqui podem cair os que estão mais perto de Deus, como era o caso de Gemma Galgani. Ela não caiu na tentação do diabo, mas foi muito tentada por ele nesse sentido. A maioria das tentações que ela sofreu estava relacionada à sua fé, à crença em Deus, ao seu desejo de santidade e eternidade.

O diabo conduziu Jesus para o centro do poder religioso da época, Jerusalém. Seria o equivalente, hoje, a levar a pessoa até Roma, no Vaticano, e lá mostrarlhe os poderes religiosos, a suntuosidade da sede da Igreja, o que significa esse tipo de poder. Ao levá-lo para o templo de Jerusalém, sede do poder religioso da época, o diabo o coloca no pináculo do templo para aplicar-lhe a tentação da fé. Ali, ele o tentará dizendo: “Se és Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordens a seus anjos a teu respeito, para que te guardem [...]. E eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra” (Lc 4,911).

Veja como o diabo é astuto: ele conhece a Palavra e, para tentar Jesus na fé, usa o Salmo 90. Portanto, não se deixe enganar por pessoas que usam a Palavra para

dominar, extorquir ou roubar. O diabo também se veste com roupas eclesiásticas, se a por algum tipo de pastor da Igreja para tentar as ovelhas. Se ele se travestiu de anjo para tentar Gemma, ele pode usar qualquer disfarce, inclusive um religioso. O biógrafo de Gemma escreveu várias vezes em sua biografia que ela era ingênua na fé, portanto, um alvo fácil para o diabo, que, sabendo disso, não desistiu dela até os seus últimos momentos. Mesmo com toda a sua ingenuidade, sua pureza de coração, contudo, ela não se deixou cair em tentação e seguiu o exemplo de Jesus, que a alertava constantemente sobre essas tentações.

Nessa agem bíblica, Jesus resiste à tentação respondendo ao diabo: “Não tentarás ao Senhor teu Deus” (Lc 4,12). A fé autêntica não tenta Deus, não coloca Deus à prova. Fé cega não significa cegueira da inteligência ou ingenuidade na crença em Deus. Por essa razão, Jesus vai ensinar aos seus discípulos: “Sede prudentes como as serpentes e sem malícia como as pombas” (Mt 10,16). Seja esperto, pois o diabo usa todas as estratégias possíveis, inclusive a Palavra de Deus, manipulando-a de acordo com os seus interesses, com vistas a ludibriar os imprudentes.

Simplicidade não é sinônimo de ingenuidade ou de falta de esperteza. Não ter malícia no coração não significa se deixar enganar. Pelo contrário, a malícia é atitude diabólica. A pessoa que se diz religiosa, mas que é maliciosa, usa do fermento do diabo, e não de Deus. Gemma Galgani não tinha malícia, como as pombas, e por isso tinha Jesus e seus mediadores tão próximos de si, mesmo que o diabo estivesse à espreita.

O diabo, vendo a resistência de Jesus, o deixou, mas prometeu voltar num tempo oportuno (Lc 4,13), mostrando quão oportunista ele é. Esse oportunismo do diabo nós encontramos também nos relatos de Gemma sobre essa figura horrenda, que vinha importuná-la e torturá-la quando ela mais necessitava de Deus. Selecionei aqui algumas agens do seu Diário e outros relatos em que Gemma fala da presença do diabo na sua vida, tentando-a das mais variadas formas.

O primeiro relato sobre o diabo que encontramos no seu Diário está no dia 21 de julho de 1900. Gemma diz não estar muito bem espiritualmente nesse dia, apesar de ter ido se confessar com Pe. Vallini, como havia prometido a Jesus. Esse sentimento de agitação não era bom sinal. Pelo contrário, era sinal de que o diabo estava por perto, rondando. Escreveu ela: “Esta tarde, como prometi a Jesus, fui confessar-me com o padre Vallini. Mas, saindo do confessionário, senti-me agitada e inquieta: era sinal de que o diabo estava perto. Infelizmente estava!”.[1] Gemma pressentia não apenas quando Jesus viria, mas também quando vinha o diabo, porém, os pressentimentos eram bem distintos. Enquanto a vinda de Jesus era precedida por um sentimento bom, de paz, a do diabo vinha precedida de agitação e inquietude, tanto por dentro quanto por fora. Sua agitação era perceptível, e ela era tentada a não fazer as costumeiras orações. Nesse dia em que Gemma recebe a indesejada visita do diabo, ela diz: “Bem que eu o vi mais tarde, quando fazia minhas orações. Interna e exteriormente, como o disse, já estava toda agitada; preferiria deitar-me e adormecer, sem rezar; mas não, quis experimentar”. [2]

Como disse, nessas ocasiões, o diabo a deixava atordoada e sem vontade de rezar, pois assim ele a encontrava mais vulnerável. Gemma não desistia de rezar, mas o diabo também não desistia de tentá-la. Diz ela: “Comecei a rezar três invocações que costumo dizer todas as tardes ao Sagrado Coração de Maria; apenas ajoelhei, o inimigo, que já há algum tempo estava escondido, apareceume em forma de um homem bem pequeno e tão feio, que fiquei horrorizada”.[3] Esse é um dos primeiros relatos em que ela descreve a aparência do diabo. “Ela era assustadora”, diz Gemma.

O diabo não fazia questão de ter boa aparência para seduzi-la, porque sua estratégia não era sedução, mas agressão. Ele vinha na sua aparência real, como um homenzinho muito feio. Mais tarde, ela vai descrever outros detalhes da aparência do diabo, como vimos na introdução deste livro.

Gemma escreve nesse dia que tentou de várias formas se livrar do diabo, usando as armas que ela tinha, ou seja, a oração, mas que foi em vão. O diabo estava determinado a agredi-la. Quando Gemma viu que não escaparia das agressões, apegou-se ainda mais à oração, o que foi entendido pelo diabo como uma provocação:

A minha mente estava toda voltada para Jesus e nada me distraía dele; continuei a rezar, mas de repente ele começou a espancar-me nas costas e mais abaixo; foram muitas pancadas. Fiquei meia hora nesta tempestade; certifiquei-me de que o recolhimento, que Jesus frequentemente me pede, é o que mais lhe desagrada. Roguei a Jesus, mas que nada.[4]

Quanto mais Gemma rezava, mais o diabo a agredia. Ela recebia socos nas costas e em outras partes do corpo, e não conseguia se livrar dele. A imagem que ela usou para descrever esse momento de tortura foi “tempestade”. Ela se sentia dentro de uma tempestade violenta, sem poder sair. Estava quase se entregando, pois suas forças se esvaíam, mas deixar que o diabo a agredisse, sem reagir, seria curvar-se a ele. Continua, então, seu relato: “Entretanto, chegava a hora em que deveria obedecer, isto é, deitar-me; mas, deste modo, me desagradava: não havia feito o exame de consciência. Rezei ao meu anjo da guarda e ele me ajudou de modo bem singular”.[5] Enfim, ela conseguiu se conectar com seu anjo da guarda, e ele veio em seu socorro. No final dessa peleia, após a aparição do seu anjo da guarda, Gemma escreve: “Apenas apareceu, pedi-lhe tanto que não me deixasse só. Pediu-me que aguardasse; fez-me ver o diabo que estava bem distante, mas me afligia sempre. Pedi-lhe que permanecesse comigo toda a noite [...]”. [6]

Com a chegada do anjo, o diabo se afasta, para retornar num momento oportuno. Gemma sente medo de ficar sozinha e pede ao anjo que permaneça com ela, mas ele diz que não pode:

Ele me respondeu: “Mas eu tenho sono”. “Mas não”, repeti-lhe, “os anjos de Jesus não dormem”. “Contudo, devo repousar-me”, respondeu (achei que brincava); “aonde vou me deitar?”. Eu quis dizer-lhe que deitasse ali, e eu ficaria rezando; mas, então, desobedeceria. Disse-lhe que ficasse perto de mim; prometeu que o faria.[7]

Gemma conseguiu que o anjo permanecesse com ela naquela noite, pois seria difícil dormir depois de tudo o que o diabo lhe havia feito. Sentindo-se protegida pelo anjo, ela conseguiu, por fim, adormecer. Isso aconteceu num sábado, mas o diabo não desistiu, e, no dia seguinte, domingo, voltou a atormentá-la.

Domingo, dia 22 de julho, Gemma volta a ter a indesejada visita do diabo e é novamente espancada por ele. Durante o dia, ela tinha ido à missa, comungara e pensara estar livre do diabo por conta disso, porém, não foi bem assim. À noite, ele volta a atormentá-la, desta vez com mais agressividade ainda. Assim ela escreve: “Comunguei, mas Jesus não me fez sentir nada; agora, porém, me sinto tranquila. Hoje, pois, que acreditava de fato estar livre daquele estúpido animal, ele me bateu demais”.[8] Gemma descreve o diabo como um “estúpido animal” e diz que ele aparece também sob a forma de um “cão preto”. Se no sábado ele tinha vindo como um pequeno homem, no domingo lhe apareceu como um cão negro. Assim, ela escreveu no seu Diário: “Eu fui justamente com a intenção de dormir, mas, tudo ao contrário: começou com certos murros que eu temia morrer. Tinha a forma de um grande cão negro que colocava as patas nos meus ombros”. [9]

Mais uma vez, Gemma foi esmurrada nos ombros pelo diabo, mas agora ele assumia a forma de um animal e usava suas patas. Ela também descreveu parte de seus sentimentos: “Fazia-me muito mal, porque me fez sentir todos os ossos. Creio que chegavam a se quebrar. Em uma das vezes, ao pegar água benta, torceu meu braço, tirando-me o osso do lugar; Jesus tocou-o e logo tudo serenou”. [10]

Gemma recorria a todos os seus recursos para afugentar o diabo: orações, água benta, relíquia da santa cruz, o sinal da cruz. Clamava ainda pelo seu anjo da guarda, por Nossa Senhora e por Jesus, e um deles sempre vinha em seu socorro. Dessa vez, foi Jesus quem veio socorrê-la, e sua presença afugentou o diabo e lhe trouxe calmaria. Sobre seus recursos e o socorro de Jesus, Gemma completa:

Depois me lembrei de que tinha no pescoço a relíquia da santa cruz; fiz com ela o sinal da cruz e fiquei tranquila. Logo agradeci a Jesus, que me apareceu, porém, rapidamente: reanimou-me de novo a sofrer e a lutar e deixou-me. Depois não consegui mais me recolher; de qualquer modo, Deus seja bendito. [11]

Além de livrá-la do diabo, Jesus a reanimou para que não desistisse das batalhas, pois o diabo só pode ser vencido com muita oração. Gemma sabia que, para adentrar no céu e estar definitivamente com Jesus, ela teria que vencer o diabo e suas articulações e tentações.

O diabo volta a atormentá-la na segunda-feira, 23 de julho, pelo terceiro dia consecutivo. Quando Gemma pensa que está tudo bem, ei-lo novamente diante dela para torturá-la, não a deixando dormir. Nesse dia, Gemma trava um diálogo com o diabo. Antes, porém, descreve-o: “Deitei-me e adormeci; após quinze minutos (porque meus sonos são sempre breves), vi no fundo do leito, no chão, o homenzinho de sempre, bem negro, e pequeno. Percebi quem era e não me aborreci [...]”. [12]

Nesta ocasião, Gemma está disposta a enfrentar o diabo com coragem, a não se aborrecer pela presença do indesejado. Enfrenta-o, então, dizendo: “‘Mas nesta hora recomeça a história de não me deixar sequer dormir?’ ‘Ora, dormir?’,

respondeu-me. ‘Por que não reza?’”.[13] O diabo é tão ousado que questiona o porquê de ela não ter rezado antes de dormir. Gemma ia dormir sem rezar, e o diabo, para insultá-la, dá a entender que está ali porque ela não rezou. Gemma retruca, dizendo: “Rezarei mais tarde, agora durmo”. O diabo não deixa por menos e diz: “São dois dias, vê! Que não consegue mais recolher-se; Bem, deixa-me fazer o que eu penso”. [14]

E o relato de Gemma continua: “Começou a dar-me uns golpes; peguei o crucifixo, mas foi em vão. Estava para montar-me nas costas e bater-me o quanto podia. Não sei o que aconteceu; vi-o montar numa fúria e rolar por terra”.[15] O leitor pode imaginar aqui um homenzinho negro, montado nas costas de Gemma, espancando-a o quanto pode, mesmo ela tendo nas mãos o crucifixo. Porém, apesar de estar dominada e ser espancada por ele, Gemma não perde a coragem. O crucifixo a faz valente, e ela luta com o diabo como quem luta com outro ser humano, sem medo. Assim diz ela: “Eu ri: hoje me pareceu que não havia medo”.

Diante desse comportamento corajoso de Gemma, o diabo lhe diz: “Hoje não lhe posso fazer nada, mas lhe afligirei outra vez”. E Gemma, então, pergunta: “Mas por que não? Se outras vezes pôde, poderá também agora: eu sou a mesma, tenho somente Jesus na corrente do pescoço”.[16] Nesse dia, Gemma se sentia mais fortificada e enfrentou o diabo, fazendo com que ele desistisse de agredi-la, mas ele prometeu voltar quando ela estivesse mais debilitada. Assim é o diabo: ele sempre volta quando encontra uma oportunidade, uma debilidade.

O diabo, então, vai embora, mas não sem antes ameaçá-la: “Disse-me então: ‘Aquela... que está no quarto, que lhe fez? Colocou-lhe isso no pescoço, pois verá’”.[17] O diabo se referia à pessoa que havia dado a Gemma a corrente com o crucifixo, provavelmente a Sra. Giannini, sua mãe adotiva, que estava no quarto ao lado.

Gemma diz que se divertiu à custa do diabo. Se normalmente era ele quem dela zombava, nessa ocasião foi ela quem zombou dele, como podemos ver na sequência das suas anotações:

Eu insisti que não tinha nada, porque dormia (estava em êxtase), mas entendia o que ele queria dizer. Depois destas palavras, fiquei contente no leito, e ria, ouvindo as palavras grosseiras que dizia e a raiva que o devorava. Disse-me que, se rezo, me faz sofrer ainda mais. Não me importa, respondia-lhe. Sofrerei por Jesus. Enfim, hoje me diverti muito: via-o tão enraivecido; prometeu afligir-me. [18]

Esse relato de Gemma sobre o diabo mostra certa familiaridade com ele; não no sentido de que havia entre eles algum pacto, mas no sentido de que a presença dele era tão frequente que ela parecia já não temê-la. Esse sentimento transparece quando Gemma está fortalecida pela oração. Porém, nos momentos de fraqueza espiritual, ela ainda o teme muito e não tem forças para enfrentá-lo, como fez nesse dia. Mesmo que ela o enfrentasse com tanta coragem, contudo, ele não deixou de agredi-la, como mostra a continuação das suas anotações:

Esperei-o esta tarde, mas graças a Deus não pôde durar muito: deu-me três batidas tão fortes que depois, para ir até o leito, demorei muito. Em certos momentos, corre tanto e com tanta fúria, que não sei o que tem. Afligiu-me de tal modo que apenas podia me mover.[19]

Ela escreve que já pressentia a vinda do diabo e o esperava preparada. Foi agredida por ele, que a deixou com o corpo todo dolorido, e o via correr velozmente de um lado para o outro, completamente furioso. A fortaleza espiritual de Gemma o deixava enfurecido: a oração enfraquece o diabo, e por isso ele se enfurece.

Na sexta-feira, dia 3 de agosto, Gemma volta a enfrentar o diabo numa batalha incansável e é mais uma vez socorrida pelo seu anjo da guarda. Como de costume, ela pressente a chegada do diabo:

Nesta tarde, senti por não poder recolher-me; rezei poucas orações vocais e deitei-me. Para dizer a verdade, previa contrariedades, porque Jesus me avisara havia alguns dias, dizendo-me: “Uma última batalha do inimigo a tentará, mas será a última, porque esta é forte”.[20]

Jesus já havia prevenido Gemma dessa batalha e a alertado sobre sua intensidade, mas também a avisara de que seria a última. Gemma agradece a Jesus por alertá-la e por fortalecê-la nas lutas contra o inimigo: “Não pude fazer outra coisa senão agradecer a coragem que sempre me dera, e pedi-lhe que a concedesse também no último momento, isto é, amanhã à tarde”. [21]

Quando Gemma se sentia preparada, como nesse dia, ela ficava mais tranquila, mesmo sabendo da iminente presença do diabo, que não tardaria. Assim ela descreve os momentos que antecedem sua chegada:

Estava bem, deitei-me, com a intenção de dormir; o sono não tardou, e apareceume quase de repente um homenzinho bem pequeno, todo coberto de pelo negro. Que susto! Pousou as mãos sobre o leito, julguei que fosse bater-me. “Não, não”, disse, “não lhe posso bater, não tenha medo”, e ao dizer assim alongou-se.[22]

Vemos aqui que o diabo aparece quando ela adormece. Na verdade, não é sono: Gemma está em êxtase. Ao vê-lo, ela se assusta, e mais uma vez descreve suas características, reforçando as que já tinha mencionado antes: homem bem pequeno, com o corpo todo coberto de pelo negro, um misto de gente e animal,

algo de fato assustador. Nesse dia, contudo, ela relata que o diabo se alonga diante dela, ou seja, aumenta de tamanho. Nessa hora, ela clama por Jesus: “Chamei Jesus em socorro, mas não veio; nem por isso deixou-me: depois de invocar o seu nome, logo me senti livre, foi tudo num instante”. [23]

Jesus poderia até tardar em atendê-la, mas não falhava. Desta vez, ele chegou mais rápido, disse ela, pois sabia da intensidade do ataque do diabo. Escreveu Gemma:

Chamei Jesus outras vezes, e jamais foi tão pronto como ontem à tarde. Depois, quando o demônio o viu, quanto se enraiveceu! Rolou por terra, xingou, fez, enfim, um último esforço para conseguir levar embora o crucifixo que eu tinha comigo, mas caiu logo para trás.[24]

O crucifixo que Gemma conservava junto de si era uma arma poderosa contra o diabo. Bastava vê-lo para que ele ficasse desconcertado. Nesse dia, Gemma se viu entre Deus e o diabo, e Deus venceu mais essa batalha, defendendo-a dos ataques do inimigo. E Gemma mais uma vez agradeceu a Jesus por defendê-la:

Quanto foi bom Jesus comigo esta tarde! O diabo, depois daquele último esforço, voltou-se contra mim dizendo que, por não poder fazer nada, queria atormentar-me toda a noite. Não, lhe disse; chamei o anjo da guarda, ele abriu suas asas, pousou-as sobre mim, abençoou-me e o zombeteiro escapou. Jesus seja agradecido.[25]

Se não fosse a proteção do anjo, Gemma teria sido torturada a noite toda pelo diabo, conforme sua ameaça. Além da proteção de Jesus e do seu anjo da guarda, Gemma naquele dia recebeu também o auxílio de Nossa Senhora das Dores, cuja

presença foi invocada mediante o seu escapulário, como vemos no relato que ela faz a seguir:

Esta manhã fiquei sabendo que, no momento que o diabo se enfureceu, colocaram-me no pescoço o escapulário de Nossa Senhora das Dores, e compreendi que, quando o demônio o quis tirar-me do pescoço, não o pôde por intercessão dela. A Nossa Senhora das Dores a nossa gratidão.[26]

Gemma é só agradecimento depois de tão árduo confronto e de tão poderosa proteção. Não era para menos, pois essas lutas espirituais faziam com que suas forças se esvaíssem, deixando-a esgotada fisicamente, mas fortalecida espiritualmente.

Seu fortalecimento espiritual foi momentâneo, pois a espiritualidade é abastecida pela oração. Se nós negligenciamos a oração, enfraquecemo-nos espiritualmente e abrimos brecha para os assaltos do diabo. Foi o que ocorreu com Gemma em 20 de agosto daquele ano. Nesse dia, Gemma relata sua negligência na oração e é repreendida pelo anjo por causa disso: “Ontem, durante o dia, tive que falar de novo com o anjo da guarda; reprovou-me, sobretudo, pela minha negligência na oração e outras coisas semelhantes: tudo sempre a respeito do olhar, ameaçandome severamente”. [27]

O anjo recomendou que ela contasse a Jesus suas negligências e a avisou de que ela seria por ele corrigida e de que talvez, por causa disso, fosse açoitada novamente pelo diabo: “Ontem à tarde, na igreja, de novo me lembrou aquilo que me havia dito durante o dia, isto é, que devo dar conta a Jesus”.[28] Embora Jesus tudo soubesse de sua vida e de seu comportamento, o anjo recomendava que ela fosse honesta com ele e lhe falasse de suas fraquezas na oração. A seguir, Gemma escreve:

Enfim, antes de ir para o leito, no ato de pedir-lhe a bênção, avisou-me que Jesus hoje, 20 de agosto, queria permitir-me um assalto do demônio, e isto porque fui, por alguns dias, negligente na oração. Avisou-me que o demônio havia feito todo o esforço para me impedir de rezar, em especial mentalmente, o dia todo, e me havia privado também das suas visitas (quero dizer, do anjo da guarda), mas só por hoje.[29]

Vemos, assim, que a fraqueza de Gemma na oração é resultado da tentação do diabo. Estamos mais uma vez diante de um dilema: seria a fraqueza de Gemma na oração que possibilitava a ação do diabo, ou seria a ação do diabo que a enfraquecia na oração? Seja como for, o que sabemos é que a negligência e o enfraquecimento na oração abrem caminhos para que o diabo aja.

Nesse contexto de relapso espiritual e fraqueza na oração, Gemma fala sobre seu estado de distração na comunhão, que demonstra que, apesar de ter comungado, continuava enfraquecida e vulnerável às ações diabólicas: “Fiz a santíssima comunhão, mas em que estado! Tão distraída, e esta noite tive um sonho violento preparado pelo demônio”. [30]

Quando a mente e o coração estão longe de Jesus, o corpo e a alma ficam mais perto do diabo. Gemma, nesse dia, descreve os momentos de terror com o diabo da seguinte maneira:

Ó Deus, o momento do assalto chegou; foi forte, direi, quase terrível. Nenhuma bênção, nenhum escapulário bastava para impedir a tentação mais bruta que se possa imaginar; o demônio era tão horroroso que fechei os olhos e não os abri mais, senão quando estava inteiramente livre.[31]

Nesse dia, ela viu o diabo mais feio e mais assustador do que das outras vezes. Ainda sobre essa fatídica ocasião, Gemma diz: “A certo ponto em que a tentação parecia mais forte, veio-me à mente invocar o S.P. [Santo Papai] de Jesus, gritei: ‘Eterno Pai, pelo sangue de Jesus, livrai-me’”.[32] Diante do apuro, Gemma clama a Deus, mas isso não impede que o diabo a ataque. Diz ela: “Não sei o que aconteceu: o diabo me deu um empurrão tão forte, atirando-me embaixo do leito, fazendo-me bater a cabeça com muita força no chão; senti muita dor, perdi os sentidos, permanecendo caída por terra. Depois de tanto tempo, ainda não me restabeleci”. [33]

Gemma já tinha sido diversas vezes agredida pelo diabo, mas nunca de forma tão violenta quanto essa. Dessa vez, ela chega a desmaiar e, quando retoma os sentidos, sente dores violentas por todo o corpo, custando a se restabelecer. Além das dores físicas, ela tem dores emocionais. Diz que ou todo o dia sensível, com vontade de chorar, e continua seu relato: “Sentia uma dor tão viva, que jamais havia experimentado”.[34] Para se consolar e fortalecer, Gemma entrega essa dor para a sua purificação.

No dia 25 de agosto, sábado, o diabo volta, mas agora disfarçado de seu anjo da guarda. Gemma tem os mesmos pressentimentos que antecediam a vinda do diabo, mas custa a perceber que aquele que está diante dela não é o seu anjo verdadeiro, mas o diabo disfarçado. Nesse dia, seu sentimento é de aridez, e é nesse clima de deserto espiritual que o diabo gosta de se manifestar. Assim ela escreve:

Esta manhã, na comunhão, nenhuma consolação, tudo com frieza. Seja feita a santíssima vontade do meu Deus. Hoje que acontecerá? Jesus não vem, nem sequer o sinto perto. Vou para me repousar e, diante de mim, vejo o anjo da guarda, que reconheço por meu; mas fui tomada de um pouco de medo e de perturbação também, interiormente.[35]

Assim que se deita, Gemma vê o “anjo”, mas estranha o fato de sentir medo e perturbação em vez de paz e segurança, como era de costume. O “anjo” que ela vê diante de si é idêntico ao seu anjo, então ela não entende por que está com esses sentimentos negativos. O relato de Gemma mostra a sua desconfiança: “Tantas vezes sinto medo quando vejo aparecer qualquer um; mas logo me a e termina em consolação. Ontem, ao contrário, a perturbação crescia e por fim me tocava, sacudia: o que jamais me aconteceu, quando é verdadeiramente o meu querido anjo”. [36]

Gemma começa a ter desconfiança frente a esses sentimentos negativos que se apoderam dela diante do suposto anjo, e diz: “Em suma, estava incerta sobre isto quando me perguntou: ‘Quando vai confessar-se?’. ‘Esta tarde’, respondi. ‘E por quê? Que vai fazer tão frequentemente? Não sabe que seu confessor é um embrulhão?’”.[37] Ao ouvir isso, Gemma percebe que está sendo enganada e que aquele que está diante dela não é seu anjo da guarda, mas o diabo. Diz ela: “Entendi do que se tratava e fiz o sinal da cruz várias vezes; agora entendi por que me agitava. O meu anjo nunca fala desse modo”. [38]

Gemma se surpreende porque talvez fosse a primeira vez em que o diabo usava aquele disfarce para tentar ludibriá-la. Ao ver que é o diabo, Gemma busca reunir todas as suas forças para lutar contra ele:

Fiquei por mais tempo lutando desse modo, e prometi que, para seu desprezo, iria confessar-me, e fui de fato. Chamava Jesus, a minha Mãe, e nada! Nenhum. Depois de algum tempo, apareceu o anjo da guarda verdadeiro, obrigando-me a confessar todas as coisas, e falou-me de duas que deveria falar [ao confessor]. [39]

Diante da constatação da armadilha do diabo, Gemma recorre aos seus protetores, e é quando vem em seu socorro o anjo verdadeiro, que a obriga a fazer a confissão, pois o diabo tentava dissuadi-la desse propósito, inclusive desqualificando o seu confessor, chamando-o de embrulhão. A confissão lhe daria proteção contra o diabo, que não gosta de quem busca o sacramento da reconciliação. Bastou o anjo verdadeiro chegar para tudo mudar ao seu redor e a paz voltar a reinar. Diz Gemma: “A perturbação e o medo do inimigo logo desapareceram e veio a calma, até que voltasse a confessar-me: não quis entrar em nenhum acordo. Com repugnância falei, mas pouco. Desejo falar todas as coisas escrevendo”. [40]

Vemos aqui que Gemma não estava muito disposta a falar nem a escrever sobre essas coisas desagradáveis em seu diário, sobretudo o fato de ter se deixado enganar pelo diabo e de ter tido resistência à confissão. Nesse dia, Gemma encerra sua anotação no diário dizendo que recebeu, por fim, a visita de Nossa Senhora, que a consolou de tantas perturbações. Esse foi o último registro de Gemma em seu diário sobre os assaltos do diabo, o que não quer dizer que ele a tenha deixado em paz. Ela falará dele também nas suas cartas e ao descrever ao seu diretor espiritual seus êxtases, que veremos no capítulo seguinte, juntamente com outras manifestações paranormais que ela manifestava em certos momentos de sua vida.

Nas cartas direcionadas ao seu diretor espiritual, Gemma vez por outra fazia referências à presença do diabo na sua vida e às tentações que sofria. Numa delas, Gemma escreve que o diabo lhe apareceu na pessoa de seu confessor, monsenhor Volpi, e a enganou se ando por ele. Disse ela que havia recebido do seu confessor a proibição absoluta de sair de casa desacompanhada. Porém, certo dia, a tia que cuidava dela em Lucca não estava na cidade, e ninguém podia vigiá-la. Gemma, desobedecendo ao seu confessor, saiu sozinha para os exercícios espirituais das quarenta horas que vinha fazendo. Tinha acabado de sair de casa quando percebeu que um homem a seguia. Ela apertou o o para

chegar logo, mas, como estava ainda distante do seu destino, acabou por entrar na igreja de São Miguel. Percebeu, então, que o homem que a vinha seguindo também entrou na igreja, mas logo desapareceu. De repente, ela viu o seu confessor na igreja e foi mais que depressa confessar, pois se sentia incomodada por ter lhe desobedecido e, ao mesmo tempo, aliviada por ter a oportunidade de se livrar daquele pecado.

Diante do confessor, o primeiro pecado que ela confessou foi o de ter saído sozinha de casa, de ter escapado de casa sem autorização, mas, ao contrário do que ela imaginava, ele não a repreendeu como de costume. Pelo contrário, disse que ela tinha feito muito bem em ter saído. Ela continuou confessando, e o suposto confessor aprovava tudo o que ela dizia, respondendo que ela estava certa. Gemma achou aquilo muito estranho, pois essa não era a postura de seu confessor, um homem rígido com os seus pecados, mas nem se deu conta de que aquele com quem fazia a confissão não era de fato ele, e sim o diabo disfarçado.

Ao sair do local, o homem que antes a seguia voltou a segui-la até a igreja da Santíssima Trindade. Gemma, vendo que aquele homem estranho a seguia, correu até o convento das freiras, a fim de se livrar dele, e suplicou que alguém a acompanhasse, porque sentia medo. Contou o que estava acontecendo, mas as freiras, devido às suas ocupações, não quiseram acompanhá-la naquele momento e buscaram entretê-la um pouco, distraindo-a daquilo que ela havia contado.

Gemma disse que estava muito assustada, inquieta e agitada, mas as freiras tanto fizeram e tanto disseram que chegaram a confundir sua cabeça. Nesse ínterim, ela viu um crucifixo e, como de costume, sem pensar, aproximou-se dele, fez o sinal da cruz e começou a rezar . Diante do crucifixo, ela conversou com Jesus e falou sobre o ocorrido, que muito a assustara. Gemma não sabia quanto tempo ficara entretida diante da cruz, mas ali ela teve a revelação de que aquele que lhe parecia ser seu confessor, com a mitra na cabeça, nada mais era que o diabo, e Jesus lhe disse também que durante todo aquele dia o diabo a havia seguido. Esse relato de Gemma não traz a data exata, mas ele se encontra na coleção de escritos dela ao seu diretor espiritual, Pe. Germano, na obra La gloria de la cruz. [41]

[41]

Em outra carta ao seu diretor espiritual, Gemma volta a falar do diabo, que a tenta constantemente, sobretudo depois que Pe. Germano lhe pediu que fizesse alguns “protestos”, ou seja, atos de desagravos contra o diabo, na igreja dos Franciscanos. Ela os havia feito em 25 de maio, uma sexta-feira, e desde então o diabo não lhe deu sossego. Disse ela: “Essa infâmia besta me desgostou muito, e desde então tem vindo me tentar cada vez mais, com assaltos cada vez mais furiosos”.[42] Disse ela também nessa carta que não ava sequer uma noite sem que o diabo viesse atormentá-la. Relatou que algumas vezes ele se ou novamente pelo seu confessor, e ela, convencida de que era de fato o seu confessor, só descobriu o engano ao confessar, demorando muito para se convencer de que era o diabo que a ouvia. Vemos que ele encontrou uma boa estratégia para enganá-la, se ando pelo seu confessor, mas não era a única, como podemos conferir em outros relatos.

Em outra ocasião, Gemma escreveu que o diabo se apoderou de sua irmãzinha Júlia e, por meio dela, atormentava-a, impedindo que rezasse ou escrevesse ao seu diretor. Disse que no domingo, por volta das 13h30, estando na igreja com sua irmã pequena, esta começou a chorar, querendo que Gemma voltasse a todo custo para casa. Gemma teve que deixar a igreja e voltar, mas, quando chegou a casa, a irmã não sossegou e continuou a importuná-la a tarde toda. Júlia lhe pedia certas coisas que não eram comuns na sua idade e dizia certas palavras obscenas e de soberba que só podiam ter sido ditadas pelo diabo. Por fim, para assustá-la, Gemma pegou a pena para escrever ao seu diretor e contar-lhe tudo, mas a irmã lhe tomou a pena das mãos e não lhe devolveu mais. Ela, de todas as maneiras, lhe dizia que queria escrever ao Pe. Germano, mas a irmã se colocava a gritar como se estivesse louca. “Eu acreditei”, disse ela, “que não era Júlia quem falava, pois ela é uma menina boa, e estou segura de que não fazia de sua própria vontade”. Disse ainda que a irmã estava quieta e contente naquela manhã, até precisamente a hora em que se deu conta de que Gemma havia recebido uma carta de Pe. Germano.

Pelo que Gemma relata, o diabo encontrou uma forma de atormentá-la, entrando no corpo de sua irmã caçula, e isso se deu quando ela recebeu a carta do seu diretor espiritual, que muito incomodou o diabo. Gemma, depois, se deu conta de que o diabo havia se instalado no corpo da irmã enquanto elas estavam na igreja, e que o tentador acreditava ter saído vitorioso por ter se apoderado de Júlia e desviado Gemma dos seus propósitos. O diabo gritava, ainda, ao seu ouvido: “Guerra, guerra a teu pai e a vossas almas”.[43] Gemma escreveu que esse era um grito que ela vinha ouvindo havia vários dias. Por outro lado, ela também ouvia Jesus dizer: “Filha, eu tenho lhe dado um guia seguro, um dos meus sacerdotes que te serve de conselheiro e de diretor. Colocando-se nas mãos deste guia iluminado, chegarás até mim”. [44]

Enfim, Gemma se via entre Deus e o diabo, e isso lhe era torturante. Queria estar somente com Deus, mas para isso tinha que enfrentar as tramas do diabo e vencê-lo todos os dias.

XV

Os fenômenos paranormais de Santa Gemma Galgani

Um dos aspectos que se destacam na vida de Gemma Galgani são os fenômenos paranormais que ela desenvolveu, como visões, revelações, glossolalia religiosa, manifestações sobrenaturais miraculosas, êxtases e estigmas, dos quais tratarei neste capítulo, recordando alguns desses inúmeros momentos em que Gemma era transportada para o mundo espiritual e lá conversava com os seres sobrenaturais, entre eles anjos e demônios. Aqui, porém, darei ênfase aos seus êxtases e estigmas, por serem os mais intrigantes e relevantes. Os demais são desdobramentos desses dois fenômenos, mas, mesmo assim, serão citados e referenciados. Os seres sobrenaturais que interagiam com Gemma em seus êxtases, somente ela os via, mas os estigmas que ela desenvolvia eram visíveis a todos, exceto quando ela os ocultava, como quando usava luvas para esconder as mãos chagadas e quando limpava o sangue que lhe escorria da fronte, por causa da coroa de espinhos que ela recebia de Jesus. Mas, antes de tratar desses fenômenos na vida de Gemma Galgani, explicarei brevemente o que são esses fenômenos e como eles se manifestam.

Êxtase é um estado em que a pessoa é transportada para fora de si e do mundo sensível, por efeito de exaltações místicas. Gemma Galgani era uma mística, mas não se sabe se ela foi considerada mística por causa desses fenômenos ou se por ela ser mística é que esses fenômenos se manifestavam em sua vida. Uma pessoa mística pode entrar em estado de êxtase por causa de um sentimento muito intenso, seja ele de alegria, prazer ou iração, seja ele de temor. Podemos entender, portanto, por que Gemma entrava em êxtase quando via, por exemplo, o coirmão Gabriel, Nossa Senhora das Dores, Jesus, ou mesmo o diabo. Se os enviados de Deus eram motivo de intensa alegria, que a transportava para um mundo fora da sua realidade corporal, a presença do diabo causava-lhe tanto pavor que ela era transportada da mesma forma, só que para um mundo em que ela não queria estar, do terror e da tortura, no qual era tentada a sair do caminho de Deus. Enquanto Deus e seus enviados possibilitavam um prazer intenso, a ponto de ela nem querer voltar à realidade, o diabo lhe causava tanto pavor que ela não via a hora de sair desses pesadelos, que na verdade não eram pesadelos, mas êxtases com sentimentos inversos, que serviam como contraponto para o

paraíso que ela desejava. Só quem conheceu a baixeza do inferno sabe valorizar a altura do céu, e Gemma saía dos embates com o diabo enfraquecida fisicamente, mas fortalecida espiritualmente e ainda mais desejosa e necessitada de Deus. Esses dilemas eram vividos, em sua maioria, estando em êxtase.

O estado de êxtase é visto por alguns profissionais da área médica – psiquiatras, por exemplo – como uma patologia que faz a pessoa, a partir de uma ideia fixa, perder a sensibilidade e a motricidade, fatores que Gemma relata diversas vezes ao voltar dos seus estados de êxtases. Houve, por exemplo, uma ocasião em que descreveu um confronto com o diabo no qual ficou arrasada fisicamente. Ao voltar, conforme conta, encontrava-se imóvel, estirada no chão, sem saber como fora parar ali.

Esses episódios preocupavam seus familiares e amigos a tal ponto que Gemma se envergonhava deles, sobretudo de seus estigmas, que, como os êxtases, eram incompreendidos por muitos. Até mesmo seu diretor espiritual e seu confessor levaram tempo para entender que Gemma era dotada de fenômenos que fugiam à normalidade, era uma pessoa mística e, ainda em vida, revelava traços da santidade futura.

Ao procurar o significado mais aprofundado do estado de êxtase, encontrei algumas explicações que ajudam a entender melhor aquilo que Gemma Galgani viveu. A palavra “êxtase”, oriunda do grego ékstasis, significa uma sensação de sair da própria mente, ou seja, um estado de transe motivado por alguma perturbação profunda, seja ela boa ou má. Acontecimentos, reais ou imaginários, que perturbam a mente de tal forma podem fazer com que a pessoa seja transportada para outra realidade, como era o caso de Gemma, que, nos seus momentos de êxtase, se desligava totalmente da realidade para ar outras, só vividas por ela e por seus interlocutores espirituais. Gemma escreveu algumas vezes, ao tratar desses fenômenos, que poderiam ser coisas da sua cabeça. Por essa razão, alguns médicos, psicólogos ou parapsicólogos consideram o êxtase um transtorno, ou uma perturbação mental, o que, em parte, não deixa de ser verdade, porque Gemma se encontrava nesses momentos profundamente

perturbada pela presença na sua vida de seres que não pertenciam a este mundo, fossem eles de Deus ou o diabo.

Assim, seus êxtases eram momentos de arrebatamento, em que ela se desprendia subitamente da realidade, saindo de si e elevando-se, como disse, para outra realidade, mesmo que estivesse junto com outras pessoas, como algumas vezes aconteceu. Quem estava à sua volta a via desligada, com um olhar distante, perceptivelmente fora de si, e aguardava que retornasse ao estado normal para poder interagir com ela.

Uma pessoa pode entrar em transe num momento de intensa concentração na oração, como ocorreu muitas vezes com Gemma. Seus momentos de oração e compenetração eram profundamente intensos, o que facilitava seu o aos mais profundos sentimentos religiosos. O estado de transe em que o momento de êxtase coloca uma pessoa pode ser associado também ao jejum intenso, com fins religiosos, à abstinência sexual e à autoflagelação, próprios dos que buscam excessivamente a santidade, como era o caso de Gemma Galgani. Esses fatores não estão descartados como favorecedores dos momentos de êxtase vividos por ela, a santa mística do século XX.

O estado de êxtase é também comparado ao estado hipnótico e de sono. Algumas vezes, ao se referir à saída do seu êxtase, Gemma dizia “ao acordar”, ou seja, era como se ela tivesse dormido e sonhado ou tido um pesadelo com aquela realidade vivida. O que se sabe é que são estados “fásicos”, isto é, vividos por apenas alguns momentos, numa fase do dia ou da noite, durante o sono profundo, na iminência dele, ou mesmo em vigília. Gemma entrava em êxtase em qualquer um desses momentos, mas, sobretudo, quando estava em oração. Independentemente do momento em que acontece, o êxtase é uma espécie de “sonho lúcido”, ou seja, a pessoa está lúcida, mas é como se tivesse tido um sonho. A diferença é que as marcas físicas das situações vividas em êxtase ficavam visíveis em seu corpo, por exemplo, quando era agredida pelo diabo. Nos sonhos, essas marcas não aparecem, elas estão apenas na memória de quem sonhou.

Das ocasiões de êxtase, Gemma voltava com o corpo todo dolorido e com marcas, oriundas das chagas de Jesus ou das agressões que sofria do diabo. Ela dizia que, às vezes, até fraturas tinha, mas essas eram sanadas pelas mãos de Jesus, que vinha em seu socorro. Assim, em seus momentos de êxtase, seu espírito viajava para outros mundos, ando, por um lado, divindades e espíritos que corrigiam suas falhas, para que ela se tornasse mais perfeita, e, por outro lado, espíritos malignos, do diabo, que a tentavam para se desviar do caminho de Deus, desqualificando-a.

Enfim, Gemma vivia, de fato, o êxtase, que não pode ser confundido com loucura ou possessão. Gemma nunca foi diagnosticada como louca ou possuída, mas foi considerada uma pessoa santa e extremamente mística. Esse misticismo foi um fator preponderante para o reconhecimento e a declaração de sua santidade perante a Igreja, pois foi comprovado que ela era uma pessoa excepcional no que diz respeito à espiritualidade, com grau tão elevado que conseguia ainda na terra ar os seres celestes.

Vejamos, portanto, alguns dos momentos de êxtase de Gemma, embora eu não os transcreva na íntegra, já que muitos deles foram descritos antes, quando foram abordados seus encontros com Jesus, Nossa Senhora, São Gabriel e o diabo.

Sobre seus êxtases, ela os vivia de uma maneira muito particular. Quem estava por perto a via nesses momentos como que desligada do mundo, como disse antes, ou a ouvia conversando com os entes de seus contatos espirituais, como era o caso das pessoas mais próximas. Quando Gemma, por exemplo, morou com a família Giannini, sua amiga Eufêmia Giannini, que dormia num quarto ao lado do seu, ouviu muitas vezes Gemma, em êxtase, conversando com Jesus. Não eram simples momentos de oração em voz alta; eram diálogos de uma pessoa que estava diante de outra, neste caso, Jesus.

Alguns desses momentos foram anotados pela amiga e por outras pessoas de sua família adotiva e, posteriormente, transcritos taquigraficamente e publicados com o nome de Colloqui com Gesú (Colóquios com Jesus). Segundo Pe. Germano, “contando só os êxtases em que Gemma falava e era compreendida, temos uns 150 cuidadosamente escritos”. [1]

Um dos seus primeiros êxtases registrados por Eufêmia Giannini data de 5 de setembro de 1899, uma terça-feira. Nesse dia, Gemma conversou pessoalmente com Jesus; dizia: “Tu és o único amor de todas as criaturas. Tu, Jesus... a chama de meu coração. Meu Jesus, eu quisera amar-te com toda [minha alma]... Santos todos do céu, emprestai-me, por favor, vossos corações”.[2] Gemma, nesse êxtase, fazia uma profunda declaração de amor a Jesus, mas considerava o seu amor insuficiente. Ela queria ter um coração maior, capaz de amá-lo mais e mais, infinitamente, como ela se sentia amada por ele, como mostra a sequência da sua declaração:

Jesus, Jesus, mas te serei tão fiel que chegue a dar todo o meu coração? Dou-te, mas me dê-o maior. Se eu tivesse muitos corações, Jesus, e grandes, muito grandes, só a ti queria amar-te! E tu me queres tanto! Quisera amar-te muito, Jesus. Porém, quem te reduziu a este estado? Quem morreu para ti?[3]

Gemma promete a Jesus fidelidade sem limites, embora se sinta profundamente limitada. Promete dar o seu coração a ele, mas pede que ele o devolva maior, capaz de fazê-la amá-lo mais do que ela já o ama, porque ela se sente ingrata por ser tão amada por ele e não poder amá-lo da mesma forma. Na continuidade da sua conversa com Jesus, ela pede para sofrer por ele, pois essa é uma forma de demonstrar seu amor. Pede que ele coloque uma gota de seu sangue sobre o seu coração, para que ele veja como ela saberá corresponder ao seu amor.

Ela desejava ardentemente amalgamar o seu coração ao coração de Jesus, o seu

sangue ao sangue de Jesus; queria morrer de amor por ele, e pedia isso nos seus êxtases. Dizia que a vida não tinha nenhum sentido sem ele. Reconhecia no Jesus sofredor, com quem ela dialogava em êxtase, a mais estupenda obra do amor de Deus, como havia constatado São Paulo da Cruz. “Os espinhos, a cruz, os cravos, tudo é obra de amor: é assim que se deve amar?”,[4] perguntava Gemma a Jesus, e concluía dizendo que tudo ela sacrificaria por ele, que lhe seria sempre fiel e que ter se encontrado com ele naquele dia tinha sido um belo presente. Era o diálogo de uma jovem enamorada, apaixonada pelo Senhor.

Não há, por outro lado, registro algum da fala de Jesus, porque somente Gemma a ouvia. Eufêmia Giannini só registrou as falas de Gemma, e não as de Jesus, o que indica que Gemma falava com Jesus na sua própria língua. Ao final desse diálogo – ou monólogo, para quem a ouvia –, Gemma recebe a cruz de Jesus, dizendo: “A recebo de boa vontade, Jesus [a cruz]. Faça-se a tua vontade, não a minha”.[5] Aqui Gemma repete a fala de Maria ao receber o anúncio do anjo Gabriel (Lc 1,38).

Naquele mesmo mês, outro êxtase de Gemma foi registrado. Nesse, parece haver uma sequência do diálogo anterior, pois tudo indica que Jesus havia retornado para tomar de volta a cruz que havia deixado com ela. Gemma, nessa conversa, diz a Jesus que a cruz era o sinal do seu amor por ela, e que ele a dava àqueles a quem ele amava. Novamente, Gemma declara a Jesus o seu amor, o único amor de sua vida. Seu diálogo com Jesus nesse dia é muito parecido com o anterior, com a diferença de que ela agora pede perdão a ele por ter lhe virado as costas tantas vezes. Queria ficar com a sua cruz para pagar por esse e outros pecados, mas parece que Jesus a poupa desse sofrimento. Diz ela a Jesus que, se ele quisesse, ela se ofereceria como vítima a ele, mas que seu confessor lhe havia dito que ela era pecadora. Gemma vivia sempre esse dilema entre o desejo de santidade e os pecados acusados.

Foram muitos os êxtases em que ela falou com Jesus, em que o viu frente a frente, crucificado, chagado, sofredor, e nos quais manifestou o desejo de amenizar sua dor com o seu amor. Descrevê-los todos seria uma árdua tarefa,

mas quero trazer outros momentos de êxtase, com outros personagens oriundos do mundo transcendente, por exemplo, os encontros com Nossa Senhora das Dores, aos sábados. Já falei sobre eles anteriormente, mas comento aqui um desses encontros, ocorrido no dia 7 de abril de 1900. Gemma, nesse êxtase, se encontra com Nossa Senhora das Dores e dialoga com ela, perguntando: “Onde te encontro, minha Mãe?”. “Sempre ao pé da cruz de Jesus!”,[6] responde ela. “Que pena, minha Mãe, quando viste Jesus morto! Quando o viste sendo colocado no sepulcro e que devias separar-te dele”, completa Gemma. O diálogo entre Gemma e Nossa Senhora das Dores seguiu nessa linha, ou seja, Gemma fazia memória do sofrimento da Mãe de Jesus e questionava como ela tinha ado tudo aquilo. Esse diálogo é encerrado com Gemma dizendo: “Oh, minha Mãe, quem te viu com Jesus não saberia dizer quem era que expirava primeiro: se tu ou Jesus”.[7] Gemma equipara o sofrimento de Maria ao pé da cruz ao sofrimento de Jesus. Não haveria dor igual a sua dor.

Gemma também falava nos seus êxtases com seu anjo da guarda, com o coirmão Gabriel (mais tarde São Gabriel da Virgem Dolorosa) e com o diabo. Parece estranho colocar todos num mesmo contexto, o dos êxtases, mas era assim que eles aconteciam. Pe. Germano classificou esses êxtases de Gemma em três categorias: êxtases pequenos e imperfeitos, êxtases grandes e êxtases extraordinários.[8] Pela classificação já dá para ter noção de como eles ocorriam. Os pequenos e imperfeitos eram os mais corriqueiros, os mais comuns, e se caracterizavam pela frequência e espontaneidade com que se davam no dia a dia. Diz o Pe. Germano que, “para provocá-los, bastava que à sua mente descesse uma luz infusa das mais comuns, ou que ela tivesse uma visão das mais simples [...]”.[9] Os seus momentos de oração, por exemplo, que eram constantes, eram também ocasiões propícias para ela ter esses momentos de êxtase que Pe. Germano classificou como “pequenos e imperfeitos”. Esses êxtases eram perceptíveis por meio dos seus olhos, que cintilavam fixos no céu. Há fotos de Gemma nesse estado de elevação do espírito, que mostram seus belos olhos verdes fixos no céu, como que a transportando para outra dimensão. De fato, seu espírito era transportado para outra esfera, outro mundo, quando ela entrava em êxtase, fosse qual fosse, e seu corpo ficava ali, muitas vezes imóvel.

Os êxtases grandes, ou perfeitos, como classificou Pe. Germano, eram menos

frequentes, porém muito mais intensos no sentido de profunda elevação. Eram êxtases de maior duração, variando entre meia hora e uma hora, às vezes um pouco mais. Sobre tal categoria de êxtase, disse Pe. Germano: “Nestes, a alienação dos sentidos era total e persistente. Para fazê-lo cessar era preciso uma ordem articulada formal; mas nem sempre era suficiente porque o Espírito Santo não é obrigado a conformar-se com a vontade do homem, ainda que seja seu ministro”.[10] Ou seja, às vezes seu estado de êxtase era tão longo que precisava ser interrompido, mas essa interrupção nem sempre funcionava, como disse Pe. Germano, mesmo que fosse um sacerdote que buscasse interrompê-lo. O jeito era esperar que tivesse um fim por si mesmo, de acordo com a vontade de Deus. Diz Pe. Germano que “estes grandes êxtases ocorriam ordinariamente pela manhã, na igreja, depois da sagrada comunhão, quando a piedosa virgem ia visitar Jesus exposto no sacramento da Eucaristia, nas quarenta horas, e em outras ocasiões igualmente próprias a inflamar o fervor da alma”.[11] As quarenta horas consistiam na exposição do santíssimo sacramento durante quarenta horas ininterruptas, em honra das horas que Jesus permaneceu no sepulcro. Era um ato devocional em espírito de reparação difundido por Santo Antônio Maria Zaccaria, fundador dos clérigos regulares de São Paulo, os barnabitas, e pelas freiras da Congregação das Irmãs Angélicas de São Paulo. Gemma constantemente participava desses momentos de adoração e, comumente, nessas ocasiões, entrava em êxtases grandes e perfeitos, pois estava diante de Jesus sacramentado, o que favorecia essa modalidade de êxtase.

Os êxtases extraordinários eram os mais intensos e profundos. Vinham no decurso do ano, sem nenhuma regra determinada, segundo Pe. Germano. Embora fossem classificados como extraordinários, eles sobrevinham a Gemma, em média, duas vezes por semana, geralmente às quintas-feiras, por volta das 8h, e às sextas-feiras, pelas 15h, hora da crucificação de Jesus. Diz Pe. Germano que “estes últimos a invadiam quase sempre enquanto estava a conversar com a família”.[12] Ou seja, não necessitavam de uma ocasião específica, mas eram êxtases especiais, isto é, extraordinários, porque neles Gemma era transportada para outra dimensão de modo perceptível. Embora seu corpo permanecesse no local, era como se ela não estivesse ali. Poderia ser tocada com algum objeto pontiagudo, ou com uma brasa ou qualquer outra coisa que a ferisse, e era como se nada estivesse acontecendo, pois ela não reagia. Sobre eles, assim disse Pe. Germano: “Eu chamo a estes êxtases extraordinários em razão da intensidade da luz divina que os ocasionava, pela importância das revelações que neles recebia

e por causa dos efeitos maravilhosos que produziam em sua alma”.[13] Um fato relevante a ser destacado é que eram nos êxtases dessa categoria que se manifestavam em Gemma os seus estigmas, como veremos a seguir. Neles, Gemma recebia as revelações de Deus, outro fenômeno paranormal desenvolvido por ela.

Os estigmas são marcas, um tipo de ferimento que surge no corpo, sobretudo nos locais em que Jesus teria sido ferido ao ser pregado na cruz: mãos ou punhos, pés e tórax. Podem aparecer também na testa ou na fronte, local em que foi ferido pela coroa de espinhos. Podem manifestar-se de formas variadas, mas, comumente, são ferimentos ou chagas que surgem de repente e desaparecem da mesma forma, sem deixar marcas na pessoa que os manifestou, como era o caso de Santa Gemma Galgani. Porém, há estigmas permanentes ou duradouros, como os que desenvolveu Pe. Pio de Pietrelcina. Em 1910, as chagas surgiram nele, mas só ele as via. Em 1918, porém, elas se tornaram visíveis em suas mãos e permaneceram dessa forma por cinquenta anos, ou seja, até 1968. Além do ferimento nas mãos, Pe. Pio desenvolveu um ferimento no tórax, no lado esquerdo, em formato de cruz, mas, devido às suas vestimentas, ele não era visto pelos outros e somente os médicos tiveram o a ele. Seus estigmas foram amplamente estudados, e chegou-se à conclusão de que se tratava de um fenômeno sobrenatural, e não de um simples ferimento ou doença. O mesmo ocorreu com Gemma, mas seus estigmas eram diferentes daqueles que se manifestaram em Pe. Pio, porque apareciam e desapareciam. Foram também vistos por outros e igualmente estudados, e a conclusão foi a mesma: tratava-se de um fenômeno espiritual.

Independentemente da forma e das circunstâncias dos estigmas, somente em pessoas que procuram em vida a verdadeira identificação com Cristo essas chagas se manifestam. E, ainda assim, isso não ocorre com todas as pessoas, somente com aquelas tidas como verdadeiramente santas. Como foi dito em capítulos anteriores, o primeiro santo a manifestar estigmas foi São Francisco de Assis, em 1224. Antes dele, não se tem notícia de nenhuma outra pessoa que tenha desenvolvido as marcas do Crucificado em seu corpo. Depois de São Francisco de Assis, outros casos surgiram, e há várias pessoas santas estigmatizadas na história da Igreja, Gemma entre elas.

Os estigmas de Gemma provocavam-lhe desconforto e ela busca escondê-los usando luvas, mas isso nem sempre era possível. No dia 8 de junho de 1899, véspera da festa do Sagrado Coração de Jesus, Gemma, estando em êxtase, relata que recebeu de Jesus os seus estigmas:

Então, apareceu Jesus com as chagas abertas; delas não corria mais sangue, mas deitavam chamas de amor. Repentinamente, aquelas chamas tocaram minhas mãos, meus pés e meu coração. Senti-me morrer, e teria caído ao chão, se minha Mãe não me sustentasse cobrindo-me sempre com seu manto. Por algumas horas, conservei-me naquela posição. Depois, minha Mãe beijou-me na fronte, e tudo desapareceu, achando-me de novo ajoelhada no chão; sentia, porém, vivamente a dor nas mãos, nos pés e no coração. Levantei-me para me deitar, e percebi que saía sangue desses pontos dolorosos. Cobri-os, como pude, com panos para estancar o sangue; e depois, somente ajudada pelo meu anjo, consegui subir para a cama.[14]

Esse foi um dos primeiros relatos de Gemma sobre seus estigmas, e Pe. Germano não só contextualiza esse episódio como também identifica o local onde ocorreu. Diz ele que o fato se deu na rua Biscione, n. 13, primeiro andar, na paróquia de São Frediano, onde Gemma morava com seus parentes. Esse local posteriormente se tornaria o mosteiro de Santa Gemma, fundado pela sua amiga Eufêmia Giannini, a mesma que anotava os seus êxtases. Eufêmia se tornaria mais tarde monja ionista e entraria para o mosteiro de Lucca, o mesmo de que Gemma tanto desejara fazer parte em vida, mas que não pôde, devido à sua debilidade física. Nesse mosteiro, em 1937, Eufêmia Giannini, agora madre Eufêmia de Jesus Giannini, teve a inspiração divina de fundar no local onde viveu Gemma Galgani o convento das irmãs de Santa Gemma, dando início, assim, não somente a um novo mosteiro, mas a uma nova congregação religiosa ionista, cuja intercessora seria Santa Gemma Galgani. Esse mosteiro guarda ainda hoje relíquias e lembranças dessa santa, e quem o visita pode mergulhar um pouco em sua história.

Os estigmas, embora assustassem Gemma, eram considerados por ela normais, conforme relata seu diretor espiritual. Gemma imaginava que todas as pessoas devotas de Jesus crucificado desenvolvessem tais sinais. Quando ela consultava outras pessoas sobre isso, contudo, não era compreendida, e sua tia, ao ver os ferimentos, assustou-se. Diante da incompreensão de todos, restava a Gemma esconder os ferimentos. Diz seu biógrafo e diretor espiritual, Pe. Germano, que “daquele dia em diante, continuou a repetir-se periodicamente no mesmo dia e hora de cada semana, isto é, na noite da quinta-feira pelas 20h – e durava até as 15h da sexta-feira”. [15]

Eram, portanto, fenômenos temporais, que se manifestavam e desapareciam sem deixar marcas. Pe Germano assim descreve a manifestação desse fenômeno em Gemma:

Nenhuma preparação o precedia; nenhuma dor ou impressão nas mãos, pés e lado anunciava que estivesse iminente: o único sinal era o recolhimento anunciador do êxtase. E quando este ia começar, de repente, via-se-lhe aparecer nas costas de ambas as mãos e no meio das palmas uma mancha vermelha sob a epiderme (que é aquela membrana sutil e transparente que cobre externamente a pele); em seguida, abria-se um corte bem na carne, no derma, longo nas costas das mãos, e irregularmente redondo nas palmas.[16]

Essas feridas, conforme ele explica, se manifestavam com todas as características de uma chaga viva, no diâmetro de um prego, com aproximadamente um centímetro nas palmas e dois centímetros nas costas das mãos. Pe. Germano, que teve oportunidade de ver os estigmas de perto, disse que ora pareciam superficiais, ora muito profundos, parecendo atravessar toda a grossura da mão, unindo as feridas de um lado ao outro. Ou seja, eram idênticas às marcas de um prego, a marca da crucificação de Jesus. Pe. Germano escreve detalhes desses ferimentos, e vale a pena conferir as suas descrições.

Junto a esses fenômenos desenvolvidos por Gemma Galgani estavam os sentimentos de dor do Crucificado, que ela assimilava e sentia em seu próprio corpo. Além das marcas dos pregos, ela sentia as dores da coroa de espinhos, que era colocada em sua cabeça, e outras dores do Cristo crucificado. Porém, ao invés de rejeitar essas dores, Gemma as pedia, e sentia uma espécie de prazer ao tê-las no seu corpo. Esse prazer não era por masoquismo, como eu disse no início deste livro, mas porque seu maior desejo era configurar sua vida à de Jesus, e sentir as suas dores era uma forma de fazer isso. Seus êxtases, e os estigmas que nela se desenvolviam nesses momentos de arrebatamento, eram vividos como participação nos mistérios de Cristo.

Além desses fenômenos já citados, Gemma tinha visões, ouvia vozes e interagia com seres sobrenaturais e com pessoas que já tinham morrido. Já tratei desses fatos em outros capítulos, mas aqui os recordo no contexto dos fenômenos paranormais que ela vivenciava. As visões, como dito, eram boas e ruins: boas quando se tratava de seu anjo da guarda, do coirmão Gabriel de Nossa Senhora das Dores e de Jesus; e ruins quando se tratava do diabo. Elas se manifestavam constantemente, às vezes no mesmo dia, e até simultaneamente. Várias vezes ela relatou a presença do diabo importunando-a de um lado, e seu anjo defendendo-a e protegendo-a do outro, ou uma interação entre os dois, quando o anjo entrava em cena para afugentar o diabo.

Gemma também tinha revelações, e essas se davam nos seus êxtases extraordinários. No seu Diário, ela relata que recebeu a notícia da morte de madre Teresa, monja ionista, e que a sua alma carecia de oração para entrar no paraíso. Assim escreve Gemma em seu Diário, no dia 2 de agosto: “Sem que eu sequer pensasse em rezar pela madre Teresa do Menino Jesus, recomendoume que rezasse por ela, porque estava no purgatório e sofria muito. Parece que Jesus a quer logo consigo”.[17] A entrada de madre Teresa no paraíso parece depender de orações, e Gemma é convocada a fazê-las. Qual seria o motivo? Seria pelo fato de essa monja a ter rejeitado no mosteiro? Não sabemos, mas o que sabemos é que Gemma sentia-se impelida a rezar pela sua alma. No dia 9 de agosto, uma quinta-feira, Gemma volta a falar sobre esse fato, dizendo sentir que precisa sofrer mais em sufrágio da falecida madre Teresa: “Sim, sofrer, sofrer pelos pecadores e, de modo particular, pelas pobres almas do purgatório,

especialmente por...”.[18] Gemma não termina o pensamento, deixando apenas reticências, mas esclarece depois, no final de sua anotação, que seu sofrimento e suas orações seriam pela alma de madre Teresa. Diz ela no final da anotação desse dia: “Sofri duas horas, como Jesus queria, pela madre Teresa; depois, com muita dificuldade, me despi, deitei-me e começou a hora. Foi muito dolorosa, mas, em companhia de Jesus, o que não se faria?”.[19] Esse era um sofrimento purificador, pedido por Jesus, segundo ela, e Gemma o cumpria com obediência e prazer.

No dia 15 de agosto, quarta-feira, ela recebe a notícia que tanto esperava: madre Teresa, depois de tanta oração e sofrimento, estava prestes a entrar no paraíso. E a própria madre se encarrega de vir lhe dar a notícia. Assim escreve Gemma nesse dia: “Hoje madre Maria Teresa deve ir para o paraíso: eu o espero. Mas como fazer para sabê-lo? Recolher-me não posso, se não estou num lugar seguro. Hoje o meu anjo da guarda estará de guarda à minha porta”.[20] Gemma pressente que algo grandioso está para acontecer, mas ainda não sabe precisar o que seria. Esses pressentimentos eram comuns sempre que algo sobrenatural iria lhe ocorrer. Gemma descreve que está no mosteiro, mas não fica claro se ela estava de fato no local ou se era uma bilocação, mais um dos fenômenos paranormais que ela manifestava nos seus êxtases. Diz ela: “São nove e quinze deste grande dia. Sinto, como sempre, recolhimento interior; pedi ao anjo da guarda para vigiar-me e que ninguém veja; escondi-me no quarto das monjas”. [21] Gemma relata que, nesse ínterim, ela entra em êxtase, mas que tem certa repugnância em escrever sobre essas coisas, e só o faz por obediência:

Era perto das nove e meia, lia; de repente, uma mão pousou ligeiramente no meu ombro esquerdo. Voltei-me espantada; tive medo, quis chamar alguém, mas me contive. Voltei-me e vi uma pessoa vestida de branco; reconheci que era uma mulher; fitei-a, o seu olhar me assegurou que não era preciso temer nada: “Gemma”, me disse, após alguns minutos, “conhece-me?”. Eu disse que não, porque bem podia dizê-lo; continuou: “Eu sou madre Maria Teresa do Menino Jesus; agradeço-a muito por haver dado tanta atenção para que logo possa chegar à minha felicidade eterna”.[22]

Gemma recebe da própria madre Teresa a notícia de que ela estava prestes a entrar definitivamente no paraíso. Porém, se antes Gemma havia dito que estava em êxtase nesse momento, em seguida vai dizer que estava acordada e em pleno conhecimento de si mesma. Ou seja, o diálogo com a alma de madre Teresa foi algo real para ela, e não fruto da sua imaginação ou de seu êxtase. Madre Teresa estava prestes a entrar no céu, mas ainda lhe faltavam algumas coisas. Isso ela própria vai dizer a Gemma, na sequência do diálogo: “Continue, porque tenho ainda que sofrer alguns dias”. Ou seja, Gemma precisava continuar rezando e sofrendo por ela, mas a iminência do paraíso já era vislumbrada, e isso era maravilhoso para ambas. Depois desse pedido de madre Teresa, Gemma escreve: “Dizendo isso, me acariciou e foi embora”. Gemma continuou a sofrer e a rezar por ela até que entrasse definitivamente no céu.

No dia 16 de agosto, uma quinta-feira, Gemma, nas suas orações e penas pelas almas do purgatório, sobretudo pela alma de madre Teresa, dialoga com Jesus e lhe pede:

Jesus, por piedade, diminui os sofrimentos de madre Maria Teresa. E Jesus: “Já o fiz. Quer mais?”, disse-me. Então me animei e disse-lhe: “Jesus, salva-a, salvaa”. E Jesus assim me respondeu: “No terceiro dia depois da assunção da minha santíssima Mãe, verá também essa aprisionada do purgatório, e a levarei comigo ao céu”.[23]

Gemma diz não se conter de alegria com essa notícia, pois via os resultados de suas orações e sacrifícios. No sábado, dia 18 de agosto, madre Maria Teresa, acompanhada por Jesus e pelo seu anjo da guarda, vem agradecer a Gemma, e eles voltam para o céu. Nesse dia, estando em oração, e consequentemente em êxtase, Gemma assim escreve:

Depois de certo tempo, de fato, julguei ver madre Teresa vestida de ionista, acompanhada pelo seu anjo da guarda e por Jesus. Como estava diferente do dia em que a vi pela primeira vez! Sorrindo, aproximou-se de mim e disse que

estava verdadeiramente feliz e gozava com o seu Jesus eternamente; de novo me agradeceu, acrescentando: “Diga à madre Josefa que estou feliz e que fique tranquila”. Acenou-me várias vezes com a mão, dizendo adeus, e juntamente com Jesus e o seu anjo da guarda foi para o céu, perto de duas horas e meia.[24]

Gemma diz ter sofrido muito ao ver madre Teresa indo para o céu. Não porque não quisesse isso, mas porque também ela queria ir. E conclui dizendo: “Nessa noite sofri muito, porque eu também queria ir para o paraíso, mas ninguém se dignou a levar-me. O desejo que há tanto tempo Jesus havia feito nascer em mim, afinal, estava realizado: madre Teresa no paraíso; mas também do paraíso me prometeu tornar a me ver”.[25] Gemma viu seu desejo sendo realizado em madre Teresa e se alegrava por isso. Sua intercessão não tinha sido em vão. Com isso, Gemma deixou o ensinamento sobre o poder da oração de intercessão, sobretudo pelas almas do purgatório.

No capítulo seguinte, conheceremos outro aspecto da vida de Santa Gemma Galgani: os seus pecados. Sim, isso mesmo, os pecados de uma santa. Quais seriam eles? Ela mesma vai dizer, com suas palavras, quais eram as situações que ela considerava pecado e que a distanciavam do paraíso.

XVI

Os laços do diabo: pecados de uma santa

Parece paradoxal a locução pecados de uma santa, pois entendemos que os santos não têm pecados, mas não é bem assim, e não era assim que Gemma via a si própria. Ela se considerava uma grande pecadora, achava que não era merecedora do paraíso que tanto almejava, e por isso fazia muita penitência e muitos sacrifícios. O diabo não lhe dava trégua, e, quando ela menos esperava, lá estava ele, tentando-a de alguma forma, fazendo as suas tramas para que ela caísse nelas.

Neste capítulo, trato desses pecados, com base naquilo que ela mesma dizia a esse respeito. E faço isso tendo como base um dos seus escritos mais polêmicos, que ela chamou de O caderno dos meus pecados, [1] ou seja, sua Autobiografia. Ela pretendia que esse precioso escrito fosse uma espécie de confissão, e de fato foi. Alguns o chamam de “confissão geral”, e outros de “confissões genéricas”, porque ela não entra em detalhes sobre os pecados. É, na verdade, um caderno de anotações, escrito não por vontade própria, mas por obrigação e obediência ao seu diretor espiritual, Pe. Germano. Isso lhe custou muitos esforços pessoais e espirituais, pois ninguém gosta de se desnudar diante de outros, expondo as suas misérias, sobretudo se essa pessoa almeja com todas as forças a santidade, como foi o caso de Santa Gemma Galgani.

Quem lê esse caderno não imagina como foi penoso a Santa Gemma escrevê-lo. Teria sido ainda mais penoso se ela imaginasse que um dia ele seria publicado. Era algo tão secreto que, após ter escrito, desejou ardentemente que fosse destruído pelo seu confessor, para que ninguém soubesse das suas fraquezas. Seu confessor não fez isso, mas o diabo tentou fazê-lo, não porque quisesse poupar Gemma da exposição de seus pecados, mas porque ele se achava detentor deles, porque se regozija com os nossos pecados. O diabo queria muito ter essa obra porque ali estava a matéria-prima que ele desejava para se apoderar de Gemma, uma vez que ele se apodera das pessoas pelos seus pecados. Os pecados são os laços do diabo. Retomo aqui o episódio do rapto do caderno dos seus pecados

para entendermos por que o diabo tanto queria esses escritos em suas mãos.

Quando Gemma começou a escrever sobre seus pecados, fez, logo na primeira anotação, uma recomendação ao seu diretor espiritual: “Preste atenção: o senhor o leia e releia quantas vezes quiser, mas que ninguém mais além do senhor o leia, e depois o queime imediatamente. Entendeu?”.[2] De início, Gemma usa de um imperativo: ela ordena ao seu diretor espiritual que o queime depois de lê-lo, e ela quer ter certeza de que Pe. Germano havia entendido a proposta. Ela só escreveria se ele prometesse ler e depois queimar os escritos, porque não queria que mais ninguém tivesse o às suas confissões escritas. Se ele prometeu queimá-lo depois de ler, não sabemos. Provavelmente não, pois naquele momento Pe. Germano já tinha percebido a grandeza espiritual de Gemma Galgani e queria reunir material para, posteriormente, escrever sua biografia. Ou seja, seu confessor não iria dar ouvidos a seu pedido, mas o diabo a ouviu e quis queimar os escritos que ela tanto temia que chegassem às mãos de outras pessoas.

Gemma, a contragosto, pôs-se a escrever seus pecados no dia 17 de fevereiro de 1901, e concluiu esse trabalho em 15 de maio daquele mesmo ano. Ou seja, levou aproximadamente três meses para redigir o caderno dos seus pecados. Ao término, temendo que alguém o lesse, colocou-o numa gaveta, trancando-o à chave para que ninguém, além de seu confessor, tivesse o a ele. Aqui começa o outro lado da história do caderno de seus pecados, de que temos conhecimento por meio dos escritos do seu diretor espiritual, pois ele participou direta e indiretamente de um dos fenômenos mais intrigantes da vida de Santa Gemma Galgani, envolvendo esses escritos. Falo aqui sobre isso para que o leitor entenda melhor essa história e tire suas conclusões.

Pe. Germano escreve que, quando conheceu Gemma Galgani, em uma de suas visitas a Lucca, para examinar o espírito de Gemma e ser seu diretor espiritual, achou-a “ocupada em fazer, por ordem de seu confessor, um diário, sobre o que lhe ia acontecendo quotidianamente no exercício da perfeição”.[3] Recordo, como já disse antes, que o Diário de Santa Gemma Galgani é outra obra de rico

valor, um dos seus primeiros escritos oficiais, e por meio dele podemos conhecêla melhor. Porém, seu novo diretor espiritual não gostou de vê-la escrevendo um diário e pediu que ela interrompesse os escritos. Diz ele:

Eu que, por princípio, fui sempre inimigo desse hábito, parecendo-me uma inutilidade perigosa, ter assim os penitentes sempre tão ocupados consigo, aconselhei-lhe que deixasse este trabalho. Seu santo confessor, aceitando o meu conselho, proibiu-lhe também que continuasse a fazer o diário.[4]

Essa proibição de Pe. Germano é um tanto estranha, sendo ele um padre ionista, pois o fundador dos ionistas, São Paulo da Cruz, recomendava aos seus seguidores que escrevessem um diário. O próprio Paulo da Cruz, quando esteve em retiro por quarenta dias, em Castellazzo, antes de fundar a congregação, escreveu um diário,[5] que hoje é um dos seus primores espirituais. No entanto, Pe. Germano não gostou de vê-la fazendo o mesmo, talvez por medo de expô-la nas suas intimidades ou particularidades, embora ele afirme ter se arrependido: “Porém, logo depois convenci-me de que tinha sido muito exigente, e que a minha máxima, embora boa em si, não devia aplicar-se ao caso presente”.[6] Após ler o que Gemma escrevia em seu diário, sábio como ele era, tomou consciência de seu valor e mudou de ideia. Afirma Pe. Germano: “Tendo, com efeito, tomado e lido todos os seus escritos, achei-os reados de celestial sabedoria e fatos importantíssimos que podiam fazer, se fosse preciso, uma edificantíssima biografia”. [7]

Pe. Germano tinha um olhar visionário e percebeu a vasta riqueza espiritual que se escondia nos poucos escritos e que continuar escrevendo seria uma forma de divulgar aquela riqueza. Porém, o diário não foi continuado. Tanto é que, quando o lemos, percebemos que ele foi interrompido abruptamente. Em seu lugar, Pe. Germano propõe um novo escrito, algo mais ousado: sua Autobiografia, com ênfase nos seus pecados, desde a infância até o momento presente. Assim escreve Pe. Germano sobre isso: “Zanguei-me um pouco comigo mesmo, e refleti em como poderia remediar o meu erro; quando me luziu uma ideia na

mente, que julguei vir de Deus”.[8] Aqui nasce a ideia da Autobiografia de Santa Gemma, que ela iria depois chamar de O caderno dos meus pecados. A proposta de Pe. Germano foi a seguinte:

[...] Disse-lhe sem preâmbulos: “Pelo que assegura, cometeu uma infinidade de pecados, desde a mais tenra infância. Conheço os que comete agora, mas seria muito conveniente que escrevesse a confissão geral dos pecados de toda a vida, com as menores e mais particulares circunstâncias. Sabendo, assim, com que pecadora tenho que me entender, poderei melhor dirigi-la no caminho da virtude”.[9]

Pe. Germano teve uma brilhante ideia ao fazer esse pedido a Gemma, e com esse argumento. Além de ter mais subsídios para ajudá-la espiritualmente, já que a partir de então seria o seu diretor espiritual, ele teria também um rico material registrado que poderia ser muito útil futuramente para a espiritualidade da Igreja e para a elaboração de sua biografia, que naquele momento já era um propósito de Pe. Germano. Ele foi estratégico nos seus argumentos, chegando a afirmar: “A santa donzela, que tinha ardentíssimo desejo de uma direção segura, caiu no laço, embora no primeiro momento mostrasse alguma repugnância ao que eu exigia dela”.[10] Pe. Germano usa a expressão laço, mas era apenas uma estratégia para convencê-la a escrever. Laço mesmo iria armar o diabo.

Gemma demonstrou profunda repugnância ao pedido, mas era obediente e sedenta de alguém que a orientasse. Atender a esse pedido de seu diretor espiritual não lhe foi nada fácil, como ela mesma vai escrever depois:

Mas de que aplicações, meu pai, pode precisar, e que pecados quer que eu lhe faça conhecer? Pense que, quantos se podem cometer dos piores, todos eu tenho cometido. Receio que quando tiver lido todo este escrito, e conhecido todos os meus pecados, ficará horrorizado e não quererá mais servir-me de pai; e então sim![11]

Vemos que Gemma demonstrou resistência. Não queria expor-se dessa maneira, mesmo que essa exposição fosse uma espécie de confissão. Era, contudo, uma confissão por escrito, diferente de uma confissão apenas verbal, e ela tinha razão em se preocupar, afinal, era sua vida íntima que estava sendo registrada e que poderia, de alguma forma, se tornar pública, como de fato tornou-se. Porém, seu diretor espiritual não desiste da ideia: “Mas eu insisti; e a dócil donzela, depois de ter rezado muito e pedido ao seu anjo da guarda que lhe assistisse, fazendolhe lembrar tantos pecados horríveis, por obediência começou o trabalho”.[12] Assim, em 17 de fevereiro de 1901, Gemma Galgani começa a escrever um dos seus mais difíceis relatos, e diz:

Meu pai, prepara-se para ouvir pecados de todo o gênero, de toda a espécie... Escrevendo tudo, bem ou mal, poderá compreender melhor quanto tenha eu sido má, e os outros bons para mim, e quanto me tenho mostrado ingrata para com Jesus, e como tenho sido desatenta em seguir os bons conselhos dos pais e das mestras. Assim mesmo ponho mãos à obra, meu pai. Viva Jesus![13]

Quem lê esse preâmbulo imagina que vai encontrar um caderno com pecados horríveis, como ela mesma diz, mas não é bem assim. Pe. Antonio María Artola, crítico da obra, diz que esses escritos de Gemma são “um verdadeiro caso de amnésia em questão de data. Junto a isso está o esquecimento dos casos concretos de pecados”.[14] Gemma quase não fala dos seus pecados. Aliás, encontramos na obra poucos pecados, e diante dos pecados do mundo atual, ali só enxergamos santidade. Artola diz mais: “A autobiografia foi composta como uma confissão, porém, mais que uma confissão geral, é uma confissão genérica”, pois, por mais que ela, no início, tenha dito para o leitor preparar-se para ouvir toda espécie de pecado, e de todos os gêneros, o que pode aguçar sua curiosidade, os pecados concretos encontrados ali são pouquíssimos. Na maioria das vezes, se trata de sumários ou listas de pecados gerais, conforme afirma a nota de pé de página com as observações de Pe. Artola. “Tanto é”, diz Artola, “que o editor tem que explicar como o escrito não é ‘uma verdadeira e propriamente dita confissão geral’”. [15]

[15]

Artola menciona que “essas falhas de memória não se notam à primeira vista, porque o relato está cheio de narrações da maior exatidão de detalhes em outros aspectos. Este fenômeno do detalhe exato chega ao extremo de reconstruir literalmente as palavras de um diálogo tido com Jesus aos cinco anos”.[16] Enfim, Artola critica o fato de o caderno de Gemma Galgani ter como objetivo registrar os seus pecados, mas ela parece esquecer-se de fazê-lo, concentrando-se em outras informações e dados, sem dúvida valiosos, mas que poucos pecados contêm. Esses poucos pecados serão trazidos mais adiante, extraídos do próprio caderno, e veremos que de fato são poucos e não tão graves como ela mesma anuncia no início.

Ainda sobre o empreendimento de escrever os seus pecados e sobre os desafios que Gemma enfrentou nesse trabalho, seu diretor espiritual diz:

Escrevendo, não lutou pouco com o acanhamento de ter de falar de si. Estava já terminando o trabalho, e essa dificuldade cada vez aumentava mais, pois que para contar os pecados, via-se obrigada a contar toda a sua vida, e para fazer sobressair a sua ingratidão e infelicidade para com o Senhor, devia pôr em evidência as grandes graças dele recebidas. Era exatamente para esse fim, que eu a obrigara a escrever.[17]

Gemma era uma pessoa tímida, e agora se via impelida a tratar de assuntos pouco agradáveis a ela, que eram as suas fraquezas, os seus pecados. Talvez por isso ela tenha se estendido em outros assuntos e buscado tantos outros subterfúgios nos escritos, tentando, assim, não deixar muito claros e evidentes os seus pecados. Ou seja, ela não fez uma lista de pecados como quem vai fazer uma confissão auricular, mas foi aos poucos apresentando-os, diluídos entre outros relatos. Mesmo assim, era-lhe angustiante escrever, como ela mesma dirá:

Meu Jesus, seja sempre feita a vossa santíssima vontade! Quanto sofro em ter que escrever estas coisas! A repugnância que senti no princípio em vez de diminuir vai sempre aumentando e sinto uma pena mortal. Talvez queirais, ó meu Deus, que eu escreva também aqueles íntimos segredos que me revelastes por vossa bondade, a fim de que eu me conserve mais baixa e humilde. Se quereis, ó Jesus, estou pronta a obedecer também neste ponto. Fazei-me conhecer a vossa vontade.[18]

Ela insiste em dizer que lhe é repugnante escrever aquilo tudo, pois relembrar seus pecados era como cometê-los novamente, e isso lhe causava grande desconforto. Além disso, ela não entendia para que serviria relembrá-los e escrevê-los, como dirá em seguida:

Mas de que servirão estes escritos? Para vossa maior glória, ó Jesus? Ou para me fazer continuar a cair sempre nos pecados? – Vós que quisestes que eu escrevesse, e a quem obedeci, pensai nisto; na chaga do vosso lado escondo todas as minhas palavras, querido e amável Jesus![19]

Gemma temia que seus escritos, ou melhor, os seus pecados, viessem a ser conhecidos por outras pessoas além de seu confessor, e isso só fazia aumentar sua repugnância e resistência em escrever. Ela continuava escrevendo por pura obediência ao seu diretor espiritual, o qual ela tinha como um emissário de Deus e guia espiritual aqui na terra. Não fosse isso, ela jamais iria assumir tal empreendimento. Além disso, como vimos, ela questionava a serventia daquilo tudo.

Diz seu diretor espiritual que toda essa aflição de Gemma em relação aos seus escritos tinha o dedo do diabo. Afirma Pe. Germano: “É certo que, nessa aflição, o inimigo infernal tinha parte; pois desagradava-lhe deveras o grande bem que redundaria daquele escrito”.[20] Começamos a entender aqui por que o diabo se interessou por esse escrito a ponto de subtraí-lo da gaveta onde ele se encontrava e levá-lo para ser queimado no fogo do inferno. Sobre o diabo e suas tentações

em relação a esses escritos, Pe. Germano escreve: “Apareceu-lhe uma vez visivelmente, e com amargo riso lhe disse: ‘Muito bem, escreve tudo. Não sabes que todos esses fatos são obra minha e, se fores descoberta, figura-te que vergonha? Onde irás então acabar?’”. Como se não bastassem o medo, a insegurança, a repugnância e a resistência, ela era também tentada pelo diabo, que confundia ainda mais a sua mente em relação aos escritos que vinha fazendo. Porém, diz seu diretor:

A obediência, entretanto, triunfou de tudo, e em um breve tempo Gemma compôs um belo volume de umas cem páginas. Mas nessas páginas com que delicadeza e arte não procurou a humilde donzela ocultar-se, disfarçando os mais sublimes dons de Deus sob a sombra dos pecados com que declara tê-los profanado![21]

Ao final, Pe. Germano se mostra feliz por ter conseguido o seu intento, mas o diabo não. Vendo a obra terminada, o diabo vai buscar uma forma de obtê-la. Escreveu Pe. Germano: “Eu tinha conseguido o meu intento, mas o demônio exasperou-se e empregou toda a sua astúcia para vencer-me”.[22] E qual foi a astúcia do diabo? Trago aqui os relatos do Pe. Germano sobre o que aconteceu a seguir. Ele mesmo duvidava de que outros acreditariam no seu relato, mas afirmou com toda a convicção que foi testemunha ocular do ocorrido. Falo aqui do roubo dos escritos de Gemma e da tentativa de destruí-los por parte do diabo, sobre os quais escreve Pe. Germano: “Talvez não creiam no que vou contar; porém é um fato histórico e real, no qual de nenhum modo podia entrar a fantasia. Mas julgue cada um como lhe aprouver; só direi o que a mim mesmo aconteceu, sem fazer nenhum comentário”.[23] E assim ele descreve o fato de o diabo ter subtraído os escritos, tentado queimá-los e, depois, mediante o exorcismo, os devolvido para o lugar onde estavam antes:

Concluído o dito livrinho, por minha ordem foi entregue a Dona Cecília, que o guardava bem oculto numa gaveta, esperando a ocasião de dar-me. ados alguns dias, pareceu à boa donzela ver o demônio, zombando, sair pela janela do quarto onde estava aquela gaveta, com o livro na mão, e desaparecer no ar.

Acostumada como era a semelhantes aparições, não deu nenhuma importância; mas voltando pouco tempo depois o inimigo a molestá-la com horríveis tentações, e não conseguindo vencê-la, afastou-se rangendo os dentes e gritando: “guerra, guerra, está nas minhas mãos”. Assim a própria Gemma me referiu em uma de suas cartas.[24]

Pe. Germano continua o relato do rapto dos escritos, descrevendo como ele ficou sabendo e o desfecho do episódio:

Então, pela obediência que tinha de manifestar à vigilante senhora tudo o que lhe acontecia de extraordinário, julgou de seu dever contar-lhe aquela visão. Esta foi logo abrir a gaveta e de fato o livro não estava mais ali. Avisaram-me logo e todos puderam compreender o pesar que senti em ter perdido tão valioso tesouro. [25]

Pe. Germano, ao saber do desaparecimento dos escritos, estando bem distante naqueles dias (ele se encontrava em Isola del Gran Sasso d’Italia, onde hoje se encontra o santuário de São Gabriel, que na época ainda não era santo reconhecido pela Igreja, mas venerável), ficou profundamente constrangido, pois, como ele mesmo relatou, via neles algo de grande valor, e perdê-los significava perder um tesouro, uma joia da literatura mística. Ele não sabia o que fazer. Refletiu muito e, por ser um homem de Deus, teve uma ideia iluminada, como vemos no seu relato:

Que fazer? Depois de pensar muito, achando-me então na ilha da Pedra Grande, perto do túmulo do meu Venerável Gabriel, tive a lembrança de exorcizar o demônio para obrigá-lo a restituir-me o escrito, caso tivesse realmente o tirado. Tomei a estola, o ritual e a água benta, e da própria sepultura do Venerável fiz as orações próprias, bem que da distância de seiscentos quilômetros. Deus interveio com a sua força e na mesma hora, em Lucca, foi aquele escrito reposto no lugar donde tinha sido retirado tantos dias antes. Oh! Mas em que estado![26]

O poder da oração de exorcismo fez com que o diabo devolvesse os escritos ao lugar de onde os havia tirado. Porém, devolveu-os com várias folhas chamuscadas pelo fogo, num estado deplorável, como relatou Pe. Germano. Esse caderno, com suas folhas manchadas de preto devido às chamas, encontra-se no museu da Casa Geral dos ionistas, em Roma. Pe. Germano conclui o relato da seguinte maneira:

As páginas de cima a baixo se achavam todas esfumaçadas, e em parte queimadas pelo fogo, como se cada uma tivesse estado exposta separadamente sobre um fogareiro, mas não de modo que as letras estivessem apagadas. Este livro, ado assim pelo inferno, está agora em minhas mãos. É um verdadeiro tesouro, torno a dizê-lo, de notícias importantíssimas que, se se tivesse perdido, nunca se viriam a saber.

Assim, quando tomamos em nossas mãos a sua Autobiografia, ou O caderno dos meus pecados, estamos tocando numa obra que ou pelo fogo do inferno e voltou para o céu, fruto do poder da oração. Por essa razão, essa obra se tornou ainda mais preciosa. Pe. Antonio María Artola dirá que “esse texto assim elaborado alcançou, depois da morte de sua autora, uma notável celebridade, mais por causa das circunstâncias extraordinárias que rodearam a sua composição do que pelo seu conteúdo”.[27] Ele se refere ao fato de o diabo tê-lo subtraído, tentado queimá-lo e, depois, devolvido ao mesmo lugar de onde o tirara. E ele não deixa de ter razão, pois, devido a esse fato, a Autobiografia de Santa Gemma tornou-se uma obra enigmática.

Não obstante o que se ou com esse caderno dos pecados de Santa Gemma, o que pretendo destacar aqui é o seu conteúdo, ou melhor, os pecados da santa contidos nesse livro. Selecionei aqui apenas alguns, apesar de não serem muitos. Embora ela tenha alarmado o leitor sobre os “horríveis pecados” a serem descritos, não encontrei nela grandes pecados, mas coisas tipicamente humanas, ou seja, nada que a condenasse ou que a desviasse do seu caminho de santidade. Muitos desses pecados são apenas atitudes infantis, típicas de qualquer criança.

Na sua juventude, os pecados também não são tão “horríveis” como ela os classifica, mas pequenas falhas que, para ela, eram gravíssimas, sobretudo quando vistas com um olhar distanciado, como ela faz nesses escritos. No entanto, para muitos, essas falhas ainda podem parecer sérias, pois não imaginam que uma pessoa possa ter pecado antes de se tornar santa. Para os que pensam assim, sugiro que leiam as biografias de Santo Agostinho, São Francisco de Assis e de outros santos que têm uma história de vida repleta de fraquezas humanas.

Como lhe foi pedido que descrevesse os seus pecados desde a sua mais tenra idade, as primeiras anotações são lembranças de sua infância. Os pecados que ela descreve nessa primeira anotação são: chorar porque a mãe estava doente; ficar avoada durante as orações, sem prestar atenção nelas; reclamar que era muita coisa, muita oração para uma criança de menos de sete anos; não ter tido vontade de rezar, porque eram orações muito longas. No final dessa primeira anotação, ela diz: “A mamãe, indulgente, nas demais noites foi mais breve”.[28] Ou seja, sua mãe era severa quando o assunto era oração, rezava muito e ensinava a filha, desde muito pequena, a fazer o mesmo.

No seu relato seguinte, já na pré-adolescência, por ocasião da crisma, ela relata que foi má e que resistia em sair do quarto para as aulas, o que obrigou a sua família a trazer uma professora em casa, todas as tardes, para dar-lhe aulas no seu quarto, porque, segundo ela, sabia muito pouco da doutrina, mas resistia em ir para a catequese. Relata que, no dia da crisma, foi chorando para a igreja, porque não queria sair de casa por medo de que a mãe fosse embora (morresse) sem levá-la junto. Naquela ocasião, a mãe de Gemma, a Sra. Aurélia Landi, já estava gravemente enferma, como vimos antes. Gemma não queria de forma alguma sair do seu lado, precisando ser retirada à força, pois seu pai temia que ela morresse antes da mãe, uma vez que a doença de Aurélia era contagiosa. Nessa anotação, Gemma também relata o seu ressentimento por ter sido afastada à força de casa, não vendo mais seus familiares por um bom tempo e não estando ao lado da mãe quando esta morreu, no dia 17 de setembro de 1886.

O terceiro relato da sua Autobiografia é contextualizado em San Gennaro, na casa do seu tio. Ali ela diz ter sofrido muito. Não que eles fossem ruins, mas por outros fatores que a levaram a pecar. O primeiro pecado que relata é ter julgado a tia, que não gostava muito de rezar. Ela era irmã de sua mãe, mas em nada se parecia com ela. Na casa dos tios, Gemma diz ter sentido ainda mais saudade de sua mãe e de quando ela a obrigava a rezar. Nessa época em que esteve na casa dos tios, Gemma conta que não ia à missa. “Ela não queria saber da Igreja até certo ponto”,[29] relatou Gemma. Disse que, no tempo em que viveu com a tia, foi má. Afirmou que foi assediada sexualmente pelo primo de quinze anos, e isso a abalou muito. Descreveu Gemma em seu caderno:

Ela tinha um filho que me fazia desrespeitos e ficava pondo as mãos em mim. Um dia que ele estava a cavalo (tinha quinze anos), a tia me mandou que levasse não sei o que para cobrir-se. Levei-lhe, mas ele me deu um beliscão. Dei-lhe então um empurrão forte, e ele caiu de lá de cima; machucou a cabeça. A tia me fez ficar com as mãos atrás das costas por um dia inteiro. Revoltada, fiquei brava, lhe respondi, lhe disse muitas coisas, e disse até que me vingaria, mas não o fiz.[30]

Gemma não diz que falou para a tia sobre o assédio que vinha sofrendo, e tudo indica que ela sofreu calada, e por isso escreve: “No dia de Natal retornei à minha família, com papai, os irmãos, duas irmãzinhas (uma que eu não conhecia, porque foi levada embora assim que nasceu) e dois empregados. Que consolo provei em retornar a eles e sair das mãos da tia!”.[31] Ela diz que não queria bem a sua tia e aponta isso como um de seus pecados.

Gemma relata depois outros pecados, de quando estava na escola das freiras da Congregação das Irmãs de Santa Zita, as zitinas, por ocasião de sua primeira comunhão, em 1887. Diz ela que, para conseguir alguma coisa de seu pai, inclusive para poder fazer uma experiência vocacional no convento, chorava, com o intuito de comovê-lo e convencê-lo, um recurso típico de uma criança que não tem argumentos. Diz Gemma: “Papai, zangado, não me permitiu nada, mas eu, que conhecia um jeitinho de fazê-lo conceder-me tudo, fiz o meu jeitinho e

consegui rapidinho”.[32] Seu jeitinho era chorar. Disse ela: “Toda vez que o papai me via chorar, fazia tudo que eu queria”.[33] Assim Gemma conseguia as coisas, mas sabia que era errado fazer isso e, em sua revisão de vida, registrou como pecado chantagear emocionalmente o pai para conseguir o que queria. Diz ainda: “Chorei, pois de outra forma não conseguiria nada”. Nessa ocasião, depois de seu choro, o pai permitiu que ela ficasse quinze dias com as freiras. Na companhia das freiras zitinas, ela registrou o pecado de ter alguns privilégios, como quando conseguiu que uma delas lhe ensinasse sobre a paixão de Cristo fora dos horários das aulas, enquanto as outras meninas estavam dormindo. Ela fazia isso às escondidas da madre superiora, o que mais tarde Gemma considerou sua culpa e, portanto, pecado. Escreveu também que um dia, no convento, devido à fixação nas dores da crucificação, sobre as quais a irmã lhe ensinava, teve febre, e que por isso a freira parou de ensiná-la, o que a deixou inquieta. Como se não bastasse, foram ainda contar ao seu pai que ela estava com febre, e ele, preocupado, quis interromper sua experiência no convento e levá-la de volta para casa. No entanto, as freiras também tiveram febre, e Gemma sentiu certa satisfação com esse episódio. Escreveu Gemma: “Deixaram-me realmente inquieta aquelas monjas: quiseram avisar ao papai que tinha tido febre; mas pagaram caro por isso, porque a febre foi para elas, para mim e para o convento inteiro”.[34] Ou seja, vemos aqui uma pitada de satisfação pelo ocorrido, como que a realização de uma vingança pelo fato de as monjas terem avisado a seu pai sobre a febre que ela vinha tendo. Gemma tem consciência de que cometeu um pecado ao se sentir satisfeita pelo ocorrido, porque viu nele uma punição de Deus para as monjas que denunciaram sua enfermidade. Depois, Gemma relata sua negligência e a distração nos exercícios espirituais e diz que “nem pensava em mudar de vida, escutava as pregações, mas rapidamente as esquecia”. [35]

Por ocasião dos propósitos assumidos na primeira comunhão, Gemma escreve que, apesar de comungar, e provar o grande conforto trazido pela Eucaristia, começou a se tornar soberba, mais desobediente do que antes, mau exemplo às colegas, enfim, escândalo para todos.[36] Por essa razão, diz ela: “Na escola, não se ava um dia sem que eu fosse punida, não sabia as lições, e faltou pouco para que eu fosse expulsa”.[37] Como se não bastasse sua rebeldia na escola, em casa isso também se refletia. Diz Gemma: “Em casa, não dava paz a

ninguém, todo dia queria ir ear, sempre com roupas novas, que meu pobre pai me proveu por bastante tempo”.[38] Além disso, diz ela, “toda manhã e toda noite, eu deixava de fazer minhas orações habituais”.[39] Não sem constrangimento ela relata esses pecados, mas completa dizendo que não deixava de rezar todo dia, com as mãos nos joelhos, três ave-marias, como havia ensinado a sua mãe. Rezava dessa maneira para que Jesus a livrasse a cada dia dos pecados contra a pureza, pois esse era outro medo seu. Tanto temia ela que pensava em fazer votos de virgindade, mas foi desaconselhada pelo seu confessor, como veremos adiante, pois ela nem tinha ainda muito noção do que isso significava.

Gemma recorda que, quando esteve na casa das tias, foi mau exemplo para alguns de seus irmãos, e estes se tornaram tão negligenciados quanto ela. Dizia: “entre meus irmãos e irmãs, havia alguns mais bonzinhos e outros mais malvados [...]. Os que tinham aprendido dos meus maus exemplos, tinham muita vivacidade e, portanto, eram mais negligenciados”.[40] Sobre sua postura e a dos irmãos na casa das tias, escreveu Gemma:

A pior de todos sempre fui eu, e quem sabe que contas deverei prestar ao Senhor pelo mau exemplo dado aos meus irmãos e colegas! As tias sempre corrigiam todas as minhas faltas, mas eu não lhes respondia senão com arrogância, e tinham para mim apenas respostas duras.[41]

Gemma se achava soberba e dizia que as pessoas também a achavam soberba. Nesse seu caderno de pecados, ela escreve: “O único defeito pelo qual recebia fortes castigos e broncas era a soberba. A professora frequentemente me chamava pelo apelido de ‘a soberba’”.[42] Sem perceber, Gemma relata aqui o que hoje chamamos de bullying, e essa prática vinha de uma professora. Provavelmente, seus colegas também tinham tais procedimentos em relação a ela, mas Gemma não menciona nenhum caso, a não ser esse, e indiretamente. Mesmo assim, ela se achava merecedora desse apelido e não julgava esse comportamento da professora. Acreditando ter sido mesmo uma adolescente soberba, ela registra isso como um de seus pecados, e conclui dizendo: “Sim,

infelizmente eu tinha esse pecado, mas Jesus sabe se eu sabia ou não [...]. Eu não conhecia esse meu pecado, e muitas vezes por dia caía e recaía nele, sem perceber”. [43]

Outro pecado que Gemma reconheceu foi o fato de querer ter sido contaminada pela doença do irmão querido, Gino, que era seminarista. Esse seu irmão contraiu tuberculose no seminário e teve que voltar para casa. Gemma cuidou dele e dizia amá-lo tanto que queria morrer com ele. Para isso, ou a usar as suas coisas, para também ser contaminada pela doença e morrer. Disse ela:

Quando ele ficou de cama, não queria que eu saísse de perto dele. O médico já o tinha desenganado. Entristeci-me tanto que ele viesse a morrer, que, para também eu morrer, ei a usar todas as suas coisas; e faltou pouco para eu morrer de verdade, pois um mês depois de ele ter morrido, eu fiquei gravemente doente.[44]

Gemma contrai a doença do irmão, mas não viria a morrer devido a isso naquele momento. Ela registra essa sua imprudência, contudo, como um dos seus pecados.

Registrou também que ela abusava da bondade do pai, que, devido às suas debilidades físicas, seus problemas de saúde, cuidava dela com muito carinho. Escreveu que “certa vez, lembro-me muito bem, tinham me dado de presente um relógio de ouro com corrente; eu, ambiciosa que era, não via a hora de usá-lo e sair para ear (comecei então, papai querido, a fantasiar). Saí, de fato”.[45] Quando ela voltou, disse ter levado uma bronca do seu anjo da guarda por tal procedimento. Ela disse que, além do relógio de ouro, usava um anel no dedo, e daquele dia em diante tirou-o também e não teve mais nada. Esses assessórios a levavam a pecar pela vaidade.

Ainda em se tratando dos pecados de Santa Gemma Galgani, quero destacar o desejo que ela tinha de morrer. Desde muito pequena queria morrer, porém não era um desejo de tirar a própria vida, de se suicidar, como fazem pessoas deprimidas ou com algum transtorno mental. Ela queria ir para o paraíso, queria estar com Deus no céu, o que na verdade era também um desejo de morrer para este mundo. São várias as agens em que Gemma fala sobre isso, desde a doença de sua mãe, quando dizia em todo momento que queria ir com ela, até depois de adulta, quando ansiava por estar com Deus definitivamente. No seu caderno de pecados, ela fala sobre isso na parte intitulada “Desejo do céu”: “Cada vez que eu tinha febre e me sentia mal, era para mim um consolo; mas era um sofrimento quando, depois de qualquer doença, sentia as forças voltarem”. [46] Ela não lutava contra as doenças, e talvez por isso tenha ado boa parte de sua vida doente. Mesmo nas suas conversas com Jesus, nos seus êxtases, em que ele pedia a ela para não se portar dessa maneira e dizia que na vida ele lhe daria muitas ocasiões para grandes méritos, ela dizia: “Essas palavras não foram suficientes para diminuir meu desejo; ao invés disso, aumentava a cada dia”.[47] Gemma confessa, assim, que sua pulsão de morte era latente e que não lutar contra as enfermidades, e até buscar contraí-las, era uma espécie de atentado contra a vida.

Nessa ânsia de partir deste mundo e estar com Jesus, Gemma buscava a todo custo o sofrimento. Esse é outro procedimento que ela registra em seu caderno. Porém, não registra os atos penitenciais e de mortificação como pecados, mas como meios de reparar o pecado. No afã de reparar os pecados por meio de mortificações, Gemma, contudo, incorria em outro pecado: o de violentar o próprio corpo até desfalecer. Gemma usava o cilício, uma espécie de cordão com pregos nas pontas, para se autoflagelar. Ela relata que, em 1896, começou a ter outro desejo: “Eu sentia crescer em mim um desejo de amar tanto a Jesus crucificado, e, juntamente a esse, um desejo de sofrer e ajudar a Jesus em suas dores”.[48] Nesse desejo de ajudar Jesus em suas dores, ela recorria a práticas penitenciais extremamente agressivas, como a de agredir-se para sentir em seu corpo as dores do Crucificado. Psicólogos afirmam que a autoagressão é um distúrbio de comportamento que faz com que a pessoa agrida o próprio corpo ao sentir profunda tristeza, raiva ou nervosismo ou ao viver um trauma. Gemma viveu muitos traumas, como vimos antes, e talvez isso tenha contribuído para

que ela tivesse esse desejo de morte e recorresse a essas práticas de autoagressão. A autoagressão trata-se de um transtorno psiquiátrico que exige tratamento, terapia e medicação, mas naquela época isso não era levado em conta, embora o pai de Gemma não gostasse nada desse comportamento da filha.

Num desses atos, ela relata: “Certo dia, fui tomada por tanta dor ao irar, ou seja, olhar fixamente o Crucifixo, que caí por terra desfalecida; por acaso o papai estava em casa, e começou a me dar bronca [...]”.[49] Gemma não apenas se agredia literal e fisicamente, como disse, mas também psicologicamente. Ela se fixava tanto e com tanta concentração nas dores do Crucificado que as sentia em seu corpo, a ponto de desfalecer, como ocorreu nesse caso relatado. Ela entrava numa espécie de convulsão e, se não houvesse ninguém em casa, poderia, de fato, morrer. Por isso seu pai reprovava esse seu comportamento, e Gemma se enervava com suas broncas. Ele lhe dizia que aqueles procedimentos penitenciais excessivos lhe faziam mal, ao que ela lhe respondia: “Me faz mal é estar longe de Jesus Sacramentado”. Escreveu ela sobre isso: “Ele ficou tão bravo com a resposta, que me deu um forte grito; escondi-me no quarto, e foi a primeira vez que expressei abertamente a minha dor somente a Jesus”.[50] Sacrificar-se, mutilar-se e outros procedimentos penitenciais não eram tidos por ela como fonte de dor, mas ser contrariada nos seus desejos de estar com Jesus sim, como podemos perceber nesse e em outros relatos.

Gemma não só ficava satisfeita em estar doente, como também pedia doenças para seu corpo. Escreve ela: “Depois de tanto pedir, Jesus me atendeu: envioume uma doença em um dos meus pés. Eu a mantive em segredo por bastante tempo, mas a dor ficou mais forte, veio o médico, e disse que precisava operar urgentemente ou teria que amputar o pé”.[51] Não pense que isso assustou Gemma. Pelo contrário, ela ficou tranquila e desejava que a doença se agravasse mais até levá-la à morte. De fato, era uma doença gravíssima, e de propósito ela deixou-a se agravar, escondendo-a até não ar mais. Ela relata a tristeza da família com isso e a sua indiferença: “Toda a família ficou muito triste; somente eu me mantive indiferente”. [52]

Essa indiferença de Gemma com seus sofrimentos físicos e seu desejo de morrer deixam sua família triste e preocupada. Depois, ela reconhecerá que pecou por entristecer a família, mas não por desejar sofrer e morrer. Isso lhe foi creditado mais tarde como parte do seu processo de santidade, mas, aos olhos da psicanálise, esse comportamento é bastante questionado e interpretado de outra forma. Apesar das enfermidades e de suas dores físicas e psicológicas, ela dirá: “Em todo esse tempo, nunca deixei de cometer pecados: a cada dia eu piorava, era cheia de tantos defeitos, e não sei como Jesus nunca se mostrou descontente”.[53] Depois, ela vai corrigir-se, dizendo que Jesus já havia ficado descontente com ela e que isso lhe desagradara muito, a ponto de ela preferir sofrer as penas do inferno a magoar Jesus. Assim, ela escreve: “Somente uma vez vi Jesus decepcionado comigo, e preferia mil vezes sofrer as penas do inferno em vida do que estar diante de Jesus decepcionado”.[54] Nesse aspecto, Santa Gemma Galgani se assemelha a Santa Margarida Maria Alacoque, que tinha como maior temor ofender Jesus com as suas imperfeições e pecados. À vista disso, fazia qualquer sacrifício para corrigi-los.

Talvez como resultado de tantas penitências, da fixação pela busca de perfeição e do medo de pecar, a memória de Gemma Galgani não era lá essas coisas. Ela confundia datas e até mesmo a sua própria idade. Nas memórias de seus pecados, registradas nesse caderno, ela traz uma série de datas que não correspondem, como vemos em notas de pé de página feitas posteriormente. Numa dessas datas, quando ela enfatiza o desejo de fazer “votos de virgindade” e é aconselhada pelo seu confessor a fazer votos de castidade, Gemma menciona que tem quinze anos, mas na verdade iria fazer dezenove. O ano que ela diz ter feito os votos era 1896,[55] e ela nasceu em 1878, estando, portanto, como disse, com quase dezenove anos. Esses e outros lapsos de memória são comuns nesse seu caderno, o que oferece várias pistas para outras análises de sua mente, que não me cabe aqui fazer, mas que merecem um estudo mais acurado por parte de profissionais da área.

De volta aos pecados de Gemma Galgani, ela vai ainda enfatizar nesse seu caderno a sua indiferença em relação ao sofrimento de sua família. Diz ela:

“Terminado o dito ano, entramos em 1897, um ano tão sofrido para todos da família. Somente eu, sem coração, permanecia indiferente a tantas desgraças”. [56] Essas tantas desgraças incluem o processo acentuado de empobrecimento da família, que perdeu tudo, e a grave doença de seu pai. Gemma vivia isso como se nada estivesse acontecendo, e ela se acusa de ser insensível à dor alheia. Nesse ano, devido à grave doença, Gemma perdeu o seu pai e precisou ir morar com uma tia, pois a essa altura a família já estava praticamente sem nada.

Não é a primeira vez que Gemma vai morar com uma das tias, o que aconteceu por ocasião da morte da mãe. Desta vez, ela vai morar com uma irmã de seu pai, Carolina Galgani, casada com Domenico Lencioni. Moravam em Camaiore, onde possuíam uma loja de utilidades domésticas e mercearia, como já foi mencionado em capítulos anteriores. Gemma, com uma prima, ajudava o tio nessa loja, e foi aí que ela mais conheceu as coisas do mundo e mais esteve exposta ao pecado. Segundo ela, só não pecou mais porque Jesus teve misericórdia dela. Apesar de a tia levá-la à missa todos os dias, Gemma não comungava porque se achava em pecado e não tinha possibilidade de confessar sempre, e sem se confessar ela não comungava. Assim, aos poucos ela ia se afastando de Deus, e quando uma pessoa se afasta de Deus, isso abre brechas em sua vida para o pecado e, consequentemente, para o diabo. Diz ela: “Nesse tempo, no entanto, comecei a me esquecer de Jesus, comecei a deixar de lado as orações, e voltei a amar as diversões”.[57] Gemma se aliou a uma prima, e ambas aprontavam travessuras. Escreveu Gemma no seu caderno: “Outra sobrinha que a tia também tinha trazido ficou minha amiga, e por ruindade nos dávamos muito bem. A tia frequentemente nos mandava para fora”. [58]

Também nessa época, por volta dos seus vinte anos, Gemma diz ter conhecido o amor do mundo. Não que ela tenha levado uma vida devassa, mas para alguém que só vivia entre a igreja e a casa, e na casa não fazia outra coisa senão rezar, conhecer algo fora desse contexto, como trabalhar numa loja e lidar com os clientes e demais funcionários, pode ser considerado uma atitude mundana. Sobre isso Gemma vai relatar o seguinte: “Lembro-me bem de que, se Jesus não tivesse piedade de minha fraqueza, eu teria caído em pecado grave; e o amor do

mundo começava aos poucos a se marcar no meu coração”. [59]

Pe. Fernando Piélagos, um dos seus biógrafos, relata que nessa época surgiram os primeiros pretendentes de Gemma. “Romeu dele Lucche, empregado na mesma loja, não dissimula seu amor por Gemma. Mas ela não lhe dá qualquer esperança, dizendo que quer se entregar toda a Jesus”.[60] Diz também Piélagos que “Jerônimo Bertozzi, filho do médico da aldeia, enamora-se dela a ponto de pedir sua mão à tia Carolina, a tutora oficial. Mas nada! Gemma estava decidida a seguir Jesus”.[61] Há também o caso da ponte, já citado antes, em que Gemma foi envolvida numa fofoca sobre um suposto relacionamento com um jovem de nome Romeu. Essa calúnia partiu do jovem Luís Bartelloni, irmão de sua amiga Rosa Bartelloni, que zombou dela colocando um letreiro na porta da cozinha com o seguinte escrito: “Gemma e Romeu vão à ponte de Badia para celebrar o amor”.[62] Mais tarde, esse jovem, Luís Bartelloni, iria confessar a mentira e dizer-se arrependido, porém não deixou de expô-la a uma situação constrangedora. Ao recordar essa época, Gemma vai escrever:

[...] A ideia daqueles meses ados em pecado me faz tremer. Tinha-os feito de todos os tipos: até mesmo pensamentos impuros bailavam em minha mente; tinha dado ouvido a falas muito feias, em vez de fugir delas; brigava com a tia para encobrir minha amiga; em suma, eu via o inferno de portas abertas para mim.[63]

Depois de um tempo em Camaiore, com a tia, e de seu contato com as “coisas do mundo”, Gemma adoeceu e precisou voltar a Lucca. Sua doença era tão séria que ela corria risco de morte. A dor nas costas que ela começara a sentir em Camaiore e que havia ocultado por muito tempo já atingia seus rins, e foi preciso chamar um médico. Gemma relata a vergonha de ter que se despir diante do médico e afirma que chorou por causa disso.

A doença foi diagnosticada como uma inflamação da medula espinhal e das meninges que a cercam, porém um dos médicos disse ser histeria, no sentido médico, e não psicanalítico, do termo. Nesse período de total dependência física de outras pessoas, Gemma diz: “Eles me cercavam de cuidados, enquanto eu, ao contrário, não lhes retribuía senão sendo má e respondona”. [64]

Nos relatos dos seus pecados, Gemma continua a insistir na sua falta de atenção na oração. Mesmo nos momentos mais dolorosos, de enfermidade física, ela diz se distrair na oração ou se esquecer de rezar. Quando uma de suas antigas professoras, irmã Júlia Sestini, do Instituto de Santa Zita, vai visitá-la e pede que ela faça uma novena a Margarida Maria Alacoque (na época beata), para a sua cura, Gemma começa a novena, mas não persevera. Num desses momentos, diz: “Era dia 18 de fevereiro. Comecei, de fato; fiz pela primeira vez naquela noite, mas no dia seguinte esqueci. No dia 20, comecei de novo, mas de novo me esqueci. Mas quanta atenção, não é mesmo, meu papai?”.[65] Ela insiste várias vezes na novena, e várias vezes se esquece de dar continuidade, até que consegue completá-la e recebe, conforme relata, a cura milagrosa da sua enfermidade.

Também foi registrado como pecado o fato de ela, em alguns momentos, achar que Deus a tinha abandonado, sobretudo nos momentos de perda de pessoas queridas da sua família, como sua mãe, quando era ainda criança, e, mais tarde, na sua juventude, o irmão querido, Gino, e depois o pai. Sobre isso ela vai dizer: “Via bem que Jesus me havia tirado os pais, e às vezes eu me desesperava, porque achava que tinha sido abandonada”.[66] E ela se lamentava por isso, apesar de ouvir de Jesus que ele estaria sempre com ela. Vemos aqui que, mesmo tendo fé e sendo uma pessoa de Deus, como era Gemma, nos momentos dolorosos de perda de entes queridos, é comum ter um sentimento como esse, de ter sido abandonado por Deus, ou até imaginar-se castigado por ele, mas Gemma se penitencia por isso.

Gemma via na Eucaristia o remédio para todos os males, por isso não queria

deixar de comungar de modo algum, porém houve momentos em que não pôde fazê-lo em razão dos seus muitos pecados. Diz ela sobre isso: “Apenas vez ou outra, porque meus muitos pecados me tornavam indigna, ou por castigo do próprio confessor”.[67] Gemma se via muito pecadora, e corrigir os seus supostos pecados tornou-se para ela quase uma obsessão. Fazia qualquer sacrifício em nome da reparação de seus pecados, até mesmo ficar sem receber a comunhão, que era para ela uma das maiores penitências, porque a Eucaristia era seu principal alimento. Alimento da alma, alimento espiritual. Sem esse alimento sua alma se perderia, e perder a alma, perder o céu, seria um castigo inenarrável para Gemma Galgani, que direcionou toda a sua vida para o céu.

Lutar contra os pecados da língua era outro desafio para Gemma. Sabemos que o meio pode favorecer esse pecado e que às vezes, mesmo sem querer, falamos de modo depreciativo da vida de alguém. Não que Gemma vivesse num meio de gente fofoqueira, muito pelo contrário, sua família era sensata e íntegra, mas não era santa como ela. Assim sendo, ela também relata uma situação nesse sentido, dizendo: “Uma vez, os de casa falavam de uma pessoa e não falavam tão bem. Eu queria depreciá-la também, mas o anjo me repreendeu duramente”.[68] Gemma, como já foi dito antes, tinha um anjo da guarda que a protegia de todos os males e a corrigia, mas mesmo assim ela era profundamente tentada pelo diabo. De um lado, ela tinha o anjo, que lhe ensinava como se portar, como falar e no que pensar; de outro, o diabo, que a tentava para não fazer nada do que o anjo lhe pedia. O diabo lhe prometia coisas aparentemente maravilhosas e prazerosas, enquanto o anjo lhe pedia penitências e coisas dolorosas. Assim, a vida de Gemma oscilava entre a santidade e o pecado, a porta estreita e a porta larga. A santa era guiada pelo anjo e tentada pelo diabo, e isso era um dilema que a torturava enormemente.

Enfim, mesmo tentada e, muitas vezes, confusa, Gemma não desistia de buscar a Deus. Em uma ocasião, durante a hora santa, Gemma descreve ter visto, em sonho, as chagas abertas de Jesus, e este lhe diz que aquilo era devido aos seus pecados. Mas ele também lhe dá nesse sonho um dos seus maiores consolos, ao dizer-lhe: “Filha, veja: estas chagas estavam todas abertas pelos seus pecados; mas agora se console, porque se fecharam todas com as suas dores. Não me ofenda mais. Ame-me, como eu sempre a amei. Ame-me”.[69] Assim, Gemma

vai corrigindo suas falhas, fraquezas e pecados até alcançar definitivamente o tão almejado paraíso, onde sua alma estaria completamente purificada.

Nas demais partes do caderno dos seus pecados, Gemma Galgani vai registrar outros episódios considerados por ela pecados, mas que não am de repetição ou de frutos da sua imaginação, porque ela era tão cuidadosa, chegando a ser até mesmo escrupulosa, que via em quase tudo pecado. Entre eles, podemos citar: ter conversado com as amigas de sua irmã sobre coisas mundanas;[70] ter feito penitências exageradas, sem a permissão de seu confessor;[71] a desobediência e a soberba quando esteve no mosteiro das salesianas;[72] entre outros. Por tudo isso, ela diz ter sido sempre repreendida por Jesus. Numa dessas repreensões, ouviu dele: “Filha, você também está tentando aumentar as penas do meu coração? Elevei você ao posto de minha filha, a honrei com o título de minha serva, e agora, como se porta? Filha arrogante, serva infiel. Feia!”.[73] Essa dura repreensão que ela diz ter ouvido de Jesus marca seu coração, e depois disso, conforme relata, ela recebe novas cruzes, mas também forças para carregá-las e corrigir suas faltas. Gemma encerra o seu caderno de pecados contando como conheceu seu diretor espiritual, Pe. Germano de Santo Estanislau, e se dirigindo a ele com estas palavras: “Agora chega de falar, porque daqui em diante me conheceu e já sabe de tudo”.[74] Com esse caderno, podemos conhecer o lado humano de Santa Gemma. Humano no sentido de ter limitações e fraquezas, mas também fortalezas, e de lutar contra os pecados e vencê-los. O caderno que ela desejava ocultar aos olhos do mundo tornou-se público por vontade de seu diretor espiritual, que viu nesse ato não uma revelação dos segredos de confissão, mas uma forma de ensinar ao mundo como se dá o processo de santidade, por meio do reconhecimento e da correção dos pecados. Vemos, com isso, que os santos foram também humanos, com suas fraquezas, e que toda pessoa, se se empenhar, pode atingir o grau da santidade, que é um desejo de Deus a todos os filhos seus. Por isso mesmo, ele disse, por meio do apóstolo Pedro, e no livro do Levítico: “Como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos também vós santos em todo o vosso comportamento, porque está escrito: Sede santos, porque eu sou santo” (1Pd 1,15-16; Lv 19,2).

XVII

Santa Gemma Galgani e os desejos frustrados de se tornar freira

O grande desejo de Gemma Galgani era se consagrar a Deus como freira, mais especificamente como monja ionista, e viver numa vida de clausura, plenamente direcionada ao carisma da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Isso, contudo, não lhe foi possível, a não ser fora do convento, pois foi rejeitada pelas ionistas devido a fatores que descreverei com detalhes mais adiante. Neste capítulo, busco examinar esse desejo de Gemma Galgani, suas várias tentativas de entrar para o convento e as decepções que teve por conta da rejeição, que não a fizeram desistir de se consagrar a Deus, pois isso ela já tinha feito, pessoalmente, desde muito pequena. O que ela queria, no entanto, era oficializar essa consagração, se tornando uma monja ionista, da família do coirmão Gabriel e do seu diretor espiritual, Pe. Germano de Santo Estanislau.

Gemma não tinha dúvida de que a sua vocação era para a vida religiosa monástica, ionista, servindo exclusivamente a Deus. Vimos isso de várias formas: na sua identificação com o carisma da paixão; na sua espiritualidade autenticamente ionista, de amor ao Crucificado, a ponto de ter no seu corpo as suas chagas; na renúncia às coisas do mundo, inclusive ao namoro e à vida matrimonial; no sentir-se deslocada no mundo; no seu desejo de fazer votos de virgindade e de castidade, conforme relatos seus e do seu diretor espiritual. E é a partir dos relatos de seu diretor espiritual e dos escritos de Gemma que trato aqui da sua vocação ionista, bem como da sua rejeição nesse mosteiro. Anos mais tarde, as monjas ionistas terão consciência do erro cometido ao rejeitá-la e buscarão remediá-lo concedendo a Gemma, depois de sua morte, as regalias de ser uma de suas principais padroeiras, ao lado do fundador, São Paulo da Cruz.

Desde criança, Gemma demonstrava o seu desejo de viver uma vida religiosa consagrada, conventual. Sentia-se muito bem ao lado de pessoas consagradas, sobretudo de freiras, que ela via como mestras, tendo contato direto com elas nas escolas onde estudou, na igreja, em retiros nos conventos ou por meio de outras experiências vocacionais.

Uma das primeiras congregações religiosas com que Gemma teve contato mais próximo foi a das irmãs de Santa Zita, por ter sido matriculada no então afamado colégio dessas irmãs, em Lucca. As irmãs de Santa Zita, conhecidas na época de Gemma Galgani como as zitinas, posteriormente aram a ser chamadas de oblatas do Espírito Santo, ou oblatas do Cenáculo. Como dissemos antes, essa congregação foi fundada em Lucca pela Beata Elena Guerra (1835-1914) e tem como padroeira Santa Zita, uma santa de Lucca, padroeira das empregadas domésticas. Gemma ficou muito feliz por poder estudar num colégio de freiras e ter contato mais próximo com pessoas consagradas a Deus. Dizia ela: “Comecei a ir à escola das monjas: estava no paraíso”.[1] Dá para perceber nessa expressão registrada, na sua Autobiografia, e também na sua biografia, que ela estava radiante de felicidade, comparando o convento ao paraíso. Ali, ela foi preparada para a primeira comunhão (1887) e aprendeu muitas coisas sobre a vida religiosa, inclusive sobre a paixão de Jesus, com ensinamentos da boa mestra e catequista irmã Camilla Vagliensi. No entanto, mesmo amando aquele colégio e as freiras, sentia que não era ali que ela devia se consagrar a Deus.

Outra congregação com que Gemma teve contato foi a das Salesianas da Visitação, ou Ordem da Visitação de Santa Maria, as visitandinas. Escreveu Gemma:

Naquela mesma manhã da segunda sexta-feira de março, as monjas salesianas quiseram me ver. Fui até elas, e me prometeram que no mês de maio me levariam com elas para os exercícios, e em junho, se fosse de fato minha vontade e minha vocação verdadeira, me aceitariam no convento definitivamente. Sim, me senti muito feliz por essa decisão delas, e muito mais porque sabia que o monsenhor concordaria com isso.[2]

O monsenhor a que ela se refere é monsenhor Volpi, seu confessor e bispo auxiliar de Lucca, cujo arcebispo, na época, era monsenhor Nicola Ghilardi. Apesar da alegria de estar com as monjas, na sua experiência vocacional, Gemma foi aos poucos percebendo que não era àquele tipo de vida que ela

queria se dedicar. Achou o convento pouco rigoroso e disse que ali tudo era muito fácil e cômodo e que não queria uma vida consagrada acomodada. Ela queria algo mais austero, como vemos nas anotações de sua Autobiografia. Porém, Gemma não deixou de sentir grande alegria quando chegou o momento de fazer a experiência vocacional com aquelas monjas, e escreveu: “Aproximava-se o momento tão desejado de ir para os exercícios, e entrei no convento no dia 1º de maio de 1899, às 15h. Parecia que entrava no paraíso. Que consolo!”.[3] Esse momento foi tão importante na vida de Gemma Galgani, que ela recorda o dia e a hora em que ocorreu e novamente compara o local e a ocasião com a entrada no paraíso. Para termos noção de quão importante e desejada lhe era a vida monástica, ela usa essa imagem do paraíso.

Gemma queria ter ali o sossego e a paz do paraíso, mas não a acomodação, e sobre isso escreve: “A primeira coisa foi que proibi os de casa virem me ver nesses dias, porque aqueles dias eram todos para Jesus”.[4] Gemma não queria ser perturbada com as coisas do mundo e proibiu os seus familiares de irem visitá-la, afinal, não era ainda algo definitivo, seriam apenas alguns dias, e ela queria aproveitá-los ao máximo, dedicando-se à oração sem ser interrompida em nenhum momento, algo que o claustro possibilitava.

Mesmo assim, seu confessor, que a acompanhava e que havia possibilitado a sua experiência espiritual e vocacional com aquelas monjas, foi ver como ela estava e dar algumas recomendações a ela e às monjas. Uma das recomendações foi que não fizesse exercícios privados, ou seja, sozinha, apartando-se da comunidade. Tudo isso porque ele conhecia Gemma e sabia que, se a deixasse sozinha, ela seria capaz de se autoflagelar a ponto de desfalecer. Sobre isso, Gemma vai escrever: “O monsenhor, na mesma tarde em que entrei, veio me ver e me aconselhou (como desejava a madre superiora) a não fazer exercícios privados, mas sim como uma prova, ou seja, que fizesse tudo o que as monjas fizessem”. [5] A fama de Gemma e de suas exageradas penitências já tinha chegado aos ouvidos da madre superiora, que tomou o cuidado de não deixar que ela as praticasse sozinha e pediu que o seu confessor reforçasse essa orientação.

Gemma obedeceu, mas depois vai achar que as penitências que as monjas faziam não eram tão severas quanto ela desejava. Escreveu ela: “Se por um lado isso me consolou, por outro me desagradou, porque não consegui me recolher tão bem; mas quis obedecer sem retrucar.”[6] Se ela fizesse objeções logo de início, provavelmente elas não permitiriam que Gemma ali permanecesse. O jeito foi obedecer, mas sentia por não poder rezar a sós com Jesus.

Assim que chegou, Gemma ouviu da superiora do mosteiro, madre Marianna Giuseppina Vallini, que quem cuidaria dela e a acompanharia mais de perto era a mestra de noviças, irmã Maria Giuseppa Guerra. Tanto madre Marianna quanto irmã Giuseppa eram de Lucca, portanto, conheciam bem Gemma. A mestra de noviças lhe ou o cronograma das suas atividades durante o período que ela estivesse ali com elas. Era um cronograma intenso de atividades, que começava às 5h, quando Gemma ia junto com as demais para o coro, onde recitavam as laudes e as sextas, que são orações da liturgia das horas, e terminava às 21h, quando recitavam o ofício de leituras e, enfim, iam para as celas.

Pelo que vemos, não havia nenhum momento livre no cronograma para que Gemma pudesse rezar sozinha. Mesmo assim, ela achou tudo aquilo muito cômodo e queria mais, por isso vai escrever depois: “[...] Pareceu-me que aquela vida era muito fácil para as monjas e, ao invés de me encantar, comecei, então, a não gostar nem um pouco daquele modo de vida”.[7] Aos poucos, Gemma percebe que não era ainda aquele modelo de vida que ela desejava, apesar de se sentir bem entre as freiras e de fazer de tudo para não decepcioná-las, já que as monjas a tratavam muito bem. Gemma vai dizer: “As noviças, que tinham tanto carinho por mim, me avisavam, de vez em quando, e me falavam aquilo que eu podia fazer para agradar à comunidade, mas eu nem ligava”. [8]

Gemma tinha um sentimento paradoxal: ao mesmo tempo que achava tudo ali muito cômodo e que não era aquilo que queria para a sua vida, também não queria voltar para casa. Porém, ela sabia que aquela era apenas uma experiência de poucos dias e que logo teria que voltar. Talvez por isso fosse tomada por esse

sentimento dúbio de quem ainda está descobrindo a vocação ou discernindo o carisma a ser vivido. No entanto, mesmo não estando de todo satisfeita naquele convento, pior seria estar fora dele, ter que voltar para o mundo, como ela mesma dizia. Sobre isso, Gemma vai escrever em sua Autobiografia: “O que me afligia era ter que voltar ao mundo; e eu teria preferido ficar ali (mesmo que eu não me sentisse bem enquadrada) a voltar aos lugares onde as ocasiões para ofender Jesus são tantas”.[9] Antes ficar num convento, mesmo que não seja o almejado, que estar fora dele e ter mais ocasião de pecados.

Isso angustiava Gemma, porque ficar no convento apenas para sair do mundo seria fuga e acomodação, e isso não a faria feliz. Gemma enxergava o convento e a vida consagrada como o lugar e a vocação ideal para servir Jesus sem pecar, ou com menos ocasião para pecar, porque a vida ali era repleta de oração, mas ao mesmo tempo temia a acomodação. Assim pensando, ela decide ficar ali para sempre e não voltar para o mundo, e diz: “Pedi ao monsenhor permissão para que eu não saísse mais do convento”. Pedido feito, pedido negado. O bispo não permitiu que ela permanecesse, alegando que ela ainda não estava bem de saúde, porque ela portava um busto de ferro (colete ortopédico) na coluna para manterse em pé.

Gemma tinha tido uma grave enfermidade na coluna, da qual falarei no próximo capítulo, que lhe dificultava ficar ereta, mas, mesmo assim, ela esforçava-se para levar uma vida normal, fazendo tudo o que as outras noviças faziam. Ela havia escondido até então que estava usando por baixo das vestes esse sustentáculo de ferro, e diz sobre isso: “Não sei quem fazia as vezes de espião para o arcebispo”. [10] Ela não fazia ideia de quem havia contado ao arcebispo que ela usava esse busto de ferro.

Após o comunicado do arcebispo, a madre ordenou que ela retirasse o busto, e isso foi doloroso, tanto física quanto psicologicamente, pois sem ele ela teria suas ações limitadas. Escreveu ela:

A madre superiora então ordenou que, por obediência, eu tirasse o busto de ferro; chorei sob essa ordem, porque eu sabia que não podia me sustentar sozinha. Corri ao noviciado, rezei ao meu querido Jesus menino, e então corri para o quarto. Tirei-o. Haviam-se ado dois anos, não precisei recolocá-lo e estava muito bem.[11]

Gemma relata esse milagre com muita naturalidade e fica radiante por não precisar mais usar o busto de ferro. Há males que vêm para bem, pois, se o bispo e a madre não tivessem pedido que ela o retirasse, ela teria ficado com aquele aparelho sem necessidade, achando que sem ele não poderia ficar em pé. Diante disso, o seu confessor, monsenhor Volpi, permitiu que ela ficasse no convento por mais doze dias, até a profissão de algumas noviças, o que a deixou infinitamente contente, mesmo sendo um período limitado. Cada dia no convento ela aproveitava como se fosse o último.

Nesses dias em que Gemma ficou no convento, viu que aquela vida era muito cômoda para ela, e sobre isso diz: “Aquela vida era muito cômoda para mim. Eu tinha pecado tanto, precisava ainda fazer penitência”. Mesmo assim, ela sofre ao partir: “No dia seguinte, eu deveria sair do convento, para voltar para casa; gostaria que aquele momento não tivesse chegado nunca, mas, infelizmente, chegou”.[12] Como o dia da chegada, também o dia da saída será descrito com detalhes, inclusive com o registro do ano, do dia e da hora (21/5/1899).

Na hora da saída, muito choro, e, entre lágrimas, ela pede a bênção da madre, dizendo: “Meu Deus! Que dor!”. Mas as dores não param por aí: ao voltar, conforme relata, não consegue mais se adaptar. Ela já tinha direcionado toda a sua vida para o convento, e estar de volta em casa era como ser colocada em um lugar estranho, que não era seu; e de fato não era. Gemma nasceu para ser consagrada e viver num convento, mas as circunstâncias não possibilitaram que ela realizasse esse seu grande sonho. Diz ela: “Minha mente e meu coração estavam com a ideia fixa de ser religiosa, e ninguém me poderia tirar essa ideia; para sair do mundo, eu tinha absolutamente decidido que me tornaria monja salesiana”. [13]

[13]

De fato, ninguém iria tirar de sua cabeça e do seu coração o desejo de ser freira. Tanto é que, depois que saiu, ela não perdeu o contato com as freiras do convento, e sobre isso dirá: “Quase todos os dias eu ia ao mosteiro, e as freiras haviam me prometido que, no mês de junho, no dia da festa do Sagrado Coração de Jesus, eu voltaria a ficar com elas”.[14] Novamente ela diz que, apesar dessa nova chance, a vida salesiana era muito cômoda para ela. Gemma insiste na palavra “cômoda”, mostrando que queria uma vida consagrada mais rigorosa, austera, de penitência mesmo, e isso ela via nas ionistas. Ela dizia que era Jesus que pedia isso a ela.

Mesmo assim, Gemma ainda insistiu com as salesianas, mas estas mudaram com ela, começaram a evitá-la e a fazer outras exigências que impossibilitaram o seu retorno. Escreveu Gemma:

Entramos, então, no mês de junho, e me dei conta de que as monjas estavam mudadas; eu não me incomodei: cada vez que eu ia ver a superiora, diziam-me que eu não podia, e me enviavam às vezes uma, às vezes outra. E começaram a me ar sermão, dizendo que, se eu não tivesse ao menos quatro atestados médicos, não me aceitariam.[15]

Gemma diz que tentou de tudo, mas foi em vão. Os médicos não lhe deram os atestados pedidos, e as monjas foram irredutíveis, dizendo que, sem os atestados, ela não teria nenhuma chance naquele convento.

Porém, apesar de todas as dificuldades encontradas e dos obstáculos, ela não vai desistir facilmente desse desejo de ser monja, e sobre isso ela diz: “Nessa época, no entanto, o desejo de fazer-me monja estava sempre aumentando. Eu dizia ao meu confessor, que me dava, quase sempre, respostas pouco consoladoras”.[16]

Apesar do seu desejo, ou melhor, da sua vocação, Gemma não via elementos que aumentassem sua esperança em se tornar um dia monja, e, diante da sua condição física, seu confessor não iria lhe dar esperanças, mas ela nunca deixou de pedir a Jesus, nas suas orações, que lhe apontasse um caminho.

Seu diretor espiritual, Pe. Germano, acompanha o processo vocacional de Gemma e tenta ajudá-la. Ele diz sobre isso: “Uma alma tão apaixonada pelos bens celestiais, como era Gemma, devia de achar-se fora do seu elemento vivendo no mundo, e assim era”.[17] Gemma não se achava nesse mundo, e talvez por isso ela tenha desejado, muitas vezes, ir para junto de Deus. Enquanto a morte não vinha, a saída era o convento. Ela via na vida consagrada, monástica, não uma fuga, mas o caminho do paraíso. Nesse sentido, ela diz: “Oh! Como farei para viver neste mundo, onde tudo me desagrada? Tirem-me daqui, tirem-me daqui, onde não posso ficar”.[18] Era uma espécie de pedido de socorro. O mundo não lhe pertencia, e ela se sentia deslocada nele. Numa de suas cartas ao Pe. Germano, ela chega a implorar: “Conjuro-vos, em nome de Jesus, vinde e encerrai-me num claustro, o mundo não foi feito para mim”.[19] Pe. Germano vai dizer que, em todas as cartas, ela iria aludir a esse veemente desejo, e dirá mais:

Deus, certamente para experimentar a virtude religiosa de sua serva, declaravalhe que essa era também a sua vontade, e assegurava-lhe que ela certamente seria religiosa, quando as pessoas de quem dependia a execução deste seu beneplácito fizessem o que ele tinha disposto.[20]

Pe. Germano se compadecia dela, e queria encontrar uma forma de ajudá-la em sua vocação, mas suas tentativas também foram em vão. Diz ele: “Vendo porém a piedosa virgem que esta promessa não se realizava, insistiu por muitos anos sem cessar, e ou a última parte de sua vida numa verdadeira agonia, até que o Senhor lhe disse que se tranquilizasse, abandonando esse pensamento”. [21]

Depois que Gemma saiu da sua primeira experiência no convento da Ordem das Salesianas, ou das Salesianas da Visitação de Santa Maria, como descrito antes, seu confessor, monsenhor Volpi, tentará ajudá-la buscando outros conventos, como o convento das capuchinhas ou o das carmelitas; não dando certo, buscou uma ordem terceira, a Ordem das Mantelladas, além de outras, mas nenhuma deu certo, e Gemma também não desenvolveu afinidade com nenhuma delas, como vai dizer: “Farei, se quiserem, mas o meu coração me diz que Jesus não me quer em nenhum desses lugares. Por mais que façam nunca conseguirão, porque Jesus me parece que é de outra opinião”.[22] Ela sentia que o desejo de Jesus é que ela fosse ionista e usasse o hábito do coirmão Gabriel e do seu diretor espiritual, Pe. Germano, que sobre isso escreverá na biografia da santa:

Só um convento satisfazia completamente o ardente atrativo da piedosa virgem, o das ionistas. Ela sentira esse desejo pela leitura da vida do Bemaventurado Gabriel, e parece que esse mesmo servo de Deus, numa visão, recebeu animadoras esperanças de um dia ser do seu número.[23]

São Gabriel da Virgem Dolorosa, que então era apenas bem-aventurado, nas suas conversas com a santa, animava-a nessa perspectiva de ser ionista. “Daí em diante, não pensou em mais nada, e só por esse instituto gemia aos pés de seu Deus”,[24] continua Pe. Germano nos seus relatos sobre o desejo ardente de Gemma Galgani de ser ionista.

Sobre essa busca incessante de Gemma e sobre as ionistas, Pe. Germano diz ainda: “Havia então uma só comunidade de religiosas ionistas na Itália, na cidade de Corneto, a cem quilômetros de Roma e 275 de Lucca. Que fazer?”. [25] Corneto foi o primeiro mosteiro das monjas ionistas na Itália. A distância era muito grande para Gemma, que, com todos os seus problemas de saúde, teria dificuldade em se deslocar até lá para fazer uma experiência com elas; seria muito penoso, mas o que seria isso para uma pessoa acostumada a práticas penitenciais rigorosas? Além disso, havia outro agravante: as monjas de Corneto não se mostraram muito animadas em receber uma jovem com problemas físicos de saúde e, segundo elas, também com certos problemas

mentais. Isso vai atingir ainda mais a sensibilidade de Gemma, mas não o seu desejo de ser ionista, por isso ela insiste.

Sobre isso, Pe. Germano dirá: “Depois de refletir por muito tempo e pedir conselhos, resolveu ir até lá fazer um retiro. Fez esse pedido em regra juntamente com outras três amigas de Lucca”.[26] Mas, para a infeliz surpresa de Gemma, a resposta da superiora foi pouco sensível e nada agradável: “As três venham, porém Gemma não, e vejam que se teimarem em trazê-la não as deixaremos entrar”.[27] Já tendo ouvido falar de Gemma e do seu comportamento em relação às questões espirituais, desconfiava que ela era uma dessas pessoas fanáticas e desequilibradas que em todos os tempos existiram. A esse respeito, o diretor espiritual de Gemma vai dizer: “Aquela boa superiora, tendo ouvido falar de Gemma em todos os sentidos, a tomava sem dúvida por ser uma dessas jovens histéricas ou alucinadas, que tanto prejudicam a uma comunidade”. [28]

A superiora não deixava de ter razão, e Pe. Germano também, porque não é incomum pessoas histéricas e alucinadas buscarem a vida religiosa e depois fazerem da comunidade um inferno. São muitos os relatos de freiras, frades e padres sobre situações dessa natureza nos conventos, e por isso é preciso que se tenha muito cuidado na hora do discernimento vocacional, sobretudo quando o candidato ou candidata à vida religiosa já traz um histórico de comportamentos fora do comum, radicais, como era o caso de Gemma Galgani.

Gemma recebeu a notícia sem se alterar, conforme relata Pe. Germano, mas não sem dor no coração, porque via se fechar a porta do convento no qual ela tanto almejou ingressar. Depois, ao ficar sabendo da dureza do coração daquela madre superiora e de que havia muita queixa sobre ela, ela diz, com o coração cheio de bondade e perdão: “Não falem mal da madre presidente [...]. Quanto a mim, eu a amo muito, e quando entrar no céu, a madre presidente será a primeira a quem irei saudar”.[29] Quanta bondade no coração de Gemma! Mesmo sendo rejeitada e tratada com indelicadeza por parte da superiora, que na época era chamada de

madre presidente, um costume nos mosteiros ionistas, Gemma a perdoa, dizendo que iria rezar por ela e saudá-la em primeiro lugar no céu. Sobre essa madre, Gemma vai dizer a uma amiga: “Conheci em sonho a madre presidente, que olhava para mim com um olhar tão severo. Eu lhe quero tanto bem e ela não gosta de mim”. [30]

Gemma era persistente na sua vocação e não desistiu diante da rejeição da madre. Arranjou um jeito de fazer amizade com outra monja daquele convento, a irmã Maria Josefa do Coração de Jesus Armellini (1850-1921), a mesma que mais tarde, por providência divina e para regozijo de Gemma Galgani, iria fundar o mosteiro ionista na cidade de Lucca. Gemma escrevia inúmeras cartas a ela, abrindo seu coração e implorando que intercedesse junto à madre presidente, para que permitisse que ela fosse para o convento, nem que fosse para ser apenas uma serviçal. Na época, as que no convento desempenhavam funções domésticas, como varrer, lavar, ar, cozinhar, eram chamadas de monjas conversas. Era comum, nos conventos de vida contemplativa, tanto femininos quanto masculinos, aceitarem pessoas como conversas. Nesse caso, eram pessoas de pouca escolaridade, com certa dificuldade nos estudos, e, por isso, dispensadas da obrigação do coro, isto é, do ofício divino, que se dedicavam principalmente aos serviços domésticos. Só a humildade poderia fazer Gemma pensar que ela se adequava à realidade de conversa, diz a nota de pé de página (p. 292) da biografia de Gemma Galgani. Nesse sentido, Gemma vai escrever à irmã Josefa, dizendo:

Levai-me para o convento convosco. Ficai certa de que procederei bem. Satisfazei o meu desejo. Não tenho um vintém, sou muito pobre, mas procurarei tornar-me útil como irmã conversa. Crede que sei trabalhar, sei varrer, lavar a louça, ajudar na cozinha, e minhas forças am qualquer trabalho pesado. Recebei-me para agradar a Jesus.[31]

Naquela época, para uma jovem entrar no convento como candidata à vida consagrada, era preciso que ela – a família, no caso – desse um dote, ou seja,

pagasse algo ou fizesse uma boa doação material para o convento, por meio de um bem móvel ou imóvel. Gemma reconhece que não tem um vintém, mas tem vocação, tem a certeza de que era desejo de Jesus que ela se tornasse ionista, porque ele havia imprimido no seu coração as dores da sua paixão.

Numa ocasião em que seu diretor espiritual foi até Corneto, Gemma enviou por meio dele recomendações e, mesmo assim, pediu que a monja, ao se encontrar com ele, falasse dela e intercedesse por ela. Ela diz à irmã Josefa:

Eu sei que o padre está em Corneto. Dize-lhe muitas coisas em meu nome; pedilhe que me faça entrar no convento convosco. Serei sempre obediente e não farei nada por mim mesma, eu lhe direi tudo e só procederei conforme for da sua vontade. Sinto-me tão mal no mundo, minha mãe. Diga ao padre que reze muito e se decida, porque em breve não será mais tempo.[32]

Gemma pressentia que sua vida seria breve, que não teria muito tempo neste mundo, e desejava ardentemente, ainda em vida, ser ionista, mesmo que fosse por pouco tempo. Pe. Germano depois dirá que esses mesmos apelos ela fazia diretamente a ele: “Depressa, meu pai, ouvi a Jesus, senão não será mais tempo. Tornarei a falar em breve sobre esta frase cem vezes repetida: não haverá mais tempo”.[33] Gemma insistia que fosse logo, porque, se demorassem a decidir, seria tarde demais. E, de fato, foi. Gemma não viu seu desejo realizado em vida, porém, depois de morta, seu corpo adentraria o mosteiro de Lucca, sobre cuja fundação, naquela ocasião, já se começava a falar, como veremos mais adiante.

XVIII

O sonho de Santa Gemma Galgani: um mosteiro ionista em Lucca

Como vimos, Gemma Galgani não conseguiu realizar a vocação de se tornar oficialmente uma freira ionista, seu maior desejo. Mas não pense que ela desistiu desse carisma: mesmo sendo ionista apenas de coração, somente para ela, Deus e seus amigos espirituais (coirmão Gabriel e Nossa Senhora das Dores), ela levou adiante, até o fim, os seus propósitos, que ela não tinha dúvida de que eram também os propósitos de Deus. Alguém que tinha impressas em sua carne as dores de Cristo crucificado não poderia abandonar os propósitos de ser e viver o carisma da paixão. Assim, Gemma coloca na cabeça que quer um mosteiro das monjas ionistas na cidade de Lucca – para talvez, dessa forma, ter um cantinho para repousar, como ela mesma iria dizer –, e a a perseguir esse sonho. Embora seu sonho tenha, de fato, se concretizado, ela não o vê se realizar, porque morre antes da aprovação e instalação do mosteiro, e é disso que trato neste capítulo, resgatando um pouco daquilo que seu diretor espiritual, Pe. Germano de Santo Estanislau, escreveu sobre esse assunto.

Pe. Germano acompanhou de perto o desenrolar desse apaixonado desejo de Gemma Galgani. Depois que ela viu que não seria mesmo aceita entre as monjas ionistas, partiu para outro empreendimento: trazer para Lucca o mosteiro delas, afirmando categoricamente que esse não era um capricho seu, mas um desejo de Deus. “Jesus o quer, e o que Jesus quer certamente se realizará; apressem-se e ponham mãos à obra”,[1] dizia ela. Gemma tinha pressa de ver o convento sendo iniciado porque sabia que seus dias estavam no fim. Ela sabia que não tinha muito tempo de vida e queria ver essa obra pelo menos começada antes de sua morte. Por essa razão, ela animava a todos os envolvidos para que o empreendimento começasse logo, mas isso não era tão simples, pois dependia de uma série de fatores burocráticos, bem como de recursos humanos e material para que a obra tivesse início e fosse concluída. Contudo, ela acreditava piamente que essa era a vontade de Deus, e, sendo assim, tinha que dar certo, mesmo que houvesse dificuldades e percalços. Além disso, havia também o diabo, que continuava a tentar e a desviar o projeto, pois ele combatia tudo aquilo que fosse da vontade de Deus. Onde está a mão de Deus, logo aparece a

mão do diabo tentando prejudicar a obra, como veremos mais adiante.

As resistências para a fundação do convento em Lucca não foram poucas. O próprio Pe. Germano ite ter sido um deles, pois, movido pela prudência, sabia que não seria fácil concretizar uma obra como aquela. Disse ele: “Aqueles que, guiados pela prudência humana de cujo número confesso que eu era, não se deixavam levar por esses argumentos e adiavam aquela fundação”.[2] Vemos aqui que ele, prudente como era, não deu muita importância aos argumentos espirituais que Gemma apresentava e não se empenhou tanto para dar andamento ao projeto. Talvez ele pensasse que isso fosse capricho dela, ou fruto de sua imaginação, algo para não se levar a sério. Mas, por outro lado, a essa altura, ele já a conhecia muito bem e sabia que ela era uma pessoa de Deus, uma pessoa que transmitia os desejos de Deus, e isso, às vezes, o deixava confuso, como ele mesmo vai dizer. Assim, se por um lado havia os apelos de Gemma, insistindo que aquilo era um desejo de Deus, por outro havia a razão, a lucidez, mostrando quão desafiador era aquele empreendimento, que, humanamente, lhe parecia impossível. A ele se somavam outras pessoas da Igreja e da cidade de Lucca que ponderavam os diversos fatores financeiros e materiais, humanos e até mesmo espirituais, pois havia que se preocupar com quem ocuparia aquele convento, já que vocação religiosa não era tão comum desde aqueles tempos. Escreveu Pe. Germano: “Ponderavam como era impossível fundar um convento de clausura rigorosa sem dinheiro. É preciso comprar uma casa, adaptá-la, mobiliá-la... Onde achar, em seguida, o necessário para a subsistência das religiosas?”.[3] Esses e outros questionamentos e pensamentos eram colocados em discussão mediante o desejo de Gemma de ver em Lucca um convento das monjas ionistas.

Pe. Germano se via confundido entre o pedido daquela que ele sabia ser portadora da vontade de Deus e a resistência daqueles que poderiam ajudar nesse empreendimento, mas que colocavam dificuldades e até mesmo impossibilitavam sua concretização. Mas ele ainda era o principal porta-voz desse empreendimento proposto por Gemma Galgani. Disse ele:

Depois de dois anos de assíduos trabalhos, apenas tinham podido reunir duas mil

liras e a Cúria Episcopal de Lucca exigia para cada religiosa um capital grande, e o convento de Corneto estava firme em não deixar nenhuma freira sair daquele convento para fundar outro, se não lhe dessem uma boa garantia.[4]

De certa forma, as freiras tinham razão. Seria arriscado deslocar religiosas sem a mínima garantia de que elas teriam condições de sobreviver em outro lugar. Gemma acreditava na providência divina, mas as freiras do convento de Corneto, aparentemente, nem tanto. Gemma, porém, não desistia e continuava a insistir com o Pe. Germano, seu mediador, apelando para argumentos espirituais, o que o deixava ainda mais tocado e confuso. Dizia ela ao seu diretor espiritual, que ela chamava de “meu pai”, porque ela o considerava seu pai espiritual: “Prestai bem atenção, meu pai, Jesus está descontente com a vossa desconfiança, como se ele não pudesse, num instante, prover tudo. Comecem e verão o que Jesus fará”. [5]

Gemma não desistia da ideia. Tinha plena convicção de que aquilo era da vontade de Deus e fez tudo que estava ao seu alcance, não apenas rezando para que o projeto se concretizasse, mas lutando por sua realização, buscando apoiadores e benfeitores. Escreveu Pe. Germano que, “acompanhada pela sua inseparável companheira, percorria as ruas da cidade de Lucca, procurando uma casa conveniente ou pelo menos um terreno apropriado para a construção”. [6]

Ao ver esse relato do Pe. Germano, fiquei imaginando as ruas de Lucca percorridas por Santa Gemma. Eu estive lá e pude conhecê-las. Por ser uma cidade histórica, e preservada na sua arquitetura, imagino que não tenha mudado muita coisa. Lembrei-me da noite em que saímos a caminhar sem rumo pelas ruas daquela cidade e, sem premeditar, encontramos a casa onde viveu Santa Gemma. Estávamos em um grupo de cinco pessoas, e ninguém teve dúvida de que o encontro daquele local não tinha sido por acaso, mas por providência divina. A providência de Deus, em que Gemma tanto acreditou, mostrou-se

naquela noite em nossa vida, fazendo com que parássemos diante da casa onde ela viveu. Sob a porta está um quadro com seu retrato e, mais abaixo, uma placa identificando que ali tinha vivido Santa Gemma Galgani. Rememorei Gemma e a amiga, Eufêmia Giannini, andando por aquelas ruas de pedra em busca de ajuda para construir o convento. Convento que eu e algumas pessoas do nosso grupo tivemos oportunidade de conhecer naquele mesmo dia (17/9/2019) e sobre o qual falei um pouco na introdução deste livro. O convento, localizado na via di Tiglio, fora das muralhas medievais de Lucca, começou a ser construído um pouco antes da beatificação do amigo espiritual de Santa Gemma Galgani, São Gabriel da Virgem Dolorosa (1908), como Gemma havia predito, mas seu conjunto arquitetônico, incluindo a igreja, só foi concluído em 1935, 32 anos após a morte de Gemma Galgani. Embora ela não tenha tido a alegria e a graça de ver a obra concluída em vida, Gemma tinha certeza de que um dia isso se daria, pois confiava plenamente na providência e nos desígnios divinos. Antes de a obra começar, ela já a enxergava iniciada, e era tanta a sua confiança na construção do convento em Lucca que, em 1901, dois anos antes de sua morte, ela escreveu a uma das monjas ionistas do convento de Corneto, madre Josefa, com a qual mantinha contato por carta: “Senti tanta consolação em saber de sua opinião que Jesus quer o novo convento! Sim, é verdade, Jesus o quer; e em breve ele dará esta consolação”.[7] A irmã de Corneto havia manifestado simpatia pela ideia de abrir um novo convento em Lucca, e Gemma, pressentindo isso, não podia deixar de partilhar com a freira esse pressentimento. Mais tarde, essa mesma irmã seria a primeira superiora do novo convento.

Aproveitando essa oportunidade, Gemma escreveu também:

Monsenhor disse que é preciso que alguém venha falar com o senhor arcebispo para se chegar a uma resolução definitiva. Já temos aqui oito mil liras e há muitas casas grandes para vender ou alugar, conforme a vontade dos superiores. Mas se estes dormirem! Enfim, esperamos com confiança. Que Jesus se digne também a ocultar-me num cantinho do convento.[8]

Gemma era insistente e persistente. Nas suas andanças por Lucca, em busca de

colaboradores ou benfeitores, ela havia conseguido certa quantia e mapeado as casas que estavam à venda ou para alugar. Quando eu estive em Lucca, alguém do nosso grupo ficava atento às casas que estavam à venda ou para alugar, o que me fez recordar a mesma atitude de Gemma, porém com objetivos distintos. Essa pessoa do nosso grupo estava encantada com a beleza da cidade e imaginava como seria bom poder viver ali, enquanto Gemma, no seu tempo, em suas andanças por aquelas mesmas ruas, tinha como objetivo encontrar uma casa adequada para um convento ionista, para viver nele. Com todas as suas debilidades físicas, que esforços fez Gemma para trazer o convento a Lucca!

Àquela altura, já havia certa quantia em dinheiro e diversos locais em que se poderia começar a obra, porém era preciso que alguém do convento fosse falar com o arcebispo, pois, se perdessem essa oportunidade, a vontade de Deus não seria feita, e isso era motivo de muita tristeza para Gemma. Ela encerra a carta manifestando o seu desejo de ter um cantinho nesse convento, e ela de fato o teve, não em vida, mas depois de morta. Seu corpo está até hoje naquele convento, cuja edificação ela tanto sonhou. Sob o altar está o sepulcro de bronze onde estão os seus restos mortais, exceto o seu coração, que foi transladado para o Santuário de Santa Gemma Galgani, no bairro de Chamartín, em Madri, na Espanha.

De volta à busca de recursos e procedimentos para a aprovação e edificação do convento em Lucca, além dos contatos pessoais, locais, Gemma se articulava por meio de cartas para que fosse aprovado o projeto da construção do convento. Em outra carta ao mosteiro de Corneto, ela faz referência ao seu diretor espiritual, Pe. Germano, dizendo que, se ele se esforçasse um pouco, tudo seria mais fácil:

Se nosso bom pai se decidisse a fazer a vontade de Jesus – que lhe era bem conhecida –, tudo se arranjaria. Rezemos para que Jesus lhe dê a graça de vencer as suas hesitações. Queira levantar-lhe o ânimo, dar-lhe coragem de que muito precisa, e tirar-lhe o medo. Pobre pai! Não tenha receio de nada![9]

Ao mesmo tempo que fazia uma leve crítica à morosidade com que Pe. Germano levava adiante a sua ideia do convento, ela pedia às monjas que também rezassem por ele, para que Deus dissie seu medo, causa das suas hesitações em relação ao projeto tão ousado. Ao saber disso, Pe. Germano sofreu, pois ele queria ajudá-la nesse projeto, mas se sentia muito pequeno diante de tão grande empreendimento. Disse ele mais tarde: “Ao ouvir tais reflexões, eu me revolvia sobre espinhos, e suplicava à divina Majestade que me abrisse algum caminho, mas os meses avam e eu não via nenhum sinal”.[10] Pe. Germano rezava, se penitenciava e autoflagelava em busca de uma resposta de Deus, mas tudo lhe parecia árido e sem saída.

Enquanto isso, Gemma via e sentia mais e mais os sinais de Deus para que a obra se concretizasse. Ficava cada vez mais identificada com o carisma da paixão e aumentava a cada dia a estima pelas monjas ionistas. Ela tinha cada vez mais certeza de que a glória de Deus se concretizaria na instituição de um mosteiro da congregação ionista ali em Lucca, e este faria grande bem a todos. Nesse estreitamento de laços espirituais entre ela e o carisma da paixão na vida monástica, Gemma teve uma visão de Jesus, que lhe disse que o Pai celeste pedia vítimas que se sacrificassem por ele em constante oração para a expiação dos pecados da humanidade, e essas vítimas seriam as filhas da sua paixão, ou seja, as monjas ionistas. Cada dia mais Gemma tinha certeza de que a sua vocação era ser ionista e de que as monjas ionistas eram, de fato, escolhidas por Deus para ser, aqui na terra, instrumentos de expiação dos pecados, pois o próprio Jesus havia lhe dito isso. Gemma, em um desses seus diálogos com Jesus, ouve dele que muitas vezes aplacou a ira de Deus apresentando vítimas que faziam penitência de forma heroica. Assim descreveu Gemma o que Jesus havia dito a ela: “Quantas vezes o detive, apresentando-lhe almas preciosas e vítimas fortes! Suas penitências, seus sofrimentos, seus atos heroicos o têm detido. Agora, ainda para aplacá-lo, eu lhe ofereci vítimas, mas essas são poucas”. [11]

Essas vítimas eram as monjas ionistas, as quais Jesus chamava de “filhas da minha paixão”, mas elas formavam um grupo pequeno, e ele queria mais.

Gemma leu nessa expressão o desejo de Jesus de que aumentasse o número daquelas que dedicariam a vida por ele. Nesse diálogo de Jesus com Gemma, ela lhe pergunta: “Quem são elas?”, e ele responde: “As filhas da minha paixão”. Depois, ela conclui: “Se soubesse quantas vezes eu vi meu Pai aplacar-se, quando eu lhe as apresentava”.[12] Nesse diálogo, Gemma teve a certeza de que ele lhe falava para não desistir do projeto de um convento ionista em Lucca. Ele lhe pede ainda: “Escreve imediatamente a teu pai, pede-lhe que vá a Roma e fale deste desejo ao papa, que ele lhe diga que um grande castigo está ameaçado, e é preciso que apareçam vítimas”.[13] Jesus pede que Gemma não tarde a escrever ao seu diretor e pai espiritual, Pe. Germano, para que ele tome providências em relação ao projeto que ela tinha em mente. Jesus não fala diretamente da construção do convento, mas alerta para a necessidade de um local onde pessoas pudessem rezar para a salvação do mundo, pois este estava ameaçado. Quando Gemma transmite esse recado ao seu diretor espiritual, ele entende que era a fundação do mosteiro que Jesus pedia à sua filha espiritual e que ele deveria ser o mediador entre ela e o papa, que na época era Leão XIII.

Gemma tinha uma ideia fixa: ela queria a todo custo que fosse instalado um mosteiro ionista em Lucca, e acreditava ser esse um plano de Deus, e não dela. Nos seus momentos de êxtase, ela dizia:

Jesus, o confessor me disse que insista convosco para que se funde o convento, que ele tem grande desejo de ver efetuada esta obra. Fostes vós que me inspirastes este veemente desejo. Pensai nisto, pois, cumprireis o que me prometestes, não é verdade? Então, pensai nisso, ó Jesus, e apressai-vos.[14]

Gemma parece forçar a barra com Jesus. Para o seu diretor espiritual e seu confessor, ela dizia que era Jesus quem pedia a construção do convento. Para Jesus, ela dizia que era o confessor quem pedia, e parecia questioná-lo por ter lhe dado esse desejo, cobrando dele agilidade no processo. A pressa de Gemma tinha sentido, pois, como já disse, ela sabia que não viveria muito tempo; não viveria para ver a obra concluída, mas morreria em paz se a visse pelo menos começada.

Apesar das dificuldades e da morosidade da aprovação, Gemma não tinha a menor dúvida de que ela se daria em algum momento. De onde ela tirava tanta certeza? Da sua fé e dos constantes diálogos que tinha com Nossa Senhora das Dores e com São Gabriel, que na época era apenas venerável. Eles tinham lhe dado garantias e revelado detalhes da obra: como iria acontecer, em qual tempo se realizaria, que isso se daria depois de sua morte, mas ela não ficaria de fora da obra, e que essa obra levaria o seu nome e a sua espiritualidade. É assim que Gemma descreve a revelação que teve dos seus amigos espirituais sobre o processo e as dificuldades da realização das obras do convento:

A fundação se realizará pouco depois da beatificação do Bem-aventurado Gabriel. Concorrerão para estabelecê-la o sumo pontífice, o bispo, um consultor geral e o próprio geral das ionistas, influenciado e instado pelo consultor, que o fará ser favorável, bem como o provincial da província romana, e outro padre que este mandará a Lucca para arranjar tudo. Para impedir tão santa obra, o demônio dará contínuos e fortíssimos ataques, e fará surgir tantas dificuldades, que se julgará impossível a sua realização. Efetuada, porém, os próprios adversários se tornarão favoráveis, demonstrando toda a sua satisfação.[15]

A revelação da vontade de Deus não deixa de apontar a ação do diabo para impedi-la. No entanto, as tentações diabólicas não impediriam a concretização da obra conforme as premonições de Gemma Galgani, mas ela não teria tempo hábil para ver realizado o seu desejo, que ela jurava ser desejo de Deus, pois morreria exatamente seis meses depois, conforme ela mesma tinha predito. Mesmo tendo certeza de que tudo daria certo, Gemma tinha pressa nas ações em prol da decisão e da construção do convento, pois, como disse, ela sabia que teria pouco tempo de vida. Dizia ela: “Decidam, porque em breve não será mais tempo. Jesus não espera mais, e me disse que me levará consigo se, dentro de seis meses, não se der princípio à obra”. [16]

O tempo ia ando e nada de definições sobre o convento em Lucca. Gemma não perdia as esperanças, mas um dia, em oração, resignou-se em deixar de lutar

pela construção do convento. Deus a fez ver que, embora a obra fosse concretizada um dia, ela não a veria, pois ele a levaria antes. Sobre isso, assim escreveu Gemma:

Esta manhã, o que eu senti não poderei exprimir: somente direi que senti muita vontade de chorar. Retirei-me logo para o meu quarto, para ficar mais livre, e chorei muito. Finalmente, exclamei: seja feita a vossa vontade. Minhas lágrimas não eram de dor, e sim de completa resignação.[17]

Naquele dia, Gemma teve certeza de que não veria seu desejo realizado e, desde então, deixou de pensar em ser freira ionista e não se empenhou mais para que o projeto do convento em Lucca se concretizasse. Sentia a paz de quem perdeu todas as esperanças. Não a esperança do convento em Lucca, mas de ser uma freira. Ela se contentou com os votos da profissão religiosa que haviam sido feitos particularmente, entre ela e Deus. Seu diretor diria mais tarde: “Freira e ionista, ela o era de coração e de espírito, pois trazia o crucifixo gravado no meio do coração, e os estigmas da paixão na própria carne”. [18]

A partir de então Gemma se preocupou apenas em se preparar bem para a morte. “Podia, enfim, sair desse mundo satisfeita e com a íntima alegria de ter cumprido iravelmente o fim para que Deus a criara”,[19] escreveu o seu diretor espiritual, Pe. Germano de Santo Estanislau. Gemma morreu no dia 11 de abril de 1903, exatamente quando completou-se o tempo que ela havia previsto que ainda teria. Depois da sua morte, Pe. Germano ficou com certo remorso no coração por não ter tido mais empenho no projeto que ela havia sonhado. Diz ele que “os remorsos provocaram a execução da ideia e, sem mais tardar, deu-se princípio a esta fundação”.[20] Lembrou que, exatamente um ano antes, Gemma tinha lhe pedido para falar com o papa. Movido pelo sentimento de remorso, Pe. Germano tomou coragem e foi falar sobre o projeto da obra com o papa Pio X, que tinha sido elevado havia pouco tempo a sumo pontífice. Diz ele que o papa “ouviu com amor a proposta e se agradou do projeto da obra, tomou a pena e, com sua augusta mão, deu a sua alta aprovação”.[21] Era o dia 2 de outubro de

1903. Nessa autorização, o papa abençoava a fundação do novo mosteiro das religiosas ionistas na cidade de Lucca, delegando os cuidados da obra ao então arcebispo de Lucca, dom Nicolau Ghilardi, e à madre Maria Josefa do Coração de Jesus Armellini, do convento de Corneto, a mesma com que Gemma se correspondia depois de ter sido rejeitada pela madre presidente. Jesus havia revelado a Gemma anos antes que madre Maria Josefa do Coração de Jesus Armellini, escolhida para ser a fundadora e a primeira superiora do convento de Lucca, teria uma missão importante, mas também muitas cruzes, e que seria odiada pelo diabo, porque ele tinha horror àquela fundação.[22] Uma das melhores amigas de Gemma, Eufêmia Giannini, entraria para aquele convento, tornando-se uma das primeiras monjas ionistas de Lucca. Em homenagem à amiga Gemma Galgani, ela mudaria de nome, ando a se chamar Gemma Giannini. “Em 1939, Eufêmia Giannini deixa o convento ionista de Lucca para fundar o Instituto das Irmãs de Santa Gemma”. [23]

Depois da morte de Gemma Galgani, Pe. Germano apresentou esse documento emitido pelo papa em Corneto, onde estava o convento das ionistas, e ao arcebispo de Lucca, e os caminhos foram se abrindo, facilitando o processo que até então estava tão truncado. Havia ainda a questão pecuniária que atrapalhava o andamento do processo, mas uma carta do apostólico de Lucca retirou essa dificuldade. Deu-se então a tão sonhada fundação do convento de Lucca no mês de março de 1905, dois anos após a morte de Gemma. Para esse novo convento foram enviadas, de Corneto, duas religiosas de coro e mais uma de conversa. Pe. Germano acentua:

Em vão o inimigo se esforçou por fazer surgir todos os obstáculos, e até mesmo verdadeiras perseguições de todos os lados; a obra foi prosperando; e ali, onde tantas outras comunidades religiosas muito tempo antes estabelecidas na cidade acharam dificuldade em receber noviças, aquela recém-chegada tomou um grande impulso.[24]

De início as religiosas ocuparam uma casa provisória, cujas chaves foram

recebidas no dia 31 de julho de 1908, uma sexta-feira, dois meses depois da beatificação do então Venerável Gabriel da Virgem Dolorosa, hoje santo, como tinha sido predito por Santa Gemma Galgani. Com o ar dos anos, a obra foi se estruturando e ganhando novas vocações, até se tornar o majestoso convento que encontramos fora dos muros da histórica cidade de Lucca, junto à igreja dedicada a Santa Gemma, onde repousa o seu corpo. Gemma também havia dito: “As ionistas não me quiseram receber, mas eu quero estar com elas, e de fato estarei depois de minha morte”.[25] Na época da escrita da biografia de Gemma Galgani pelo seu diretor espiritual, publicada em 1907, ele disse: “As filhas de São Paulo da Cruz de Lucca, felizes de possuir seus restos mortais sob o altar de sua capela, dirão à posteridade que a verdadeira fundadora e padroeira de seu mosteiro naquela cidade é a própria Virgem Santa Gemma Galgani”.[26] Essa foi mais uma profecia confirmada, e hoje Santa Gemma Galgani é considerada a fundadora daquele convento.

emos agora para os momentos finais da vida de Gemma Galgani e para o agravamento da sua doença que a levou à morte.

XIX

Os últimos dias e a morte de Santa Gemma Galgani

Gemma viveu cada dia como se fosse o último, mas seus últimos dias foram vividos com ainda maior intensidade. Vimos como ela, depois de perceber que seu sonho de se tornar uma monja ionista não se concretizaria e de ver tantos obstáculos no processo de abertura de um convento em Lucca, decidiu que se voltaria para o seu interior e se prepararia para a morte. Foi uma decisão tomada pela inspiração divina, pois Deus estava cuidando de tudo. Cuidava dela e da obra com a qual ela tanto sonhara. Agora era o momento de se desligar das coisas deste mundo e se preparar para a sua páscoa, momento tão sonhado por ela, que via a morte não como algo assustador, mas como a oportunidade de estar definitivamente com Deus e vê-lo face a face. Quando estamos verdadeiramente preparados para a morte, Deus nos dá o conforto e a paz necessários para fazermos essa agem. Foi assim com Gemma Galgani, e é assim com todos os que têm verdadeira fé e confiança em Deus. Dizem alguns santos que, enquanto temos medo da morte, é porque ela não está perto. Quando a morte se aproxima, a pessoa se recobre de coragem, serenidade e paz. Gemma mostrou isso com muita clareza nos seus últimos dias, apesar dos sofrimentos pelos quais ou.

Após ter desistido dos empreendimentos supracitados, Gemma se recolheu em seus aposentos como uma monja professa. Na solenidade de Pentecostes do ano de 1902, Gemma se encontrava surpreendentemente bem de saúde, pelo menos aparentemente, algo inusitado para alguém que tinha tido recentemente uma grave doença chamada espinite, uma espécie de inflamação das articulações da coluna. Muitos dos que acompanham pessoas à beira da morte dizem que, nos momentos finais, é comum que estas tenham uma melhora súbita. Gemma mostrou-se muito bem e centrada na fé e na compenetração na oração nos seus momentos finais, conforme relata o seu diretor espiritual, que a acompanhou até bem perto da sua morte. Mesmo não estando ao seu lado no dia em que Gemma faleceu, os que estavam relataram a sua súbita melhora ao Pe. Germano. Ela estava tão bem e tão conectada com Deus que ele ainda lhe pediu atos de penitência para a expiação dos pecados de algumas pessoas, sobretudo dos padres, ministros do altar, que não estavam fazendo a sua vontade. Talvez esse

tenha sido um recado de Deus ao Pe. Germano, que tinha protelado a ajuda que Gemma havia pedido para a edificação do convento em Lucca. Jesus disse a Gemma num dos seus êxtases finais: “Eu tenho necessidade de uma expiação particular pelos pecados e sacrilégios de que me vejo ultrajado pelos ministros do santuário... Se não fosse em atenção aos anjos que rodeiam o meu altar, quantos não fulminaria imediatamente?”.[1] Jesus parecia muito zangado, mas com quem? Gemma não ousa identificar quem são esses “ministros do santuário”, mas coloca-se à disposição de Jesus para expiar os pecados daqueles que profanavam o seu altar, dizendo: “Duvidais, ó Jesus, que eu aceite? Oh! Depressa, Jesus, descarregai sobre mim os vossos golpes e glorificai-vos nesta miserável criatura”.[2] E Jesus atendeu o seu pedido.

Pe. Germano escreveu que, a partir daquele momento, aquela que estava aparentemente bem de saúde caiu gravemente enferma: “O seu estômago se fechou, por assim dizer, a ponto de não poder mais tomar alimento de espécie alguma. Não podia engolir a mais leve quantidade sem que lhe revolvesse as entranhas e lhe ocasionasse dores cruéis, quando não chegava a expelir tudo”.[3] Esse estado durou aproximadamente dois meses. Durante esse período, ela só ingeria um pouco de vinho, e ninguém soube como ela resistiu, mas ela sabia, pois conhecia os desígnios de Deus e seus propósitos, por isso agia com naturalidade, recusando a procura de um médico. ado esse tempo, novamente ela ficou boa, como se nada lhe tivesse acontecido. Veio-lhe a súbita melhora dos que estão à beira da morte. Disse seu diretor espiritual:

Gemma ficou boa de repente, aceitou de novo a alimentação ordinária, e no fim de uma semana voltaram-lhe as forças e as cores do rosto, e desapareceu a magreza que a tinha tornado como um esqueleto, em consequência dos sessenta dias de absoluto jejum.[4]

Porém, essa repentina melhora não durou muito. Vinte dias depois, retornaram os sintomas da doença, agora ainda mais graves que antes. No dia 9 de setembro de 1902, Gemma acordou com forte febre e vomitando sangue; sangue diferente daquele que aparecia nos seus estigmas. Era um sangue vivo, que vinha dos seus

pulmões, de acordo com seu diretor espiritual. Sua dor agora era real, e não apenas espiritual. Eram dores diferentes das que ela sentia quando recebia a coroa de espinhos, os estigmas ou outras flagelações. Eram dores físicas, dores de alguém cujo corpo reage dando seus últimos sinais de vida. Seu diretor espiritual disse que, naqueles dias, Deus havia tirado de Gemma todas as suas manifestações extraordinárias e misteriosas, como os êxtases de amor, as visões, os raptos e outras coisas semelhantes. Deixou-lhe só com as dores reais do mundo. “Assim, ficou só, sem conforto algum, consumindo-se na dor, em holocausto ao Senhor”. [5]

Nesse calvário, Gemma ia desfalecendo aos poucos, entregando sua vida a Deus de corpo e alma. Os que cuidavam dela manifestavam sua preocupação porque ela estava na iminência da morte. Cecília Giannini, que cuidava dela, escreveu ao Pe. Germano manifestando a sua preocupação:

Gemma está muito doente, está feita um esqueleto coberto de pele. Sofre dores terríveis e penas interiores que fazem arrepiar. Gemma não pode mais. Receio que morra de um momento para outro. Estou aflitíssima por não saber o que fazer para aliviá-la. Ela sente grande necessidade da vossa presença. Vinde dizernos como devemos proceder.[6]

Cecília Giannini, a sua segunda mãe, entra em desespero ao ver sua filha adotiva agonizando, sem poder fazer nada para diminuir o seu sofrimento. O jeito foi escrever ao Pe. Germano, que estava distante, para que viesse, pois ele, além de ser o seu pai espiritual, era uma pessoa que ajudava a trazer conforto a Gemma.

Ao receber a carta, Pe. Germano deixou todos os seus afazeres e se deslocou imediatamente até Lucca para ver Gemma. Era outubro de 1902. Quando Gemma soube que seu pai espiritual estava a caminho, ficou tão feliz que parecia recobrar as suas forças. Assim escreveu Pe. Germano: “A pobre menina sentiu

tanto prazer com a notícia da minha chegada que quis se levantar para me esperar em pé e dar-me as boas-vindas”.[7] Gemma lutava para se manter em pé, mas tinha dificuldade devido a sua fraqueza. Embora tivesse a vida toda desejado a morte, para estar junto de sua mãe e de Jesus, quando ela estava, de fato, na iminência da morte, parecia resistir e querer aproveitar cada minuto que lhe restava, pelo menos para poder se despedir daqueles que lhe foram em vida tão importantes, como tinha sido Pe. Germano. Ela sabia que lhe restavam alguns meses de vida, porque Jesus lhe havia dito que ela não morreria naquele ano: iria sofrer mais um pouco antes de ir definitivamente para junto dele porque sua missão neste mundo ainda estava por se cumprir, já que havia algumas almas que ela teria que expiar com seu sofrimento.

Quando Pe. Germano chegou, foi grande a alegria de Gemma. Ele, porém, ficou chocado ao vê-la tão desfigurada, e escreveu sobre esse impacto ao vê-la: “Qual não foi, porém, a minha dor ao vê-la nesse estado? E ainda com o pressentimento de que desta vez o Senhor a levaria para si. Dei-lhe a minha bênção e lhe ordenei que se tornasse a deitar; depois assentei-me a seu lado e conversamos.[8] Coloco, a seguir, o diálogo que Pe. Germano teve com Gemma nesse dia, assentado à beira de seu leito:

– Então, Gemma, que faremos? – Vamos para Jesus, meu pai – respondeu-me com a expressão de uma indizível alegria. – É certo? – perguntei. – Sim, meu pai, desta vez Jesus me disse muito claramente. Para o céu, meu pai, com Jesus... com Jesus para o céu! – Mas – repliquei – e os pecados, quando os expiaremos? Que belo negócio queres fazer! E ela respondeu: – Jesus já pensou nisso. Ele me fará sofrer tanto neste breve tempo em que tenho que viver que, santificando com os merecimentos da sua Paixão as minhas pobres penas, se dará por satisfeito e me levará consigo para o paraíso. – Mas eu não quero que morras já – disse-lhe. Ela, com ingênua vivacidade: – Se, porém, Jesus o quer? Então...[9]

O diálogo de Gemma com o seu diretor espiritual estendeu-se mais um pouco. Disse ele que conversaram nessa ocasião sobre vários aspectos acerca de seu amento, e que trataram de detalhes de como seria. Como ambos tinham

plena certeza de que esse momento estava chegando, só não se sabia o dia exato, e de que não havia mais nenhuma chance de recuperação, trataram de falar de particularidades do momento da sua morte, por exemplo: “como se lhe istrariam os sacramentos, como a vestiriam, depois a colocariam no caixão e a levariam ao cemitério para ser sepultada”.[10] Disse o Pe. Germano que ela tratava desses assuntos com muita naturalidade, como se tratasse simplesmente de uma mudança de cama ou de casa. Gemma já estava familiarizada com a morte, e esta não lhe assustava. Como dizia São Francisco de Assis, era uma irmã que viria buscá-la para morar com Jesus, realizando o maior de todos os seus desejos, algo que ela aguardava ansiosamente desde criança. Embora Gemma falasse com naturalidade sobre a morte, lhe preocupava o local de sua sepultura. Ela já acenava para que não colocassem seu corpo num lugar qualquer, num cemitério qualquer. Parece que já previa que seu corpo seria colocado no mosteiro que ela tanto almejou que viesse para Lucca, embora ainda não tivesse clareza a esse respeito.

Gemma recomendou ao seu pai espiritual que cuidasse do seu corpo depois de sua morte, porque ele pertencia a Jesus. Disse Gemma: “Atendei bem, meu pai, onde me colocam. Não saia de Lucca, antes de se ter bem certificado de que meu cadáver seja posto em lugar seguro”.[11] Pe. Germano não entendeu muito bem o que Gemma queria dizer e pediu que ela explicasse melhor. E Gemma lhe disse: “Refiro-me ao meu corpo; não quero que seja visto nem tocado por ninguém, porque é de Jesus!”.[12] Gemma, que a vida toda se preservara somente para Jesus, manifestava agora, nos seus últimos momentos, a preocupação com o seu corpo. Sabemos bem que, quando alguém morre, frequentemente os que preparam o corpo para o sepultamento não têm muito cuidado com o cadáver, que é tratado muitas vezes como um objeto qualquer. Gemma também sabia disso e pediu que respeitassem seu corpo porque ele tinha sido templo vivo de Deus. Nesse momento, seu pai espiritual tratou de tranquilizá-la. Ele estaria ali para cuidar dela e de seu corpo depois que a sua alma fosse levada para o céu. Gemma podia descansar em paz que ele cuidaria de tudo, inclusive do respeito para com seu corpo.

Pe. Germano permaneceu ainda mais um tempo ao seu lado. Disse que, naquela noite, ela fez uma boa confissão, a última que ele ouviu dela. Ele chorou com ela

e se convenceu de que “durante os 25 anos de sua vida, Gemma não havia cometido um só pecado venial com plena advertência, e assim levava ao céu, imaculada, a bela estola da inocência que tinha recebido no santo batismo”.[13] Na manhã seguinte, Gemma recebeu o sagrado viático, que é a comunhão para alguém que está à beira da morte. De noite ela quis mais uma vez se penitenciar. Apesar de sua extrema fraqueza, não quis receber nenhum tipo de alimento. Ainda nessa noite, entrou em êxtase, algo que não lhe ocorria havia vários dias, desde que sua doença se agravara. O que ela vivenciou nesse seu último êxtase, antes de partir, ela não revelou. Durante o êxtase, comungou, mas nada disse, apenas mostrou-se transportada para outra dimensão. Deus já lhe apontava o caminho do céu, que, dentro de poucos meses, ela iria trilhar definitivamente, embora já o viesse percorrendo havia 25 anos.

Pe. Germano permaneceu por alguns dias ao lado dela, mas, como sua morte não chegava, decidiu que precisava retornar às suas atividades. Antes, porém, perguntou a ela: “Gemma, quanto tempo ainda teremos? É preciso partir”. Respondeu ela: “Se quiserdes ir, meu pai, podeis ir, eu não morrerei ainda. Sucumbirei certamente desta doença, mas não já; pelo menos Jesus assim me disse”.[14] Como afirmei antes, Jesus já havia dito a Gemma que ela teria ainda mais alguns meses de vida, apesar da gravidade da doença e do seu estado de debilidade física. Pe. Germano então decidiu que partiria, mas seu coração estava apertado, pois sabia que aquela seria a última vez que ele a veria com vida. Antes de partir, ele a abençoou, deu recomendações à família que cuidava dela, para que tivessem cuidado com as crianças que se acercavam de Gemma, pois a sua doença era contagiosa. Tudo indicava que Gemma estava com um quadro grave de tuberculose, e insistiam sobre a necessidade de isolar a enferma. Porém, isso não foi nada fácil, pois todos queriam ficar ao lado dela, desde as crianças até os adultos. Diante da necessidade de colocar Gemma num lugar de isolamento, alguns da família diziam: “Como nos privar de Gemma? Deus a trouxe à nossa casa, e nós a deixaríamos sair? Isso nunca. Se ela tiver de morrer, trataremos dela até o fim”.[15] Um gesto bonito de amor demonstrou essa família que cuidou de Gemma até seus últimos momentos, mas era preciso ter precaução, pois naquela época a tuberculose era uma doença de fácil contágio e de difícil cura.

Pe. Germano se foi, mas, antes de partir, abençoou-a pela última vez. Sobre esse momento, escreveu ele: “Abençoei pela última vez este caríssimo anjo, que eu não devia tornar a ver neste mundo, e retirei-me”.[16] Três meses depois de sua partida, a família ainda não tinha decidido se colocaria ou não Gemma em um local mais isolado, onde ela não tivesse mais contato físico com outras pessoas. Resolveram então alugar um pequeno quarto ao lado da casa e colocá-la ali. Gemma poderia ser vista por todos através da janela, sem que tocassem nela. A transferência de Gemma para esse quarto mais isolado se deu na noite de 24 de janeiro de 1903, mas ela continuou tendo toda a assistência necessária até a sua morte. Embora essa tenha sido, naquele momento, a melhor decisão, todos sentiram a separação, inclusive Gemma, que, ao ser levada para esse quarto, fora da casa, disse: “É a segunda vez que perco minha mãe. Mas viva Jesus! Só com Jesus...”.[17] Gemma sentia por deixar a casa daquela que havia assumido o lugar de sua mãe, a senhora Cecília Giannini, mas fez isso com o sentimento de que era também vontade de Deus. No seu novo quarto, ela ainda teve forças para escrever ao seu pai espiritual, Pe. Germano, falando dos seus sentimentos nesses últimos momentos. Escreveu também a Nossa Senhora, como costumava fazer nas suas festas e solenidades. Nessa sua última carta, entre outras coisas, ela disse: “Mãe, pedi por mim! Dizei a Jesus que serei boa e obediente. Mas eu quero ir depressa para o céu se é do seu gosto. Abençoai-me, sou a pobre Gemma”.[18] Gemma mais uma vez pede a morte. Parece não ar mais o sofrimento nem o desejo de ir para junto de Jesus.

A doença se agravava. “Em menos de dois meses a febre aumentou de tal modo que lhe impediu todo e qualquer movimento; ela então inclinou a cabeça e disse: ‘Jesus, assim seja’”.[19] Seu alimento consistia, até então, apenas em líquido, mas, agora, nem isso mais podia receber sem que vomitasse. As pessoas de Lucca escreviam ao Pe. Germano relatando o estado deplorável de Gemma: “É um esqueleto que se desfaz de hora em hora; o seu aspecto inspira medo e faz pena”. [20]

Como se não bastassem as suas dores físicas, havia também as dores causadas pela tentação do diabo, que nem na sua hora derradeira lhe deu trégua. Escreveu

Pe. Germano que, nesses últimos momentos, “o espírito maligno lhe perturbava a imaginação com mil fantasmas que enchiam o seu coração de tristeza, ansiedade, amarguras e temores, para levá-la ao desespero”.[21] O diabo dizialhe nesses últimos momentos “que suas heroicas virtudes, e até mesmo os mais insignes favores recebidos do céu, não eram senão ilusão e hipocrisia”,[22] o que torturava Gemma, que não tinha paz nem nos seus últimos momentos. Que tortura ouvir na hora derradeira que tudo o que se fez em vida foi em vão, e isso a alguém que não fez outra coisa na vida a não ser buscar agradar a Deus com esforços e sacrifícios descomunais. Diz seu pai espiritual que “esta última tentação foi, de todas, a mais terrível e a mais longa”[23] para Gemma, o que a fez cair em profunda desolação, pois ela queria a todo custo a sua salvação. Uma das enfermeiras que cuidavam dela escreveu ao Pe. Germano, dizendo:

Esta hedionda besta vai acabar com a querida Gemma; saio de junto dela, chorando, este terrível demônio dá conta dela e ninguém o pode afugentar. São barulhos atroadores, figuras terríveis de animais ferozes; certamente ele a matará. Procuramos socorrê-la, aspergindo água benta no quarto; o rumor cessa por algum tempo, para recomeçar logo depois com mais força.[24]

Em meio a esses tormentos todos, Gemma ainda teve força para escrever uma espécie de confissão geral dos seus pecados, declarando-se merecedora de mil infernos e pedindo perdão. Essa confissão, por escrito, foi lacrada e levada a um sacerdote, que lhe deu a absolvição e devolveu-lhe a paz que ela precisava para deixar este mundo, livrando-se dos ardis do tentador.

Agora, já livre da tentação do diabo, ela se mostrava em paz e satisfeita com a assistência que lhe prestavam. Nos seus últimos dias, vieram também para cuidar de Gemma algumas freiras da congregação das Irmãs Barbantini, que eram enfermeiras. Estas, depois, relataram como Gemma não reclamava de nada, só agradecia a Deus, embora, às vezes, ela se sentisse abandonada por Jesus. Como Jesus se sentiu abandonado na cruz pelo Pai, Gemma teve momentos no seu calvário em que também se sentiu abandonada por ele, sobretudo nos momentos das tentações do diabo. Numa dessas ocasiões, a freira que cuidava dela

perguntou: “Se Jesus vos desse a escolha, entre ir já para o céu, cessando todo o sofrimento, ou ficar aqui, continuando a sofrer, para sua maior glória, que escolheríeis?”. E Gemma respondeu com vivacidade: “Antes sofrer do que ir para o céu, desde que o sofrimento seja por amor de Jesus e para glorificá-lo”. [25] Essa determinação espiritual de Gemma confortava a todos, sobretudo as freiras que dela cuidavam mais de perto. Irmã Cecília, uma das que cuidaram de Gemma, iria dizer mais tarde: “A impressão que me deixou esta jovem é que ela era um conjunto de todas as virtudes”.[26] Outra freira, enfermeira, iria dizer: “A virtude que mais resplandeceu em Gemma durante a sua doença, e que mais vivamente me comoveu, foi a sua grande humildade”.[27] Quando Gemma, devido ao agravamento da doença, perdia a voz, rezava com o coração, como havia sinalizado ela para o monsenhor que a visitara num desses momentos. Além de perder a voz de vez em quando, um pouco antes de morrer, ela perdeu também a visão, porém, antes disso, Gemma lia muito.

Dias antes de perder a visão, vendo-a com o livro na mão, sua tia lhe perguntou: “‘Lês, Gemma?’ ‘Sim, minha tia, eu leio a preparação para a morte’”.[28] Sua tia replicou: “‘Mas dize-me, não sente pesar em morrer?’ ‘Oh! Não’, respondeu Gemma, ‘nada mais me prende neste mundo!’”.[29] Sua tia chorava junto do seu leito, e, vendo-a sofrer, Gemma lhe disse: “Minha tia, eu conheço bem o seu caráter e sei quanto é compadecida vendo-me sofrer: sofre também muito. Afaste-se, retire-se. Sim, façam com que ela saia! Ela sofre demais por minha causa... não a deixem mais vir para perto de mim”.[30] Parece que a tia estava dificultando que Gemma se desencarnasse, pois, devido ao seu grande amor por ela, não queria vê-la sofrer e sofria enormemente vendo-a ar por aquilo.

Gemma teve muitas perdas antes de deixar este mundo. Semelhante a Jó, personagem bíblico, ela perdeu bens elementares, entre eles boa parte de sua família. Dos seus irmãos, restou-lhe apenas Angelina Galgani. Escreveu seu diretor espiritual: “Um dia recebeu a visita da única irmã sua que ainda sobrevivia, e esta, ao vê-la em tão triste estado, caiu num pranto desfeito”.[31] Vendo-a chorar, disse Gemma: “Não chores, Angelina, acalma-te, isto não é nada; peço-te perdão dos meus maus exemplos que te tenho dado”.[32] Isso fez com que Angelina ficasse com o coração ainda mais apertado, e esta também lhe pediu perdão. Nisso ouviu ela de Gemma: “Não penses nisto, Angelina, sê boa, é

o que te peço”.[33] Angelina, anos mais tarde, teve a graça de estar presente na canonização de sua irmã, Gemma Galgani.

Ao lado de Gemma, nos seus últimos momentos, esteve também sua estimada amiga e confidente de todos os seus segredos, Eufêmia Giannini, uma das filhas de sua mãe adotiva, Cecília Giannini. Eufêmia se tornaria mais tarde monja ionista e iria morar no mosteiro que Gemma tanto lutara para trazer a Lucca, trocando o seu nome para Gemma de Jesus Giannini, em homenagem à santa amiga. Sua dedicação a Gemma não parou por aí. Ela iria fundar depois outra congregação religiosa, a congregação das Irmãs de Santa Gemma, cujo convento está nos arredores de Lucca.

Quando Gemma já estava com apenas um sopro de vida, disse o seu diretor espiritual:

Quatro ou cinco dias antes da sua morte, ela se tornou tão pesada que três pessoas robustas e os próprios moços da casa custavam a levantá-la da cama, quando pela sua delgada estatura e extrema magreza, reduzida a pele e ossos, deveria ter sido possível carregá-la até por uma criança.[34]

Esse é um fenômeno inverso ao da levitação e não é incomum na hagiografia cristã. Outros santos já manifestaram esse fenômeno, o que mostra que Gemma alcançara a santidade antes mesmo de ser reconhecida oficialmente pela Igreja. Alguns, inclusive seu diretor espiritual, diziam, por outro lado, que esse fenômeno poderia ter a mão do diabo. Escreveu ele: “É bem provável que o demônio tivesse a mão nesse negócio, por maldade, a fim de aumentar os sofrimentos da pobre vítima. De fato, logo que expirou, voltou ao seu peso normal”. [35]

Os dias finais de Gemma se aproximavam. No dia 8 de abril de 1903, uma quarta-feira, “Gemma parecia levemente estática, com os olhos fixos de vez em quando no céu, e exclamava com uma ansiedade abrasada: Jesus, Jesus!”.[36] Agora, mais que nunca, ela pressentia seus últimos momentos. Entrou em êxtase e disse ter recebido o consolo de Jesus, que a esperava de braços abertos no céu. Quem a viu naquele momento disse que ela parecia uma santa, o que de fato ela era. Na sexta-feira, dia 10 de abril, Gemma estava no ápice do seu calvário, e, por providência divina, esse dia era Sexta-feira Santa. O calvário de Gemma se encontra com o Calvário de Jesus. Nesse dia,

pelas 10h da manhã, a senhora que a assistia, sentindo-se extenuada de cansaço e de insônia, quis retirar-se para repousar um pouco, mas a moribunda lhe suplicou: “Não me deixeis enquanto eu não estiver pregada na cruz. Tenho que ser crucificada com Jesus. Jesus disse-me que seus filhos devem morrer crucificados”.[37]

Gemma teve toda a sua vida configurada à de Cristo crucificado, mas agora, nos seus últimos momentos, ela alcança o mais alto grau dessa configuração: a crucificação. Em êxtase, ela se sente crucificada com Cristo. Esse momento foi assim descrito pelo seu diretor espiritual, Pe. Germano:

[Gemma] não fala mais, porém, que de expressivo não tem toda a sua pessoa? Está agonizando com Jesus na cruz. Os assistentes, atônitos, a contemplam, sem nunca saciar-se. Escreveu-me um deles: “Imaginai Jesus crucificado moribundo, tal era a fisionomia de Gemma neste momento”.[38]

Gemma se assemelhou em tudo a Cristo crucificado e viveu na sua carne a crucificação, como de fato sempre havia pedido a Jesus.

Porém, Gemma não morreu naquela Sexta-feira Santa, como muitos previam.

Nesse dia, como Jesus, ela apenas sofreu na carne as dores da crucificação. Mas chegou o Sábado Santo, dia 11 de abril de 1903, o dia da vigília pascal, o Sábado de Aleluia, o dia derradeiro de Gemma e de sua páscoa. Até nisso Gemma se assemelhou a Jesus, tal era a configuração da sua vida à de Cristo. Deus escolheu levá-la no dia da ressurreição de seu Filho Jesus. Na manhã desse dia, às 8h, Gemma recebeu a extrema-unção. Como Jesus na cruz, talvez ela também se sentisse um tanto quanto abandonada, pois nesse dia não estavam do seu lado o seu diretor espiritual e seu confessor, mas apenas algumas senhoras caridosas que vinham cuidando dela nos últimos dias. Embora sentisse falta daqueles que a acompanharam desde a sua infância, Gemma não pediu mais nada. Conformouse em viver o ápice desses momentos derradeiros de cruz e disse: “Agora, é certo que de todo não posso mais, Jesus. Recomendo-vos minha pobre alma... Jesus!”. [39] Eram as últimas palavras de Gemma Galgani, similares às de Jesus na cruz: “Tudo está consumado. [...] Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Jo 19,30; Lc 23,46).

Pe. Germano descreveu assim esses últimos momentos de Gemma: “A vítima estava inteiramente consumida, só lhe faltava dar o último suspiro para completar o seu sacrifício”.[40] Gemma estava nesse momento assentada sobre a cama, tendo do seu lado as senhoras que tinham cuidado dela, chamadas pelo seu diretor espiritual de benfeitoras. Sua melhor amiga e confidente, Eufêmia Giannini, encontrava-se ao seu lado, segurando a sua mão, como Madalena ao pé da cruz. Outras pessoas da vizinhança também se achegaram para assistir Gemma e confortá-la em seu amento. Era mais que meio-dia quando Gemma deu seu último suspiro. Pe. Germano escreveu que, exatamente às 13h do dia 11 de abril de 1903, Gemma faleceu. Escreveu ele: “Deu-se esta bemaventurada morte à uma hora depois do meio dia do Sábado de Aleluia, que, naquele ano de 1903, foi no dia 11 de abril”.[41] Nesse dia memorável, Gemma Galgani encerra definitivamente a sua via crucis e adentra os céus com a alma purificada pelo sofrimento, concretizando o que ela mais almejou: ir para junto de Jesus. E ela foi como havia desejado, ou seja, numa grande solenidade, o sábado da ressureição. Gemma, quando falava da morte, dizia que queria partir numa grande solenidade, e disse ela certa vez: “Pedi a Jesus que me fizesse morrer numa grande solenidade! Quão belo deve ser morrer numa grande solenidade!”.[42] E ela teve esse desejo realizado.

XX

O funeral de Santa Gemma Galgani e os seus primeiros indícios de santidade

Como vimos, Gemma Galgani morreu, aproximadamente, às 13h do dia 11 de abril de 1903, um Sábado Santo, uma solenidade, como ela havia almejado. A jovem que levara uma vida de santidade morreu em um dos dias mais santos do calendário católico, o Sábado da Vigília da Ressurreição de Cristo, em cuja noite a Igreja celebra a solene vigília pascal, a mãe de todas as vigílias. Nessa noite, parentes, amigos e seguidores de Gemma Galgani teriam, literalmente, uma noite de vigília. A cidade de Lucca estaria em vigília pela perda da filha ilustre, e o céu estava em festa porque ganhava uma santa. Confirmada a sua morte, começam os preparativos para seu funeral, algo que Gemma, ainda em vida, já tinha pensado, conforme relatamos na conversa que ela teve com seu diretor espiritual meses antes, em que falava desse momento e do cuidado que deveriam ter com o seu corpo imaculado.

Assim descreve seu diretor espiritual esse momento:

Morta a santa jovem, as irmãs prestaram os últimos serviços ao seu cadáver e, por inspiração de quem conhecia a fundo os íntimos desejos do seu coração, que se resumiam em ser religiosa ionista, vestiram-na de preto, colocaram sobre seu peito um crucifixo e sobre o coração o emblema da paixão, que é o principal distintivo daquele instituto; ornaram a sua cabeça com uma grinalda de flores, pam o rosário no pescoço, uniram-lhe as mãos junto ao peito, do mesmo modo que ela ficava quando absorta em êxtase.[1]

Gemma agora estava vestida como ionista, realizando depois de morta o seu grande desejo: consagrar-se no Instituto das Monjas ionistas, hoje congregação, e ali viver seus dias, dedicando-se exclusivamente a esse carisma, que ela, melhor que ninguém, já vinha vivendo. Em vida, ela não viu seu sonho

realizado, mas, pelos desígnios divinos, depois de morta, foi declarada ionista, e seu corpo foi mais tarde conduzido não apenas para o mosteiro com o qual ela tanto sonhara, mas para um santuário construído em sua honra. Nas imagens de Santa Gemma, a vemos vestida com o hábito ionista, tendo no peito o distintivo dessa congregação. A partir desse momento, Gemma já aria a ser considerada uma santa ionista, embora a Igreja ainda não tivesse reconhecido oficialmente a sua santidade. Porém, como veremos mais adiante, esse reconhecimento não tardaria a chegar.

Gemma, com o corpo preparado para o sepultamento, parecia dormir. Seu rosto angelical recobriu-se de uma beleza que não era deste mundo. A jovem, que em vida tinha sido de fato muito bela, ganhou após sua morte uma beleza indescritível, sem que fosse usado qualquer disfarce ou maquiagem em seu rosto. Todos que a viam no caixão ficavam irados com seu semblante. Seu diretor espiritual disse:

Conservou-se impresso em sua fisionomia aquele gracioso sorriso, com o qual exalou a sua alma; e o seu corpo, respirando não sei que de celestial, assim preparado e adornado, parecia de uma pessoa viva que dormia tranquilamente, ou estava arrebatada dos sentidos em íntima comunicação com Deus.[2]

Gemma não parecia estar morta, mas apenas dormindo. Dormia o sono eterno dos justos, dos santos, daqueles que configuraram sua vida a Cristo crucificado, ou, como disse o apóstolo Paulo, daqueles que combateram o bom combate, que completaram a corrida e que guardaram a fé (2Tm 4,7). Seu rosto, antes expressão de dor e sofrimento, agora transparecia leveza e paz, a paz dos que morrem com a sensação da missão cumprida. Gemma estava em paz porque realizara duplamente seu desejo: ser ionista e ir para junto de Jesus, de Nossa Senhora das Dores e do coirmão Gabriel. O céu, sem dúvida, também estava duplamente em festa nesse dia 11 de abril: páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo e páscoa de Santa Gemma Galgani, uma autêntica filha da Paixão.

A notícia da morte de Gemma Galgani não demorou a se espalhar pela cidade de Lucca e arredores. Àquela altura, Gemma já era uma pessoa bem conhecida na cidade e região, devido ao seu esforço na busca da santidade. Aos poucos, a pequena casa onde ela morreu foi ficando repleta de pessoas que chegavam para rezar junto do leito fúnebre e do seu féretro, porque ali jazia a sempre doce Gemma de Jesus. Rezavam e choravam pelo amento daquela que tinha sido exemplo de amor a Cristo e que trazia em seu corpo os estigmas, as marcas do Crucificado. Seu corpo ficou cercado por crianças, sobretudo as que estiveram com ela, acompanhando-a, mesmo que a distância, naqueles meses finais. Estava também presente um velho sacerdote, o mesmo que a acompanhou nos seus últimos momentos, pois nem seu confessor nem seu diretor espiritual puderam estar ali no momento do seu amento. Esse sacerdote, que ouviu sua última confissão, permaneceu o tempo todo ao lado do seu corpo, rezando e chorando, até que ele foi levado ao cemitério. Durante o velório de Gemma, esse sacerdote ajoelhou-se ao lado do seu caixão e disse chorando: “Gemma, tens a teus pés um grande pecador. Reza a Jesus por mim”. [3]

Chegaram também para o velório e sepultamento outros eclesiásticos e seculares que, segundo seu biógrafo, Pe. Germano, tocavam com rosários sua fronte para guardá-los como preciosa lembrança. Essa era mais uma prova do reconhecimento da sua santidade. As pessoas presentes no velório queriam ficar com alguma coisa de Gemma. Uns tiravam flores do seu caixão para guardar consigo, pois era uma lembrança de algo que havia tocado o corpo da santa. Ter uma relíquia dela seria uma forma de tê-la por perto, intercedendo junto a Deus. O mais curioso é que as pessoas queriam ficar com alguma mecha dos cabelos dela e começaram a cortá-lo. Diz Pe. Germano que, “se a irmã assistente não os tivesse impedido, lho tirariam todo”.[4] No museu a ela dedicado, em Lucca, é possível ainda ver alguns fios dos seus cabelos que foram preservados como relíquia.

O local onde Gemma foi velada se recobriu de santidade. Outro sacerdote, que não pôde estar presente no seu velório, foi depois ao local e entrou no quarto em que Gemma morrera para rezar. Ao sair, disse ele comovido: “Parece-me estar

num santuário do qual este leito figura o altar. Como se reza bem! Quisera nunca afastar-me daqui!”.[5] E disse mais: “Feliz dela que soube viver como um anjo e morrer como uma santa!”.[6] Gemma exalou o perfume da santidade por onde ou, e essa santidade foi aos poucos sendo confirmada ainda durante seu velório e nos dias que sucederam a sua morte. Hoje, quem entra no seu santuário em Lucca sente odores de perfume, conforme havia relatado o referido padre quando entrou no quarto em que Gemma viveu seus últimos dias. Na ocasião em que eu estive com um grupo de peregrinos em seu santuário em Lucca, sob cujo altar se encontra seu corpo, várias pessoas relataram terem sentido tal perfume.

Quem se encarregou do enterro de Gemma foi a respeitável Associação da Rosa, então dirigida pelo Pe. Roberto Andreuccetti, pároco e diretor da paróquia de Santa Maria della Rosa. Desde o ano de 1333, encontram-se evidências de uma confraria fundada em homenagem a Nossa Senhora da Rosa, que era conhecida como Confraria da Rosa. O nome dessa confraria deriva de uma imagem de Nossa Senhora que traz nas mãos uma rosa e a apresenta à criança que ela traz nos braços. A igreja Santa Maria della Rosa, onde Gemma participava das missas e fazia confissões, leva esse nome por causa da referida imagem, obra atribuída ao artista Giovanni Pisano. Quem vai a Lucca deve visitar essa igreja, localizada no centro histórico de Lucca, atrás da catedral, em direção aos muros históricos, hoje confiada à Congregação das Irmãs de Santa Gemma. Elas abrem o templo ao público para que os fiéis e devotos de Santa Gemma possam conhecer e sentir um pouco o ambiente onde Gemma desenvolveu momentos intensos e significativos de sua vida espiritual. No interior dessa igreja, ainda está marcado o lugar onde Gemma se assentava para participar das missas, bem como o confessionário onde ela muitas vezes fez confissões. Encontramos ali um lugar cercado por cordas, com uma foto de Santa Gemma no encosto da cadeira. Ela se assentava nesse lugar para participar das missas e para rezar quando a igreja estava vazia.

Gemma frequentou a igreja de Santa Maria della Rosa entre os anos 1900 e 1903, ou seja, até a sua morte. Essa igreja tinha entre seus movimentos, confrarias e associações a Associação da Rosa. Pe. Germano, em seu livro, identifica Pe. Roberto Andreuccetti como o diretor dessa associação. Foi ele que esteve à frente da preparação do sepultamento de Gemma Galgani, mandando

revesti-la com o hábito ionista e confeccionando um belíssimo quadro, em pergaminho, para ser colocado em sua cripta. Esse pergaminho continha uma breve biografia de Gemma, que pode ser lida na obra escrita pelo Pe. Germano (p. 320) e no santuário dedicado a ela, onde hoje se encontra seu corpo, em Lucca. Além desse pergaminho com sua biografia, ele mandou preparar também o seu epitáfio, em latim, e colocá-lo numa placa de mármore no cemitério onde seu corpo foi depositado, numa sepultura particular, ao ar livre. Assim diz o epitáfio de Gemma Galgani, traduzido para o português:

Gemma Galgani de Lucca, virgem puríssima, que no quinto lustro da idade, consumida mais pelas chamas de amor divino do que pela doença, no dia 11 de abril de 1903, véspera de páscoa da ressurreição, voou para o seio do seu celeste Esposo. Repousa em paz, ó Bela Alma, na companhia dos anjos![7]

O corpo de Gemma, logo após a sua morte, foi colocado no cemitério, numa sepultura particular, mas depois ele seria transladado para o santuário onde se encontra o mosteiro das monjas ionistas. Antes, porém, seu coração foi retirado. A família que cuidou dela queria a exumação do corpo, sobretudo do coração, pois acreditava piamente que ali estava um coração santo e perfeito. Escreveu o Pe. Germano:

A dor, que se apoderou de toda a família benfeitora de Gemma, e a perturbação em que ficaram fizeram com que esquecessem, por momentos, do pensamento que tinham concebido: mandar abrir, depois de sua morte, o seu peito, na esperança de achar em seu coração algum sinal extraordinário.[8]

ados uns dias, depois que as coisas se acalmaram, a família decidiu que o corpo deveria ser exumado. Mesmo assim, diz o Pe. Germano: “Foi necessário esperar algum tempo para as formalidades exigidas pela autoridade civil, e no dia 24 de abril, décimo terceiro depois da morte da serva de Deus, procedeu-se à exumação”. [9]

[9]

Depois de treze dias sepultado, o corpo de qualquer pessoa já está em avançado estado de decomposição, mas não foi o que ocorreu com o corpo de Gemma Galgani. Ele tinha, sim, sinais de decomposição em algumas partes, mas estava surpreendentemente intacto, mesmo depois de tanto tempo sepultado. Mas a surpresa maior estava no seu coração. Quando abriram o peito de Gemma, jorrou sangue fresco, vermelho, como jorraria do coração de alguém que está vivo. Seu coração estava em perfeito estado. Assim descreveu Pe. Germano: “Descoberto e tirado o coração, apresentou-se fresco, vigoroso, flexível, vermelho e cheio de sangue, como o coração de uma pessoa viva, pelo que ficaram sumamente maravilhados os práticos encarregados da autópsia”.[10] Diz ainda que o coração de Gemma apresentava outras características surpreendentes. Estava diferente do natural, mais dilatado, parecendo mais largo do que alto, e com sangue liquefeito que escorreu sobre o mármore, algo sobrenatural para um corpo que há treze dias havia sido sepultado. Diz ele também que quem tocou em seu coração teve as mãos abrasadas devido ao calor que dele emanou ao ser retirado, causando uma sensação de queimadura. Disse ele: “Aquele coração não podia morrer!”. [11]

Pe. Fernando Piélagos, outro biógrafo de Gemma Galgani, disse que, “ao saber do ocorrido, Pe. Germano desloca-se até Lucca, aonde chega no dia 26 de abril de 1903”,[12] ainda durante o processo de exumação do corpo de Gemma, que havia iniciado no dia 24 de abril. Ele acompanhou, em parte, esse processo e narrou, como vimos acima, e como podemos ver na biografia de Gemma Galgani, os detalhes dos fenômenos extraordinários em relação ao coração da santa. Depois de retirado e exumado, o coração de Gemma Galgani foi levado para a casa geral dos missionários ionistas, localizada no n. 13 da piazza Ss. Giovanni e Paolo, em Roma, ao lado do Coliseu, onde foi conservado durante muito tempo em um relicário. Depois, foi transladado para “o famoso e concorrido santuário, em Madri, aos cuidados dos missionários ionistas, sendo objeto de grande devoção por parte de milhares de fiéis”.[13] O coração de Santa Gemma Galgani foi levado para o seu santuário de Madri, na Espanha,

no ano de 1985. No dia 14 de cada mês, ocorre nesse santuário uma grande peregrinação, e fiéis de várias partes da Espanha, e de outros países da Europa e do mundo, vão visitar o lugar que guarda a relíquia mais importante dessa santa: o seu coração. O santuário que guarda o coração de Santa Gemma Galgani está situado na calle de Leizarán, n. 24, na cidade de Madri.

No capítulo seguinte, falaremos sobre o processo de canonização de Santa Gemma Galgani e sobre a importância que seu diretor espiritual, Pe. Vincenzo Ruoppolo, conhecido pelo seu nome de religioso, Pe. Germano de Santo Estanislau, teve nesse processo.

XXI

O processo de canonização de Santa Gemma Galgani e seus obstáculos

Logo após a morte de Gemma Galgani, seu diretor espiritual, Pe. Germano, que chegou à cidade para a exumação de seu corpo, se mobilizou para provar que ela não era uma pessoa comum, que aquela alma era santa. Material para isso não lhe faltava, a começar pelos relatos do estado do coração da jovem, que foi encontrado intacto depois de treze dias sepultado. Porém, muitos imaginavam que ela seria logo esquecida, porque, embora tivesse vivido uma vida santa, sua morte fora discreta e seu velório não tivera a comoção das grandes personalidades. Gemma não era, de fato, uma pessoa visível, e apenas suas particularidades místicas e espirituais haviam se tornado um tanto quanto visíveis.

Gemma nunca quis visibilidade neste mundo, mas queria ser visível para Deus, e fez tudo o que pôde enquanto viveu para que Deus a visse e a acolhesse junto dele. Agora, restava aos seus mais próximos pleitear o reconhecimento de sua santidade. Pe. Germano não perdeu tempo nesse certame, porque ele, melhor do que ninguém, sabia ver as obras de Deus na alma daquela sua filha espiritual. Disse ele: “É tempo de cumprir os desígnios de Deus. É tempo de fundar este mosteiro que Nosso Senhor queria em Lucca”.[1] Esse querer de Deus fora manifestado com tanta veemência em Gemma Galgani que seu pai espiritual não iria sossegar enquanto não visse suas obras começadas. Pe. Germano, então, se empenhou para isso até que o mosteiro fosse aprovado e as obras iniciadas, conforme a vontade de Gemma Galgani. No ano de 1907, o mesmo ano da publicação da primeira edição da biografia de Gemma Galgani, as obras do mosteiro ionista de Lucca foram iniciadas. As monjas ionistas já haviam chegado a Lucca e estavam morando numa casa alugada, desde 1905, aguardando a construção do mosteiro, que futuramente abrigaria não apenas as monjas, mas também o corpo de Gemma Galgani, o de seu diretor espiritual, Pe. Germano de Santo Estanislau, hoje venerável, e o do seu confessor, monsenhor Volpi. Os três corpos estão hoje nesse santuário, junto ao mosteiro, aberto à visitação.

Quanto ao processo de canonização de Gemma Galgani, um dos primeiros os para provar a sua santidade foi reunir os dados sobre ela e escrever sua biografia, relatando seus feitos místicos e espirituais. Há algum tempo Pe. Germano, ciente de que Gemma era uma pessoa incomum e tinha um quê de santidade, já havia começado a reunir dados sobre ela, inclusive dados fornecidos por ela mesma, por meio de, por exemplo, sua Autobiografia, que ele lhe pedira que escrevesse, à qual, como vimos, ela deu o nome de O caderno dos meus pecados. O objetivo desse escrito era obter o máximo de informações místicas e espirituais sobre Gemma, e ele conseguiu esse feito, embora o diabo tenha tentado a todo custo destruí-lo, como já vimos. Pe. Germano havia percebido a riqueza mística e espiritual de Gemma quando leu o seu Diário, escrito a pedido de seu confessor. Arrependido por ter pedido que ela interrompesse o escrito, ele pediu que ela escrevesse algo mais profundo e contundente, compensando a falha da interrupção do Diário e trazendo à tona informações muito íntimas. Assim nasceu uma das obras mais profundas escritas por Santa Gemma, que é seu caderno autobiográfico, ou sua Autobiografia.

Tendo em mãos a sua Autobiografia, o seu Diário, o caderno em que Eufêmia Giannini registrava os êxtases da amiga Gemma e cartas diversas que ela escreveu, e possuindo informações que ele obtivera dela por meio de confissões e direções espirituais, Pe. Germano começou o árduo empreendimento de escrever a biografia de sua filha espiritual, a primeira e a mais fiel biografia que temos de Santa Gemma Galgani, a qual ofereceu a maior parte dos dados e informações colocados aqui neste livro. Pe. Germano começou a escrever a biografia alguns dias após a morte de Gemma, no entanto alguns dizem que ele já vinha escrevendo sobre ela bem antes de sua morte, pois a monumental obra não demorou a ficar pronta. Em 1907, saiu a primeira impressão da biografia de Gemma Galgani, e quem patrocinou sua publicação foi o padre que a batizou, Pe. Pedro Quillici, que não mediu esforços para buscar recursos para o pagamento da impressão da biografia daquela cuja santidade ele também queria ver reconhecida.

Logo após ser publicada, a obra teve uma excelente aceitação, e, para a surpresa

de todos os envolvidos, em questão de meses esgotaram todos os exemplares da primeira impressão. Foi uma espécie de milagre de Gemma Galgani, pois não era comum um livro biográfico, sobretudo de uma pessoa não muito conhecida, vender tantos exemplares em tão pouco tempo. Pe. Fernando Piélagos escreveu: “Em dois anos, esgotam-se cinco edições, em um total de 55 mil exemplares”,[2] algo surpreendente para uma época em que os meios de comunicação não tinham a mesma velocidade de hoje e em que não era tão simples divulgar uma obra.

Em 1909, dois anos depois da primeira impressão, ano em que era preparada a sexta edição, morre o autor da obra, Pe. Germano. Porém, o livro já tinha ganhado visibilidade, tornando-se um verdadeiro best-seller, posto que ocupa até hoje entre as biografias dos santos. Na ocasião da sua morte, Pe. Germano já tinha terminado a revisão dessa sexta edição e a redação e impressão de uma seleção de cartas da sua filha espiritual, bem como a redação dos seus êxtases, que haviam sido entregues a ele por Eufêmia Giannini, e de uma biografia abreviada dela. Segundo Pe. Fernando Piélagos, “todos esses volumes constituíram grandes êxitos editoriais”,[3] e o são até nossos dias, pois Gemma Galgani é uma santa que vem sendo descoberta com o ar dos anos, e materiais sobre ela são sempre muito bem aceitos, pois sua vida toca profundamente a alma de qualquer leitor. Muitos desses materiais, por exemplo, a coleção de cartas de Santa Gemma, até o presente momento não foram publicados oficialmente em outros idiomas. Eles estão na língua original, o italiano, nos arquivos da casa geral dos ionistas.

No ano em que sai a primeira edição da sua biografia (1907), têm início também “as primeiras diligências para a introdução do processo de canonização de Gemma Galgani”,[4] e é iniciada a construção do mosteiro ionista em Lucca. É o tempo de Deus se concretizando nos projetos dessa santa. Nesse mesmo ano, no embalo do sucesso de sua biografia, “o Processo Informativo foi aberto em Lucca. No dia 3 de outubro de 1907, o bispo nomeou os membros de uma comissão especial para tomar os primeiros testemunhos”.[5] Ou seja, quatro anos e meio após a morte de Gemma Galgani, o seu processo de canonização foi oficialmente aberto, graças ao empenho do Pe. Germano e à biografia sobre ela que ele se dedicou a escrever. Piélagos vai dizer que “somente nesta ocasião que os habitantes da pequena cidade italiana perceberam que nela viveu uma santa”,

[6] pois, embora muitos tivessem vivido ao seu lado, tenham a visto pelas ruas, ou mesmo se sentado ao seu lado nas missas, não perceberam a grandeza daquela alma. Somente seu confessor e seu diretor espiritual cedo perceberam a excepcionalidade mística daquela jovem, e mesmo assim a trataram com precaução, porém sem deixar de observar e registrar cada manifestação. A família Giannini também havia percebido que abrigava em sua casa uma santa, mas não tinha noção do que isso significava até então. Somente depois que o processo de canonização foi aberto e que começaram a coletar os materiais para comprovar sua santidade e milagres é que as pessoas da cidade foram tomando consciência do que Gemma representava. Porém, o processo não foi tão fácil. Havia quem discordasse da santidade dela, classificando-a apenas como uma pessoa com distúrbios mentais; outros diziam que ela era mais uma religiosa fanática; outros, ainda, que ela era uma alma piedosa, mas não digna dos altares. No entanto, havia também os testemunhos contundentes a respeito de sua santidade. Piélagos escreve: “Há, contudo, testemunhos fidedignos que vão delineando a grandeza de espírito, a pureza de sua vida, sua oferta como vítima do Senhor, seu ardente amor a Jesus, mesmo em meio ao maior sofrimento e miséria”. [7]

Pouco tempo após a morte de Gemma Galgani, espalha-se por toda a Itália a devoção a esta jovem alma recém-adentrada aos céus, chegando tais notícias aos ouvidos do papa Pio X, que se surpreende com tal fenômeno espiritual e escreve ao Pe. Germano pedindo informações. O papa chega a questionar a veracidade dos fatos e pergunta ao Pe. Germano: “Mas está certo tudo o que está escrito na biografia?”. E este respondeu: “O que escrevi é só uma parte do que poderia escrever”.[8] Ou seja, apesar de grandiosa, essa biografia não representa tudo o que Santa Gemma Galgani era. Ela é apenas uma pequena parcela da grandeza que foi a vida dessa santa, que aos poucos foi sendo descoberta pelo mundo afora. Pe. Germano recebia cartas de toda a Itália sobre os acontecimentos fenomenais relatados pelas pessoas, das mais variadas camadas sociais, inclusive sacerdotes, falando sobre as graças alcançadas por intermédio de Gemma Galgani. Eram pessoas que leram a biografia dela escrita pelo Pe. Germano e que aram a recorrer a ela para alcançar graças.

O interesse do papa foi um o importante no processo de canonização. Era o início do século XX, e nenhum santo tinha sido ainda canonizado nesse século. Gemma era a primeira da fila, abrindo uma nova era no panteão dos santos do novo século, com uma característica nova, enfatizada na mística da paixão, evidenciada nos estigmas. Com a expansão do conhecimento dos méritos espirituais de Gemma Galgani, “alguns pregadores começaram a usar agens da Biografia dela em seus sermões, para incitar os fiéis a uma prática mais fervorosa”.[9] A obra escrita pelo Pe. Germano vinha cumprindo uma função importante: tornar Gemma conhecida e amada. Quem lia a sua Biografia, se apaixonava de imediato pela jovem, que começava a ser reconhecida como santa bem antes de sua canonização, como acontece com a maioria dos santos antes de serem canonizados pela Igreja. Porém, Gemma foi além, e sua espiritualidade e seu exemplo de vida cruzaram os mares, chegando a terras mais distantes, como o Brasil, levados pelos missionários ionistas e de outras congregações e ordens religiosas, que propagavam o exemplo sublime de amor deixado por Gemma Galgani. Um exemplo de como isso ocorreu foi relatado em outro capítulo deste livro, quando foi abordada a conversão do irmão de Gemma, Heitor Galgani, que veio para o Brasil e não sabia dos feitos espirituais da irmã que ele havia deixado na Itália.

Mas, de volta ao processo de canonização, muitos contratempos surgiram nesse ínterim, o que acabou por atrasá-lo. Entre eles, a morte repentina daquele que era o seu maior defensor e postulador da causa, Pe. Germano de Santo Estanislau, que faleceu no dia 11 de dezembro de 1909, dois anos após o início do processo. Como já disse, na ocasião de sua morte, ele havia terminado a revisão da sexta edição da biografia de Santa Gemma, edição cuja versão temos até os dias de hoje. Após sua morte, houve certo arrefecimento no processo, que durou ainda alguns anos. Embora outro padre tenha assumido a causa, ela não deslanchou com o mesmo ímpeto com que tinha iniciado. Além disso, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) também ajudou a atrapalhar o andamento dos trabalhos. Somente em 1917, a causa de Gemma ganha fôlego no tribunal e são retomados os trabalhos de reconhecimento do processo de santidade.

É possível resumir a retomada do processo da seguinte maneira:

Em 28 de abril de 1920, Bento XV firmou o Decreto de introdução da causa da beatificação. Em 20 de janeiro de 1922, abre-se em Pisa o processo apostólico. Em 1928, o processo é interrompido por razões de prudência. Trata-se de um processo de uma pessoa cercada de fatos extraordinários. Mas, em 29 de novembro de 1931, Pio XI assinou o Decreto de Virtudes Heroicas, tornando-a venerável.[10]

O o seguinte seria a beatificação, e Gemma estaria a um o da santidade. De acordo com as normas vigentes na época, era necessária a comprovação de dois milagres para se confirmar a beatificação, e eles não demoraram a aparecer. “No dia 14 de maio de 1933, Ano Santo da Redenção, é beatificada”[11] Gemma Galgani pelo papa Pio XI. Agora, com a comprovação de mais dois milagres, ela seria conduzida definitivamente aos altares, com a canonização.

Na solene celebração de beatificação de Gemma Galgani, na basílica de São Pedro, em Roma, estavam presentes algumas pessoas que conviveram com ela bem de perto, entre elas “o senhor Mateus Giannini e sua esposa Justina, um grupo das oblatas do Espírito Santo, entre elas irmã Júlia Sestini, sua mestra”, [12] sobre a qual falei nos capítulos iniciais deste livro. Infelizmente, nessa ocasião, Cecília Giannini, uma das pessoas mais importantes na vida de Gemma, havia falecido dois anos antes.

Sete anos depois, durante a Segunda Guerra Mundial, ocorria em Roma o solene ato de canonização de Santa Gemma Galgani, conduzido pelo papa Pio XII, que a chamou de “estrela do seu pontificado”, por ser a primeira santa canonizada no seu pontificado e a primeira do século XX. Essa memorável cerimônia se deu em 2 de maio de 1940, na festa da Ascensão do Senhor. Nessa celebração, “estavam presentes sua irmã Angelina Galgani, os Giannini, ressaltando a presença de Eufêmia, sua grande amiga e confidente, então madre Gemma de Jesus”. [13]

Gemma Galgani, agora santa, continua a operar milagres. Sua fama se espalha pelo mundo, sobretudo pela Europa e pela América. A Igreja cogitou declará-la padroeira dos farmacêuticos, devido à tradição de sua família e à sua estreita relação, em vida, com essa área, mas ela perdeu o posto, ao redor do mundo, para outros santos, por exemplo, para São Cosme, em Portugal, elegido como o padroeiro dessa categoria. Porém, no Brasil, no dia 12 de abril de 1945, a Associação Católica dos Farmacêuticos de Botucatu, no interior de São Paulo, e o Conselho Regional de Farmácia de São Paulo a elegeram sua padroeira, promovendo a entronização da sua imagem em inúmeros estabelecimentos da área, como farmácias, drogarias, laboratórios e até hospitais. Santa Gemma ou, assim, a ser reconhecida em todo o território nacional como a padroeira dos farmacêuticos.

Hoje é incontável o número de farmácias e laboratórios que levam o seu nome, sem contar as paróquias, comunidades religiosas e até ruas, como a do bairro Barreirinha, em Curitiba-PR; a do bairro Betânia, em Belo Horizonte-MG; a da Vila Marte, em São Paulo-SP; entre muitas outras no Brasil e no mundo. Gemma, canonizada, continuou a operar milagres, e sua devoção cresce a cada ano.

XXII

Resumo biográfico de Santa Gemma Galgani por ordem cronológica

1878 – 12 de março: nascimento de Gemma Galgani em Camigliano (região da Toscana, Itália), próximo à cidade de Lucca. Seus pais: Henrique Galgani, farmacêutico, e Aurélia Landi.

1878 – 13 de março: Gemma recebe o sacramento do batismo na igreja de São Miguel Arcanjo, em Lucca, pelo pároco Pe. Pedro Guilici. Seu padrinho foi o tio, Maurício Galgani, de 42 anos.

1878 – Abril: A família de Gemma se muda para Lucca, para uma rua próxima à dos Borghi.

1880 – Gemma é matriculada no jardim de infância, em uma escolinha de duas irmãs, Hercília e Helena Vallini, na praça de São Francisco, n. 2.

1885 – 26 de maio: Gemma recebe o sacramento da confirmação (crisma). Nessa ocasião, ela tem a primeira manifestação sobrenatural, e Jesus lhe pede o sacrifício de sua mãe, Aurélia Landi, que se encontra enferma.

1886 – 17 de setembro: morte da senhora Aurélia Landi, mãe de Gemma Galgani.

1887 – 17 de junho: Gemma recebe a primeira comunhão depois de dez dias de retiro espiritual, orientado pelo monsenhor Giovanni Volpi. Nesse retiro, ela foi

exortada pelo pregador a meditar sobre os mistérios da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

1889-1893 – Gemma frequenta a Escola das Religiosas Oblatas do Espírito Santo, da congregação de Santa Zita, conhecida como as zitinas. Uma de suas professoras foi Elena Guerra, beatificada pelo papa João XXII, em 26 de abril de 1959.

1894 – Morre, com apenas 18 anos, o irmão predileto de Gemma Galgani, Gino, que era seminarista.

1896 – Gemma é submetida a uma cirurgia, sem anestesia, de uma cárie óssea no pé.

1896 – 25 de dezembro: Gemma emite, por conta própria, votos de castidade.

1897 – 11 de novembro: Morte de seu pai, Henrique Galgani. Dura prova para a família Galgani, que ficou reduzida à indigência. Gemma é conduzida à casa de uma de suas tias em Camaiore, mas permanece pouco tempo por lá, voltando em breve para o seio da família.

1898 – Gemma recusa uma proposta de casamento porque quer ser de Jesus de corpo e alma.

1899 – 3 de março: primeira sexta-feira do mês, por intercessão de Santa Margarida Maria Alacoque, Gemma obtém a cura milagrosa de uma grave

doença. Durante seu período de enfermidade, ela recebe constantemente a visita de São Gabriel da Virgem Dolorosa, o qual chamava carinhosamente de coirmão Gabriel.

1899 – Abril e maio: Gemma faz um retiro espiritual, vocacional, no convento da Visitação, com as irmãs visitandinas, mas não é aceita.

1899 – Sexta-feira Santa: entregue em êxtase, Gemma experimenta pela primeira vez os sofrimentos da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

1899 – 8 de junho: véspera da festa do Sagrado Coração de Jesus, aparecem no corpo de Gemma os estigmas das cinco chagas de Jesus. Esse fenômeno ocorreu na casa onde ela morava com seus parentes, na rua Biscione, n. ١٣, primeiro andar, na paróquia de São Frediano.

1899 – Junho e julho: durante uma missão pregada pelos filhos de São Paulo da Cruz, Gemma conhece os ionistas; vai confessar com Pe. Caetano do Menino Jesus, .

1899 – Julho a setembro: Gemma é recebida como filha adotiva na casa do Sr. Matheus Giannini e sua esposa Justina.

1899 – 8 de setembro: Monsenhor Volpi confia ao Dr. Pfanner o exame das chagas de Gemma. Fica comprovado que os ferimentos de Gemma Galgani não configuram doença, mas estigmas.

1899 – 8 de dezembro: Aconselhada por São Gabriel da Virgem Dolorosa, faz voto de ser religiosa.

1900 – 28 de janeiro: Primeira carta ao Pe. Germano de Santo Estanislau, ionista, que se encarrega da direção espiritual de Gemma Galgani. Ela ainda não o conhecia.

1900 – 16 de março: Gemma começa a escrever o seu Diário espiritual, a pedido de seu confessor, monsenhor Volpi.

1900 – 10 de julho: Jesus lhe dá o dom da sua coroa de espinhos.

1900 – 1º de setembro: Gemma vê pela primeira vez o Pe. Germano, seu diretor espiritual.

1900 – 3 de setembro: Pe. Germano de Santo Estanislau pede que Gemma interrompa a escrita de seu Diário espiritual. Ele lhe diz que não ficaria bem a ela se expor daquela maneira. Depois, ele vai se arrepender e pedir que ela escreva uma Autobiografia.

1900 – Setembro: Gemma entra na família Giannini.

1901 – Fevereiro e março: durante a Quaresma deste ano, Gemma manifesta em seu corpo os golpes da flagelação de Jesus, em forma de novos estigmas, que surgiam às quintas e sextas-feiras da Quaresma.

1901 – 17 de fevereiro a 15 de maio: por recomendação de seu diretor espiritual, Gemma escreve a sua Autobiografia, a qual ela chama de O caderno dos meus pecados.

1901 – Gemma tenta entrar para o convento das monjas ionistas de Tarquinia, em Corneto, mas não é aceita.

1902 – Gemma se oferece como vítima pelos pecadores. Jesus revela a ela os seus desígnios sobre a fundação do mosteiro ionista em Lucca.

1902 – 19 de agosto: Gemma perde Júlia, a irmã caçula, que estava com apenas 19 anos. Consternada, ela escreve ao Pe. Germano: “Júlia morreu”.

1902 – 21 de setembro: Gemma adoece gravemente.

1902 – 21 de outubro: morre o seu irmão Antônio, com apenas 22 anos.

1903 – 24 de janeiro: temerosos pelo contágio da doença de Gemma (tuberculose), mesmo contrariada, mas por recomendação médica, a família Giannini transfere Gemma para um quarto separado da casa, no local conhecido como “rua da Rosa”, uma referência à Igreja de Santa Maria da Rosa.

1903 – 10 de abril: Sexta-feira da Paixão, Gemma recebe a visita de seu confessor oficial, monsenhor Giovanni Volpi. Durante essa visita, ela é brutalmente assaltada pelo diabo. Gemma pede ao monsenhor o exorcismo, mas ele não a atende, julgando ser tudo aquilo fruto do seu estado febril.

1903 – 11 de abril: às 8h, Gemma recebe das mãos do Pe. Andreuccetti, pároco de Lucca, a comunhão em viático, a sua última comunhão. Um pouco depois, ela recebe das mãos de outro sacerdote, Pe. Luís Carnicelli, a extrema-unção. Ao meio-dia, Pe. José Angeli lhe dá a absolvição definitiva.

1903 – 11 de abril: morre Gemma Galgani, às 13h do Sábado Santo, com 25 anos e 29 dias.

1903 – 12 de abril: enterro de Gemma Galgani, Domingo da Páscoa.

1903 – Outubro: São Pio X firma o decreto para a ereção do mosteiro ionista em Lucca.

1905 – 19 de março: as monjas ionistas se estabelecem em Lucca.

1907 – Pe. Germano publica a primeira biografia de Gemma Galgani.

1907 – 3 de outubro: tem início na cúria diocesana de Lucca o processo ordinário sobre a fama de santidade, vida, virtude e milagres da serva de Deus Gemma Galgani.

1909 – Pe. Germano publica as cartas e os êxtases de Gemma Galgani.

1910 – 3 de dezembro: terminam as análises do processo informativo. É designada uma comissão de teólogos, encarregada de revisar os escritos de Gemma.

1921 – 5 de abril: é indicado o Ex.mo cardeal Maffi, arcebispo de Pisa, para iniciar o processo apostólico sobre as virtudes e, em particular, os milagres de Gemma.

1926 – 22 de junho: A Sagrada Congregação de Ritos reconhece a validade do processo ordinário e apostólico.

1928 – 4 de dezembro: a Congregação dos Ritos realiza a sessão das virtudes heroicas de Gemma Galgani.

1931 – 29 de novembro: o Papa Pio XI proclama as virtudes heroicas de Gemma Galgani.

1933 – 14 de maio: no ano santo da redenção, ocorre a beatificação da serva de Deus Gemma Galgani.

1940 – 2 de maio: o Papa Pio XII realiza a cerimônia de canonização de Santa Gemma Galgani, a primeira santa do século XX.

2014 – Junho: publicada no Brasil a biografia de Santa Gemma Galgani escrita pelo Pe. Germano de Santo Estanislau, (uma versão incompleta já havia sido publicada aqui no Brasil em 1927) (Campinas/São Paulo: Ecclesiae/CEDET).

2017 – É publicado no Brasil o Diário de Santa Gemma Galgani, com comentários espirituais do Pe. José Carlos Pereira, (São Paulo: Paulus).

2019 – É publicada no Brasil a Autobiografia de Santa Gemma Galgani, intitulada O caderno dos meus pecados, conhecida como “o livro que o diabo tentou queimar” (São Paulo: Paulus).

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CRUZ, São Paulo da. Diário. São Paulo: Loyola, 2015.

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FEITOZA, Sarah Mendes; RAMOS, Jeannette Filomeno Pounchain. A educação escolar na Itália. Artigo apresentado na disciplina de Estrutura e Funcionamento do Ensino Fundamental e Médio, no curso de Letras, Universidade Estadual do Ceará, 2010.

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_____. La gloria de la cruz: autobiografía – Diario espiritual – Cartas – Éxtasis – Otros escritos. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002.

_____. Lettere di S. Gemma Galgani. Disposte ed Annotate per Cura dela Postulazione dei PP. ionisti. Prefazione di S. Em.za il Cardinal Ermenegildo Pellegrinetti. 3ª. Ed. Roma: Ristampa dell’edizione: 1941.

_____. O caderno dos meus pecados: autobiografia. São Paulo: Paulus, 2019.

GESUALDA DELLO SPIRITO SANTO, OCD. Santa Gema Galgani: La nueva flor del calvario. Bilbao: Pía Sociedad San Pablo, 1940.

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LIZARRAGA, C. El libro que cayó em poder del demonio y pasó por el infierno: semblanza de Santa Gema Galgani. Deusto-Bilbao: Ed. Pasionistas, 1953.

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NAZARENO, . Uma asiflora: S. Gemma Galgani. Génova-Pegli: Arti

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PAOLINO, . La piccola storia di S. Gemma narrata alle fanciulle. Bari: Ed. Paoline, 1950.

PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor. São Paulo: Paulinas, 2004.

SANTA TERESINHA. A história de uma alma. São Paulo: Paulus, 2018.

SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. São Paulo: Abril Cultural, 1977.

Coleção BIOGRAFIAS

• Oscar Romero e a comunhão dos santos, Scott Wright

• Padre Ibiapina, José Comblin

• Padre Cícero de Juazeiro, José Comblin

• João Paulo II: a biografia, Andréa Riccardi

• Padre Pio: os milagres desconhecidos do santo dos estigmas, José Maria Zavala

• Paulo de Tarso: um apóstolo para as nações, Pedro Lima Vasconcellos; Pedro Paulo Abreu Funari

• Papa João XXIII, Domenico Agasso Sr.; Domenico Agasso Jr.

• João Paulo II: santo já, Andrea Riccardi

• Josefina Bakhita: o coração nos martelava no peito – Diário de uma escrava que se tornou santa, Roberto Italo Zanini (org.)

• Santo Antônio de Pádua: por onde a, entusiasma, Domenico Agasso Jr.

• Padre Pio: o mistério do Deus próximo, Saverio Gaeta

• Madre Teresa: tudo começou na minha terra, Cristina Siccardi

• Paulo VI: o santo da modernidade, Domenico Agasso Jr.; Andrea Tornielli

• Santa Gemma Galgani: entre Deus e o diabo, Pe. José Carlos Pereira

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Pereira, José Carlos Santa Gemma Galgani [livro eletrônico]: entre Deus e o Diabo/José Carlos Pereira. - São Paulo: Paulus, 2020.

1,45 Mb (Coleção Biografias)

ISBN 978-65-5562-090-0 (e-book)

1. Galgani, Gemma, Santa, 1878-1903 - Biografia 2. Santas cristãs - História I. Título

CDD 922.22

20-2624

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Índices para catálogo sistemático: 1. Santas cristãs - Biografia

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INTRODUÇÃO

[1] GALGANI, Santa Gemma. Diário, 19/07. São Paulo: Paulus, 2017, p. 910.

[2] Ibidem, 20/07, p. 15.

[3] Ibidem, 17/08, p. 156.

[4] Ibidem, 30/08, p. 220.

[5] Dante Alighieri (1265-1321), autor de A divina comédia. Na primeira parte dessa obra, ele descreve o inferno e o diabo.

[6] GALGANI, Santa Gemma. Diário, 21/07, p. 24.

[7] Ibidem, 22/07, p. 31.

[8] Ibidem, 23/06, p. 36.

[9] Ibidem, 03/08, p. 97.

[10] Ibidem, 20/08, p. 167.

[11] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani. Campinas: Ecclesiae, 2014.

[12] GALGANI, Santa Gemma. Diário. São Paulo: Paulus, 2017.

[13] Idem. O caderno dos meus pecados: Autobiografia. São Paulo: Paulus, 2019.

I. A Igreja e a sociedade na época de Santa Gemma Galgani

[1] FEITOZA, Sarah Mendes; RAMOS, Jeannette Filomeno Pounchain. “A educação escolar na Itália.” Artigo apresentado na disciplina de Estrutura e Funcionamento do Ensino Fundamental e Médio, no curso de Letras, Universidade Estadual do Ceará, 2010.

II. A região onde nasceu e viveu Santa Gemma Galgani

[1] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 17.

[2] Ibidem, p. 297.

III. A família de Santa Gemma e outras famílias importantes em sua vida

[1] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: Exemplo sublime de amor. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 11-12.

[2] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 17.

[3] Ibidem, p. 21.

[4] Ibidem, p.18.

[5] “Posteriormente, nasce o último filho do casal, a quem, por sugestão de Gemma, é dado o nome de Gabriel” (PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: Exemplo sublime de amor. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 55).

[6] PIÉLAGOS, Pe. Fernando. Santa Gema Galgani: Exemplo sublime de amor, p. 49.

[7] Ibidem.

IV. A infância espiritual de Santa Gemma Galgani

[1] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: Exemplo sublime de amor, p. 10.

[2] SANTA TERESINHA. História de uma alma. 6ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2018.

[3] Ibidem.

[4] GALGANI, Santa Gemma. Diário, p. 153.

[5] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: Exemplo sublime de amor, p. 101.

[6] Ibidem, p. 11-12.

[7] Pio IX faleceu em 7 de fevereiro de 1878, 33 dias antes do nascimento de Gemma Galgani, e foi beatificado em 3 de setembro de 2000, pelo papa João Paulo II.

[8] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 18.

[9] Parte dos relatos de Hercília e Helena Vallini, proprietárias e professoras

da escola onde Gemma estudou dos dois aos cinco anos, em: ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 19.

[10] A benzilpenicilina, ou penicilina G, foi o primeiro antibiótico amplamente utilizado na medicina. A sua descoberta foi atribuída ao médico e bacteriologista escocês Alexander Fleming em ١٩٢٨, que, juntamente com os cientistas Ernst Boris Chain e Howard Walter Florey, criou um método para produzir em massa o medicamento.

[11] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 19.

[12] Ibidem, p. 21.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem, p. 22.

[18] Ibidem.

[19] Ibidem.

V. A vida na escola e a escola da vida: êxitos e percalços nos estudos de Santa Gemma Galgani

[1] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 18.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem, p. 19.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem, p. 26.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem, p. 33.

[15] Nerd é um conceito sociológico moderno, de origem norte-americana, relacionado à adolescência e à juventude. Em termos gerais, o nerd é uma pessoa vista como excessivamente intelectual, um tanto quanto obsessiva com assuntos pelos quais a maioria das pessoas não se interessa, com certa falta de habilidades sociais fora do seu meio.

[16] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 33.

[17] Ibidem.

[18] Ibidem.

[19] Ibidem.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem.

[23] Essa famosa sentença, do filósofo francês Jean-Paul Sartre, encontra-se no seu livro Entre quatro paredes, São Paulo: Abril Cultural, 1977. Essa é uma das poucas peças de teatro por ele produzidas. O inferno de Sartre é uma parábola da vida. Cada personagem vê no outro sua salvação. Mesmo precisando uns dos outros, não cedem. Na verdade, cada um tem prazer em desprezar os que mais precisam de ajuda.

VI. Santa Gemma Galgani e os sacramentos: desdobramentos de sua consagração religiosa

[1] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 17.

[2] A primeira e mais completa biografia de Santa Gemma foi escrita pelo seu diretor espiritual, o padre ionista Germano de Santo Estanislau, e quem pagou por sua primeira edição foi o Pe. Pedro Guilici, o pároco que batizou Gemma Galgani na paróquia de São Miguel no Fórum, em Camigliano. PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: Exemplo sublime de amor, p. 101.

[3] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 22.

[4] GALGANI, Santa Gemma. O caderno dos meus pecados: autobiografia. Nota de pé de página n. 5.

[5] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 23.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem.

[8] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: Exemplo sublime de amor, p. 18.

[9] Ibidem, p. 14.

[10] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 23.

[11] CHUET, Xavier. A joia das filhas de Maria: Gemma Galgani. Conferências. Bahia: Igreja de São Francisco, 1918, p. 14.

[12] Ibidem.

[13] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 27.

[14] PIÉLAGOS, Pe. Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor, p. 14; também ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 23.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 23.

[18] Ibidem, p. 31

[19] Ibidem, p. 26.

[20] Ibidem, p. 26-27.

[21] Ibidem, p. 27.

[22] Ibidem.

[23] Ibidem.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem, p. 27-28.

[26] Ibidem, p. 28.

[27] Ibidem.

[28] Ibidem.

[29] Ibidem.

[30] Ibidem, p. 29.

[31] Ibidem, p. 28.

[32] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor, p. 18.

[33] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 30.

[34] Ibidem.

[35] Ibidem, p. 31.

[36] Ibidem, p. 28.

[37] Ibidem.

[38] Ibidem.

[39] Ibidem.

[40] Ibidem.

[41] Ibidem.

VII. Santa Gemma Galgani na adolescência: perdas e ganhos

[1] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 21.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem, p. 24.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem, p. 25.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem, p. 30.

[16] Ibidem, p. 35.

[17] Ibidem.

[18] Ibidem, p.36.

[19] Ibidem.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem, p. 38.

[23] Ibidem.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem, p. 39.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem.

[28] Ibidem.

[29] Ibidem, p. 40.

[30] Ibidem.

[31] Ibidem.

[32] Ibidem, p. 49.

VIII. As debilidades e os sofrimentos de Santa Gemma Galgani

[1] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 48.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem, p. 48-49.

[11] Meirinho era o nome dado ao oficial de justiça. Os meirinhos tinham como função executar prisões, citações, penhoras e mandados judiciais.

[12] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 49.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor, p. 32.

[18] Ibidem.

[19] Ibidem.

[20] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 51.

[21] Ibidem, p. 51-52.

[22] Ibidem, p. 53.

[23] Ibidem.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem, p. 54.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem, p. 55.

[28] Ibidem.

IX. O irmão Heitor, a dispersão da família e o ressurgimento da mística Santa Gemma Galgani para o mundo

[1] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 140.

[2] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor, p. 32.

[3] Ibidem, p. 104.

[4] Ibidem, p. 105.

[5] Idem, p. 104.

[6] Ibidem, p. 105.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem, p. 30.

[13] Ibidem.

X. Santa Gemma Galgani e o seu anjo da guarda

[1] ARTOLA, Antônio Maria. “Introducción”. In: GALGANI, Santa Gemma. La gloria de la cruz: autobiografía – diario espiritual – cartas – éxtasis – otros escritos. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002, p. 13.

[2] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 200.

[3] ARTOLA, Antônio Maria. Op. Cit., p. 13

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 201.

[8] Ibidem, p. 202.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem, p. 103

[14] Ibidem.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem.

[18] Ibidem.

[19] Ibidem.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem.

[23] Ibidem.

[24] Ibidem, p. 204.

[25] Ibidem.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem.

[28] Ibidem, p. 205.

[29] Ibidem.

[30] Ibidem.

[31] Ibidem.

[32] Ibidem.

[33] Ibidem, p. 205-206.

[34] Ibidem, p. 206.

[35] Ibidem.

[36] Ibidem.

[37] Ibidem.

[38] Ibidem, p. 207.

[39] Ibidem.

[40] Ibidem.

[41] Ibidem.

[42] Ibidem, p. 208.

[43] Ibidem.

[44] Ibidem.

[45] GALGANI, Santa Gemma. Diário.

XI. Santa Gemma Galgani e a sua conexão com São Gabriel da Virgem Dolorosa

[1] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 55.

[2] Ibidem.

[3] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor, p. 36.

[4] Ibidem.

[5] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 55.

[6] GALGANI, Santa Gemma. O caderno dos meus pecados: autobiografia, p. 51.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem, p. 52.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem, p. 53.

[12] Ibidem.

[13] As Santas Missões Populares tomaram lugar na igreja metropolitana de São Martino, do dia 25 de junho ao dia 9 de julho de 1899, e foram conduzidas pelos padres ionistas. GALGANI, Santa Gemma. O caderno dos meus pecados: autobiografia, p. 83.

[14] Ibidem, p. 83-84.

[15] GALGANI, Santa Gemma. Diário, p. 32.

[16] Ibidem, p. 38.

[17] Ibidem, p. 113.

[18] Ibidem, p. 118.

[19] Ibidem.

[20] Ibidem, p. 119.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem, p. 173.

[23] Ibidem, p. 188.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem, p. 115.

XII. Santa Gemma Galgani e os seus contatos com Nossa Senhora das Dores

[1] GALGANI, Santa Gemma. Diário.

[2] Lettere di S. Gemma Galgani. Disposte ed Annotate per Cura dela Postulazione dei PP. ionisti. Prefazione di S. Em.za il Cardinal Ermenegildo Pellegrinetti. 3ª. Ristampa dell’edizione, Roma, 1941. Espistolário, 49, n. 3.

[3] GALGANI, Santa Gemma. Diário, p. 23.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem, p. 32.

[7] Ibidem, p. 74.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem, p. 91.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem, p. 103.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem, p. 103-104.

[17] Ibidem, p. 104.

[18] Ibidem.

[19] Ibidem.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem, p. 105.

[23] Ibidem.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem, p. 139.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem, p. 143.

[28] Ibidem, p. 148-149.

[29] Ibidem, p. 149.

[30] Ibidem.

[31] Ibidem, p. 194.

[32] Ibidem, p. 229.

[33] Ibidem.

[34] Ibidem, p. 229-230.

[35] Ibidem, p. 230.

[36] Ibidem.

[37] GALGANI, Gema. “Cartas”. In: La gloria de la cruz: autobiografía – diario espiritual – cartas – extasis – otros escritos, p. 98.

XIII. As experiências de Santa Gemma Galgani com Jesus

[1] GALGANI, Santa Gemma. Diário, p. 9.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor, p. 53-54.

[6] GALGANI, Santa Gemma. Diário, p. 9-10.

[7] Ibidem, p. 10.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem, p. 15.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem, p. 16.

[15] Ibidem, p. 61.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem.

[18] Ibidem, p. 61-62.

[19] Ibidem, p. 67.

[20] Ibidem, p. 81.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem.

[23] Ibidem, p. 82.

[24] Ibidem, p. 157.

[25] Ibidem, p. 157-158.

[26] Ibidem, p. 158.

[27] Ibidem.

[28] Ibidem.

[29] Ibidem.

[30] Ibidem, p. 187.

[31] Ibidem.

[32] Ibidem.

[33] Ibidem.

[34] Ibidem, p. 219.

[35] Ibidem, p. 219-220.

[36] Ibidem, p. 220.

[37] GALGANI, Santa Gemma. O caderno dos meus pecados: autobiografia, p. 58.

XIV. Santa Gemma Galgani e o diabo

[1] GALGANI, Santa Gemma. Diário, p. 23.

[2] Ibidem, p. 23-24.

[3] Ibidem, p. 24.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem, p. 31.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem, p. 37.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem.

[18] Ibidem, p. 37-38.

[19] Ibidem, p. 38.

[20] Ibidem, p. 97.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem.

[23] Ibidem, p. 97-98.

[24] Ibidem, p. 98.

[25] Ibidem.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem, p. 167.

[28] Ibidem.

[29] Ibidem.

[30] Ibidem.

[31] Ibidem.

[32] Ibidem, p. 168.

[33] Ibidem.

[34] Ibidem.

[35] Ibidem, p. 193.

[36] Ibidem.

[37] Ibidem.

[38] Ibidem.

[39] Ibidem.

[40] Ibidem, p. 194.

[41] GALGANI, Santa Gemma. “Aparición del demónio, que toma la figura del confessor”. In: La gloria de la cruz, p. 270-271.

[42] Ibidem, p. 101.

[43] Ibidem, p. 190.

[44] Ibidem.

XV. Os fenômenos paranormais de Santa Gemma Galgani

[1] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 249.

[2] GALGANI, Santa Gemma. La gloria de la cruz: autobiografía – diario espiritual – cartas – éxtasis – otros escritos, p. 257.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem, p. 263.

[7] Ibidem.

[8] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 247.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem, p. 248.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem, p. 249.

[13] Ibidem.

[14] Idem, p. 69.

[15] Ibidem, p. 71.

[16] Ibidem.

[17] GALGANI, Santa Gemma. Diário, p. 95.

[18] Ibidem, p. 131.

[19] Ibidem, p. 132.

[20] Ibidem, p. 147.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem, p. 148.

[23] Ibidem, p. 153.

[24] Ibidem, p. 163.

[25] Ibidem.

XVI. Os laços do diabo: pecados de uma santa

[1] GALGANI, Santa Gemma. O caderno dos meus pecados: autobiografia.

[2] Ibidem, p. 10.

[3] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 167.

[4] Ibidem.

[5] CRUZ, São Paulo da. Diário. São Paulo: Loyola, 2015.

[6] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 167.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem, p. 168.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] ARTOLA, Antonio María. “Introducción”. In: GALGANI, Santa Gemma. La gloria de la cruz, p. 27.

[15] Ibidem. Nota de pé de página.

[16] Ibidem.

[17] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 168.

[18] Ibidem, p. 168-169.

[19] Ibidem, p. 169.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem.

[23] Ibidem.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem, p. 170.

[26] Ibidem.

[27] ARTOLA, Antonio María. “Introducción.” In: GALGANI, Santa Gemma. La gloria de la cruz, p. 26.

[28] GALGANI, Santa Gemma. O caderno dos meus pecados: autobiografia, p. 13.

[29] Ibidem, p. 16.

[30] Ibidem, p. 17.

[31] Ibidem, p. 16.

[32] Ibidem, p. 18.

[33] Ibidem.

[34] Ibidem, p. 19.

[35] Ibidem, p. 20.

[36] Ibidem, p. 23.

[37] Ibidem.

[38] Ibidem, p. 24.

[39] Ibidem.

[40] Ibidem, p. 27.

[41] Ibidem.

[42] Ibidem, p. 28.

[43] Ibidem.

[44] Ibidem, p. 34.

[45] Ibidem, p. 35.

[46] Ibidem, p. 37.

[47] Ibidem.

[48] Ibidem, p. 38.

[49] Ibidem.

[50] Ibidem.

[51] Ibidem, p. 40.

[52] Ibidem.

[53] Ibidem.

[54] Ibidem, p. 40-41.

[55] Ibidem, p. 42.

[56] Ibidem, p. 43.

[57] Ibidem, p. 44.

[58] Ibidem.

[59] Ibidem.

[60] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor, p. 33.

[61] Ibidem.

[62] Ibidem, p. 34.

[63] GALGANI, Santa Gemma. O caderno dos meus pecados: autobiografia, p. 45.

[64] Ibidem, p. 48.

[65] Ibidem, p. 56.

[66] Ibidem, p. 58.

[67] Ibidem, p. 59.

[68] Ibidem, p. 62.

[69] Ibidem, p. 64.

[70] Ibidem, p. 67.

[71] Ibidem, p. 68.

[72] Ibidem, p. 74.

[73] Ibidem, p. 81.

[74] Ibidem, p. 90.

XVII. Santa Gemma Galgani e os desejos frustrados de se tornar freira

[1] GALGANI, Santa Gemma: O caderno dos meus pecados: autobiografia, p. 18.

[2] Ibidem, p. 60.

[3] Ibidem, p. 71.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem, p. 72.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem, p. 72-73.

[10] Ibidem, p. 73.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem, 75.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem, p. 76.

[16] Ibidem, p. 81.

[17] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 289.

[18] Ibidem.

[19] Ibidem.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem, p. 291.

[23] Ibidem.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem.

[28] Ibidem.

[29] Ibidem.

[30] Ibidem, p. 292.

[31] Ibidem.

[32] Ibidem.

[33] Ibidem.

XVIII. O sonho de Santa Gemma Galgani: um mosteiro ionista em Lucca

[1] Ibidem, p. 293.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem, p. 294.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem, p. 294-295.

[16] Ibidem, p. 295.

[17] Ibidem.

[18] Ibidem.

[19] Ibidem.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem, nota 8, p. 292.

[23] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor, p. 104.

[24] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 296.

[25] Ibidem, p. 297.

[26] Ibidem.

XIX. Os últimos dias e a morte de Santa Gemma Galgani

[1] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 299.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem, p. 300.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem, p. 301.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem, p. 302.

[14] Ibidem, p. 303.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem, p. 304.

[18] Ibidem.

[19] Ibidem, p. 305.

[20] Ibidem, p. 306.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem.

[23] Ibidem, p. 307.

[24] Ibidem, p. 307-308.

[25] Ibidem, p. 310.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem, p. 311.

[28] Ibidem.

[29] Ibidem.

[30] Ibidem, p. 312.

[31] Ibidem.

[32] Ibidem.

[33] Ibidem.

[34] Ibidem, p. 315.

[35] Ibidem.

[36] Ibidem.

[37] Ibidem, p. 316.

[38] Ibidem.

[39] Ibidem, p. 318.

[40] Ibidem.

[41] Ibidem, p. 319.

[42] Ibidem.

XX. O funeral de Santa Gemma Galgani e os seus primeiros indícios de santidade

[1] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem, p. 320.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem, p. 320.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem, p. 322.

[11] Ibidem.

[12] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor, p. 99.

[13] Ibidem.

XXI. O processo de canonização de Santa Gemma Galgani e seus obstáculos

[1] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 325.

[2] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor, p. 101.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem, p. 102.

[5] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 325.

[6] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: Exemplo sublime de amor, p. 102.

[7] Ibidem.

[8] ESTANISLAU, Germano de. Santa Gema Galgani, p. 325.

[9] PIÉLAGOS, Fernando. Santa Gema Galgani: exemplo sublime de amor, p. 102.

[10] ESTANISLAU, Germano de Santo. Santa Gema Galgani, p. 325.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem, p. 325-326.

[13] Ibidem, p. 326.