A Feiticeira De Santa Teresa 44b3y

João Damaceno

Nova Friburgo – RJ – Brasil. 1ª edição – 2020

FROSS

©2020 by Editora Fross. Edited and published by Editora Fross. Antonio Carlos Frossard ME CNPJ:32406462/0001-08 www.edfross.com Brasil, 2020.

Todos os direitos reservados à Editora Fross.

Proibido a reprodução, distribuição, cópia, reedição e revenda sem consenso da Editora Fross

Criação de capa e gravuras: Waldyr Neto e João Damaceno Desenhos e gravuras: Waldyr Neto Diagramação e coordenação editorial: Antonio Frossard

D154 DAMACENO, João. A Feiticeira de Santa Teresa. Nova Friburgo – RJ, Brasil, Editor

Para Mirella. Por todo amor, por estar sempre do meu lado e por ter me mantido vivo.

Para Lucíola. Pelos olhos negros, pela pele branca como a paz e por ter despertado em mim a vontade de começar a escrever.

Para o Moska. Por uma vida inteira, por me convencer a botar em palavras essa história.

Para o Mingau. Por sempre me receber com carinho e me ensinar que um gato pode ser legal.

Para um lugar chamado Santa Teresa. Pelas madrugadas de amor, prazer e calor. Pelas rezas, macumbas, tambores e ladeiras. Pela beleza, pela tristeza e por me mostrar que o céu e o inferno podem estar no mesmo lugar.

Pra ela. Por tanto ter me ensinado. Pelo bem, por todo o mal, pelos melhores beijos da terra, pela sublime vertigem do corpo dourado e por ter embarcado comigo nessa viagem.

Prefácio

Essa é uma história sobre o amor e seus desvios. Sufocada num abraço, num tempo e num espaço que não sou capaz de esquecer. Esse livro não é uma reclamação, pelo contrário, ele é quase uma oração pedindo por liberdade e pelo fim de tanta saudade: a palavra é minha resposta, minha confissão. Foi escrito inteiro em aviões, quartos de hotéis, palcos e camarins num velho iPhone seis. E também nas madrugadas insones onde eu tentava entender os caprichos do destino e os motivos do desejo. É uma história sem capítulos, foi vivida e escrita num só fôlego.

Na décima sétima noite do mês de maio, o outono deixava as árvores vermelhas e lentamente derramava as folhas num leve abandono sobre o chão. Em um camarim, eu esperava pela hora de mais um show começar, mas confesso que me sentia longe dali. Eu não estava naquele lugar. Meu corpo sim, mas meu pensamento não. Eu já tinha casado e descasado algumas vezes e já não tinha expectativas sobre o amor e a vida a dois. Eu não queria me envolver com ninguém. Depois da minha última separação eu vinha cultivando pequenos flertes e algumas paixões platônicas, mas sem levar nada muito à sério. Às vezes me encantava por um rosto bonito ou uma conversa rápida.

Nunca durava muito e nessa noite no camarim eu pensava num lindo par de olhos negros que me fizeram começar a escrever. Ela parecia diferente, com a pele branca como a paz e a espuma salgada do mar. Eu jamais tinha escrito rimas ou poemas... até o acaso do destino fazer esses olhos negros se abrirem nos meus numa noite escura na Barra da Tijuca, foi só olhar e querer provar. Sou um apaixonado por olhos.

Para mim tudo começa e termina na janela da alma. A dona dos olhos nunca me dava muita atenção, mas pelas palavras escritas eu fui chegando mais perto dela e sei que acabou tendo algum carinho por mim. Me respondia por educação, sem nunca estender a mão. E pra manter viva a inspiração que ela me dava, de presente eu escolhi adorá-la em silêncio, pra continuar a escrever. O silêncio não dá́ lugar à rejeição e eu escolhi gostar dela à distância, na solidão, porque a distância é um poderoso escudo contra a dor. Eu mandava meus beijos pelo vento, sabendo que o vento certamente seria tão macio e gentil como os meus lábios. E assim a guardei nos meus sonhos, onde a teria para sempre. Em segredo eu desejava seu beijo, mas como não há nada que não possa piorar ela começou a namorar um grande campeão de jiu-jitsu. Meus amigos me falavam que não seria nem um pouco saudável eu escrever poemas pra namorada de um lutador.

Cheguei a receber uma foto dele de quimono e com a faixa preta amarrada na cintura, mandada por ela (ou por ele) em resposta a um poema que enviei e que, por mais estranho que pareça, ela mesma tinha pedido. Hoje entendo que se ela me mandou a foto foi pra me proteger. Eu estava muito grato pela dona dos olhos negros ter feito eu começar a escrever, mas já era hora de acordar do sonho e esperar o que a vida tivesse pra me dar... esquecê-la de uma vez e deixar o tempo ar. Eu não precisei esperar nem por um minuto. Sempre tão desprevenida, a mágica da vida é a dos ponteiros do relógio, que num simples segundo mudam seu mundo. E naquele segundo a porta do camarim se abriu e o vento frio da Marina da Glória trouxe meu pensamento de volta. Um novo destino em forma de mulher entrou com mais quatro moças.

Chegava a ser covardia com as outras porque ela era muito, mas muito mais especial. Suas linhas perfeitas escondiam-lhe muito bem a idade. Senti que alguma coisa em mim tinha mudado, era como se o mundo tivesse parado de rodar, só pra eu olhar o que os meus olhos não conseguiam acreditar. Ela surgiu e o céu se abriu.

O camarim se transformou numa grande constelação, eram tantas estrelas que algumas brilhavam até mesmo pelo chão. Tive um arrepio na espinha e na primeira vez que vi seus olhos azuis meu coração despencou e se perdeu de mim. Num instante eu, que não estava ali, naquela altura já agradecia por estar. Olhei pra ela de um jeito que sei que ela me sentiu. Eu a desejei como um faminto deseja um prato de comida, como um doente deseja a vida. E com os olhos lhe dei boa noite.

Ela me sorriu com simpatia. Um sorriso doce e suave de aventureira, de quem se sente segura por saber que a vida é uma deliciosa aventura. Eu nunca tive uma cor preferida até ver os olhos dela, mas a partir desse momento o azul ou a ser sempre a minha cor escolhida. Seus olhos eram de um azul tão claro como só vi em fotos de anúncios de viagens pro mar do Caribe.

Eles eram caleidoscópios que através do reflexo da luz ofereciam a todo momento e em cada movimento, combinações variadas e agradáveis de se ver. Seus olhos, dois diamantes, eram de um calor contagiante. Ela usava colares finos e pulseiras de ouro, tinha um anel que se prendia ao pulso por uma pequena corrente. Era diferente de tudo que eu já tinha visto. O fogo e a malícia nos seus olhos me davam a certeza de que eu olhava para uma legítima filha dos raios. A mais bonita filha da manhã.

No dia seguinte, gastando o tempo esperando por um voo a trabalho, vi no Facebook uma foto dela. Até o momento eu nem sabia o seu nome, mas a encontrei. E lá na sua foto de perfil estava o olho, lindo, como um cartão postal enviado da Terra da Beleza. Palavras não servem pra expressar o que ela dizia pelo olhar e tudo que consegui pensar era como devia ser doce a vida no Mediterrâneo, pois era como eu via o azul dos seus olhos. Sem pensar duas vezes, no meu impulso mais puro adicionei o seu perfil e ela surpreendentemente me aceitou. Seu nome era diferente, originado no leste europeu e difícil de pronunciar: Halina. Não poderia ser de outro jeito porque não havia ninguém igual a ela. Halina era a alegria da chuva no quintal num dia quente de verão.

O tempo foi ando, fui vivendo e esquecendo sem nunca esquecer de verdade. Às vezes via uma foto dela e curtia. E ela também começou a curtir o que eu escrevia. Mais uma vez a magia das palavras me levavam até alguém. Um dia ela comentou um poema que postei e mandei uma mensagem dizendo que queria aprender a pronunciar seu nome. Halina explicou sua origem polonesa e conversamos um pouco. ou mais um tempo e ela me deixou outro comentário. Mandei mais uma mensagem e dessa vez ela me contou sobre seu pai, um músico famoso assim como o meu. Fui ouvir sua música e ele tinha uma afinação perfeita, era leve e pesado como um astronauta flutuando no espaço. O violino chorava e cantava na mão dele. A cada como sua emoção me fazia sonhar.

Era difícil imaginar que alguém pudesse tocar de um jeito tão bonito. Sua expressão de rosto completava o quadro e ele tocava com alma, força e coração.

Comecei a perceber que Halina era muito especial... ela era o ‘sal da terra’, como se costuma dizer. Comecei a escrever só pra chamar sua atenção e esperava ansioso pra ver se ela comentava. O tempo continuava ando e fui fazer um show no Circo Voador.

Sou engenheiro de som, com minha sensibilidade comando aquelas mesas cheias de botões pra equilibrar a música e a sonoridade que está sendo tocada pelos artistas nos estúdios e nos palcos. Ela comentou numa foto que queria ir ao show, mas infelizmente eu acabei levando outra pessoa. Era um trabalho que eu já fazia há muitos anos e deveria ser minha casa, mas por motivos alheios à minha vontade eu me sentia como se não fosse mais bem-vindo. Naquela noite ‘acertei a mão’ e levantei a lona do circo com meu som.

ados alguns dias escrevi e publiquei um texto meio revoltado pela maneira como me sentia no trabalho. No dia seguinte abri os olhos às sete da manhã e vi uma mensagem dela:

— Bom dia moço, estava inspirado, hein? Olhei a mensagem e voltei a dormir, feliz. Eu que nunca me lembro de sonhar, sonhei com ela. Um sonho leve e dourado, da cor do corpo dela. O tempo entre as nossas mensagens foi diminuindo e um dia mandei cinco perguntas:

1. Qual sua cor preferida?

2. Qual comida te faz salivar?

3. Pra qual lugar gostaria de viajar?

4. Qual seu ascendente?

5. Ainda sonha?

E o silêncio se fez presente por uma longa semana. Pousei em São Paulo e a caminho do hotel recebi sua resposta. Educada, pedia desculpas pela demora e respondia uma a uma as minhas perguntas. Ao terminar ainda me retribuiu:

— Agora você. Esperei minha volta pro Rio e quando respondi também as cinco perguntas ela escreveu que tinha muitas prioridades na vida, mas... “quem sabe num domingo nós poderíamos cozinhar juntos?” Finalmente estávamos nos aproximando.

Mais uma semana se ou e o domingo trouxe a primavera. Eu estava indo pra Curitiba mixar um disco e do aeroporto eu mandei pra ela uma mensagem:

— Hoje começa a primavera e eu quero te desejar tudo de lindo que ela nos traz: leveza, alegria, beleza e fortuna. Mas você não precisa desejar nada pra mim, porque pra mim você é a própria primavera. Em Curitiba trabalhei direto de nove da manhã às dez da noite. Chegava no hotel cansado e resistia à vontade de falar com ela antes de dormir. Tenho que itir que faço isso até hoje. Seria mentira se eu negasse que continuo querendo falar com ela antes de fechar os olhos e sonhar.

O tempo seguia em frente, determinado, o ano ava apressado. Eu voltava de um show em Belo Horizonte e quando abri o Instagram no aeroporto vi uma foto

dela de biquíni na praia, com o seu bumbum de ondas perfeitas pra cima. Eu ainda não conhecia esse ‘seu lado’ e depois foi impossível esquecer. Na foto ela usava um grande chapéu de palha e eu a provoquei com uma mensagem dizendo que tinha adorado o chapéu. Ela respondeu rindo de um jeito safado. Nosso jogo de sedução começava a dar resultado.

Outubro chegou trazendo a lua em câncer e o sol em libra, exatamente como nossos signos.

No segundo dia do mês eu viajaria pra fazer uma série de shows entre a Argentina e o Uruguai e na véspera da minha viagem era seu aniversário.

Cheguei em casa à noite e depois das dez mandei uma mensagem de parabéns. Halina respondeu quase de imediato. Começamos a trocar mensagens e não paramos mais. Falamos de nós, da vida, de sonhos e desejos. rimos muito e eu fiquei chocado com a torta de quatrocentos reais que ela tinha comprado pra festejar. Nunca tinha visto uma torta custar tão caro e fiquei maravilhado ao perceber como ela era fina. Na verdade, ela era mais que isso. Halina era (e ainda é) a clássica fantasia masculina. Atraente, engraçada, inteligente e um pouco doida. Tudo que atrai um homem entediado, mas apaixonado pela vida.

Quando nos demos conta já eram cinco da manhã, ela acordaria às sete e eu tinha que correr pro aeroporto. Entrei no avião e mesmo sem dormir eu era um estado puro de sorriso, meus pés flutuavam e a minha cabeça girava inebriada de euforia. Eu não era capaz de prever o mundo de alegria que me esperava.

Já em Buenos Aires, todos foram ear depois do almoço e eu fui comprar um chip pro meu celular. Estar sem internet naquele momento e naquele lugar era como o tormento de não ter ar pra respirar. Voltei pro hotel cansado e apaguei na cama. Acordei às nove da noite com alguém no telefone me dizendo que todos

da equipe iam sair pra jantar. Tomei um banho e me vesti rápido, mas quando eu estava saindo pela porta do quarto Halina me chamou pelo Whatsapp, perguntando se eu tinha chegado bem. Começamos a conversar e imediatamente esqueci das pessoas que me esperavam, esqueci de jantar e novamente, sem perceber, já eram cinco da manhã. Perguntei se ela nunca dormia.

— Quando eu morrer, eu durmo — foi a resposta.

O dia seguinte era dia de show. A pressão no trabalho prosseguia nos ombros, me dando vontade de desistir e sair dali. Mas fiz um bom show. Voltamos ao hotel e antes de sair pra jantar fui pro meu quarto e a chamei. Mais uma vez não fui comer, começamos a conversar por mensagens e ali já faltava muito pouco pra que um fosse do outro. Nessa noite fizemos amor pela primeira vez, apenas escrevendo e lendo. Nós não acreditávamos que depois de viver tanto poderíamos ficar tão excitados somente com a força das palavras. De novo deu cinco da manhã e às sete horas eu viajaria pra Córdoba. Já era a terceira noite seguida que não dormíamos.

Às sete horas em ponto uma van surrada e suja parou na porta do hotel. E parecia trazer dentro dela toda a poeira do planeta. Quase todos da equipe tinham voltado pro Brasil e ficamos apenas nós quatro: o artista, a produtora, o roadie e eu. A turnê era de seis shows seguidos, um em cada cidade, um por dia. Logo ao entrar na van minha alergia se manifestou com uma crise de espirros, mas nada era capaz de me abalar, eu era um estado bruto de felicidade. Partimos rumo à fronteira deixando pra trás a cidade de Bueiros Aires. Pegamos a ‘carretera’, como os portenhos chamam as estradas.

Todos dormiam. Eu tentei cochilar um pouco, mas foi impossível. Peguei meu telefone e nele escrevi o meu primeiro poema pra ela. A partir desse poema ela seria minha única musa e eu o seu poeta. Sua cor era o branco ou ‘branquinho”, como ela falava, e a minha o azul. Incluí no poema a palavra “Polonês” pra ela não ter dúvidas pra quem eu escrevia, já que o país corria em seu sangue. E

comecei assim:

Era de se esperar

Que eu e você fôssemos essa relação complementar

Essa leve mania de saber flutuar

Você começa onde eu termino

E vice-versa outra vez

Você é o Norte e eu o Sul

Você o branco, eu azul

Você o céu, eu aviãozinho de papel

Você é a letra e eu a música

Duas metades da canção

Que canto em forma de oração

Não sei se vem do holandês ou até do polonês

Esse meu português de outro planeta

Você é a Praia do Leblon, eu o Chicabon

Eu o sol, você verão

Mate gelado no calor do calçadão

Mas como um cego em frente ao mar

Eu tento imaginar como seria me afogar

No azul do seu olhar

Paramos pra almoçar em Belén de Escobar e de lá postei o poema em minha rede social. Seguimos viagem no “poeiramóvel” e chegamos em Córdoba. Começamos a montar o show e pedi um tapete pra forrar o palco. Alguém jogou um tapete velho e fedorento no chão e a poeira que subiu parecia a foto de uma explosão nuclear, me fazendo achar que toda poeira do universo ficava na Argentina. Todos ficaram chocados com a nuvem, mas eu ria sem parar, eu era só alegria.

Após o show jantamos no camarim e Halina apareceu no meu telefone rindo muito, me chamando de Chicabom. Perguntei se percebeu que o poema era pra ela.

— Eu não tive a menor dúvida, eu nos vi ali, ela escreveu. A partir desse ponto atravessei a Argentina inteira sem olhar mais pra frente. Comia, andava e me vestia com a cabeça pra baixo, escrevendo e falando com ela no telefone. As outras pessoas da equipe me puxavam, me levavam, me chamavam e eu só falava com ela. Pelo histórico do Whatsapp já havíamos trocado cinco mil mensagens. Voltei pro hotel e continuamos a conversar.

Nessa noite começamos a nos ver pela câmera. Eu adorava ficar olhando a sua boca enquanto ela falava. Nenhum batom no mundo tinha aquela cor, parecia que cada palavra era um beijo que ela me dava. E eu era capaz de sentir o sabor. Seus olhos? Eles riam pra mim. Riam pra mostrar sua beleza, pra me encantar e me fazer desejar o que eu nunca vi nem tão pouco vivi. Eu pensava e quase rezava, pedindo: me leve, me carregue dentro do bolso, no seu corpo e no seu coração, que com você eu vou saber ser leve, mais leve que o ar, vou até voar. Nessa mesma noite fizemos amor de novo, mas, dessa vez, nos vendo. Fazia uma linda noite em Córdoba e pela câmera eu via o brilho dos seus olhos, a beleza do seu corpo.

Pela janela vi o céu repleto de estrelas, parecia milhões de vagalumes piscando em órbita, dançando uma dança estelar. Eu não conseguia acreditar como ela

podia ser bem mais bonita que o céu todo estrelado. Ela era preciosa como um oásis no deserto ou uma joia de família, a ilha mais bela dos mares. Era linda como uma flor de trigo. Jamais me esquecerei daquele umbigo. Há pensamentos que são orações. Eu orava e pensava no que eu ia ter que fazer pra ela querer estar sempre comigo. Eu queria poder lhe dar os meus olhos pra ela ver o que eles viam quando olhavam em sua direção. A madrugada ia longe e já eram quase quatro horas da manhã quando dormimos sem desligar a câmera. Abrimos os olhos juntos às seis em ponto. Nos olhamos e ela murmurou:

— Você está aí! e sorriu emocionada, feliz de termos dormido juntos. E assim, nunca mais dormimos de outro jeito.

De novo o poeirão encostou na porta do hotel às sete da manhã e partimos pra Rosário. Eu e meu grande amigo roadie somos loucos por cachorro e a gente pegava tudo o que conseguia no café da manhã pra dividir com os vira-latas de rua em algum vilarejo ou numa parada qualquer. Temos por direito esse trunfo pro dia do julgamento final. Paramos em um posto e a van estacionou um pouco longe. Saímos apostando corrida, corremos sem parar. Meu patrão, que em vinte e três anos nunca tinha me visto correr, gritou:

— Tá doido? Você vai morrer, temos muitos shows pra fazer ainda! Eu me sentia leve, eu poderia flutuar só de lembrar dela. A cidade de Rosário tem sido por anos um lugar muito perigoso para as mulheres. A cada vinte minutos uma delas é atacada e isso fez com que me preocue com Halina. Nesse ponto eu já tinha mais carinho e cuidado por ela do que por mim mesmo. Já íamos pra quinta noite sem dormir e eu, que não sentia sono, comecei perder a fome. Eu me alimentava da lembrança dos seus olhos, do meu desejo incontido pelo seu corpo e pela sua voz. Fomos almoçar e ao lado do restaurante tinha uma loja com um labrador deitado preguiçosamente na soleira da porta. Lhe demos o nome de “Milanesa” e eu dividi com ele meu almoço.

Eu me sentia dez anos mais moço, forte, vivo. Eu sentia toda a sorte de estar

apaixonado. E sonhava acordado. Meus companheiros de viagem começavam a dar sinais de cansaço e de irritação por conta do excesso de trabalho e da falta de horas de sono. Ao contrário deles, eu era alegria e motivação, viajava com Halina do meu lado, dentro do meu coração. E isso era tudo que eu poderia desejar, isso me bastava. Eu tinha em mim todos os sonhos do mundo.

Era visível que vivíamos uma paixão impossível de ser negada, completamente assumida. Segundo o Google, “Paixão é um termo aplicado a um sentimento muito forte em relação a uma pessoa. É uma emoção intensa e convincente, um entusiasmo e um desejo sobre todas as coisas que envolvem o motivo dessa paixão. O termo também é aplicado com frequência pra determinar um vívido interesse ou iração por alguém”. E era exatamente assim que eu me sentia.

A Argentina nunca foi tão doce. Eu chegava pra trabalhar e não tinha nada no lugar, às vezes só dois alto-falantes castigados e uma velha e surrada mesa de som. Eu não queria nem saber... mudava tudo, desligava, ligava novamente e fazia o show acontecer. Tudo era possível soprando o vento leve da paixão.

Às quatro e meia da manhã deixei Halina dormindo, desliguei a câmara e fui para o aeroporto. Com o sol nascendo pegamos um avião pra Bahia Blanca, o lugar mais distante que já fui na Argentina, a caminho da Patagônia. Na sexta noite sem dormir o corpo já dava sinais de cansaço, mas por outro lado a alma e o coração voavam mais alto do que aquele pequeno avião que nos levava. Meus amigos começavam a surtar de viajar sem dormir, sem parar um dia sequer. Se o meu cansaço parecia invisível, já que a paixão me deixava mais novo a cada sol, o deles era claramente visível. Bahia Blanca foi talvez o auge da viagem em matéria de falta de condições, o show era nos fundos de um terreno numa pequena casinha.

Quase não tinha potência de som e vários cachorros entravam e saíam por onde queriam, até mesmo pelo palco. O almoço era na casa da frente e tudo era muito simples. Mais uma vez dividi minha comida com os cães. Nessa noite

compartilhei o quarto de hotel com meu amigo roadie e nos colocaram no último andar, que na verdade era um puxadinho no telhado. Subimos por uma escada torta e apertada carregando as malas e chegamos ao telhado pra atravessarmos um portão de ferro. Depois de dez minutos conseguimos abrir a porta do quarto com a chave que nos deram. Tínhamos três horas pra descansar. Meu amigo deitou e dormiu rápido.

Mas eu e ela, viciados um no outro, começamos a conversar. Não dormi e quando fui tomar banho, o banheiro estava inundado e alagou o quarto até a porta. Deixamos do jeito que estava e fomos pro show, mas ao tentar ar pelo portão de ferro ele simplesmente não abriu. Ficamos presos até que alguém veio nos salvar. Depois do show voltamos pro hotel e mais uma vez ei a noite com ela.

Tanta coisa pra dizer que a gente nem dormia. Dá saudade de lembrar. Conversávamos com sinceridade, com amizade E eu já não era capaz de negar nenhum desejo seu. Eu queria poder lhe dar os tesouros dos mares, o mapa dos pomares, a beleza dos luares e tudo o que ela pudesse pensar e desejar. De novo já era madrugada, deixei Halina dormindo e fui pro aeroporto.

A previsão era de chuva, relâmpagos, raios e trovões, mas o que eu sentia era que um sol inteiro queimava dentro do meu peito. E só quem viveu uma paixão é capaz de entender o efeito que isso causa. Entrei no avião a caminho de Buenos Aires, a lua ainda brilhava no céu e o sol começava a nascer. Eu sem dormir, só sentia aquilo tudo crescer. Escrevia pra ela palavras que eu nem sabia falar, histórias que eu não sabia contar. Fui inventando nosso jeito de amar. Eu já sentia falta dela e... sinto até hoje.

Chegamos em Buenos Aires e fomos para o primeiro hotel “De verdade” em muitos dias, mas os quartos só estariam disponíveis três horas depois e todos choraram pela pouca sorte. Eu tomei um café, me joguei num sofá no hall do hotel e a chamei. Começamos a conversar e as três horas aram sem sentir.

Subi pro quarto e ela ia tomar um banho pra almoçar na casa de uns amigos. Pedi pra vê-la tomando sua ducha e foi a primeira vez que a vi inteira sem roupa, sem medo. Inesquecível, indescritível.

A água quente caía do topo envolvendo seu corpo bronzeado. Seus pelos molhados, o bico do peito e seu corpo nu eram um colírio pros meus olhos cansados. Nada a vestia tão bem quanto estar nua e eu me sentia sua lua, irando, girando, rodando na órbita do seu umbigo ainda sem saber que seus seios doces em forma de maçã iam me fazer desejá-la a cada manhã, de chuva ou de sol. Halina se arrumou toda sem desligar a câmera, entrou no carro e me levou de carona até a Lagoa. Foi a primeira vez que vi sua filha.

Eu não sabia dizer tudo o que eu sentia por ela, mas antes mesmo de nos tocarmos começamos a dizer que nos amávamos. Quem conhece o amor antes do toque, antes do beijo, conhece um outro amor. Ela ou a me chamar de “Amor de vida” e o mais louco e inesperado disso tudo era que nunca havíamos estado juntos pessoalmente depois do primeiro dia naquele camarim

O contador do Whatsapp já marcava doze mil mensagens. Tudo alimentava o nosso amor, tão bonito que era capaz de modificar as estações. Nada era difícil, a felicidade era o nosso vício. Iansã, senhora dos ventos, soprava a nosso favor e a brisa leve do desejo tomava nosso corpo. Eu imaginava seu cheiro e seu beijo. E comecei a pedir que ela falasse seu nome em meu ouvido. Halina, Halina, Halina do João... nunca mais parei de pedir isso e toda vez que ela falava sua voz fazia qualquer coisa valer a pena.

Ela me pediu que eu fizesse uma lista de coisas para fazermos juntos e então escrevi:

Você me pediu uma lista do que faríamos juntos. São tantas vontades, tantos desejos que seria maldade não os realizar:

1. Te dar duzentos e cinquenta beijos antes da noite acabar.

2. Ver a hora voar com você num avião a caminho do Japão.

3. Cantar sua beleza pelos canais em Veneza.

4. Ser feliz comprando botas e perfume numa loja de Paris.

5. Pegar um barco para Bali e dali pra Salvador.

6. ar um dia de chuva num museu em Nova York.

7.Ver com você o sol nascer.

8. Te namorar na luz da lua e andar de mão dada pela rua.

9. Fazer amor na chuva, te dar prazer e enlouquecer.

10.Comer, rezar e amar até a gente se acabar.

11.ar um verão na Califórnia com dias de sol, noites de amor e poesia.

Mas quem tem pressa é o amanhã, que sempre insiste em chegar. Logo cedo de manhã eu via Buenos Aires despertar, ainda era primavera e o céu feito uma tela era como uma aquarela pintando as cores do amor sobre o Rio da Prata. Olhei pra câmera do meu celular e ela ainda sorria dormindo. Pensei em silêncio o quanto me fazia bem vê-la dormir, sentir sua calma pra sonhar.

Fui comer. Tinha sido mais uma noite que, além de não dormir, também não tinha jantado. Faltavam somente dois dias pra eu voltar e estar com ela de verdade. Era um domingo especial, dia de eleição pra presidente no Brasil. Entre nós, pelo cansaço deles e pela situação no nosso país, o clima era tenso. Mas não pra mim. Eu continuava leve com o combustível da paixão me empurrando pra frente. Aconteceu um pouco de tudo durante a apresentação, os equipamentos pareciam prever o luto político de boa parte da nação.

O show ia se arrastando em problemas e desânimos quando o microfone começou a dar defeito. Chamei pelo rádio, gritei e ninguém respondia. Com toda leveza de que era feita a minha alma nesse momento, fiz o que nunca faço: larguei a mesa de som e fui no palco. Resolvi sozinho o problema e voltei. Foi quando alguém gritou da plateia:

— Vai ter 2° turno! Isso gerou um alívio e um fôlego extra. A sorte mudou, o show mudou, os problemas acabaram e a música encheu o teatro. Tudo termina bem quando acaba bem. Fui pro camarim e Halina me chamou contando que o barracão do candomblé que ela frequentava estava em obras e que ela ajudava no que podia. Fomos conversando na medida do possível, mas tínhamos um

encontro marcado quando ela chegasse de volta em casa às duas da manhã. Nunca mais deixamos de nos falar de madrugada.

Mais uma noite dormindo somente duas horas, com a câmera ligada. Levantei e fui pro porto de Buenos Aires. Pegaríamos um “Ferryboat” pra atravessar o Rio da Prata rumo ao Uruguai. Continuamos a nos falar trocando mensagens, sentei pra esperar o barco e ela me pediu pra levar uns chocolates de presente. Mas notei que ela estava diferente, falava coisas sem sentido. Pela primeira vez em nove dias todo o estado de euforia que vivíamos baixou.

Senti um pouco de angústia, mas o barco partiu e a internet acabou. Ao chegar no hotel em Montevideo avisei que tinha chegado bem e ela mal respondeu. Saiu do trabalho, foi na rua, me ligou e falou por dez minutos coisas que eu simplesmente não conseguia entender. Ela reclamava de um jeito muito nervoso. Desligamos e eu finalmente dormi pelo resto do dia. Acordei, a lua já iluminava a cidade e o relógio do Palácio Salvo marcava nove da noite. Liguei pra Halina pra saber se estava tudo bem. Ela me respondeu que sim, que tudo já estava em paz. Saí pra jantar e na volta ela me chamou para apagarmos novamente com a câmera ligada às quatro da manhã.

Os músicos da banda chegaram do Brasil e tocamos essa noite num teatro luxuoso. Depois do show saímos pra festejar. Era a primeira vez nessa longa viagem que eu não saía do show direto pra ela. Fomos a um restaurante e o dono fechou a casa só pra nós. Bebemos, fumamos e ficamos felizes. Às duas em ponto voltei pro hotel e ela não custou a aparecer.

— Estou bêbado, feliz e a caminho de você. Falei.

— Você ainda está tão longe, vem logo!

— Toda distância nesse mundo é pouca pra te encontrar. E essa distância será nada quando eu chegar. Não importa a hora ou a demora, pois quanto mais tempo levar, mais violento virá. Eu estava no aeroporto esperando pelo voo de volta e falando com ela. Quando disse que queria ar o ano novo ao seu lado ela falou que no réveillon fazia questão de tomar um champanhe chamada Veuve Clicquot, que custava quinhentos reais. E que gostava bebê-la inteira sozinha.

Fiquei imaginando onde e como eu ia comprar um champanhe dessas. Depois de horas de câmera e de dezesseis mil mensagens, voltei pro Brasil. ei no freeshop e gastei todos os meus dólares em chocolates. Em São Paulo esperei duas horas pelo voo que me levaria pro Rio de Janeiro, pra casa e pra ela. Ligamos a câmera e amos essas duas horas de espera conversando e nos vendo. Tínhamos combinado que eu ia pra minha casa e de madrugada iria encontrá-la. Cheguei em casa às dez da noite e apaguei. Eu estava exausto, há dias eu sonhava às cegas sem dormir. Halina me chamou às quatro da manhã e falou que tinha tido um problema no barracão do candomblé, que estava muito cansada. Marcamos então nosso tão esperado encontro pro dia seguinte e novamente dormimos nos olhando, o que já era um hábito entre nós.

A quinta-feira amanheceu lenta e vagarosa, cada segundo demorava um minuto e cada minuto levava uma hora. Estávamos finalmente perto um do outro, na mesma cidade. Aquele era o nosso dia e eu estava louco que chegasse a nossa noite. Fui num shopping operar um som para um amigo que tocou apenas quatro músicas no lançamento de um filme. Ele estava se separando e eu começando uma nova relação. Halina me ligaria às duas da madrugada... mas era encantador demais pra ser real. Uma e vinte da manhã o telefone tocou e ela só falou duas palavras:

— Vai encarar? Respondi:

— Agora! E ela disse

— Vem! Em vinte minutos cheguei em Santa Teresa. Eu só pensava que tudo que eu queria naquele momento era me perder com ela, conhecer a sua língua e ouvir sua voz no meu ouvido. Sua casa era numa pequena rua sem saída. Sem perceber ei da entrada, desci do táxi e fiquei procurando o número. Uma porta se abriu e eu escutei:

— Hey, aqui. Olhei pra ela e com o coração tomado de assalto pisei firme sem contar os os em sua direção. Cheguei perto, mais perto e não falamos uma palavra, nenhum “Oi”, nem mesmo um “Boa noite”. Mirei sua boca e me atirei nela. Entramos na casa nos beijando e fomos aos beijos até o sofá, despencando nele com as bocas coladas e assim permanecemos. Tinha um velho relógio-cuco na parede e eu perdi a conta de quantas vezes ele cantou sem que a gente parasse de beijar. Sua boca era macia, suave e eu não sei dizer o que eu sentia. Sua língua dava voltas na minha boca como a lua em volta da terra. Ela me abraçava, me apertava, segurava minha mão com força e tesão. Meus olhos se enchem d'água ao escrever essas palavras, meu coração ainda se esparrama de tristeza pelo chão. Eu daria tudo na vida pra viver esse dia novamente, mas infelizmente as horas nunca andam para trás.

Nessa noite cumprimos o primeiro item da lista que escrevi pra ela: lhe dar duzentos e cinquenta beijos numa noite. Mas não era bem assim, parecia que era um só beijo, um beijo sem fim, o melhor que eu já beijei. Duas horas se aram em um único e demorado beijo. Ela sentou no meu colo, virada pra mim e enroscou os pés na minha perna. Embora toda a delícia e tontura causada pela loucura do beijo me fizesse fechar os olhos eu a enxergava com as mãos. Eu sentia Halina inteira colada no meu corpo. Seu perfume, seu gosto, sua pele, sua doce armadilha do amor.

Sempre desprezei as coisas mornas que não despertam nada, nem ódio ou paixão. Viver tem que ser perturbador. É preciso que os anjos e os demônios dentro de nós despertem nosso amor, nosso orgulho, nossa adoração ou até mesmo o nosso desprezo. O que não faz você se mover, suar, estremecer e desatinar não merece fazer parte da sua vida. E nós, definitivamente, não éramos mornos. Paramos o beijo um instante, nos olhamos, sorrimos em silêncio e só então nos cumprimentamos:

— Oi. Eu olhei para os seus olhos de perto pela primeira vez (ninguém tinha aquele olhar) e percebi que eles se dividiam em dois: a sombra e a luz do mundo. O azul do mar profundo, sem ele não haveria sol e vice-versa. E num instante eu já não sabia mais respirar. Ela tinha cores, curvas e sabores que não me deixam mentir, era impossível resistir. Halina me seduzia de um jeito tão inacreditável que era inevitável eu não me envolver mais e mais. Eu já me sentia pronto pra me afogar nas profundas águas do amor porque ela não era dessas mulheres que tanto fez, tanto faz, dessas de uma noite e nunca mais. Eu não me cansava de olhá-la e me perguntava como ela podia ser tão bonita.

Nenhuma palavra já dita ou escrita poderia expressar o que eu via no seu rosto. Seus olhos e lábios eram um privilégio de beleza. amos a nos beijar de olhos abertos e embora já não houvesse o que falar ela ava a sua boca em mim até me calar. Conversávamos pelo olhar. Eu queria ser um poeta só por um segundo

pra dizer de um jeito especial que eu era capaz de abraçá-la por todos os dias da vida, pra ela sentir o tamanho do amor que eu trazia pra lhe dar. E que, com todo carinho e devoção, eu me colocava em sua mão. Sua língua e sua saliva explodiam em minha boca em milhares de cores.

Cada vez que sua língua encostava na minha o meu corpo reagia de um jeito diferente. Jamais imaginei que um beijo pudesse ter tantos sabores. Eu a apertava forte, eu a beijava com alma, vida e paixão. Ela tremia e apertava com mais força a minha mão.

Não bebemos nada nessa noite, nem vinho, nem um simples copo d'água. Mas sentíamos o fôlego embriagado por tanto desejo, pela sensação do novo, pelo nosso beijo, por pisar o mesmo chão e finalmente estarmos juntos. E o efeito que nos causava fazia o coração acelerar.

Paramos pra respirar. Já nos beijávamos sem parar por duas horas e meia quando ela me chamou pra fumar um cigarro. Levantamos do sofá e fomos até piscina. Só nesse momento então eu percebi onde eu estava. Ela tinha uma casa adorável e eu, que não fumava desde dois mil e dez, dividi com ela um mentolado.

Da piscina as estrelas ficavam mais perto, e como elas brilhavam! Mas ao olhar para Halina percebi que as estrelas eram humilhadas pelo brilho do seu rosto. Era tão lindo ver o Rio de Janeiro dali, com tantas luzes brilhando ao longe. Dava pra ver o mundo inteiro, mas o meu mundo nesse instante era somente ela. Voltamos a nos beijar e levantei a sua saia, branca como a areia da praia... tirei sua calcinha de oncinha e fiz uma coisa que nunca mais deixamos de fazer. Dobrei e levantei a perna de um jeito que ela se enroscou e se encaixou como uma luva no meu joelho. E como uma cigana que dança com a cintura, ela dançava. Às vezes rápido, às vezes devagar. E às vezes bem mais devagar. E foi dançando, se esfregando. Ela me beijava e gemia, eu a segurava e puxava seu cabelo pela nuca sem parar de lhe beijar.

Halina estava solta, entregue. Ela deu um longo gemido, senti seu corpo inteiro tremer e desmontar nos meus braços. Então tive certeza de que a fiz gozar pela primeira vez. Continuamos a nos beijar, enroscados. Ela voltou a dançar e de novamente ouvi o longo gemido. Despencou seu corpo de novo e eu a segurei mais uma vez.

A gente não parava, não desgrudava, ela dançava, ela gemia e desmaiava mais e mais vezes nos meus braços. De novo, de novo e novamente, mais uma vez. Parecia que nunca era demais. E a madrugada foi ando entre sombras, sussurros, mãos, pernas, frios na espinha, sexo, vertigem e amor. Um sublime pecado. Tudo era motivo, tudo era misterioso, tudo era prazer. Uma infinidade de estrelas eram testemunhas da nossa intimidade que começava a crescer.

O dia amanheceu, era feriado e ele trouxe o sol. Voltamos pra sala, me prepararei pra ir embora e ela me chamou pra deitar um pouco. Tinha um futon em frente ao sofá. Deitamos e ela virou de costas, colada em mim encostando seu pé no meu, como se faz com quem se ama. Eu a abracei de conchinha e ela dormiu, mas eu não fui capaz.

Não havia razão nem tão pouco explicação pra tudo que vivemos naquela noite. Eu poderia pensar pelo resto dos meus dias que não bastaria. Não sei dizer porque em tão pouco tempo a gente tanto se queria.

Muitas vezes o que é inexplicável é simples ao coração. Naquele momento aquele era o melhor lugar para estar e eu já a amava mais do que a mim mesmo. Eu sabia que daquele instante em diante, da noite pro dia o meu coração já não me pertencia mais. E que ele havia dado um salto sem rede ou proteção. Finalmente tínhamos dormido juntos, sem câmeras, sem artifícios. Simplesmente aconteceu.

O sol já queimava e invadia a sala pela porta de vidro. Fechei os olhos alguns instantes e até cochilei. Halina acordou, virou-se de frente, me deu um beijinho e um “Bom dia”. Eu a abracei. Uma menina desceu as escadas, nos olhou e sentou-se no mesmo sofá onde amos a noite agarrados. Halina falou:

— Essa é minha filha. Olhei pra menina e de uma forma simples eu a vi de um jeito transparente. Ela era doce como um licor de figo, como um filme antigo, tinha um certo jeito “Noir”, era fácil de notar. E embora ela não saiba, nesse mesmo instante eu virei seu amigo para sempre. Halina me apresentou à filha como um poeta que escrevia coisas bonitas. A menina pediu um dinheiro pra pagar o táxi. Peguei minha carteira e lhe dei cem reais. Ela falou:

— É muito. E eu respondi:

— Faz um lanche e paga o táxi da volta também. A menina agradeceu e foi embora. Ficamos mais um tempo abraçados e Halina me falou sobre a casa, sobre as imagens dos santos. Haviam vários na sala. Olhei com atenção porque até o momento tudo que eu havia sentido naquela casa era seu toque e a sua presença.

Ela cheirava tão bem que eu imaginei que ela tomava banho com água mineral, sais e alguns cristais. Entre a sala e a cozinha tinha uma grade com roupas do candomblé e os ternos que o santo usava quando “Descia”. Levantei pra pegar uma água e dei de cara com um menino magro e comprido vestido só com uma cueca azul. Ele se assustou e quis voltar correndo. Eu falei:

— Oi... eu também uso cueca, tá tudo certo. Halina nos apresentou:

— Esse é o Fernando, meu filho. Ele não me deu muita bola, desceu pra lavanderia, se vestiu e saiu também. Então ela me chamou pra tomar um café:

— Vamos comer um pão de queijo? Eu nunca fui muito à Santa Teresa e jamais havia caminhado por lá. Ela pegou a cachorrinha mais louca que eu já tinha visto e saímos a pé. Nesse ponto da história vale lembrar que Halina tinha um metro e setenta e quatro e eu, um e sessenta e nove.

Cada o ligeiro dela valia quatro dos meus. Saí seguindo seu ritmo ladeira acima e antes da primeira esquina eu já estava com a língua de fora. O sol castigava forte e eu atrás dela. Chegamos a um lugar simpático cheio de turistas e pedimos o pão de queijo, dois cafés, um suco de laranja e uma paçoca. Sim, ela tomava café com paçoca. É difícil lembrar se alguma vez comi um pão de queijo como aquele, só sei que nunca mais comi pão de queijo em outro lugar. Sentamos e tomamos café de mãos dadas. A gente falava, a gente ria e sentia tudo que o amor escreveu, que ele escolheu ela e eu.

Voltamos pra casa e no caminho apareceu um cachorro de rua. Halina o conhecia:

— Esse é o Pirata, ele tenta cruzar com todas as cadelas do bairro. E como quem quer tudo, o Pirata chegou tentando se aproximar da cachorrinha dela. Halina lhe deu um chute com o calcanhar que por sorte não o atingiu. Eu não gostei daquilo, sempre pensei que alguém que chuta um animal é alguém que não sabe amar.

Mas a esse ponto eu já era capaz de mudar qualquer opinião, plano ou sonho que eu tivesse. O futuro que eu tinha no ado havia mudado e o meu destino

agora era ela. Senti que se o amor tivesse um nome com certeza seria o dela. Se ele tivesse uma cor, seria o branco dos seus desejos e sonhos. E que se eu fosse escolher um lugar pra ficar seria sempre onde eu pudesse me ver dentro do azul do seu olhar. Peguei minha bolsa pra ir pra casa e Halina falou que ia pro barracão:

— Quando eu acabar lá, te chamo e você volta. Me abraçou forte e eu fui embora, realizado e feliz. Eu ainda devia a mim mesmo alguns dias de sono e consegui dormir muito.

Às oito da noite ela me ligou dizendo que tinha sido mordida por uma aranha e que precisava de ajuda pra ir pro hospital. Eu iria até o inferno com ela. Fui pra esquina esperar Halina ar de carro pra me pegar. Cada minuto demorava muito mais que sessenta segundos. Quando ela chegou seguimos pra um hospital na Barra da Tijuca. Paramos o carro na porta da emergência e preenchemos uma ficha na recepção. Ao chegarmos, o enfermeiro a viu vestida de baiana e disse:

— Já sei, foi aranha no barracão. Nós rimos e confirmamos. Ele a deitou numa maca separada dos outros doentes, pegou sua veia e a colocou no soro. A emergência estava cheia, com muitos doentes, alguns em estado grave e todos rezavam e pediam por dias de saúde. Procurei ser o mais simples e simpático possível pra que não me pedissem pra sair. Arrumei uma dessas cadeiras brancas de ferro que tem nos hospitais. Eu não faria justiça à cadeira se dissesse que ela era gelada, porque na verdade ela parecia estar congelada. Juntei a cadeira perto da maca e a olhei profundamente.

Seus olhos me fizeram achar a emergência de um hospital público o melhor lugar do mundo. Fui na enfermaria e pedi um lençol limpo, voltei e cobri de forma delicada seu corpo. Tirei meu casaco, ele era cheio de estrelas. Levantei com todo cuidado sua cabeça e fiz dele seu céu, seu travesseiro. Quando fiz um carinho em sua face ela falou que não gostava que mexessem no seu rosto, mas que comigo era diferente.

Continuei o carinho, acrescentei um cafuné e aquela mulher que nunca dormia finalmente dormiu. Levantei e fui olhar o carro porque as pessoas me disseram que ele seria multado onde o deixei. Estacionei num lugar mais seguro e confirmei pelo menos cinco vezes se eu tinha trancado a porta direito. Eu não queria que nada desse errado porque o carro estava lotado de coisas do candomblé. Colares, miçangas, feitiços e artimanhas. Roupas, ternos e o chapéu do santo.

O carro era o próprio “Macumbamóvel”. Voltando pro hospital recebi uma mensagem que somente dizia:

— Amor??? Entrei correndo na emergência e ela já estava acordada. Meu olhar cruzou com o dela e Halina me sorriu com um sorriso que mandava mil sinais. Eu já não sabia como era possível a querer mais do que eu já queria. Nos beijamos como se a emergência do hospital fosse a sala da sua casa.

Ela dormiu de novo e eu fiquei ao seu lado morrendo de frio, mas nem por um momento pensei em pegar meu casaco de volta. Tudo que eu havia comido era o pão de queijo do café da manhã. Saí e encontrei a cantina aberta, mas não havia ninguém dentro. Andei pelo hospital como um detetive e quinze minutos depois achei a moça da cantina.

Comi qualquer coisa e comprei uma empada de leite condensado, que eu já sabia que ela adorava. Também comprei uma água e alguns chocolates que ela amava. Voltei pra emergência e ela ainda dormia. Pedi uma gaze pra molhar e ar em seus lábios pra que eles não ficassem ressecados. Eu tremia de frio. Halina acordou, lhe dei água e lhe ofereci a empada, mas ela não quis. Abri o chocolate e fui colocando pedacinho por pedacinho em sua boca.

Ela comeu um por um e começamos a nos beijar de novo. Botei minha mão por dentro do lençol, segurei no seu corpo e parei de sentir frio. Suspiramos e sussurramos quando ela deu um gemido alto que nos fez parar e rir. Nesse momento entraram três policiais com um bandido algemado à maca. Ele tinha tomado um tiro. Halina se assustou e eu segurei sua mão tentando lhe dar segurança. Levaram o bandido pra outro lugar e ela dormiu novamente. Procurei de novo pela moça da cantina por quase meia hora e tomei outro café, comprei mais água, chocolates, peguei mais gaze e continuei ando em seus lábios. Já era sábado de manhã quando lhe deram alta. Tiraram o soro, ela acordou, comeu mais chocolate e sentou na maca. Sentei do seu lado e tiramos uma foto com cara de acabados, mas inundados de felicidade até a alma. Eu começava a achar que a vida podia ser leve e feliz como um eio de bicicleta pelo litoral numa ensolarada manhã de natal.

Quando saímos ela estranhou que o carro não estava no lugar que deixamos, mas felizmente estava tudo em ordem. Saímos com muita fome do hospital e paramos num Mac Donald. Halina comprou nosso lanche e entramos no carro. Já eram dez da manhã e ela tinha que ir pro barracão. Engolimos os sanduíches bem rápido e ela me surpreendeu:

— Você não vai me pedir em namoro?

— Eu estava esperando pelo melhor momento. Respondi sorrindo.

— Como assim?

— Quando eu lhe pedir em namoro não haverá como voltar atrás. Eu jamais vou sair com outra pessoa novamente e não vou amar mais ninguém em toda minha

vida. Não me importarei com mais nada que não seja você pelo resto dos meus dias. Eu vou te amar nos dias ímpares da semana e nos pares também. Meu destino vai se transformar em “fazer você feliz”. Eu quero ter a certeza que estou fazendo tudo certo. Se for pra ser, que seja um amor de verdade, sem saudade, um amor que contamine as pessoas e a cidade.

— Você está fazendo mais do que certo.

— Você quer namorar comigo?

— Acho bom, né?

Sua resposta virou desejo, virou vontade. Ela botou a mão entre as minhas pernas, apertou forte e começou a gemer. Eu fechei os olhos e seguimos assim pelo caminho. Halina me deixou em casa e, como sempre, tínhamos nosso encontro marcado de madrugada depois da macumba.

O sábado ou voando e às três da manhã Halina ainda não havia aparecido. Comecei a ficar preocupado, mas às quatro horas ela mandou a mensagem:

— Vem pra cá! Já amanhecia e eu com o coração batendo forte cheguei trazendo o sol. Ela me levou pro seu quarto sorrindo, fechou as persianas, ligou o ar condicionado e começamos a conversar. Me disse que eu deveria ir no barracão fazer uma limpeza na alma e que seria melhor só fazermos amor depois disso. Concordei e começamos a nos beijar novamente, parecia que havíamos nascidos pra isso. O beijo encaixava, nossas línguas dançavam como cometas percorrendo o céu da boca. A gente beijava, beijava e beijava. Um duelo de línguas que só descansavam com as duas bocas se mordendo.

Minha mão viajava em seu corpo, eu fechava os olhos e sonhava acordado. Tirei sua roupa, olhei pra ela e sua beleza invadiu os meus olhos sem pedir licença. Naquele momento pude decorar seu corpo inteiro. Me lembro até hoje de cada pedaço, de cada curva, de cada detalhe do seu corpo despido. Ela mexia com cada um dos meus sentidos, seu perfume era um escândalo de sândalo que confundia meu olfato com centenas de cheiros que se misturavam num só. O gosto do seu corpo adoçava a minha boca. Beijá-la nua era como a alegria de ver o mar pela primeira vez. Cada toque meu na seda da sua pele me deixava arrepiado como só um veludo sabe fazer e a sua voz sussurrando em meu ouvido me dava a certeza de que eu nunca tinha ouvido uma música tão bela como aquela.

Tudo que combinamos de esperar pela “Limpeza da alma” foi esquecido e sem pensar que existiam preservativos ela subiu em cima de mim como se eu fosse um tapete mágico voador. A gente voava sem lembrar de aterrissar. Ela se mexia me possuindo em silêncio e tomava conta de mim. Me lambia, me mordia a boca, me mostrava sua força e suas cores, me cobria e fazia o sol deitar. Eu não conseguia acreditar... em todas as vidas que vivi nunca tinha sentido nada parecido. Ela segurou minha mão e falou baixinho:

— Sente, só sente. Encostou sua boca no meu ouvido e sussurrou seu nome como eu havia pedido:

— Sou Halina, Halina do João. Eu ia sendo marcado pelo o que tocava a minha pele e pelo o que meu ouvido escutava, sentindo todo o sentido que existe num amor intenso e verdadeiro. Eu pensava baixinho e respondia em seu ouvido:

— Quero você, quero esse prazer de estar apaixonado por você.

O domingo é benevolente, não tem a maldade e a malícia do sábado. Mas ela e Santa Teresa me ensinaram que os domingos podem e devem ser maravilhosos e sedutores e repletos de paixão. Eu não tinha a vaga lembrança da última vez que tinha feito amor, ou até mesmo se já tinha feito. Sexo com amor é como voar de primeira classe, um privilégio que não é pra todos. Até encontrá-la eu saía com outras mulheres e me divertia por uns dias, mas nenhuma delas me dava vontade de ficar. Na maioria das vezes eu nem chegava a transar, sempre achei e continuo achando que isso só se faz amando, por isso chamamos de “Fazer amor”. E era exatamente isso que fazíamos: amor. Minha certeza se deve ao fato de que toda vez que nos amávamos, suavemente ou de forma selvagem, toda vez que nos beijávamos, fazíamos isso de mãos dadas, entrelaçadas. E quem já viveu, aprendeu: somente o amor faz isso. Falei isso pra ela, que me beijou e disse:

— Vamos treinando que já está muito bom. A partir daí ela começou a me ensinar sobre o desejo, sobre o amor e sobre a vida. O cuco da sala não parava de cantar enquanto a gente dormia, acordava e namorava. E entre a preguiça e a malícia o nosso dia era um moto-contínuo de prazer e amor. Nessa manhã me viciei em beijar seu corpo. E entre corpos juntos e mãos dadas senti o sabor e entendi o verdadeiro sentido do que quer dizer “Lábios de mel”.

Agradeci por eu ter uma boca pra prová-la, mãos para tocá-la e taras pra mordêla. Com entrega, liberdade e tanta intimidade a gente se dava bem de verdade. Eram beijos que não acabavam mais. Ela se abria e me deixava olhar, me puxando pra dentro bem devagar. Eu a fazia gemer até o céu escurecer e juntos fazíamos a casa toda estremecer. Perdíamos a conta do tempo e do espaço. Halina segurava minha cabeça puxando meus cabelos e me apertava muito. Às vezes ela gritava mais alto:

— FICA! e me prendia com as pernas, apertando mais a minha mão. Eu quase não conseguia respirar, mas morreria feliz sem freio ou direção entre suas pernas a caminho do seu coração. Ela foi dando seus gemidos, tremendo e desmaiando nos meus braços. Sem fôlego, sem ar pra respirar e com o corpo todo tremendo, Halina batia forte no colchão me pedindo pra parar. De brincadeira começamos a contar esses longos gemidos e no final do fim de semana contabilizamos mais de quarenta. Procurando algum defeito nela eu me perguntava de que paraíso ela vinha, porque ninguém poderia ser assim tão perfeita. Eu não entendia como ela fazia pra ser tão linda... e ainda não entendo.

Levantamos pra comer e em vinte minutos ela fez um macarrão com frutos do mar quase tão delicioso quanto o gosto do seu corpo. O cheiro, o sabor, o tempero e a leveza eram de sorrir agradecido. Com toda paciência ela me ensinou o jeito certo de comer macarrão. Costumava falar que uma das coisas que mais gostava em mim é que eu não tinha vergonha de aprender. E disse que ensinou a todos os homens que aram em sua vida a serem “Homens de verdade”, mas depois que aprendiam eles iam embora. Ela sentia como se os treinasse para as outras mulheres. E me olhando com os olhos embaçados de tristeza, confessou dizendo:

— Você aprende muito rápido e isso é uma pena. Conversamos por um tempo e fomos deitar. De novo fizemos amor e dormimos.

Às sete da manhã eu acordei com ela dando um berro:

— FÊEEEE!!! Era como chamava seu filho no andar de cima pra ir pra escola. Tomei um susto tão grande que pulei da cama pra dentro da calça e desci pra esperar. Ela gritava, ele gritava e em quinze minutos já estávamos no trânsito levando o menino no colégio. “Fê” desceu do carro apressado na porta da escola e nós seguimos nosso caminho. Ela era a própria Penélope Charmosa ao volante, guiava como nunca vi uma mulher dirigindo. Gostosa como um frumelo e com seu batom rosa encarnado, a cada curva ela me deixava mais e mais apaixonado.

Sabia ser agressiva, aproveitando os espaços pra fugir do trânsito. Não usava cinto de segurança, dizia que não gostava de nada que a prendesse. E gritava:

— EHH Babá! Mi motumbá! não me segura, não me prende, que nem cinto eu uso! O alarme ficava sempre apitando e eu ei a prender o meu próprio cinto no encaixe do cinto dela pra calar a boca dele. Depois de deixar o filho na escola, Halina me perguntou se eu ainda tinha tempo pra subir com ela novamente e tomar um café com calma.

— Eu troco todos os desejos que eu já tive e terei por um beijo seu. Onde você for, me leve com você. Essa era sempre minha resposta aos seus convites. Ela me deu a mão e foi guiando e ando as marchas só com a outra mão. Tomamos o café e em seguida fiquei vendo Halina tomar banho.

— Você não tem vergonha de mim? Ela me respondeu:

— Não, nunca tive.

Fui pra casa e tentei viver como eu estava acostumado, mas eu não me pertencia mais, eu já era completamente dela. Tudo que nos aconteceu nos últimos quatro dias me reacendeu pra vida. Antes eu vivia em paz... mas pra quê paz? Agora tudo era diferente. Na certeza daquela correnteza eu me sentia um rio, um fio d'água desaguando nela sem desvios ou obstáculos.

E fui me jogando sem cuidado, completamente desgovernado. Ela me escrevia dizendo que estava sentindo o meu cheiro e o seu gosto não saia da minha boca. Não existia antes nem depois, só o agora e nós dois. Eu estava apaixonado por ela e pelo amor que eu sentia. E começava a perceber para que serve o amor e o que ele faz. Acordei no dia seguinte e escrevi um poema de uma só vez. Halina o adorou e pela primeira (e única) vez postou em seu perfil e me marcou. Nunca mais fez isso novamente.

Amor.

Onde é o começo? Onde é o fim?

Onde é bom? Onde é ruim?

Sentir algo que não tem sentido.

Amor de mocinho, Amor de bandido,

Amor de novela, Amor e suas mazelas.

Amor que é surpresa, que divide a sobremesa.

Amor pra plantar, Amor pra colher.

Amor pra viver, que vale a pena morrer.

Uma vida inteira cabe num beijo.

Amor, futuro incerto e risco certo.

Quem nunca sonhou em fugir?

Quem nunca quis mentir?

Quem nunca teve um bem?

Quem nunca ficou sem?

Amor quando é bom, logo no início

Amor que te leva pro hospício

Amor de verão, de dia de chuva

Amor que te para um instante, que te leva adiante

Amor que dá tontura, que te leva à loucura.

O calor da tua presença, o frio da sua ausência.

O amor que não tem idade, que te mata de saudade.

Dormi na minha casa com a câmera ligada por dois dias. No terceiro dia ela me ligou de madrugada e fui correndo encontrá-la. De manhã sempre a mesma coisa:

— Fêeeeee! De novo o susto me lançou pra dentro da calça. Com o tempo eu aprendi a pular com as duas pernas de uma vez só. Na sexta feira fui pra casa dela novamente e só fui embora na segunda. Sábado saímos pra jantar e com certeza essa foi a vez em que a vi mais linda. Ela era como um rubi. Eu não sei se alguém acredita em mágica, mas era assim que me parecia, era assim que eu sentia. Ela, a casa, seus filhos e Santa Teresa eram a mais pura e verdadeira magia. Às vezes eu chegava tarde da noite pra esperar ela voltar do barracão e antes de entrar eu olhava pra chave. Aquela chave abria a porta do céu para mim. Eu acendia um cigarro e olhando as estrelas ficava namorando a casa, seu portão, sua entrada. E agradecia por poder estar ali, por poder viver aquele

sonho, aquela mágica. Cada vez que eu a olhava nos olhos eu me perdia mais um pouco.

Ela me beijava, me elogiava e me chamava de “Meu amor”. Halina dizia que eu era um homem de verdade e que perto de mim todos com quem ela havia se relacionado eram homens pela metade. Com beleza e sedução ela ia tecendo sua perfeita teia do amor e ia me envolvendo até ter o meu coração em sua mão. Eu procuro por ele até hoje.

Compramos um vinho no caminho de casa e fomos pra piscina. A lua brilhava gigante no céu e ela me fez prometer que sempre que olhássemos a lua lembraríamos um do outro. Era fácil abrir a boca e elogiá-la:

— A lua não tem luz própria, quase ninguém sabe disso. Não sei o que seria dela se você não desse o brilho a ela. Pense: lua é a mesma no mundo todo e combinamos que onde quer que estivéssemos, sem importar a distância, o tempo e o lugar, se por um segundo olhássemos a lua ao mesmo instante, nesse momento então estaríamos juntos. Nessa noite ela me ensinou a brindar o seu brinde sensual. Tenho receio de nunca mais ver graça num brinde novamente. Ela ergueu a taça, me olhou dentro dos olhos, brindou e me beijou. Sempre brindávamos assim. A noite era um mar de estrelas, milhares delas brilhavam fazendo um desenho no céu. Mas entre todas, bem mais ao norte, tinha uma diferente, a maior e mais brilhante. Ela aparecia enquanto ainda era dia e mesmo quando o sol saía ela ainda continuava brilhando, oferecendo sua solitária luz.

Apontei e falei:

— Você está vendo aquela estrela? A maior de todas? Assim é o meu amor por você. Ele é diferente, ele é o maior e o mais bonito. E como essa estrela, ele vai sempre permanecer vivo, aceso e intenso, fácil de você encontrar e enxergar.

Algum tempo depois, conversando com uma amiga astróloga, contei essa história e ela me falou que a estrela gigante com sua luz brilhante na verdade não era uma estrela e sim o planeta Vênus ou Ishtar. E realmente não poderia ser diferente. Vênus, a deusa do amor e da beleza, a estrela da manhã. Exatamente como Halina.

Como sempre, nós não parávamos de nos beijar. Encostei Halina na parede de um jeito firme e segurei sua mão. Senti que a lua tinha mudado de lugar, fazendo o céu escurecer só pra nos deixar a sós. Me encostei no seu corpo e fiquei bem pertinho sentindo seu hálito, respirando o mesmo ar. Ela, louca de desejo, começou a gemer de um jeito diferente e mexendo lentamente, num ritmo envolvente fazia o chão rodar. Eu só a olhava nos olhos, apertava a sua mão e oferecia o meu perfume.

Ela deu seu longo gemido e se desfez nos meus braços. Eu a segurei, ela abriu os olhos e de novo gemeu e desmontou. Na primeira vez que ficamos juntos ela falou que um dia eu ia fazê-la gozar só com o olhar. Ela estava certa. Subimos para o quarto e tirei sua roupa.

A lua, com sua luz dourada, banhou a escuridão iluminando seu corpo, me deixando vê-la. Como ela era bonita, meu Deus! Como eu amava vê-la nua. Não tínhamos regras, nada era proibido. Tudo era perfeito, só tínhamos um compromisso: não gritar, porque seus filhos dormiam no quarto ao lado. Mas isso era quase impossível. Ela, pra tentar não gritar, mordia a fronha e o travesseiro.

No dia seguinte me levou pra conhecer alguns de seus amigos. Estava tudo bem, nossos corações batiam na mesma sintonia. Quando chegamos na porta da casa, antes de entrar ela me disse da maneira mais normal do mundo:

— Por favor, se comporte, cuidado com o que fala! Mas como viver sem falar o que pensa? Eu sou o que sou. Lembrei de minha mãe quando eu era criança e ainda usava calça curta. Sem entender direito, lhe perguntei se não era melhor ela esperar eu fazer algo de errado ou eu dizer algo que não fosse apropriado antes de ser censurado. Halina falou que era pra eu obedecer e antes que eu argumentasse a porta da casa se abriu. Entramos e eu fiquei com isso engasgado na garganta. Tentei ser eu mesmo do jeito mais natural possível e todos pareceram gostar de mim. Voltamos pra casa dela e no dia seguinte às sete da manhã:

— Fêeeeeee!

Halina havia me falado que eu devia ir no barracão jogar uns búzios com seu pai de santo. Liguei e marquei pra quarta-feira. E ao jogar os búzios ele falou algumas coisas sobre a minha vida e que eu precisava fazer um trabalho pra abrir os meus caminhos. Eu disse que sofria de diabetes, que estava apaixonado e queria fazer amor melhor, porque dependendo da minha glicose às vezes era fácil e outras nem tanto. Então o pai de santo me falou que eu deveria voltar no sábado, quando ele faria uma “Garrafada” e o tal trabalho pra me ajudar. Me cobrou quinhentos reais e me deu uma lista de coisas pra comprar. Saí do barracão e fui direto pra casa dela. Sua filha abriu a porta e fiquei esperando Halina chegar do barracão de madrugada.

Na sexta-feira a convidei pra ver um show e fui encontrá-la em seu trabalho. São Pedro havia aberto as torneiras do céu sobre o Leblon. Saí do metrô e não a encontrava. Liguei e comentei que estava todo molhado. Fui em sua direção, entrei no carro e antes de me dar boa noite ela começou a resmungar, falou que eu estava reclamando de ter pego chuva, que eu isso, eu aquilo e não parou mais. Exatamente como fez naquele dia estranho quando eu estava no Uruguai. Comecei a desconfiar que ela tinha isso de quinze em quinze dias. Paramos na frente do local do show e ela me falou pra eu ir sozinho, que tinha perdido a vontade. Respondi que já tinha trabalhado em mais de dois mil shows e que não estava nem aí pra aquele, que eu só queria estar com ela. Ela continuou falando e

me acusando:

— Vamos pra casa então, mas fica quieto, fica invisível! Foi a primeira de muitas vezes que Halina me falou isso. Mas o amor é soberano e conserta cada engano. Fomos pra casa e eu procurei ficar quieto. Dormimos abraçados, enroscados, impossível saber onde acabava seu corpo e começava o meu.

Recebi uma lista do pai de santo com coisas pro trabalho e pra tal da garrafada. Halina acordou em paz e fomos pro mercadão de Madureira. Nunca mais quero voltar nesse lugar. Ela tinha que comprar várias coisas pra macumba e eu com a minha lista. Procurei todos os itens e comprei tudo. Paguei e ele fez o ‘trabalho’, mas nunca vi a garrafada... gastei meu dinheiro e levei um banho do pai de santo. Halina me disse que se ele não fez é porque não precisou. No mercado ela tinha muitas coisas pra comprar e eu saí atrás quase em procissão.

Com seus os largos ela ia na frente e eu tentava segui-la carregando tudo. Fui ficando enjoado com o cheiro de gordura, sementes e defumadores. Uma hora ela entrou numa loja de animais e comprou nove galinhas vivas. Botaram as bichinhas numa caixa e quando Halina perguntou sobre a cabra que tinha na loja eu pensei: “se ela comprar uma cabra eu jogo a toalha”. Fui carregando as galinhas e perguntei se iam matar as bichinhas.

— Melhor elas morrerem do que você, foi a resposta que escutei. Seu carro não poderia estar mais ‘macumbamóvel’ possível.

Voltamos pra casa com as galinhas no meio das minhas pernas, eu sentia pena delas. Em cima do do carro ficou o chapéu do Seu Zé Malandro da Estrada, que era o santo que baixava no seu pai de santo. A cada curva o chapéu dançava, se mexia e voava. Eu o pegava no ar, botava no e na próxima curva acontecia tudo novamente. Ela foi antes pro barracão e eu iria às seis da tarde pra fazer o trabalho. Eu nunca tinha escrito uma carta de amor e disse a ela que lhe escreveria uma. Esperando pela minha hora de sair, escrevi a única carta de amor da minha vida.

Se você estiver lendo isso é porque tive a ousadia de escrever pra você. Bom pra mim. Você não me conhece muito bem, mas se me deixar começar, pois mesmo sabendo como é difícil para mim, vou escrever uma carta de amor pra você. Essas são as palavras mais difíceis que já tive que escrever porque não há uma

forma fácil de falar de amor, então te falo baixinho que é pra você me escutar. Conheci alguém. Foi sem querer, eu não estava procurando, não estava nos planos. Foi uma perfeita tempestade. Você disse algo e eu respondi. E aí o que eu soube é que queria ar o resto da minha vida no meio dessa conversa. Não me lembro o momento exato que tudo mudou. Só sei que mudou.

Num minuto eu era impenetrável e nada me tocava. E no próximo instante meu coração batia fora do peito exposto aos elementos. Agora tenho essa sensação dentro de mim, de que poderia ser você. Você é muito forte e me faz rir com o jeito perfeito do olho que sorri. Com tudo o que isso significa, o amor é você. Essa é a boa notícia. A má é que não sei como estar ao seu lado e isso me assusta, porque se não estou com você agora tenho a sensação de que nos perderemos antes mesmo de nos encontrarmos. É um mundo grande e ruim, cheio de giros e voltas. As pessoas piscam e perdem o momento em que poderiam ter mudado tudo. Não sei o que vai acontecer comigo ou com você. E não posso te convencer do porquê você deveria confiar em mim. Mas poxa... o seu cheiro é bom como um lar. E eu posso cozinhar, isso deve ser o bastante pra começar. Gostar de você tem sido a mais profunda e intensa experiência da minha vida, é quase demais pra aguentar.

Quando penso no futuro meu coração se parte, principalmente por não conseguir imaginá-la ao meu lado ou tendo orgulho de mim. Mas isso não impede de você ser uma linda inspiração. E de me dar um bom motivo pra continuar sendo o que acho que um homem deve ser. Te agradeço por me ensinar a viver e amar.

O cuco cantou seis vezes, anunciando que já era minha hora de subir a ladeira e ir ao barracão. Eu começava a aprender que Santa Teresa é mais perto do céu. Da varanda do seu quarto, sobre a piscina eu olhava a lua e contava segredos às estrelas. Eu não sabia muito o que esperar. Graças à minha mãe, fui criado como católico. Muitas vezes fui coroinha e usei batina. Eu não sabia nada sobre santos, tambores, macumbas, afoxés e candomblés.

Cheguei no barracão calado porque Halina mais uma vez tinha pedido que eu me comportasse. Ao chegar a vi vestida de baiana, a mais linda Odayá que os meus olhos poderiam mirar. O orgulho de Iemanjá. Ela havia me dito que lá não poderia me dar tanta atenção. Achei que fazia sentido, mas ela sequer olhou na minha cara. Com o canto do olho fingia que não me via. Compenetrada, fumava, andava, se mexia muito, articulava. Arrumava as coisas e só sorria pro pai de santo, embora pra mim, naquele lugar, entre tantos corvos, ela fosse a verdadeira pomba branca de Oxalá.

Fiquei quieto. Eu acabara de chegar e não estava ali pra julgar nada nem ninguém. Sentado, o pai de santo falava com uma moça que veio encomendar um trabalho pra prejudicar o seu ex-namorado. Segundo ela, isso era o melhor pra ele. Me espantei sem conseguir imaginar como alguém faz o mal justificando o bem. Eu prestava muita atenção e fazia força pra não olhar pra minha Halina. Esperei por quase duas horas. O pai de santo pedia as coisas sem se levantar e fumava sem parar. Era só ele mandar e todos se mexiam pra atendê-lo. O sol já ia nos deixando e o vento fresco da primavera começava a soprar, anunciando a noite que estava pra chegar. De repente, o pai de santo virou-se pra mim e disse:

— Vai com ele, você vai tomar um banho.

Levantei e fui atrás de um garoto que me levou num banheiro minúsculo que tinha como porta uma cortina de plástico. O garoto falou:

—Tire sua roupa.

Tirei. E nú como Adão me perguntei por qual motivo e razão eu ava por tal situação. Não tive muito tempo pra pensar, ele virou uma bacia de água e ervas na minha cabeça e eu me senti como se tivesse saído de um banho com a janela aberta no inverno da Dinamarca. O garoto abriu o chuveiro e o que era frio virou gelo.

— Pode se vestir. Ele disse e saiu. Fiz força pra não congelar de frio e olhei para um lado, olhei pro outro e não tinha nenhuma toalha. Me vesti com o corpo molhado e saí, fui pra fora onde havia uma escada de cimento.

O pai de santo me chamou e eu fiquei dois degraus acima dele. Ele começou a falar quase cantando coisas impossíveis de entender e me jogou mais umas ervas e sementes. Pegou uma galinha viva amarrada pelos pés e a rodou três vezes sobre a minha cabeça com destreza e certeza. Bateu com força a cabeça da galinha no degrau e ela morreu, deixando um fio de sangue na escada. Eu fechei os olhos pra não ver e me perguntei o que não se faz por amor. Entrei no barracão novamente e ele me pediu pra sentar e esperar. ou um tempo, ele me chamou e me disse pra pegar os quindins e descer. Halina me levou numa pequena capela, se é que se chama capela, que era o cantinho do santo, repleto de imagens, onde ele recebia as pessoas quando se manifestava. Era pra eu colocar os quindins em frente à imagem e rezar do jeito que eu soubesse, pedir o que eu quisesse. Pedi por mim, por ela e agradeci por toda sorte que eu tenho na vida. Também pedi pra continuar forte, mesmo com tudo que já vivi e ei. Subi novamente e ele me falou:

— Espera que ela vai te levar numa igreja pra acender uma vela na porta. Entramos no carro e percebi que tinha perdido meus óculos. Nunca mais tive outras lentes novamente, mas não fiquei triste. Por mais estranho que isso possa

parecer, tudo fazia sentido quando eu estava ao lado dela. Nada no mundo me fazia mais feliz.

Tentamos ir na igreja de Santa Teresa, mas o padre estava bem na porta e não ia gostar de nos ver acendendo uma vela na frente da sua igreja, ainda mais com Halina vestida de macumba. Descemos e fomos na igreja de São Jorge. Ela acendeu a vela, me virei e voltei pro carro sem olhar para trás. Depois de me deixar em sua casa ela falou que ia rápido no barracão. Entrei louco pra mijar e corri pro banheiro. Por causa da galinha, do mercadão de Madureira, de tudo mais que eu tinha vivido naquele dia e também por não ter comido nada, me senti meio zonzo. Tirei a calça e a cueca e me sentei no vaso. Olhei pra baixo e tomei um susto: minha cueca era um rio de sangue.

Num impulso me levantei e o sangue começou a jorrar fazendo uma poça no chão. Não eram duas ou três gotas, era muito sangue, como se eu tivesse cortado minha veia com a mais afiada das facas. Me sentei de novo, levantei o saco e procurei o corte, tinha que ter algum. Eu olhava o sangue escorrer, mas não sentia nada, não ardia, não doía. Levantei de novo, olhei pra água do vaso e parecia o Mar Vermelho em pleno Oceano Índico. Era sangue pra todo lado. Vesti minha roupa, peguei um pano e limpei o chão. Olhei no espelho e minha calça branca já não era branca, era vermelha cor de sangue. Saí do banheiro e Halina chegou. Quando contei o que estava acontecendo, seus olhos, que já eram brilhantes, brilharam muito mais. Brilharam como um farol numa noite escura de vento e temporal. Ela disse:

— Isso é um milagre - e me chamou pra subir e tomar banho. Tirei a roupa e lhe dei a cueca. Ela olhou e falou novamente:

— Isso é um milagre. Depois do banho deitei em sua cama e pedi que ela procurasse algum furo na minha pele, mas inacreditavelmente Halina não encontrou nenhum corte.

Do mesmo jeito que começou, o sangue parou de jorrar. O pai de santo tinha dito que eu não podia beber álcool e nem fazer sexo até meia noite. Eram onze e quarenta. À meia noite e um minuto abrimos um vinho e começamos a fazer amor. Eu tropeçava nas roupas espalhadas pelo chão. Seu calor me dava a certeza de que ela era o carvão e eu a brasa. Juntos nos queimamos no colchão.

Não era só o sexo. Não. Não se trata de sexo. É o momento logo depois. Quando o mundo para. É a alma colada na alma e a pele na pele. Você se sente seguro, tão seguro... eu a abracei respirando o ar que ela exalava e nos olhamos dentro dos olhos. E como uma doce gota de amor, uma lágrima acesa fugiu do meu olhar e escorreu pelo meu rosto até molhar o travesseiro.

Ela me sorriu com o azul dos olhos vestidos d’água e ficamos abraçados, encharcados de amor e emoção num jeito bom de se deixar viver, um jeito que me fazia ser meu só pra ser dela. Eu sentia que nada do que fui me servia mais, nada em mim me reconhecia antes dela. Nada se acalmava até eu encontrar a sua boca. Nada se parecia com a vida ao lado dela. E mesmo que eu me perdesse, que não soubesse onde ir, seu cheiro, seu gosto, seus olhos e abraços me trariam sempre de volta pra ela.

O cansaço nos venceu e adormecemos com sua mão nas minhas costas, protegidos pelo sol da manhã que entrava pelo quarto nos dando bom dia. Os ventos da mudança sopravam selvagens e livres. Algo havia mudado nessa noite. Aprendi que não importa a religião, não importa a sua crença, o que faz a diferença é a sua fé. Ponto pro pai de santo ou ponto pro amor. Embora eu aposte mais no amor, jamais saberei a verdade. Nós sempre falávamos que o que acontecia conosco não era normal. O jeito que nos aproximamos, que nos entregamos, com amizade, confiança e liberdade, era muito diferente e especial. Já que na vida aprendemos que coincidências não existem, só poderia ser o destino. Eu, com meu jeito próprio de ser e pensar, sempre achei que destino é o mesmo que caminho e se você tem um bom caminho terá um bom destino.

Comecei a achar que eu tinha o melhor caminho do mundo e que se ela quisesse juntar meu caminho ao seu destino, eu estaria pronto pra levá-la pra capela e lhe dizer sim.

O homem gostaria de ser um pássaro e a serpente, de ter asas, mas o gato quer ser somente um gato. Todo gato é um puro gato, do bigode até o rabo. Halina tinha um gato branco, branquinho, não podia ser de outra cor. E eu, que sou dos cachorros, nunca tinha tido contato com gatos. Nós ainda dormíamos exaustos e felizes.

Nossa noite tinha sido forte, intensa como nós. Sem exagero e tampouco vaidade, jamais esquecerei. E mesmo que um dia ela não se lembre mais de mim, sei que essa noite estará guardada em sua memória, no seu corpo e no seu cobertor. Ela pode até tentar lavar, molhar e esfregar até sangrar, mas sentirá para sempre minhas digitais em sua pele. Ela sabe, eu sei. Seu gato subiu na cama de um jeito preguiçoso, deitou na minha barriga e se aninhou pedindo por carinho. Halina se surpreendeu:

— Ele não faz isso com ninguém! E graças ao gato fui aceito de verdade. Se eu era bom pro gato, seria bom pra ela também. Apesar de eu continuar cachorro, ei a ver os gatos com outros olhos. Sempre que eu chegava tarde da noite pra esperar ela voltar do barracão, o gato branco vinha me dar boas-vindas e deitava do meu lado. É triste lembrar que chegou um dia em que ele era o único da casa que fazia eu me sentir bem-vindo. Sinto saudades dele. Levantamos pra almoçar, ela fazia o almoço e eu tentava ajudar ralando o queijo. Se faltasse algum ingrediente eu corria pra comprar, incansavelmente, feliz de poder somar.

Amarrei um casaco na cintura porque minha calça tinha ficado manchada de vermelho. Era uma prova de sangue de que nós realmente tínhamos vivido o que vivemos na noite anterior.

Halina poderia ter um restaurante, pois conhecia bem a arte dos temperos e sabores. Quem lê minhas palavras pode até imaginar que escrevo embriagado pelo perfume da paixão, mas não. Ela era mesmo muito especial no fogão. Tudo que cozinhava ficava bom. Seu cheiro, a delícia do seu gosto, a fineses, sua educação, sua cultura, sua malícia, sua cintura, seu conhecimento da língua portuguesa e sua beleza a faziam parecer ser de outra dimensão.

Afinal, o que se esperar de alguém que traz no olhar todo o azul do mar? Comecei a lavar a louça pra ajudar e nunca mais parei, virei o lavador de louças da casa. Lavava as, tigelas, pratos e talheres. Com o tempo ei a lavar até mesmo o chão, o fogão e as janelas. Fazia tudo com prazer, queria que ela entendesse que eu era feliz em somar e que tinha vindo pra ficar. Fui em casa trocar de roupa e ela mandou uma mensagem:

— Volta logo, te amo

Tomei um banho correndo e voltei. Novamente dormimos enroscados, com os pés colados.

A segunda feira amanheceu determinada, mas resolvi fazer diferente. Acordei quinze minutos antes deles, peguei o telefone e liguei pro garoto. Ele atendeu sonolento e escutou minha voz:

— Acorda, tá na hora da escola! Cheguei bem pertinho dela e lhe dei um beijo. Ela acordou assustada e já ia gritar pro menino levantar, quando eu falei baixinho:

— Já o chamei, está tudo certo. Ela sorriu, agradeceu e se espreguiçou me

abraçando. Começava assim nossa breve parceria de vida.

Fui pra minha casa e ela foi trabalhar. Eu respeitava seu trabalho e não ficava chamando por ela, mas Halina sempre aparecia e isso era a melhor parte do meu dia. Desde quando comecei a chamar sua atenção eu nunca esperei por muita coisa. Já aprendi de tanto viver que não se deve criar expectativas.

Achei que com sorte eu iria conhecê-la, lhe dar uns beijos, me divertir, como fiz tantas vezes nos últimos dois anos. Eu tinha aprendido com a idade a saber me desapegar das pessoas. Jamais imaginei que entraria em sua vida do jeito que entrei. E num e de mágica, sem lógica ou explicação, eu era dono do mais puro amor que alguém pode ter pra oferecer. Às sete da noite ela saía do trabalho e ia pra casa. Entrava no carro e me ligava. Pela câmera eu ia conversando e vendo ela dirigir.

Quando Halina chegava em casa, se preparava pra ir pra macumba e não falava mais comigo. Parecia que mudava a sintonia, ela ficava incomunicável. A casa podia pegar fogo que ela nem saberia. Dormimos mais uma vez pela câmera e no dia seguinte já estávamos procurando um motivo pra eu voltar. Ela tinha que preencher sessenta e cinco fichas contratuais pro seu trabalho e eu me ofereci pra ajudar. Halina deixou a chave pra mim e foi pra macumba.

Ao entrar em sua casa eu reconheci seu cheiro. Jantei, lavei a louça como sempre e o que parecia ser fácil se fez difícil. Sem prática, errei as fichas muitas vezes, joguei fora e amassei mais da metade delas. A hora ia ando e eu já estava acabando quando ela chegou.

— Só faltam algumas...,

Foi o meu boa noite. Ela subiu direto e desceu vestida de um jeito como eu ainda não tinha visto. Me envolveu em seus braços e falou no meu ouvido:

— Deixa isso pra lá, vamos subir.

Ela estava linda, começamos a namorar e por toda a madrugada nos amamos de um jeito muito especial. Nós estávamos completamente loucos. Eu por ela, ela por mim. Como sempre, tudo começava num beijo. Com a cabeça rodando e o corpo todo queimando eu pensava:

— Eu sou sim, sou intensidade, sou desejo. É seu todo esse amor que eu trouxe pra lhe dar.

eei pelo seu corpo por horas. Ela, num sussurro, falava ao meu ouvido que me amava, que eu era diferente, que eu a pegava como se deve pegar uma mulher e que eu era o seu homem. Falava com sua voz suave. Eu não tenho certeza, mas deve ser dessa maneira que as sereias cantam.

Halina me deu uma vida inflamável, sua voz em meu ouvido era como um canto incendiário. Eu vivia frio como um fósforo antes de ser riscado. E agora tudo começava com uma faísca e me queimava na escuridão.

Na noite seguinte voltei novamente e ela já estava em casa quando cheguei. Abriu a porta e falou que seu filho estava dormindo em sua cama. Deitamos então no futon, ela se virou de frente pra mim e começamos a nos olhar com os olhos cheios d’água novamente. Chorando, ela me disse:

— Você é poeta e os poetas amam mais a poesia do que os motivos dela... você me ama assim como fala?

Quase sem conseguir falar pelo nó que sentia na garganta lhe disse que sim, que ela não imaginava o quanto e o que eu sentia por ela. Que mesmo que eu tivesse que trocar memórias e lembranças de lugar, o meu olhar ainda veria o seu.

Ela disse que sentia o mesmo e que quando nos vimos pela primeira vez começou a suar frio e sentiu um arrepio que não pôde explicar. Falei do orgulho que sentia pela maneira certeira e cuidadosa com que cheguei até ela, de cada o contado nos dedos que eu fui dando em sua direção, de cada palavra que escrevi pra chamar sua atenção. E que eu tinha mais orgulho ainda de ter feito tudo de um jeito atrevido e elegante, que desde a hora que deitei os olhos em suas curvas não descansei mais até que ela fosse minha, até conseguir chegar nela, até poder estar ali deitado, olhando em seus olhos, dentro do seu abraço, colado no seu corpo feito de prazer e pecado. amos a noite enroscados um ao outro, ela me segurava como se tivesse medo que eu fugisse. Quando me levantei, Halina abriu os olhos e falou baixinho:

— Amor, volta.

Eu me joguei de novo no futon já caindo nos seus braços. E não nos desgrudamos mais até o sol nascer e acender a cidade. A lembrança que tenho dessa noite é que foi o maior e o melhor momento de amor e sentimento que já ei em toda minha vida e que mesmo que acabe nunca vai terminar, porque é muito raro viver um amor de verdade. Quando é pra sempre, pra sempre será. No dia seguinte, escrevi pra ela:

Você me perguntou se eu te amava da maneira que falo. Eu posso lhe dizer, mas prefiro escrever porque assim você poderá ler e reler sempre que esquecer o quanto eu amo você.

Eu tenho mil motivos pra te amar, mas alguns nem o tempo será capaz de apagar: o seu jeito de me apertar, de me beijar, a sua voz sussurrando o seu nome em meu ouvido, o seu umbigo, meu caminho do pecado e sua vontade de estar sempre ao meu lado. O jeito que me prende com as pernas, seus braços, nossos abraços.

Nosso amor saberá guardar o que é bom de se lembrar. Encontros sem hora marcada, nossa paixão de madrugada que deixará guardada nosso desejo e o gosto do nosso beijo. O mar azul do seu olhar e o seu jeito de deixar a louça toda pra eu lavar. Nosso sábado de mágica, a lua cheia e o vinho tinto na certeza de saber que ninguém te sente como eu sinto.

Você nem imagina o quanto toda nossa loucura me fascina, toda essa aventura que é viajar pelo teu corpo. E eu ainda acho pouco... então eu paro pra te olhar, pra poder te irar, porque afinal ninguém tem um corpo como o seu. E é certo que estarei por perto, te amando, te querendo, te dizendo que ninguém jamais te amou de um jeito tão intenso, ninguém te amou tão forte como perfume de incenso. E eu vou te amar cada dia mais um pouco porque entendi e aprendi que a vida é muito melhor vivida com você.

Todos os dias que acordávamos juntos eu falava:

— Eu já te disse hoje como te acho linda e como eu te amo? Ela sacudia a cabeça negativamente de um jeito tímido e eu falava:

— Você é a mulher mais linda que os meus olhos já viram e eu vou te amar cada dia um pouco mais. Nunca deixei de falar isso e nós continuamos dormindo juntos todas as noites. Ela me deu a chave da casa e eu sentia um orgulho imenso por merecê-la.

Eu costumava olhar as estrelas esperando Halina chegar, pedia pra elas nos guiarem, pra ficar tudo bem. Eu a esperaria feliz por horas. Por uma, duas, seis ou mais. E de fato esperei e esperaria de novo, porque tudo ava e tudo se arrumava quando eu via Halina chegar. Pensei numa canção que falasse de amor e acabei compondo. Jamais lhe mostrei, achava que com seu jeito refinado ela não ia gostar.

Por ironia dessas que acontecem inesperadamente, enquanto eu escrevo essa história a canção foi gravada. E quando a escutei chorei calado nesse dia. Eu era só dela. Eu não olhava e não tinha interesse por mulher alguma no mundo, não havia ninguém além dela.

O que ela me fazia sentir eu não sentiria jamais com ninguém. Eu desejava seu beijo, seu cheiro, e isso me deixava louco. Eu nem precisava falar, ela percebia só de me olhar. Meu corpo sem o dela era só metade, era só saudade. Nunca amei nesta vida alguém assim de um jeito tão ardente. Eu era como o fogo, com duas chamas, queimando lentamente de vontade por ela.

Eu só pensava e só desejava que ela estivesse bem, que ela fosse feliz. O tempo todo era tudo o que eu queria. Nos dias frios eu queria ser seu cobertor e nos de calor, seu ventilador. Ela era a história que eu gostaria de contar pra tentar explicar o que é um grande amor.

No sábado esperei por Halina a tarde inteira, ela na macumba e eu na sua casa. Quando ela chegou e eu perguntei por que não tinha respondido minhas mensagens ficou nervosa e alterou a voz. Reagi falando um pouco mais alto também, fui mais incisivo e ela mostrou do que era capaz. Gritou com um jeito repleto de ódio:

— Você está na minha casa, aqui quem grita sou eu! Se não gostar, RUA! Fiquei em silêncio, afinal era mesmo sua casa e nisso ela estava certa. O curioso é que ela falou comigo desse jeito duro e raivoso, mas era só o telefone tocar que ela atendia os outros de modo doce e gentil. Perguntei então se não estava mais com raiva e ela respondeu:

— Estou com raiva de você e não deles.

Halina tinha comprado dois ingressos pra irmos ao Morro da Urca ver um show e começou a dizer que não ia mais. Pedi desculpas, insisti e acabamos indo.

Se realmente existem noites mágicas, aquela com certeza foi uma delas. Encontramos seus amigos, os mesmos do dia em que ela pediu pra eu me comportar. Pegamos o bondinho e no caminho morro acima já ríamos muito. Ela me comia com os olhos, nem parecia a mesma pessoa que tinha gritado comigo. Compramos uma garrafa de champanhe e brindamos muitas vezes, do nosso jeito. O lugar estava lotado e nós (e seus amigos) ficamos vendo o show pelo telão.

Às vezes Halina me puxava pela mão e me levava até a grade. E de lá, com o Rio de Janeiro aos nossos pés e bem pertinho do céu, ela me beijava com sua boca macia e rosada. A gente se apertava e respirava de um modo ofegante, definitivamente a vida não era como antes. Eu falei baixinho em seu ouvido:

— Olha pra direita, pra esquerda e pra direita de novo. Reparou que não existe aqui nesse lugar mulher alguma como você?

Ela sorria e encostava seu corpo no meu.

Por quase catorze anos fui engenheiro de som da banda que fomos ver e nunca imaginei que voltaria a vê-los tocar novamente, muito menos que seria uma noite imensamente feliz. Nessa noite entendi que o que vale a pena não é aonde você está e sim com quem. O show acabou e fomos dançar. E o que aconteceu foi que o que já era muito bom, ficou maravilhoso. Era como se tivéssemos dançado juntos por toda uma vida. A gente rodava, se esfregava e se beijava.

Ela dançava como se eu e o mundo lhe pertencesse e fôssemos só dela. Nós dançávamos como se não houvesse ninguém nos vendo. O seu prazer de se balançar e o seu charme elegante eram pura poesia. Eu viveria isso pra sempre todo dia, eu seria mais feliz que a própria alegria. Ela dançava muito melhor do que eu, me pegava pela cintura, pela mão, me conduzia e me seduzia. Me apaixonei por dançar com ela.

Nunca imaginei uma noite tão boa, mas como o tempo voa, em um segundo já eram quatro da manhã. Seus amigos avisaram que estavam indo embora e eu lhe perguntei se queria ficar. Por mim ficaríamos dançando até meu sapato acabar. Ela disse que tinha adorado dançar comigo porque sempre que saía pra dançar o seu par queria ir embora, enquanto ela queria ficar. Eu era diferente. Mesmo assim, sussurrou no meu ouvido:

— Vamos pra casa namorar.

Enquanto o bondinho descia, com o corpo dela abraçado ao meu, olhei a Praia Vermelha e percebi o quanto o mar estava tranquilo. Pensei que tudo estava em calma. Entramos no táxi e mal o carro começou a andar ela me puxou pra junto e começou a me beijar de um jeito forte, como era normal entre nós. Nunca soubemos fazer de outro modo. Pegou minha mão e botou dentro do seu vestido e, como não podia deixar de ser, fomos nos enlouquecendo.

Ela me mordia, gemia e ensinava o caminho pro motorista, tudo ao mesmo tempo. Eu só ardia de desejo. Por mim o motorista podia ir direto pra São Paulo que eu nem ia notar. Ela gemia e eu a calava beijando sua boca. Ela ia falando em meu ouvido tudo o que faria comigo quando chegássemos. Entramos em casa num dilúvio de calor e paixão e noite adentro fomos um vulcão, o próprio Vesúvio em erupção.

Eu já dei uma volta e meia no mundo mais de uma vez. Já fui à muitas cidades e países, mas não me lembro de nenhum lugar melhor pra estar do que dentro dela. Eu não me considero um amante voraz, capaz de enlouquecer e matar as mulheres de prazer. Mas com ela tudo era diferente, por motivos que eu não sei explicar. Eu sabia o jeito certo de tocar, sabia o carinho perfeito, o caminho correto, sabia o que dizer em seu ouvido. Eu sabia como a olhar e como fazê-la suar. Simplesmente aconteceu de ser assim, devia ser o que chamam de química ou o que chamam de amor.

Estávamos juntos há três semanas e era impossível entender como tínhamos ficado tão próximos, tão juntos. Parecia que não havíamos nos conhecido e sim nos reencontrados, como se fôssemos originalmente de outro lugar, de outra vida. Uma vez seu pai de santo me falou que já havíamos encarnados juntos outras vezes em dois séculos e três vidas. Não sei bem no que acreditar, mas se ele estiver certo é muito provável que eu a encontre novamente em uma próxima vida.

No domingo fomos ao cinema junto com seu filho. Compramos os ingressos e eles dois foram atrás de algo pra comer. Seu filho comprou uma pipoca e um guaraná e ela, uma goma de mascar. De longe eu a ouvi argumentando alguma coisa sobre dinheiro, cheguei perto e me ofereci pra pagar. Ela se virou bruscamente e deu um berro. E com um jeito raivoso gritou comigo que era “pra eu não me meter”. O filho e a moça do cinema me olharam com um susto estampado no rosto.

Saí de perto sem entender o que tinha acontecido. Sentia o coração disparado, não sei bem se pela humilhação que sofri ou se pelo susto que tomei. Acendi um cigarro pra me acalmar e ali mesmo voltei a fumar. Ela ou o resto da tarde sem falar direito comigo. No fim do filme, ao entrar no carro, como se não fosse o bastante o rompante sem motivo no cinema, saindo do estacionamento ela lembrou que se esquecera de pagá-lo. E ao chegarmos na guarita, ficamos presos. Me ofereci pra voltar e pagar e ela respondeu com um enérgico NÃO! Nesse instante apareceu um rapaz que trabalhava no local.

— A senhora está com o ticket? Halina desviou o olhar e respondeu:

— Eu não estou achando o ticket, mas eu paguei.

— A senhora tem certeza? Se a senhora não pagou eu que vou pagar.

— Pode ficar tranquilo, moço. É que tem tanta coisa nesse carro que é difícil encontrar o que quer que seja.

E, de fato, seu carro e a sua macumba ambulante eram impossíveis de se entender num único olhar. O moço, olhando seu carro importado e convencido pelo seu jeito empoderado e ‘bad girl’ de ser e vestir, somado à sua beleza de capa de revista, achou melhor assumir o prejuízo e liberou a saída. Ela saiu com o carro sem se importar em deixar para o pobre rapaz aquela despesa do estacionamento.

Quando argumentei que ele pagaria a nossa conta do próprio bolso, Halina jogou os ombros pra cima e disparou um ‘Vai nada!’, aumentando em mim toda a incerteza que aquele eio de domingo me causava. E sem dizer nada simplesmente me levou pra sua casa. Ao chegarmos, pra mudar o clima comecei a fazer uma massagem no seu pé e nunca mais parei. Halina se viciou no meu “serviço de massagem” e duvido que hoje não sinta falta.

Eu nunca soube massagear alguém, mas alguns dias antes uma moça tinha ido na casa dela lhe fazer uma massagem profissional. Halina vestiu um biquíni lindo e me disse pra ficar. Sentei no chão e fiquei só observando. Eu olhava seu corpo e percebia o quanto a vida me estava sendo generosa. Aprendi duas coisas nessa manhã: que meu desejo por ela era imensurável e como fazer uma massagem.

Talvez por eu ter um coração gigante, sempre tive o hábito de entrar nas igrejas pra rezar e tentar ajudar a todos que me pedem ajuda. Se alguém me pede dinheiro ou comida na rua eu sempre procuro dar o que tenho. Eu rezava por mim, por ela e pelos seus filhos. Mas Halina me disse pra não entrar mais em igrejas, porque a igreja era um lugar com uma energia que não era boa e que eu não desse nenhum tipo de esmola a ninguém, porque isso iria atrair o carma ruim deles pra mim. Comecei a não saber no que acreditar e pra quem rezar, se pra Deus ou pro santo dela. Mas toda vez que eu a via nua me chamando, eu pensava ‘Aleluia’, e agradecia a Deus e a Seu Zé Malandro da Estrada, tudo junto. Às vezes eu lhe provocava e falava:

— Vem cá, macumbeira! Me enfeitiça! Temperada no dendê é que eu vou lhe

comer! Me dá seu axé, tira a roupa e me mostra a mulher que você é.

A segunda-feira, sempre com seu jeito tão urgente, amanheceu. O céu acordou chorando e suas lágrimas de chuva lavavam as escadas, as igrejas e as calçadas de Santa Teresa.

O vento soprava frio e apressado, balançando a saia de Halina. Embora hoje seus olhos não possam me ver, naquela manhã de chuva eu fazia parte dela, como o sal do mar e a água da terra. Eu sentia inveja do vento, que podia tocá-la por inteira. Eu a desejava de todo jeito e maneira que a vida pudesse oferecer. Saímos pra tomar um café. Halina me disse que era muito bom ter um poeta particular e que eu sempre seria o seu poeta, sem importar o caminho que a vida nos desse e o que a sorte nos trouxesse.

Como em todas as noites, fui pra sua casa esperar seu retorno do barracão. Lavei a louça, subi pro seu quarto pra ler e escrever. Senti seu calor no cobertor, seu cheiro no travesseiro. Meu coração sempre disparava de saudade. Mas quando eu sentia saudades dela, não era pelo tempo que eu ficava sem vê-la ou pelo tempo desde que nos falamos pela última vez. Sentir sua falta acontecia naquele exato momento em que eu estava fazendo algo e desejava que ela estivesse ali junto de mim. Nunca deixei de sentir isso. Eu acabava dormindo esperando por ela. Ela chegava à uma, duas, três e às vezes cinco da manhã.

Em algumas noites me abraçava, em outras me amava, em outras simplesmente encostava seu pé no meu e dormia. Eu então a abraçava e embalava seu sono com meu corpo no seu.

Eu sempre a olhava dormindo sem roupa. Seu corpo dourado e seu umbigo me faziam agradecer por ela estar do meu lado. Acho que nem mesmo o sol, quando no fim do dia mergulha no mar, pode se comparar ao dourado da sua pele.

Quando Halina chegava às cinco da manhã era eu que acordava seu filho, lhe dava café e pagava um táxi pra ele ir pra escola. Assim ela poderia dormir ao menos duas horas antes de ir trabalhar. Eu ficava acordado ao seu lado pra que ela não perdesse a hora. Sua chegada no trabalho era às nove da manhã, mas ela estava sempre atrasada. Depois saía às sete da noite e ia conversando comigo por vídeo enquanto dirigia com o alarme do cinto tocando, tudo ao mesmo tempo, com pressa e intensidade. E isso se repetia como um eco eterno, dia após dia. Ela não dormia. Eu me perguntava como alguém podia viver sem dormir, porque eu estava aprendendo a ficar acordado o tempo todo também. Desde o nosso primeiro dia, no seu aniversário, eu já não sabia o que era deitar e dormir uma noite inteira. Um dia ela me mandou um link:

Leia, você vai entender o que eu faço no barracão. Abri e estava escrito: ‘EKEDI’

Dentre os cargos femininos na hierarquia do candomblé o mais conhecido é o da Ekedi. Como os ogãs, elas não recebem seu orixá de cabeça, ou seja, não entram em transe pois necessitam estar acordadas para atender as necessidades dos Orixás, para os quais foram devidamente preparadas pra servir. A Ekedi na maioria das casas também é chamada de ‘mãe’ e exerce a função de dama de honra do orixá regente da casa. É dela a função de zelar, acompanhar, dançar, cuidar das roupas e apetrechos do orixá da casa. É uma espécie de camareira que atua sempre ao lado do orixá e que também cuida dos objetos pessoais do Babalorixá. O cargo de Ekedi é muito importante, pois ela é a condutora dos orixás incorporados no Ebe (barracão) e é dela a responsabilidade de recolhê-los e desvirá-los.

Comecei a entender melhor sobre os tambores, os cantos, os santos e as obrigações que ela tinha. Isso a deixava realmente feliz. Jamais tive ciúme ou achei ruim viver com ela as nossas madrugadas de amor depois da macumba. As obrigações eram muitas. Numa fé cega e viciada, por intensa devoção, ela era faxineira do barracão, escrava do pai de santo e serviçal do santo. E naturalmente eu acabei me tornando a ‘Ekedi da Ekedi’, seu faxineiro, seu

empregado, seu amaldiçoado. Enquanto ela cuidava das coisas do pai de santo, eu cuidava das coisas e da vida dela. Mas eu a amava.

A gente saía de madrugada pra comprar flores e o que mais precisasse. Esperávamos a lavanderia abrir de manhã acordados no carro só pra pegar os ternos do santo. Sempre namorando, soltos, rindo, cantando, cuidados pelo amor e pelo santo. Protegidos pela espada de Ogum, nós dois viramos um. Comecei a me dar bem com seus filhos e a gostar deles de verdade. Uma noite ela chegou do barracão e entrou no chuveiro. Como era normal, fui vê-la tomando banho e ela me agradeceu pela maneira leve que eu tinha entrado em sua vida e na sua família. Eu só queria fazer sua vida mais fácil e mais feliz. Quando disse que queria me casar com ela e cuidar dos meninos, Halina me falou rindo:

— Duvido! Em momentos assim eu sentia que a gente se amava do jeito que o amor foi feito pra ser.

Pela manhã, quando ela acordava cheirosa, formosa e bonita, seu sorriso me despertava. Ela abria os olhos feito flor e um azul imenso coloria o quarto e todo o meu dia. Eu lhe falava:

— Tenha calma, coração tranquilo, já chamei seu filho.

Eu procurava fazer o bem e lhe dar tranquilidade, carinho, paz e o que ela precisasse. Mas vinte minutos depois já estávamos no carro, com o alarme do cinto apitando e ela xingando quem demorasse a andar na frente dela.

Chegou o dia da cerimônia de crisma do seu filho. Acordamos e saímos rápido. Eu não havia sido convidado, então desci do carro no meio do caminho e peguei

o metrô. Ao sair do outro lado do grande túnel subterrâneo que atravessa a cidade, parei numa lanchonete e pedi um suco. Comecei a anotar umas ideias quando Halina me ligou e ou o telefone pro filho. Fê, doce e gentil, me convidou pra cerimônia. Do jeito que eu estava mergulhei num táxi e fui, sem tomar banho e com a roupa da noite anterior. Eu me sentia um mendigo.

Nesse dia conheci toda a sua família e ela tinha um irmão gêmeo. Gostei muito dele, que apertou minha mão e olhou reto nos meus olhos, sem desviar, da exata maneira que um homem honesto deve fazer. Depois da cerimônia a sua mãe ofereceria um almoço. Halina não foi porque tinha que ir pra macumba e eu voltei pra casa estranhando a maneira agressiva com que ela falou com a mãe.

Finalmente era sábado, celebrando nosso primeiro mês juntos. Nossa intimidade, nossa parceria e nossa amizade nos faziam acreditar que estávamos juntos desde sempre, parecia que nunca tínhamos estado separados. Eu a convidei pra ir dançar e comemorar depois do barracão. Halina chegou em casa lá pelas dez da noite, se arrumou, tomamos uma dose de vodca pra brindar, pedimos um táxi e saímos. Nem que ela estivesse vestida com as flores mais belas do mundo estaria tão bonita. Só de olhar pra ela, só de pensar em nós eu já começava a querer, já sentia subir a adrenalina. Ela numa saia curtinha, sem calcinha, casaco de couro e um tênis All Star prateado, parecia que tinha vinte anos.

Seu cabelo cacheado e seu pescoço tinham um cheiro tão libidinoso que me faziam querer tudo com ela de novo e de novo. Entramos no táxi, ela me agarrou e fomos nos tocando, nos beijando. Esquecemos do motorista até ele nos dizer que chegamos no destino. Entramos na festa e fomos direto dançar. Halina falou que a gente não ia beber mais porque já tínhamos tomado a vodca. Concordei. Mas não tínhamos dançado nem duas músicas e eu me desequilibrei um pouco. Dependendo da minha glicose, quando ela está normal eu me sinto firme e com o equilíbrio de um trapezista, mas se ela estiver alta pareço um equilibrista bêbado. E assim esbarrei numa moça que dançava atrás de mim. Pedi desculpas. Halina gritou alto:

— Não aturo bêbado! Eu argumentei:

— Não estou bêbado. Ela parou de dançar e falou que queria tomar uma água. Fomos no bar e repeti:

— Não estou bêbado, só me desequilibrei. Ela fez uma cara raivosa e disse:

— Quer saber? Vou embora! E saiu em disparada pra a rua. Corri e a alcancei no jardim sem entender nada. Perguntei o que tinha acontecido e ela reclamou muito, nem sei do quê. Falei com calma e a lembrei que aquela era nossa noite de um mês de namoro. Ela relaxou e me pediu a água. Confesso que quando fui buscar pensei que ela ia embora e me deixar por lá, mas voltei e ela estava sentada num banco. Eu dei a água e a abracei. Ela ainda reclamou um pouco, mas fomos dançar novamente e tudo mudou.

O corpo não mente, a música sob os pés era envolvente e de um jeito quente dançávamos num cantinho. Eu olhava pra ela e não conseguia imaginar se alguma vez na vida estive ou estarei novamente com uma mulher assim. Ela era pura malícia, era a doce loucura do desejo, dançava com os quadris, me provocava, me beijava. A sua cintura cabia inteira na minha mão. Coloquei uma bala de menta na boca e começamos a chupá-la juntos. Nossas línguas se misturavam com a bala que, hora estava na minha boca, hora na dela. Aquilo foi dando calor. Ela falou baixinho no meu ouvido:

— Tá me dando um tesão... você tá me deixando doida. Dei um beijo em seu pescoço e senti que tinha arrepiado cada pelo do seu corpo, do cabelo até o osso.

Halina me pegou pela mão e fomos pra fora. Pulamos uma corrente com uma pequena placa que dizia “não e” e fomos até o final onde tinha uma grade que separava a piscina do mar. De longe víamos as pessoas, mas elas não nos viam. A lua deixava seu cabelo prateado e o som das ondas do mar eram o nosso playlist musical. Falei que eu ia casar com ela.

— Duvido! Me respondeu de novo. Puxei ela pra perto, beijei sua boca, levantei e dobrei minha perna. Ela se encaixou, vendida, completamente rendida e falou bem baixinho, quase como um sussurro:

— Nossa, como a gente se encaixa gostoso. Nem parecia a mesma mulher que há minutos atrás queria ir embora com raiva.

E inesperadamente a atmosfera maliciosa, a bala de menta, o lugar escondido, as ondas do mar e a prata do luar em seu cabelo apimentaram o nosso tempero e nosso cheiro. Eu, bem devagarzinho, esfregava meu joelho num vai e vem, pra frente, pra trás, pro lado, pro outro. Não demorou muito e ela derramou em meu ouvido o seu longo gemido que eu já conhecia tão bem. Mais uma vez desmontou nos meus braços. Fizemos tudo de novo mais duas vezes. Voltamos pra festa e Halina me disse que queria ir embora, que estava com vontade de tomar um sorvete. Fomos até o Baixo Leblon e entramos numa lanchonete bacana. Pedi o sorvete dela e o atendente falou que só tinha milk-shake. Perguntei a ele com todo bom humor que eu tenho:

— Como é que você faz um milk-shake? Ele respondeu:

— Bato sorvete com leite.

Então eu disse que queria comprar dois milk-shakes, mas sem leite, só com o sorvete, sem bater. Ele riu e concordou. Era só uma brincadeira, mas Halina me olhou com cara feia e resmungou que eu falava demais. Entramos num táxi, ela encostou no meu ombro e dormiu. Parecia uma criança inocente que dormia com confiança no colo do pai depois de um longo dia a caminho de casa.

Ficamos em sua casa no domingo. Eu amava estar ali, toda vez que eu ia embora eu apressava o relógio e contava as horas pra voltar. E quando eu estava por lá me perguntava onde estava o tempo que eu não via ar, ou que tinha ado feito vento sem vontade de parar. As horas voam quando estamos felizes. Viver somente uma vez é muito injusto. Uma vida inteira era muito pouco para amá-la.

Todo o tempo não era o bastante pra tanto amor. Ouvi dizer que existe um paraíso pra cada alma na terra. Se for verdade, Halina era o meu paraíso. Entre seus braços, seus olhos e pernas eu perdia meu juízo. Aproveitamos o domingo pra arrumar a casa. Uma hora Halina entrou no lavabo do térreo e gritou meu nome com raiva reclamando muito que eu não tinha botado um saco plástico no lixinho do banheiro. Eu realmente tinha esquecido. Peguei um saco, me abaixei pra colocá-lo e ela me empurrou com força. Caí pra trás, surpreso.

Me afastei em silêncio e a deixei sozinha. Ela subiu as escadas gritando e eu saí da casa, andando nervoso na rua com o corpo todo tremendo pela violência louca dela. Parei num lugar qualquer e me sentei no chão. Fumei um, dois cigarros. Halina ligou e perguntou onde eu estava. Falei que tinha ido dar uma volta e que desse jeito nosso amor ia acabar. Ela respondeu que ‘não, não ia acabar’ e me pediu pra voltar. Voltei, subi as escadas e encontrei ela chorando, com as lágrimas escorrendo pelo rosto. Me abraçou com amor e me fez prometer que eu jamais iria abandoná-la. Aquilo atingiu em cheio meu coração, de um jeito certeiro e eficaz. E sem saber que eu nunca mais teria sequer um dia de paz, eu prometi que nunca, por motivo algum, eu iria abandoná-la. Perguntei se ela também faria o mesmo e ela disse que sim, que nunca me abandonaria. Mais tarde sua filha me contou que quando eu saí naquele dia, sua mãe disse chorando:

— Não deixe esse homem sair da minha vida. Essa minha promessa me custou caro, pois acabei ficando ao seu lado mesmo quando isso já me era impossível.

Mais uma vez era uma segunda-feira. Dias nublados e segundas-feiras sempre me fizeram pensar de um jeito calado, assim como quem sonha acordado, procurando entender o que às vezes a vida tenta nos dizer. Acordamos e deixamos seu filho na aula. Halina me chamou pra ir com ela buscar a imagem de um santo depois da Avenida Brasil. Perguntei se ela não ia trabalhar, respondeu que tinha que fazer isso pro pai de santo e que ia chegar atrasada no trabalho.

Da escola do Fê voltamos a Santa Teresa e pegamos um rapaz que também era do barracão. Já eram oito da manhã e ela trabalharia às nove. Mais uma vez pediu que eu me comportasse e que não falasse muito, que eu ligasse o filtro da invisibilidade. Aquilo começava a me irritar de verdade porque eu não sou criança, pelo contrário, sou um homem que já viajou o mundo inteiro e nunca constrangi ninguém.

Chegamos rápido ao nosso destino, pegamos a imagem e a colocamos no carro, mas na volta, como era de se esperar, a Avenida Brasil estava parada. Entre fumaças, buracos e engarrafamentos ela tentava fugir do trânsito, nervosa, forçando a agem entre os carros. Mas ao menos que conseguisse voar, não adiantaria se desesperar, pois levaria o tempo que tivesse que levar. Ela enfim relaxou, ligou pro trabalho e inventou que estava num médico fazendo uns exames. Essa nossa manhã foi uma delícia, a gente ria, conversava e cantava. Pra nós, o rapaz do barracão no banco de trás nem parecia estar no carro. Ela cantava bem, de verdade. A vida inteira gravei voz nos estúdios em que trabalhei e sei o que falo. Halina poderia ser cantora, se quisesse. O sol brilhava alto no céu avisando que o dia já tinha ado da metade quando chegamos de volta a Santa Teresa pra entregar a imagem. E ela finalmente foi trabalhar.

Em três semanas Halina teria dois importantes e grandes compromissos que, por ironia, aconteceriam no mesmo fim de semana. Ela estava na produção de um grande evento do trabalho e no dia seguinte teria uma festa do santo. Dia vinte e nove de novembro, jamais vou esquecer. Lembrar dessa data me maltrata porque os dois compromissos exigiram tempo e dedicação.

Ela me encarregou de procurar a cerveja mais barata, pois precisava comprar muitas pra festa do santo. Saí a pé e fui a cada um dos muitos supermercados existentes na Tijuca. Finalmente achei o menor preço, tirei uma foto e mandei pra ela. E percebi um pequeno e desagradável detalhe, um leve desvio de caráter dela que com o tempo transformou minha sensação em certeza: quando era do seu interesse, o tempo em que ela respondia minhas mensagens diminuía muito. Imediatamente ela me pediu que comprasse doze packs.

Comprei quatorze mais uma peça de picanha, pra oferecer. Enchi um carrinho de supermercado até a boca de cerveja, botei tudo na mala de um táxi e fui entregar no barracão em Santa Teresa. O céu do Rio de Janeiro estava escuro e pesado como chumbo. Num instante despencou uma avalanche de água e parecia que Deus queria lavar da cidade cada alma que não fosse boa e cada injustiça da face da terra. Eu, o motorista e as cervejas, sacudíamos a bordo de um Fiat Uno Mille à mercê da chuva e do vento com os jatos de água no vidro impedindo nossa visão. Um submarino que trocou o periscópio por cervejas. Como cegos cercados de água e inundação, nos guiávamos por pura intuição.

Não demorou muito pro vidro ficar embaçado e com a ponta do dedo eu deixei desenhado nele um coração, uma flecha e o nome dela. Eu levaria as cervejas mesmo que fosse nadando. Na primeira ladeira o táxi com duzentos e quarenta latas de cerveja na mala se recusou a subir. Ele escorregava, derrapava e o motorista já estava ficando preocupado quando mais uma vez tentou subir e o Uno rodou dando duas voltas em torno de si mesmo. De um lado, um muro nos convidava a ir a seu encontro e do outro, um abismo nos convencia a conhecer

os seus segredos. Finalmente o carro parou de frente pra descida. O motorista me perguntou:

— E agora? Respondi que pra baixo todo santo ajuda e que se esse santo não estivesse rindo da nossa cara, com certeza nos ajudaria para que as cervejas chegassem ao barracão. Descemos a ladeira, encontramos outra subida e conseguimos chegar. Deixei as cervejas no barracão e voltei pra casa no mesmo táxi. Eu fiz isso mais umas duas vezes, por sorte sem chuva e por muito mais sorte, uma das vezes ao lado dela. Eu estava sempre com ela, mesmo quando ela não estava ao meu lado. Eu a levava comigo num cantinho que tenho no coração pra guardar o que é de mais importante pra mim e sinto que Halina estará lá pra sempre. O amor não faz contas, não obedece a razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar, sei lá.

Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que lhe provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera. Eu a amava por tudo isso e por muito mais. Todas as noites eu subia as ladeiras de Santa Teresa, e quanto mais eu subia, mais perto do céu me sentia. Nada me fazia tão bem, nada me deixava tão feliz como olhar os olhos dela e abraçá-la pra dormir.

Na sexta-feira a lua brilhava no céu, enorme e vermelha e se debruçava no mar iluminando a cidade. Halina tinha que levar a imagem de volta na Avenida Brasil. Pedi que não fosse sozinha e que me levasse junto. Eu estava em sua casa quando ela me ligou do barracão às onze da noite. Vesti os sapatos e esperei na esquina. Acendi um cigarro e me encostei num poste. No carro fomos eu, ela, a imagem do santo e novamente o rapaz do barracão.

Sem trânsito chegamos rápido lá, deixamos o rapaz, a imagem e voltamos por uma deserta, escura e perigosa Avenida Brasil. No caminho ela disse que quando me viu encostado no poste feito um malandro sentiu um desejo louco por mim. Isso me acendeu e abri o zíper da minha calça. Ela olhou e fez o que sempre

fazia quando ficava excitada: sacudia os ombros pra cima e soltava num quase murmuro o seu hummm...

Parecia que ligava algo. Me segurou forte, firme e apertou as pernas. A adrenalina do perigo e do tesão a fez pisar forte no acelerador. O rádio ligado, o ar condicionado, tudo foi se transformando num clima de excitação. Ela começou a gemer e eu não podia tocá-la vestida de macumba, devia ser pecado ou errado. Mas eu, no meu jeans, era livre e liberado pra dar um aceno ao santo, pedir licença e me oferecer por inteiro com meu jeito obsceno. E ela com sua cara de gulosa me apertava com sua mão sempre quente e sedosa. Não demorou e ouvi seu longo gemido. Fiquei com medo dela desmontar dirigindo. E foi assim até em casa, gemendo e me apertando.

Quando entramos ela foi pro banheiro e eu fui atrás. Tirei sua roupa e botei minha mão aberta espalmada entre suas pernas. Puxei seu corpo pra mim, como sempre fiz. Puxei mais. Eu a virava de costas, de lado, de frente. Eu a bebia num gole só e chegava a dar dó o quanto eu a possuía e o quanto ela se permitia. A fome do pecado tomava conta de nós dois e nosso lado mais profano ultraava o humano. Pedi que asse um batom e vestisse uma roupa diferente. Me mandou virar de costas e não olhar. Eu, louco de desejo e ansiedade, tentava imaginar o que Halina estava vestindo. Um vestido ousado e decotado?

— Pode virar, ela disse. E quando virei percebi que ela sentiu sua carne queimar com o fogo e o calor do meu olhar. Deus é justo, mas seu vestido era muito mais. Isso a fazia se sentir mais bonita, como se fosse possível. Tive certeza de que ela me queria, era fácil saber, eu podia ver nos seus olhos. Ela sorria e ardia de vontade por perceber que estava na frente de um homem de verdade, pois era isso que ela me fazia ser. E ela também sabia que pela noite inteira eu lhe daria de um jeito especial todo o sexo e o amor que tem escondido na alma da maçã. Ela tinha a beleza de Iansã, era a pura perfeição, a joia do desejo. Descemos pra piscina, abrimos um champanhe e começamos a namorar.

O dia já ia amanhecendo e os arinhos começavam a cantar. Seu corpo era meu lugar, sua boca meu altar e seu quarto era o nosso ninho de amor, meu Monte Sinai, nosso Taj Mahal. Lá eu rezava, eu amava, eu sonhava. Do meu lado da cama uma grande porta de vidro de correr se abria sobre a varanda, que sobrevoava a piscina. Ali era uma porta aberta a caminho de Aruanda. De lá se via o relógio da Central do Brasil, o porto e quase toda a cidade. Não lembro quantas vezes acordei ouvindo a forte buzina dos navios avisando de suas chegadas. Do seu lado da cama o espelho na porta do armário ocupava toda a parede. De todas as inesquecíveis lembranças, ver os seus olhos no espelho enquanto eu a amava é uma das mais presentes. A gente se amava pelo reflexo. Halina me olhava nos olhos e falava que adorava minha cara de safado. E eu sentia que o que importava era que de frente ou de trás, ela se dava cada vez mais.

Finalmente eu tinha conhecido o amor, sentia que ele existia, que ele era forte, que era isso que todos procuravam e eu tinha encontrado. Ela sempre prendia o cabelo pra trás com um elástico e eu adquiri o jeitinho de, num simples toque, soltar seu cabelo que caía bonito e cacheado por cima do meu rosto. Nosso movimento era o extrato do nosso envolvimento e o véu do seu corpo sutil era incendiado por olhos de brilhos encadeados que iam me deixando sempre mais enfeitiçado por ela. Há pessoas que são pontos cardeais, que levam nossos sentimentos e emoções às suas intensidades máximas. Éramos uma perfeita união, como o papel que envolve a bala, como a fronha que abraça o travesseiro, como o perfume que se agarra no cheiro.

O sábado ou voando como uma folha seca carregada pelo vento. Arrumei sua casa enquanto ela estava na macumba. Lavei a louça, tirei a roupa seca da corda e catei as sujas pelo chão. Dei comida pra cachorrinha e lavei o lugar onde ela ficava. Eu adorava que ela soubesse que podia sair tranquila, que eu cuidaria de tudo, que eu faria o seu dia e sua vida mais fácil. No domingo era dia de votação do segundo turno das eleições presidenciais. Depois do almoço ela se deitou, quase nunca descansava. Fiz uma massagem em seu pé e ela dormiu tranquila e relaxada. Seu filho a acordou pra votar e pediu pra depois deixá-lo

com sua irmã em Copacabana, mas Halina levantou bastante nervosa. Entramos no carro e não fomos muito longe quando ela começou a gritar muito.

Achei que algo diferente tinha acontecido, cada grito era mais alto. Reclamava que era ‘feita no santo’ e que pra acordá-la, ‘só mexendo no seu pé’. A ausência do cinto a fazia quase pular no banco. Eu me espremia na porta, tentando inutilmente me afastar daqueles gritos que me assustavam, me roubando a compreensão. Ao chegar na votação ela saiu do carro em disparada. Eu olhei pros meninos e eles estavam grudados no banco de trás sem ação, sem respirar, completamente apavorados. Abri a porta e saí do carro, eu precisava de ar. Fui até a esquina e numa banca de flores uma senhora já bastante idosa me sorriu. Comprei uma rosa, voltei pro carro e escondi a flor. Halina voltou, entrou no carro em silêncio e deixou os meninos em Copacabana, mas não sem antes dizer que os amava. Saímos em silêncio e eu lhe dei a flor.

— Ou eu te dava uma flor, ou ia embora.

— Não vai embora não, aquilo não era pra você.

Fiquei um pouco aliviado, mas é triste lembrar que chegaria o dia em que aquilo tudo teria como destino o meu endereço. Aquela fúria ainda me adotaria e seria dirigida toda pra mim. Voltamos pra casa e a noite já havia chegado, dando por terminado aquele dia de fúria. A chuva fina refrescava as plantas na varanda e a luz suave na cabeceira da cama deixava o quarto na penumbra. Abracei seu corpo e procurei lhe dar um pouco de conforto. Tudo estava em paz novamente, começamos a namorar e mais um domingo se foi levando com ele outra folha do calendário.

No dia seguinte, às sete da manhã:

— Fêeeeeeeee! E depois que saiu pro trabalho ela me mandou outro link:

— Sou filha dela... leia que você vai entender o meu jeito bipolar. Abri o link e li.

OXUMARÉ! METADE HOMEM,

METADE MULHER.

“O Orixá Oxumaré representa a cobra arco-íris, que traz as características do animal como a mobilidade, a agilidade e a destreza. Ele mora no céu e viaja através do arco-íris para a Terra. Além disso, ele representa a fortuna, a abundância, a prosperidade e a riqueza. Oxumaré, junção entre o masculino e o feminino, união que possibilita a existência da vida, a água e a terra, a mortalidade e a imortalidade e tudo o que é duplo, ambíguo e opostos, que se complementam. Ele é uma grande cobra que envolve a Terra com sua cauda e assegura a integração do planeta e a renovação do universo regendo as transformações”.

Eu ia lendo e aquilo ia fazendo muito sentido. Desde que me tornei adulto eu só tinha medo de duas coisas nesse mundo: não ter saúde pra trabalhar... e de cobra. Algo estava errado, não parecia poder dar certo. Eu já ei por tantas coisas que me joia achava preparado pra tudo, embora logo fosse descobrir que não eu estava preparado para Halina. Não posso ver cobra nem mesmo no cinema que tiro os pés do chão. Como eu poderia amar tanto alguém que era a própria cobra?

Numa quinta-feira à noite o santo ‘Seu Zé Malandro da Estrada’ descia incorporado no pai de santo. Recebia as pessoas, dava conselhos e aceitava os pedidos dos desesperados de alma, dos adoradores do engano, dos sem calma e daqueles que tinham uma fé tão verdadeira que realmente mereciam as bênçãos do Seu Zé. Estar com o santo na sua frente era assustador e impressionante. Ele era forte e falava sem dúvidas ou rodeios, não dizia de forma alguma o que você queria ouvir. Ele olhava pra você e falava a sua verdade, a mesma verdade que você não consegue dizer a si mesmo. Entrei no lugar onde ele ficava, o mesmo lugar em que eu tinha colocado os quindins na outra noite.

Ele fumava o tempo todo, um cigarro era aceso no outro. Com seu terno branco parecia elegante. Entendi que acreditar na sua possessão era uma questão de fé, mas eu não sabia se tinha uma fé tão forte. Talvez eu não acreditasse em nada, mas com certeza eu não duvidava. Estávamos só nos dois na sala, eu sentado na sua frente tentando mostrar em silêncio que tinha respeito por ele. Seu Zé me olhou e falou com sua voz cantada e arrastada:

— Você tem um bom coração, mas você é muito sincero. Não ache que todos são seus amigos. Trabalho é trabalho, amigo é amigo e amor é outra coisa. Guarde sua vida pra você. Dia vinte e nove é minha festa e quero que você venha. Sei que você está amando, então ame sem medo.

E batendo com a mão na mesa gritou:

— AME e lembre-se: da sua vida sabe você, ninguém tem que saber. Durante toda a nossa relação Halina sempre me dizia que eu falava muito. Quando eu saía pra trabalhar ela me dizia que eu fosse e voltasse calado. Achava estranho porque sou uma pessoa que se comunica facilmente, que sempre sorri de modo natural. Mas hoje sou capaz de entender e até mais: sei que ela e o santo estavam certos. Se alguma coisa eu levei como lição dessa história foi a certeza de que as palavras são de prata, o silêncio é ouro e o segredo é diamante, no coração fica guardado.

A semana ia ando e noite após noite eu ia dormir com ela. Nada era como isso. Eu trocaria viagens, jantares e tudo de bom e de melhor que existisse no mundo por uma noite ao seu lado. Eu preparava tudo pra sua chegada e deixava acesa a luz da escada. Ouvia a chave girando na porta da frente, contava seus os subindo, percebia quando ela apagava a luz e podia vê-la no escuro, sabia em que lugar da casa e do quarto ela estava pelo seu cheiro e pelo calor da sua presença.

Às vezes ela chegava e ia direto pro banheiro, tirava a roupa e deitava nua do meu lado. Simplesmente, linda e como uma bailarina, dançava no meu corpo. Me amava, me apertava entre as pernas, me puxava pra dentro dela, falava em meu ouvido e me fazia dela. Halina sempre me seduziu e me amou de um jeito ardente e possessivo, dizendo que ia tatuar seu nome no meu corpo. Pois até do meu cheiro ela sentia ciúme

Uma noite perguntei porque tinha gostado de mim. Ela disse que um dia leu algo que escrevi e que então ou a prestar atenção. E que depois de prestar atenção, olhou minha foto e sentiu tesão. O texto que ela gostou eu escrevi numa van entre as cidades de Campos e Itaperuna, completamente triste por não poder estar no Rock in Rio. Talvez até hoje, com sua arrogância egoísta, ela não tenha percebido que tudo que escrevi foi pra ela. Era esse o texto:

Amei intensamente todas as mulheres com quem me vi envolvido. Algumas por dez anos e outras por dez horas, mas todas com a mesma intensidade, desejo e paixão. E o que aprendi foi que mulheres são de outro planeta, só se enxerga de luneta. Várias são da terra, muitas são de lua, algumas são de casa, outras são da rua. Umas se pintam e vão pra guerra, outras são de paz. Mulheres necessitam de amor e atenção, pulso forte e cafuné. Elas precisam de quem lhes faça um café num domingo de manhã.

De alguém que lhes entenda e que as beije com o gosto doce de hortelã.

Não viva com elas sem paixão e jamais lhes falte com a verdade... não haverá perdão. Entenda que elas são filhas, são amigas, são amantes e são mães. Tudo junto, separado e misturado. Deixem as mulheres irem e esperem elas voltarem. Elas têm seu próprio tempo, sua própria órbita, seu próprio espaço. Abram os braços, ofereçam seus abraços. Sejam espertos, saibam estar longe sem deixar

de estar por perto. Entendam o que a mulher quer dizer somente com o olhar, não espere ela falar. Seja forte, seja homem. Saiba ser menino e entenda o lado feminino nessa intensa relação entre o amor, o desejo e a perfeição, que requer tanta dedicação nessa doida sedução de mão e contramão, tão difícil de entender, tão fácil de perder e de se sentir perdido. Seja sempre seu amor e seu abrigo. Seja seu melhor amigo.

Um dia ela me disse:

— Você está gordinho, eu não gosto de gordo, gordos são preguiçosos. Quero um atleta, um artilheiro, quero um tanquinho. E eu, disposto a ser tudo o que ela queria, fui fazer natação e adorei nadar. Foi uma das melhores épocas da minha vida, eu saía da piscina, ligava o telefone e sempre tinha uma mensagem dela. Isso me fazia sorrir. No final de três meses eu tinha emagrecido doze quilos. Perdi todas as minhas calças, de quarenta e oito ei a vestir quarenta. Minha condição física melhorou muito, meu fôlego, minha respiração. Eu subia e descia as ladeiras de Santa Teresa sob o sol sem sentir cansaço nenhum. Fazíamos amor por horas sem parar, antes de dormir e ao acordar, era só a gente se abraçar pra de novo começar.

Poucas vezes minhas noites de ano novo foram realmente felizes e tudo que eu desejava era ar com ela a virada do dia trinta e um de dezembro. Pra quem ama não há nada como um beijo de réveillon. E Halina me deu um ano novo que eu jamais vou esquecer.

Novamente era sábado. E quem ama, quem deseja alguém, sabe o valor que os sábados têm. Fomos à uma festa e dançamos a noite inteira. Parecia até que sabíamos que aquela era a última vez que faríamos isso juntos. Dançamos e nos agarramos sem parar. Felizes, o mesmo corpo, o mesmo coração. Ritmo, melodia, amor e perfeição. Tenho muitas lembranças das nossas madrugadas de calor e desejo.

Seu colchão, tão maltratado por nós dois, jamais será o mesmo. Éramos intensos, doces e selvagens. Mas nenhuma lembrança foi nem será tão forte como essa, que ou bem longe do seu colchão. Saímos da festa e fomos pra casa no seu carro. No caminho cheguei perto dela e ei a língua em seu pescoço por pura safadeza. Ela, com a pele suada e seu cheiro suave perfumava a madrugada e a brisa de Santa Teresa.

Seu gosto era impossível de resistir. Comecei a ar a mão no seu corpo e ela acendeu como sempre, sacudindo o ombro pra cima. Continuei, abri a calça e sem nem pensar em parar de lhe tocar, mostrei o quanto ela era gostosa e saborosa. Ela gemeu, me segurou, me apertou e gemeu mais alto. Eu falei:

— Grita... GRITA! Halina, que nunca podia gritar de amor no quarto, gritou e gritou muito. Já estávamos quase chegando em casa quando ouvi seu longo gemido. ando da porta e sem desligar o carro branco, paramos no meio da rua com o ar ligado e o vidro fechado. E começamos a nos beijar. Era tanta vontade, tanta sede de prazer que fizemos amor ali mesmo. Cada beijo que ela me dava me deixava em fogo. Halina entendia das coisas, tinha coragem, sabia toda a sacanagem e conhecia cada truque do desejo. Trepada em cima de mim, ela gemia e xingava feito louca. Subia, descia e se mexia. O meu desejo era ela me desejar e vê-la me dar o prazer de ter prazer comigo. Ela gritava sem medo e falava baixinho:

— Me come, sou a putinha do João. Sou sua. Vem, meu amor, vem forte, vem

até o fim, vem! Quero você todo dentro de mim! Halina sussurrava seu nome no meu ouvido, dizendo dezenas de vezes que era minha. Me beijava, me lambia, me mordia, deixando marcas na minha alma e no meu pescoço. O vidro foi embaçando e o carro balançando enquanto nós dois nos entregávamos, nos amávamos como dois náufragos do amor, como dois adolescentes que se amam sem vergonha, medo ou pudor. Ouvi seu longo gemido e a puxei pelo cabelo para baixo, lhe oferecendo todo o amor e o desejo que jorravam de mim.

Eu sinto que as pessoas não sabem muito o que desejam na vida. Uns desejam a calma de ter família e mobília, outros desejam o caminho da aventura e há os que jogam tudo fora pela loucura de não desejar nada. Mas e eu?

Meu maior desejo, meu sonho mais sincero seria viver novamente essa noite com ela, sentir seu corpo colado no meu e o meu coração abraçado ao seu. Matar a saudade desse amor de verdade.

No domingo ficamos em casa e arrumamos tudo. Ela, como sempre, fez um almoço digno do Guia Michelin. Nesse dia aprendi que aspargos não são brancos e nem tão pouco nascem em potes. Eu sentia que era capaz de ganhar o mundo pra poder dar àquela família o que eles precisassem. Eu queria ajudar, eu pensava em construir uma vida com ela, somar e dividir a grana, as alegrias e as tristezas. Eu queria poder fazê-la feliz, eu queria ser um homem melhor pra que ela sentisse orgulho de mim. Eu a amava como ninguém a tinha amado, desde a hora em que vi seu rosto, bonito como um domingo ensolarado, naquele instante mágico em que ela chamou minha atenção. Eu era seu melhor amigo, seu maior parceiro, e por motivo algum eu a deixaria sozinha. Eu sempre iria dividir as contas do nosso amor. Faltava uma semana pra festa do santo e para o tal evento no trabalho, a pressão aumentava e ela sempre sem dormir. A macumba até tarde da noite e o trabalho logo cedo pela manhã não ajudavam.

Eu ficava sem dormir com ela e ia me virando e fazendo de tudo pra ajudá-la e deixá-la bem. Tomava conta das crianças, ligava pra eles pra saber se estava tudo

certo e mandava mensagens pra ela. Eu tentava aliviar o seu cansaço, queria que ela acreditasse num futuro bonito, pois quando eu a conheci eu também ei a acreditar nisso. E pensava que o que eu podia fazer era mostrar o meu melhor, ser sincero e fiel. Falar a verdade onde os outros mentiram. Ser companheiro onde outros a abandonaram, ouvi-la ao invés de só ficar falando. Eu ficaria do seu lado mesmo quando ela estivesse num dia ruim, nervosa e gritando. E sabia que eu não era perfeito e também poderia fraquejar e sair pela porta, mas eu tinha prometido que ficaria e sempre respirei fundo pra continuar ao seu lado. Queria ter chegado em outros tempos na sua vida, em épocas onde ela sorria inocente e feliz.

A noite chegou outra vez, e às sete horas ela me ligou do carro a caminho de casa. Pela câmera notei que algo estava diferente, seu olho piscava e tremia de um jeito nervoso. Antes que eu pudesse pensar em dar um ‘boa noite’ ela começou a falar que a gente não ia dar certo, aumentando logo o tom de voz. E que eu precisava ganhar quarenta mil reais por mês pra continuar namorando. Ela não queria perder tempo porque ‘quem é duro não namora’. Eu me irritei:

— Você quer que eu me afaste? Ela respondeu que não, mas continuou dizendo que não daria certo e não parou mais de falar. Eu estava na rua e quando cheguei na minha casa lhe escrevi:

— De todas as coisas horríveis que em tão pouco tempo você já me disse, essa foi a que mais me magoou. Eu não tenho quarenta mil, às vezes tenho dez e outras vezes mil, mas sou capaz de lhe dar muitas coisas que dinheiro nenhum pode comprar.

Ela me respondeu pedindo desculpas. Sim, houve uma época em que ela conseguia falar essa palavra.

Faltavam somente três dias para o esperado fim de semana da festa do santo e do evento. De última hora, Halina me pediu um equipamento de som. Arrumei o som. Eu fazia o que eu podia e o que eu não podia, eu dava meu jeito. O clima era tenso e quente, queimava como o chão do Paquistão. Eu esperava que as coisas ficassem mais leves quando esse fim de semana asse. Na verdade, ele foi o nosso divisor de águas. E entendi que a distância entre o bem e o mal é menor do que parece.

O tempo ia ficando curto e as obrigações no barracão iam aumentado. Verdade seja dita, ela trabalhava muito lá. Se entregava inteira, com coragem e vontade, mas por outro lado, a disposição e o interesse pelo seu trabalho fora do barracão seguiam no caminho inverso. Seus atrasos, sua mania de imaginar que sempre tinha alguém que a invejava e tentava lhe prejudicar, somados à sua arrogância, me faziam crer que mais cedo ou mais tarde ela perderia o emprego.

Eu tentava argumentar, mas seu ouvido não era capaz de me escutar. Faltando apenas um dia pros dois compromissos ela era um míssil teleguiado, sem dormir e sem comer. Seguia em frente sem olhar pro lado ou pra trás, mas ainda era doce e simplesmente maravilhosa. Minha maior preocupação era que ela apagasse ou dormisse no volante do carro. Eu já não lembrava mais de como eu era antes de saber que ela existia, não lembrava do que eu gostava ou até mesmo o que eu sentia. Mas eu sabia que o mesmo mar que levava, também trazia. A vida me roubava sonhos antigos, mas me oferecia um novo delírio de destino que, mesmo desconhecido, parecia ser divino. Ela era uma estrela e eu seu astronauta.

Tínhamos esse mundo todo. Brincando e eando pela madrugada a gente corria a cidade de noite como um foguete em volta da terra, em cima das nuvens como num sonho, pegando e deixando coisas pro barracão. O universo era pouco pra nós, da zona sul à zona norte o coração era nossa bússola. Entre tantas pessoas e tantas paixões, a sorte era minha e dela, do nosso encontro, de nós dois. Vivíamos a alegria de termos nos encontrado, de estarmos vivendo aquilo tudo no aqui e no agora. Inseparáveis e incansáveis, eu podia jurar que nossa

história não teria fim. Era difícil imaginar até onde a gente conseguiria ir. Dormir era desnecessário, tínhamos muito pra viver. E como num filme, nós éramos um par de amor em cena. Era fácil ser feliz centenas e centenas de vezes.

O sábado já ia chegando e eu fui ao seu encontro. Ela ainda tinha que comprar rosas pra festa do santo e tapetes de palha pro evento. Fomos pro Cadeg, o grande mercado de flores. Já era uma da manhã e compramos muitas flores, de todos os tipos.

Ela negociava, barganhava, argumentava, sabendo mais das flores que o próprio florista. Como sempre, eu ia atrás carregando tudo. Encontramos os tapetes de palha e ela comprou noventa e dois, contados um por um por mim na hora de pagar. Eu só pensava em como ia caber no carro. Com fé e uma conta matemática digna da construção das pirâmides, conseguimos ajeitar tudo. Eu ia com uma infinidade de rosas no meu colo, enquanto os espinhos iam me furando. Atravessada no banco, ando perto do meu nariz, uma flor miserável com o pior e mais enjoativo cheiro que já senti na vida me dava ânsia de vômito. Prendi a respiração porque não devia ser uma boa energia vomitar nas rosas brancas do santo.

Mas a verdade precisa ser dita, seu ‘macumbamóvel’ parecia um jardim. Ela, com sua alegria e seu cheiro de alecrim, era muito mais cheirosa do que todas aquelas flores juntas.

Chegamos em sua casa com o sol nos avisando que o grande e importante dia finalmente havia chegado. O evento era no início da manhã e a preparação pra festa do santo começava logo em seguida, no início da noite. Peguei alguns baldes na sua lavanderia, enchi todos de água, gelo e botei todas as flores dentro deles.

Ela ligou o ar condicionado porque as flores deviam ficar perfeitas até de noite, quando fossem pro barracão. Em quatro meses sempre dormi suando de calor porque ela se recusava a ligar o ar. O filho sempre ligava no quarto dele, mas dois aparelhos ligados juntos aumentariam a conta de luz. Mas nesse dia das flores o ar funcionou sem parar por horas e horas. Antes da festa no barracão ela ainda tinha que ir pro evento e já estava atrasada, bem perto da exaustão.

Deitou e pediu que eu a acordasse em meia hora. Eu fiquei do seu lado vigiando seu sono e o relógio. Depois de trinta minutos cravados eu a despertei pelo pé, já tinha aprendido. Halina acordou e pediu mais meia hora. Mais trinta minutos e a tirei da cama. Eu ia viajar, tinha um show em Campos e deveria pegar uma van à uma da tarde. Ela me pediu que eu buscasse o terno do santo e depois de me deixar na lavanderia, foi trabalhar. Halina estava muito atrasada. E nesse dia ela chegou depois de seu chefe, que deveria chegar muito depois dela e encontrar tudo resolvido. A lavanderia ainda estava fechada e me sentei na porta pra esperar abrir. Meus dedos doíam por causa dos pequenos cortes causados pelos espinhos das setenta e cinco rosas. Esperei na porta da lavanderia por quarenta minutos, o sol me castigava, a fome e o cansaço começavam a me espancar. Depois de quase dez horas sem comer minha glicose gritava. Pra não desmaiar ali mesmo, peguei meu telefone e pensando nela e nas rosas escrevi:

Quando o mundo era criança, quando tudo era esperança, existiam as rosas. Viviam prosas de serem o perfume mais doce que se havia sentido. Não por acaso, não por engano, mas por certeza eram a maior beleza que os olhos viam ao se abrirem pela manhã. Elas eram os casais. Elas eram da cor de que é feito o amor, mas igual poesia. Num dia de sol, por pura magia, você simplesmente surgiu. E as rosas nunca mais foram as mesmas. Você com seu cheiro e tão saborosa como fruta alguma imaginou saber ser, fez a vida ser diferente, me deixando contente só por estar do seu lado. E por toda a beleza, por todo o perfume, você pra mim sempre será o mais lindo jardim, desses que os olhos não enxergam o fim. E o que for como flor, assim será nosso amor.

A lavanderia abriu, peguei o terno, paguei o serviço, chamei um táxi e voltei pra

Santa Teresa. Eu carregava o terno como quem segura um recém-nascido, sabia que era muito importante pra ela. Cheguei em sua casa, pendurei o terno, coloquei água e comida pro gato e pra cachorrinha. Olhei as flores e fui pra minha casa. O santo deveria usar um terno branco, mas peguei também um outro vermelho de reserva, afinal era o dia dele, de sua festa (acertei, porque de noite, na hora de vestir o santo, o terno branco já estava completamente amassado. Meu terno vermelho, cuidado com todo o meu carinho por ela, salvou a festa e sua pele).

À uma da tarde fui pro Aeroporto Santos Dumont pegar a van pra Campos. Algo de estranho acontece com Campos, é como uma brecha no tempo, um espaço paralelo, a viagem dura quatro horas, mas parece o lugar mais longe do mundo. Durante todo o dia, por toda a viagem, Halina me mandava fotos dela no evento dizendo que me amava e que eu era seu parceiro, o seu ‘parça’. Eu sempre faria qualquer coisa por ela.

Chegamos a Campos às nove da noite do sábado, o nosso show seria na tarde do domingo. À essa hora ela já estava no barracão preparando a festa que também era na tarde do dia seguinte, incomunicável como sempre. Às sete da manhã de domingo me ligou, me acordando. Sua cara estava acabada, mais uma noite sem dormir, mais um dia sem comer. E a festa do santo começaria às seis da tarde.

Seus olhos piscavam nervosos num ritmo intenso e descomado. Senti pena e fiquei preocupado com ela. Combinamos que eu iria direto do show pra festa do seu Zé, afinal eu tinha sido convidado pelo próprio.

Cheguei de volta ao Rio meia noite e meia, peguei um táxi e fui pro barracão. Foi a única vez que Halina me sorriu e falou em paz comigo naquele lugar. Quando cheguei a festa já tinha acabado e ela me disse pra eu ir pra casa esperar por ela. Achei estranho... eu queria ficar, todos estavam sentados nas mesas do lado de fora, eu adoraria ter ficado. Ela me perguntou se eu tinha cigarro, eu não tinha e me ofereci pra ir buscar, mas ela não quis.

Ela estava linda de baiana, era puro axé, brilhava como as estrelas, dessas que só se vê no Abaeté. Eu estava louco pra lhe dar um abraço e ela disse que quando chegasse em casa ia me dar muitos. Eu vivia um sonho colorido, eu me sentia amado em cada sentido da palavra e ava as madrugadas dançando, via o mundo em luzes piscando. Fui pra casa dela a pé, sentindo que tinha a vida nas mãos. Eu podia tudo, eu era capaz de fazer até o que eu não sabia. Eu era dela, só dela. Tudo o que era ruim e difícil na vida ficava fácil ao olhar para os seus olhos. Até hoje, em seus olhos me vejo e com meus olhos a protejo. Cheguei na sua casa e dormi. Acordei com ela chegando, dei meu melhor e mais sincero sorriso e falei:

— Me dá um abraço? Halina começou a gritar que mal havia chegado, que estava suada e que eu não tinha nenhuma sensibilidade. Logo eu, o homem mais sensível do mundo, muito mais até do que eu gostaria de ser. Halina foi ao banheiro, tirou a roupa e se deitou. Não olhou pra mim, não me abraçou, não deu um simples boa noite. Ela respirava pesado, seu nariz entupido a maltratava. Eu sempre pedia que ela fizesse nebulização, já que sua arrogância não a deixava tomar remédios.

Mas ela se recusava e preferia continuar entupida sem poder respirar. E isso sempre a fazia roncar, me impedindo de dormir. Por esse motivo, toda vez que eu lhe mandava uma mensagem, ao invés de lhe mandar um beijo, quando acabava eu escrevia:

— Respira! De manhã, ao acordar, antes de sairmos ela me falou que nunca ia esquecer o que eu tinha feito, e que eu era uma decepção. Mas o que era mesmo que eu tinha feito? Continuo me perguntando até agora enquanto escrevo. Eu tinha tanta coisa pra lhe dizer, mas acho que só um abraço poderia expressar o que eu sentia.

Ela me ligou, tinha perdido sua carteira com os documentos e seu cartão. Fui ao seu encontro e ao entrar no carro ela chorava... tinha sido mandada embora do emprego. Infelizmente eu já sabia que isso ia acontecer. Reclamou que a moça que tinha inveja dela foi a culpada. Eu sabia que não era bem assim. Fomos pra casa e no caminho acabou sobrando pra mim. Ela me invadiu com sua raiva, falou que não sentia a menor firmeza em mim e que logo eu a abandonaria. Ela não sabia, mas eu a amava, ela foi tudo o que sempre amei. Eu nunca a deixaria, eu tinha muita vida pra lhe dar e tudo que ela me pedisse, mesmo sendo impossível, eu faria. Falei que seria mais fácil eu esquecer de mim do que dela.

Por onde eu for, sempre haverá você, jamais falei algo tão verdadeiro em minha vida. E comecei a acreditar que de mim ela não conhecia nada. A água da chuva refletida nos faróis molhava os carros e as pessoas. Um clima melancólico invadiu o espaço e isso a fazia se sentir mais triste. Eu me sentia mal por ela. Ao chegarmos em casa sua mãe ligou falando que alguém tinha achado sua carteira e nos deu um número. Liguei e combinei de pegar na manhã seguinte. Ela foi pro barracão e eu como sempre, fiquei esperando.

Mas algo aconteceu com ela nessa noite, alguma coisa simplesmente mudou, do nada, sem explicação ou sentido. Infelizmente a partir desse momento entramos em rota de colisão e ela fez de mim seu inimigo íntimo. Eu me lembro de todos os beijos que ela me deu, de cada um. Eles continuam grudados em mim como uma tatuagem que fica pra sempre na pele. Beijos gravados no meu corpo, na minha alma e nos meus lábios.

Me lembro das noites em que eu me aninhava a ela na sua cama e ouvia suas confidências e sonhos secretos. A vida não poderia ser mais perfeita. Hoje eu penso que poderia ter ajudado mais, ter lhe dado mais confiança, certeza de que tudo ficaria bem, ter tido ainda mais carinho, o que fosse, o que ela precisasse pra ter calma e paz. Eu lhe falava que não estávamos sós, que tínhamos a vida inteira pra nós, mas ela não conseguia ouvir. O sol, a lua, o azul e o mar, tão presente em nossas vidas, deu lugar à uma nuvem cinza e escura numa tempestade sem fim.

Eu só queria estar com ela, mas agora eu precisava abrir a janela pra poder respirar e ver o sol. Me lembrava de quando a gente andava madrugada a dentro viajando nas estrelas, quando nosso amor era uma imensidão, logo antes de vivermos a acompanhada solidão que Halina iria nos ofertar. Sua intolerância nos condenou à uma distância sem fim, sem volta.

Eu pensava que quando a chuva asse, quando o tempo se abrisse novamente, tudo ficaria bem. Ela sempre foi o meu raio de sol e eu o seu arco-íris. Todo mundo tem sua versão do paraíso e eu tinha também. A minha versão era ela. Todos precisamos de um amigo, de um amante e de um ouvido fiel. Fomos exatamente isso, mas a partir dessa noite comecei a deixar de acreditar. A melhor coisa do mundo se tornou sem cor, sem futuro e sem saúde.

Eu não duvidava nem por um minuto de que estávamos condenados à saudade. E que o futuro seria um ado pra esquecer. Me lembro de sair da sua casa e chorar sem disfarçar. Nesse dia senti o gosto que as lágrimas tem na língua. Eu fechava os olhos e ouvia seus gritos, sem entender o que eu tinha feito. Por que lhe pedir um abraço depois de um dia de saudade era algo tão nocivo pra ela?

As reclamações, os gritos, que no começo eram de quinze em quinze dias, aram a ser de sete em sete e depois em cada dia da semana. Para manter a paz, o bom humor e o amor, era preciso um esforço sobre-humano, era como atravessar a nado um oceano imenso. Era como enfrentar de jangada o mar aberto, como andar no deserto tendo o o incerto. A partir desse dia a raiva era o seu lado mais sensível. Mas além da raiva existe o ódio, além do ódio existe a ira e bem mais além, muito mais além da ira, existe a cólera. Em questão de segundos ela ava por todos esses estágios.

Eu, jamais em minha vida tinha ido além da raiva, a mesma que felizmente ou infelizmente eu não sinto por ela. Quem ama vive a sonhar e eu sempre fui esse

sonhador, sonhando com dias melhores e noites de amor. Eu acreditei, com uma falsa e tola inocência, que com amor, inteligência, dedicação e devoção eu conseguiria lidar com toda aquela situação. Eu fui um labrador bobão, um bichinho de estimação, e ela um Pitbull raivoso acostumado a brigar, bater e apanhar. Eu sempre perderia porque ela tinha o que eu não possuía: casca.

A mesma casca que faz um lutador levar um soco de cento e cinquenta quilos levantar e voltar pra briga. Eu era o poeta da música era doce e sensível, não sabia como lidar com isso sem enlouquecer, sem morrer. Mas de uma coisa eu sabia: depois que eu descobri que ela existia nunca mais fui o mesmo e apesar de todo temporal eu só pensava no seu corpo e nos seus beijos. Apaixonado, eu fechava os olhos, a boca e o coração. Ela foi e sempre será o disco voador que me fazia viajar e voar por entre os lençóis. E não importa pra onde ela vá ou pra onde eu for, eu sempre serei o seu amor.

Todo amor que eu tinha guardado em mim era pra ela. Eu estava aos seus pés, nas suas mãos. Quando ela chegava eu ligava o rádio e abria a janela. Ela então fazia tudo acontecer. Éramos somente eu, a lua e ela. Nós não precisávamos de mais nada. Meu braço era seu cobertor, eu a aquecia, eu era seu ombro, seu colo, seu calor. E quando seus braços se cruzavam em minhas costas as palavras desapareciam. O amor e outros sons preenchiam o ar. Eu cuidava dela e do seu coração mais até do que do meu, como nunca imaginei fazer.

Se alguém me perguntasse o que eu queria agora, eu diria sem dúvida, medo ou vergonha, que eu queria sua amizade de novo. Eu queria abraçar e beijar até ela entender o quanto sinto sua falta. Eu queria saber porque ela me agrediu e porque me odiou como se não houvesse Deus, como se Santa Teresa fosse uma terra sem perdão.

Fui até o Leblon buscar sua carteira. Na volta peguei um Uber e por algum desconhecido motivo, o motorista arrumou uma confusão comigo e começou a gritar que ia me bater.

Desci do carro atordoado e deixei o cara gritando sozinho. Parecia que agora o grito era parte das pessoas, que já era um cenário na paisagem da cidade. Enquanto os outros gritavam cada vez mais alto, mais baixinho eu ia sentindo e me calando. Uma desconfortável mistura de indignação e angústia tomou conta de mim. Eu já estava na Glória quando desci do carro, e com o sangue queimando minhas veias fiz pela primeira vez o que acabei fazendo muitas outras vezes: fui a pé até Santa Teresa. Halina, sem trabalho, começou a ficar em casa direto e eu nunca mais voltei pra minha. Ela estava sem grana e sem cartão, já que ao perder a carteira, o cancelou. Sem saber como comprar gasolina pra ir pra macumba, sem imaginar como pagaria as contas que por sinal eram muitas e dispendiosas, foi ficando mais nervosa a cada vez que respirava.

Me ofereci pra ajudar, ei a botar gasolina em seu carro. Com a geladeira vazia, me ofereci pra fazer umas compras com ela. A caminho do mercado Halina reclamava sem parar, falava alto de um jeito grosseiro que não queria mais minha ajuda, que eu não precisava pagar nada. Eu a deixava falar, ela se irritava mais e mais até chegar a hora em que eu tinha que implorar pra poder gastar meu dinheiro em suas compras. Um desespero. Uma densa e pesada sensação de incompreensão tomava conta de mim. Na segunda vez em que fomos fazer compras, eu tinha ao todo quatrocentos e vinte reais.

Ainda receberia um dinheiro de uns shows que havia feito, mas demoraria uma semana e de fato, naquele dia, naquele momento aquele dinheiro era tudo o que eu possuía. Pra mim seria mais que suficiente pra uma semana, mas não eu nunca a deixaria ar por nada de ruim. Fomos ao mercado e ela saiu na frente em disparada com a cara amarrada. Eu ia tentando segui-la com o carrinho, me desviando das pessoas, mas ela sumia apressada pela ira.

Cada item que escolhia jogava no carrinho sem falar nada, sem olhar pra mim e sumia de novo. Separei trezentos e cinquenta reais e guardei setenta pra ficar vivo até receber os shows. Ela com seu jeito fino e esnobe foi comprando o que

havia de bom e de melhor. A única coisa simples que comprou, pra meu espanto, foi um shampoo de coco, que mais tarde seria o motivo e a razão pra mais uma genuína e descontrolada noite de fúria. Os trezentos e cinquenta reais viraram alimentos somente para três dias e, com exceção do shampoo, logo não sobrou mais nada.

Halina tinha um sério problema com a mãe. Era o pai de santo no céu e a mãe no inferno. Não demoraria muito pra eu notar que ela reservava pra mim o mesmo lugar, no mesmo inferno. Por várias vezes me comparou com sua mãe. Me acusava de lhe dar chocolates pra deixá-la gorda e feia, assim como ela dizia que sua mãe fazia com o seu pai. Eu comprava como um agrado porque sabia que ela gostava, quem comia tudo de uma vez era ela. Reclamava quando eu comprava e quando eu não comprava.

Eu sempre falava que não importava o que tivesse acontecido, que era pra ela perdoar a mãe de verdade, de coração, pois só assim ela deixaria de ser refém desse sentimento e ficaria livre. Halina falava que já havia perdoado, mas nós dois sabíamos que isso não era verdade, pois perdão era um sentimento inexistente naquela alma pesada e perdida. Pra quem nunca está em paz, tudo tanto faz. Ela ligou pra mãe, pediu que fizesse umas compras pra casa e foi do mesmo jeito: a mãe teve que implorar pra ajudá-la.

As duas foram para o mercado e, por um milagre, compraram coisas simples, aumentando o volume dos itens da compra. Sua mãe gastou somente cento e quarenta reais a mais que eu. Quando fui ajudá-la a tirar as compras do carro tive que escutar:

— Tá vendo? Isso é que é compra! Eu não entendia o motivo dela falar isso a alguém que tirou do bolso setenta por cento de todo seu dinheiro pra lhe ajudar. Havia algo errado e não era possível negar, um de nós dois tinha mudado ou parado de tentar. Eu tentava, mas alguma coisa dentro de nós tinha morrido e não dava pra fingir. Sempre foi tão bom estar ao seu lado, era como uma brisa, era

tudo o que eu queria, mas agora eu me sentia um tolo, um infeliz.

Sempre fui uma pessoa bastante resiliente, por mais tempestuosa que fosse a noite, eu sempre acordava com o coração brilhando como o sol da manhã. Sempre via uma alternativa, um caminho de luz a seguir. E apostava nessa resiliência pra continuar ao seu lado. Ela procurava por trabalho com esforço e dedicação, sem descanso ou distração. Sentava no seu computador e ava horas tentando vender seus projetos. Enquanto isso eu cuidava da casa, das crianças e do que fosse preciso.

Dizem que um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar. Infelizmente sou obrigado a discordar, porque eu virei seu para-raios e todos os raios, trovões, relâmpagos e palavrões que ela gritava caíam na minha cabeça.

Aprendi a lavar louças como ninguém e a varrer como um gari profissional. Aprendi a lavar e tirar a roupa da corda, a aspirar o pó do chão, a tirar teias de aranha dos cantos e a limpar a piscina. Tudo que é demais, acaba por não ser tão bom. Nós estávamos juntos, sem desgrudar, desde aquela primeira noite em que fui na sua casa. E começávamos a sentir o peso disso.

Mas eu, no fundo, hipnotizado pelos seus olhos, viciado em seu corpo e apaixonado de verdade pela maravilha que era a vida do seu lado, não enxergava o que a cega paixão não nos deixou ver. Muitas vezes o coração não consegue entender o que a mente não tem forças para obedecer. Minha vida foi se desfazendo. Eu nunca mais paguei uma conta da minha casa, financiei a luz, o gás e troquei meu telefone para um plano mais barato.

Fim de ano, época de poucos shows, ou eu a ajudava ou pagava minhas contas. E eu de maneira nenhuma deixaria que ela asse por qualquer aperto. Eu quase nunca ia na minha casa. Quando saía da casa dela eu me sentia sem forças, mal

conseguia levantar e andar, era como se não tivesse energia alguma.

Ao entrar na minha casa parecia que um furacão tinha ado por lá. Eu arrumava e mantinha limpa a casa dela, mas não tinha tempo nem vontade de cuidar da minha. Eu todo dia só comia Miojo só pra sobrar dinheiro pra ajudá-la. Continuamos a dormir juntos, mas ao acordar, ao invés de nos amarmos como sempre fazíamos, ela ou a me dar bom dia com ofensas e berros. Um dia ela acordou, olhou pra minha cara e falou:

— Você é tóxico!

Eu abri os olhos e pensei: O que essa criatura está falando? Nem acordei ainda.

Dormir e acordar do seu lado virou uma eminente explosão, era como estar ao lado da bomba que explodiu o Japão. Uma noite estávamos deitados e seu filho entrou no quarto reclamando que não havia uma garrafa de água cheia. Ela olhou pra mim e com raiva falou:

— Você precisa aprender a conviver, a casa tem regras. Se você não as respeita, não pode estar aqui! Curioso. Você começa a fazer as coisas pra ajudar, pra somar e a pessoa ajudada, sem dar valor ou um simples e sincero obrigado, a a achar que tudo é sua obrigação. Eu era a única pessoa que enchia as garrafas de água, de noite e de dia, mas nesse dia eu havia chegado tarde e nem lembrei que existiam garrafas. Aquilo tudo começou a me fazer mal de uma maneira visível. Eu sentia meu corpo tremendo, o coração disparado.

E ei a viver assustado. Tive consciência de que precisava me afastar, deixála respirar. Fui pra minha casa. De madrugada, pela câmera, ela falou que estava

sentindo a minha falta, que meu lado da cama estava vazio. Então a convidei pra no dia seguinte irmos à praia e de manhã ao chegar em sua casa o clima já era outro. Ela estava assustada sem saber como pagar as contas e tentava se segurar e arrumar a situação, se sentindo injustiçada.

Halina não percebia que o que estava acontecendo era resultado das suas ações. Desistiu de ir à praia porque precisava arrumar a casa. Me ofereci pra ajudar e quando dei por mim estava fazendo o serviço sozinho. Não demorou pro seu filho ir jogar videogame, sua filha se largar no sofá e ela começar a acender incensos e dançar pontos de macumba. Fiquei ando aspirador e limpando tudo. Ela e seus filhos sequer lavavam seus pratos após comer. Nem tão pouco os colocavam na pia porque tinham certeza de que eu faria o serviço. Às vezes Halina vinha, olhava, reclamava, dizia que não estava bem feito e me mandava fazer novamente.

Ela chamou um irmão de santo pra lhe ensinar a dançar e cantar os pontos, pois nunca conseguia aprender e por esse motivo era chamada a atenção. Pensei em ir pra minha pra casa, mas ela me disse pra ficar, contanto que eu ligasse o filtro e ficasse invisível. Seus filhos tinham saído. Entrei no quarto da filha, fechei a porta e fui pra varanda me sentindo como um ladrão que, sem perdão, precisa se esconder. Fiquei em silêncio, sem pensar em nada, quase sem respirar. Perdi a conta de quanto tempo fiquei lá.

Quando tudo acabou Halina me chamou pra almoçar. Desci e almocei com eles. Ela, que sorria novamente, se vestiu de baiana e linda como sempre, foi pra macumba. Peguei minha bolsa pensando em ir embora, mas novamente ela me pediu pra ficar e esperar por sua volta. E mais um sábado foi perdido na solidão, esperando Halina voltar do barracão. A vida tem o peso que você escolher e conseguir carregar. Depende de você fazer com que ela seja leve ou que pese muitos quilos. Enquanto não aprender, você vai sorrir e vai sofrer sem saber, sem entender o carrossel de emoções que hora te leva pro inferno, hora te deixa no céu. São sete os segredos do bem viver:

1 Equilíbrio

2 Amor próprio

3 Bondade

4 Compaixão

5 Perdão

6 Vontade

7 Fé

Sem esses elementos ficamos ao sabor do vento e vamos aonde a vida nos levar. E isso, na prática, é uma grande perda de tempo. Eu procuro sempre me lembrar porque toda vez que me esqueço, mesmo que não seja por mal, eu erro e faço tudo sempre igual. Se esperava que sendo ela do signo Libra, era de se esperar que soubesse equilibrar e dar o mesmo peso e valor ao que supostamente seria importante. Logo no começo ela me falou que tinha muitas prioridades. Na verdade, ela tinha a mesma prioridade muitas vezes: numa lista de dez itens, os onze primeiros eram o pai de santo. E eu ficava nervoso e ansioso ao perceber que nessa sua lista de prioridades eu estava há anos luz de distância do primeiro colocado.

Sua filha faria a prova do Enem e na véspera, sábado, a menina tinha duas aulas extras. Ficamos de levá-la de uma aula pra outra e depois iríamos comprar coisas que a menina precisava: lápis, chocolate e etc... No caminho, com sua filha nos esperando atrasada pra segunda aula, Halina recebeu uma mensagem da mulher do pai de santo, dizendo que ele estava com vontade de comer pastel e que ela fosse na feira comprar pra ele. Imediatamente, como causa e efeito, ela mudou, ficou ereta. Seus olhos, quase com defeito, perderam a leveza. Pegou o telefone e chamou a filha:

— Eu não posso ir, vai indo! A menina argumentou com razão, dizendo que estava atrasada e Halina gritou:

— Eu não posso ir, pega um táxi! Tenho que fazer uma coisa pro Babá! Ela não teve coragem de dizer que a tão urgente missão, a importante obrigação, na verdade era comprar seis pastéis. Três de queijo, três de carne e mais dois caldos de cana. Eu não acreditei, pensei em comentar algo mas desisti. Já começava a me acostumar com tudo e sabia que se falasse qualquer coisa só ia piorar. Quando não se encontra o equilíbrio, muitas coisas que nos deveriam ser caras se tornam baratas e são relevadas, deixadas de lado. Entre muitas coisas que ela perdeu e que, sem perceber não deu valor, foi a formatura da sua filha, que Halina deixou de ir por que era dia de macumba.

Uma noite peguei um táxi pra sua casa e no caminho comecei a me sentir mal. Não conseguia erguer os braços e a minha cabeça parecia vazia e rodava. Sem dinheiro, eu precisava de um caixa eletrônico. Pedi ao motorista que parasse num posto, saí do carro e fui até a máquina. Mal comecei a operação, desmaiei.

Nunca tinha ado por uma situação semelhante. Os milésimos de segundo que levaram do início da queda até o chão foram roubados de mim, foi como um vazio no espaço, como se não tivessem existido. Eu apaguei e acordei em cima

de uns engradados, abri os olhos assustado e levantei com dificuldade. Tentei tirar o dinheiro e novamente desmaiei, caí mais uma vez. A moça do posto me acudiu, lhe pedi um pouco de sal e botei na boca. Bebi água e melhorei. Peguei o dinheiro e subi pra Santa Teresa. Eu tinha combinado com a sua filha de pedir uma comida, mas sem aguentar ficar de pé, subi pro quarto. Dizem que os gatos sentem, que eles percebem tudo. O gato branco subiu na cama, deitou bem pertinho de mim e me olhou nos olhos. Juro que pude ouvi-lo dizer:

— Tá difícil né, irmão? Minha costela começava a doer muito, me encolhi, fechei meus olhos e respirei devagar até finalmente dormir.

A essa altura, como se o pai de santo não fosse o bastante, apareceu também o avô de santo, que era o pai do pai de santo. Ele tinha um terreiro em Vigário Geral e muitas vezes todos do barracão dela iam pra lá. Como Halina era a única a ter carro, virou a pilota do bonde da macumba. Iam com bandeiras, panos brancos, aventais e tudo mais que fosse da vontade do santo e pertencesse à falange de Oxum, que por vaidade era a mais sem piedade dos guerreiros de Ogum. A mesma nova velha forma de desastre.

Quando ela ia pra lá só voltava no dia seguinte, chegava a ar dezoito horas sem dar notícia, sem poder falar ou se comunicar. Eu e o gato branco ainda dormíamos quando ela chegou às oito da manhã. Veio pra casa só descansar e depois voltaria pra lá novamente. Eu não conseguia me mexer, minha costela doía e como doía. Eu começava a achar que eu tinha cometido algum pecado, que tinha rasgado o manto sagrado pra fazer um abadá e ia precisar rezar ou arrumar um patuá pra me livrar desse estranho e estressante mundo que, disfarçado de amor e sem eu perceber, se apoderou de mim, me fazendo prisioneiro do desejo. Ela me olhou e perguntou:

— O que você tem? Falei que havia desmaiado e caído na rua. E então ela chorou, me abraçou e disse que me fazia mal. Infelizmente, ela tão certa como a lua é deserta. Tinha razão.

Halina voltou pro avô de santo e eu fiquei com seus filhos. Já ava das três e a madrugada ventava a última brisa da primavera quando ela voltou. De manhã acordei antes dela, botei seu filho num táxi em direção à escola e a deixei dormir. Tudo ficava em paz quando eu via Halina sonhar. Era difícil acreditar que aquele anjo que dormia de boca aberta sem conseguir respirar podia se transformar numa intolerância ansiosa. Mas apesar de ver tudo desmontado, ainda eram dela e talvez sempre sejam os meus pensamentos. Nossa realidade era um zigzag de emoções, desejos e incompreensão. Um fio de luz que seduz e depois desaparece. Eu já tinha navegado muito. Mares da paixão, mares da decepção e mares revoltos com ondas que dão medo do naufrágio. Mas jamais naveguei pelos mares da mais linda e perfumada arrogância.

O tempo corre demais e pra sempre vou lembrar o que deixamos pra trás. Eu, completamente sem paz, já quase sem saúde, tentava me agarrar à alguma tábua de salvação, algo que me impedisse de me afogar no nebuloso mar da sedução, da raiva e da inconstância.

Apesar de tudo, sua beleza me fazia refém. Seu corpo e seu cheiro me deixavam tonto, meu amor e desejo por ela me faziam sempre perdoar tudo. Eu sempre daria mais uma, duas, ou quantas chances fosse preciso pra estar ao seu lado. E eu sempre me enganava, perdido na mais doce ilusão, pensando que as coisas iam melhorar. Hoje percebo como fui ingênuo e inocente. Contra sua maldade e descontrole não havia antídoto, vacina ou vitamina, nem tão pouco benzedeira ou chá de erva cidreira que a fizesse ser boa e por um momento apenas ter qualquer respeito pelo meu sentimento.

Ela era a cobra, Oxumaré. O seu corpo era uma serpente sempre a me provocar. A sua voz era uma aguardente cheia de paixão e veneno a me embriagar. Eu sabia que aquilo tudo ia acabar por me acabar, eu só não sabia e confesso que até hoje não sei se ela era um anjo de Deus ou do Demônio. Às vezes me olhava nos olhos, me dava a mão e me levava para o céu. Em outras me agarrava pelo pau e

me arrastava pro inferno. Se ela fosse de Deus eu rezaria agradecido, mas se fosse coisa do Demônio eu estaria sempre pronto pra pecar. Não importava o que eu fizesse ou deixasse de fazer, ela seria sempre a cobra traiçoeira e pronta, sempre disposta a dar o bote e me atingir direto no cangote.

amos um tempo assim, ela em casa sem trabalhar e eu ao seu lado. Apesar de não ter muito dinheiro, tudo o que eu tinha eu dividia com ela. Mas isso era o mesmo que nada. Só dava pra compras de comida, pra gasolina, pra ajudar no colégio do seu filho, pra uma ou outra diversão e pro cigarro do santo ou do pai de santo, pois ei a comprá-lo pra ela. Mas isso estava muito longe de desafogar o seu cartão, já tão surrado por tantos juros e muitas prestações que cresciam e aumentavam a cada vinte quatro horas.

Nem de perto meu dinheiro chegava junto do que ela precisava. Ela era fina, no exato sentido da palavra... e isso custa dinheiro. Por isso ela falava que eu precisava ganhar quarenta mil por mês. Parecia que tinha o preço pendurado no pescoço, como uma etiqueta onde se lia “quarenta mil”, o preço de uma joia que fazia seus olhos brilharem e a deixava encantada e excitada. Um dia me mostrou a foto de um anel e me disse:

— Se você comprar esse anel eu caso com você. Olhei a foto e o anel, por mais que eu soubesse que se tratava de uma joia, aos meus olhos parecia uma argolinha dourada. Olhei de novo e o preço me assustou: dezesseis mil reais! Muito dinheiro, principalmente se pensarmos que mais da metade das famílias do Brasil não ganha isso num ano inteiro. Ela dizia que gostava muito mais de coisas de rico do que de pobre. Tolinha, todo mundo gosta, mas é preciso saber fazer por merecer.

Ela também me dizia que nascer pobre era destino, mas casar com pobre era burrice. Porque os pobres não am de uns ‘fodidos’. E com os olhos travados me fez acreditar que além de ogro, porco e favelado, agora eu tinha mais um predicado: eu também era um fodido. Talvez ela devesse aprender que pobreza e

riqueza, assim como a feiura e a beleza, é sempre uma questão de estado de espírito. E que beleza e riqueza iam muito além de joias, roupas bonitas e um corpão. É uma conjunção de fatores, de muitos sabores. E ela, que se achava tão linda e rica, na verdade era a alma mais feia e pobre que eu já senti respirar.

Ela tinha o diabo no corpo e na alma. E dia após dia eu ia sendo apresentado a ele. Mas pra minha surpresa, o diabo tinha o mais maravilhoso olho azul... Um azul tão transparente e intenso que só com tinta se pinta. Aquilo tudo era muito injusto. Mas o que se pode esperar de alguém que bate no peito e diz com todas as letras que sente orgulho de ser injusta?

Talvez se eu tivesse os quarenta mil por mês, ficasse com cinco, desse vinte a ela e mais quinze ao pai de santo eu estaria lá até hoje. Exatamente como seu ex, que a bancava pagando suas contas, saciando sua sede de ouro e deixando a casa pra ela morar.

Mas, como nada nesse mundo é perfeito, ele acabou não aguentando o seu jeito, a traindo e indo embora. E ela me contou sem qualquer traço de vergonha ou remorso que o traía também... mas só porque ele a traía. Não sei se acredito. Logo no começo Halina me perguntou se eu era egoísta e eu respondi que não. Provei isso dividindo tudo que eu tinha com ela e seus filhos. Cometi o erro de não lembrar de perguntar se ela também era egoísta. Hoje eu sei que ela jamais deixaria de fazer o que tivesse vontade, por nada ou por ninguém, com exceção dos pedidos do pai de santo. E por interesse ou por tesão gastaria no corpo de algum novinho, com seu sexo de luxo, a saúde e o futuro da sua relação.

Tenho certeza que se fôssemos em frente seria esse o meu destino: ser traído, traído e traído. Sem remorso ou contradição, sem nem um traço de amor no coração. É frustrante saber que se eu fosse um homem melhor, se tivesse outra posição na vida, eu poderia ter lhe ajudado do jeito que ela precisava e talvez nosso desfecho fosse diferente, pois eu jamais a trairia. E se eu pudesse, a cobriria de ouro, muitos beijos, sedas, viagens e jantares elegantes.

Enfim chegou o verão, tão perfeito no seu jeito de trazer calor. Eu esperava que ele pudesse aquecer seu coração. Eu limpava a piscina e rezava pra todos os anjos, pra cada santo que havia do Rio até a Bahia, pra que ela arrumasse um trabalho. E finalmente conseguiu. Acreditei que tudo voltaria ao normal como antes e fiquei feliz de verdade por ela. Não quero tecer aqui uma teia de reclamações, mas ando por momentos difíceis Halina despejava suas muitas tempestades no seu para-raios de estimação, eu. Nosso pouco tempo juntos mais parecia com anos de relação desgastada.

O tempo parece morar na mudança, uma curiosa dança, onde trocam de lugar seus três momentos: presente, ado e futuro. O ado contém a experiência e é, portanto, um dado valioso. O presente deve ser aprimorado e essa tarefa às vezes levada à extremos pode fazer com que os ponteiros do relógio corram muito, transformando o presente em ado antes de ser plenamente vivido. Consequentemente o futuro torna-se presente antes de totalmente preparado.

E foi assim que fizemos. Pulamos do começo pro final num picar de olhos, sem perceber. Numa manhã fria e cinza, ela acordou, me olhou e disse sem o menor cuidado e cerimônia:

— Eu não aguento mais você sugando minha energia! Já era a segunda vez que me dizia isso. A primeira tinha sido num domingo à noite, na volta de um cinema. Era mais ou menos assim que funcionava, toda vez que ela sentia alguma das muitas frustrações que acorrentavam sua alma, fazia chover e descontava em quem gostava dela, em quem fazia parte da sua vida. Eu, sua mãe ou seus filhos. E eles, já acostumados, eram espertos o bastante pra nunca estarem por perto. Ela acordou e começou com as ofensas, os gritos, tudo que havia se tornado o retrato dos nossos dias. Halina parecia pipoca no microondas, estourava num estalo. Eu me sentia cansado, minha costela doía cada vez que eu me mexia. Pedi uma carona até o metrô, eu queria ir embora. Ela falou:

— Vamos, mas primeiro tira a roupa da corda. Desci, tirei a roupa e quando subi ela já tinha ido embora. Me deixou lá. Foi a primeira vez que me abandonou e infelizmente entendi que não podia confiar mais, sabia que ela faria novamente. Percebi que a nossa tão celebrada parceria corria numa só mão e direção, só eu era seu parceiro porque ela não sabia ser parceira de ninguém. Saí nervoso, desgostoso, senti vontade de chorar de raiva.

Peguei minha mochila cheia de roupas que pesava mais do que eu aguentava com a costela doendo. Fui a pé de Santa Teresa até em casa pela subida do Alto da Boa Vista. Levei duas horas e meia pra chegar, mas não senti cansaço. A sensação de ser abandonado sem motivo, por maldade, não me deixava sentir nada além da grande indignação e da dor enorme na costela, pelo peso da mochila.

Quando ela me ligou, mesmo sem querer, atendi. Perguntei porque ela tinha feito aquilo e a resposta foi que estava atrasada e que seu trabalho era prioridade. Que nada... foi pura maldade, ela sempre chegava atrasada no trabalho. Isso era Halina: sempre uma mentira pra fugir da culpa. E sempre que mentia olhava pra baixo com uma cara de vergonha e com um sorriso falso e sem graça. Fez isso várias vezes comigo e com os outros... até o final, até a última vez que permiti que ela me visse.

Nessa noite fiquei na minha casa e pela primeira vez não dormimos juntos com a câmera ligada. Eu me sentia mal, não entendia o que estava acontecendo. Por que ela fazia o que ou sempre a fazer? Eu sempre sonho acordado antes de dormir, nunca me lembro do que sonhei dormindo. Mas nessa noite tive um sonho impressionante com o santo, o Seu Zé Malandro da Estrada. Sonhei que eu estava encostado num poste, do jeito exato que ela ficava excitada, e o santo atrás do poste me dizia:

— Não está fácil, eu sei, mas esse é seu destino, esse é seu caminho. Você é o para-raios dela, ela te aceitou, te botou em casa, no seu lar, na sua família, como não fez com ninguém. Acredite, não desista, eu vou ajudar. Você tem sua missão, que é cuidar e protegê-la. Dê um o à frente e se precisar volte um inho, mas jamais esqueça seu caminho. Acordei assustado e dei um pulo da cama, sem imaginar no que pensar e sem saber no que acreditar, por não haver qualquer compreensão. De noite fui pra casa dela e lhe contei o sonho.

Como sempre, ela achava que tudo que vinha da macumba era certo, mágico. Ela acreditava que tudo que acontecia era por causa do santo. Fazíamos amor como fazíamos por causa dele e se aparecia um show pra eu trabalhar também era por sua influência. Adoraria ter sua certeza e na verdade não ouso duvidar, mas na prática as coisas aconteciam como sempre aconteceram na minha vida. Ela me sorriu feliz pelo sonho, pela fé, pelo santo e por uns dias as coisas se acalmaram.

Eu mais uma vez me apaixonei como sempre fiz a cada vez que amanhecia, toda vez que eu a via. Descobri quase sem querer que agora eu tinha uma missão impossível, a de acalmar seu mundo e seu coração. O sonho me convenceu que era meu destino cuidar dela, ser seu abrigo, lhe dar amor sem me importar com o que acontecesse. Eu ficaria ao seu lado e faria de tudo pra que ela se sentisse feliz. Mas era fato que não era algo simples assim. Eu nos sentia cada vez mais distantes e por muitas vezes me senti um palhaço em sua mão. Um palhaço apaixonado por uma impossível e deslumbrante trapezista. Mas eu queria ajudála, era importante para mim.

No Rio de Janeiro, domingo de sol sempre foi e sempre será um dia de praia. E nós acordamos com essa vontade. Mas antes de sair fui surpreendido.

— Assim você não vai à praia comigo!

— Assim como? perguntei.

— Com esse peito cheio de cabelos.

— Eu sou homem! Eu sou assim!

Halina, sem falar nada, tirou sua roupa e me puxou nú pra dentro do chuveiro. Isso era golpe baixo, covardia, porque ela sabia que assim sempre teria o que quisesse de mim. Ela pegou uma gilete e enquanto eu a agarrava e ava a mão nela, raspou todos os pelos do meu peito e das minhas costas. Enquanto ela estivesse nua poderia raspar minha cabeça até eu ficar careca.

Saí do chuveiro me sentindo o homem mais idiota desse lado do hemisfério. Ela era malvada. E por pior que possa parecer, isso foi a melhor parte do nosso dia. Na praia encontramos seus amigos. O céu azul e o branco das nuvens eram como eu e ela. Ela era a pérola mais preciosa que o mar poderia trazer pra praia. Febre e areia. Uma linda sereia aos olhos de Iemanjá.

Seu corpo dourado dentro de um biquíni apertado fazia aguar todas as bocas, aumentando o calor que queimava o Leblon e o Arpoador. Ela dava muito mais onda que o vento no mar. O sol cumpria seu papel distribuindo calor e bronzeados, sua boca de água salgada e seu suor revelavam um sabor de malícia no seu corpo molhado. Eu não me lembro de ter sido tão feliz. Uma hora Halina se levantou e foi conversar com uma amiga. E eu fiquei falando com um amigo dela que era o único homem do grupo além de mim. Até hoje eu sinto carinho e iração por ele. Quando ela voltou e sentou do meu lado novamente eu disse brincando e com carinho:

— Estava com saudade. Ela entendeu que eu estava reclamando dela ter ido conversar com a amiga e tudo virou do avesso novamente. E entre o mar e o entardecer o céu perdeu o azul. Até o fim do nosso relacionamento ela sempre me acusou de ter reclamado disso e cada vez que me acusava a história ia tomando uma proporção maior. Já perto do final ela dizia que seus amigos me acharam um monstro e ficaram horrorizados pela maneira como a tratei naquele dia. Suas verdades tinham um tanto imenso de mentiras. E muito além da cega e egoísta mentira que ela contava a si mesma, estava o que realmente aconteceu.

Embora eu ainda não soubesse o tamanho da sua loucura, eu começava a me acostumar com seu jeito sem cuidado, de inventar e acreditar que eu era sempre o culpado. Eu já conseguia entender seus sinais quando ela entrava naquele estado de surto e agonia. Era só começar que lá íamos nós, como água morro abaixo ou fogo morro acima. Seus olhos começavam a olhar através de tudo e de todos, como se simplesmente olhassem sem direção, sem ver nem enxergar.

Ela piscava muito e ava os dois polegares pelo telefone sem parar, rodando sua timeline de cima pra baixo e de baixo pra cima, sem conseguir enxergar o que via. E assim ia dirigindo sem cinto e sem olhar pra frente. Cheguei a vê-la guiar por uns vinte e cinco metros com os olhos pra baixo, perdidos no Facebook.

Fomos à um mercado e fizemos umas compras que eu paguei. Na verdade, pagar as compras não era favor algum, era mais do que certo, pois eu também comia lá. Como sempre, Halina foi comprando o que havia de mais fino. Ela tinha um bom paladar e qualquer coisa que não fosse a melhor coisa jamais lhe agradaria. Eu irava isso nela, o bom gosto pelo que há de melhor. Ela talvez seja a única pessoa que conheci que tinha caviar na geladeira e comia manteiga de trinta e nove reais. É preciso ter classe pra saber que além da margarina e do óleo de soja existe um outro mundo de sabores e delícias, de aromas finos, temperos e iguarias.

Logo no começo ela me disse que quando estivesse nervosa eu deveria chegar perto e abraçá-la, que isso a acalmaria. E enquanto ela esperava o atendente cortar um pedaço de queijo de cabra da Serra da Estrela, cheguei perto e tentei lhe abraçar. Halina deu um grito e me empurrou, me fazendo dar um salto assustado pra trás. O moço do queijo quase cortou o dedo fora. Ela começou a dizer que não estava ali pra dar show, pra ficar chamando a atenção se esfregando no mercado. Mal imaginava ela que seu grito e atitude chamaram muito mais a atenção do que o inocente abraço que tentei lhe dar. Era loucura pura, porque quando ela queria, me abraçava e me agarrava sem se importar com hora e lugar.

Os táxis e as madrugadas sempre lembrarão de nós. Malandramente, sua filha já tinha saído de perto pra falar com o namorado ao telefone. Entramos no carro e fomos pra casa, eu, ela e a menina. Eu tentava manter a calma, embora ficasse chateado, mas era tão impossível como a paz na Palestina. Ao acabar de almoçar, Halina se deitou no futon. Aquele mesmo que foi testemunha de todo nosso amor.

Me chamou e falou com um olhar sério que devíamos parar por ali, que ela não tinha tempo pra perder e que com ela tinha que vir pra somar ou vazar. Foram essas suas duras palavras. Senti vontade de lhe dar uma calculadora de presente, porque de onde o meu olho via ela não entendia muito das quatro operações que a matemática nos ensina. Se eu não somava alguém me diga o que somar significa.

Sempre cansada, sempre estressada, ela dormiu. Eu a abracei de conchinha como na primeira noite e dormimos. Acordamos suados, mas descansados e em paz. Tomamos um banho e mais um domingo envelheceu, terminando e se transformando em ado, em lembranças.

ou mais uma semana e ao contrário dos domingos de paixão agora tínhamos os domingos de tensão. Levamos sua filha pra segunda prova do Enem e no caminho Halina começou a falar sobre qual curso a menina deveria fazer, já que por não ter ido bem na primeira prova, a desejada medicina ia ficando distante.

Do nada ela começou a gritar como eu nunca tinha ouvido. Se a menina tinha alguma chance de se recuperar e fazer uma boa prova, essa chance se perdeu em seus gritos, em sua cólera. Ninguém teria condição de realizar o que quer que fosse após tanta pressão, tanto grito e tanta agressão. O carro praticamente andava sozinho ou o santo o dirigia. Ela gritava sem controle e sem limites. Eu, calado, me sentia aliviado de não ser o motivo daquilo tudo, mas podia imaginar que antes do dia acabar minha hora ainda ia chegar.

Horas depois, em silêncio, fomos buscar sua filha. Halina ainda estava sem cartão de crédito, não tinha dinheiro nenhum. Levei todos pra jantar, botei gasolina no carro, paguei algumas compras num mercado e pegamos um vinho pra relaxar. Desse dia em diante nunca mais conseguimos beber nada que comprávamos. Ela sempre surtava e o vinho tinto tinha como destino o lixo ou a mesa do pai de santo. Seus filhos saíram e ficamos a sós. Pensei que íamos beber, conversar e namorar. Mas que nada, ela se sentou em frente ao seu computador e ali permaneceu. Eu tinha lhe comprado um telefone novo e mesmo que eu tenha a verdadeira consciência de que esse dinheiro era nada pro seu padrão, pro seu desejo, ela afirmava que eu continuava devendo o telefone. E até hoje ela deve pensar que ainda devo. Sentei do seu lado pra tentar ajudar a ar seus contatos de um telefone pro outro. Mas tudo que eu dizia não servia. Sentada, sem olhar na minha cara, ela disse:

— Que saudade da minha leveza. Desde que você apareceu minha vida acabou. Você não é um homem, não é uma pessoa. Você é um encosto, um urubu. Eu não aguento mais sua carga negativa!

— Então eu vou embora!

— Se for, não volta nunca mais! Se ficar... fica calado, invisível! Sentenciou novamente.

Sem saber o que fazer, sem saber o que sentir ou mesmo como agir, me sentei. Calado e invisível. Mas Halina não parou, começou a gritar mais alto dizendo que tudo de difícil que ela ava era minha culpa. E a cada momento, a cada segundo, a cada palavra, ela ia aumentando o volume da voz, com mais ofensas e também com muita raiva. Era como se a sua vida fosse magicamente dívida em duas correntes elétricas. Uma positiva e outra desesperadamente negativa. A que estivesse em curto no momento dominava e inundava sua alma, como agora em que se via toda banhada de desespero, em histeria, como se estivesse sendo sufocada.

Não deu pra segurar. Nem Deus, que é a voz do perdão, seria capaz de se calar e aguentar aquilo tudo. Também falei o que eu queria e sentia. Ela se levantou possuída por uma força estranha e poderosa e, sendo maior do que eu, me olhou de cima como um sargento que grita com um recruta. Colou sua testa em meu nariz e gritou, berrou e me xingou. Seus gritos podiam acordar Santa Teresa inteira. Achei que ela ia me bater. Eu sabia que um dia ela tinha batido em seu “Ex”, aquele que tinha sido seu marido e pai de seus filhos. Peguei minha bolsa pra ir pra casa e implorei pra gente conversar com calma.

Ela tentou em vão, sem conseguir... a calma era algo inexistente naquela alma acorrentada e naquele coração atormentado. Como era habitual, ela não ouviu nada do que eu disse e me botou pra fora de casa. Enquanto eu esperava um táxi na rua ela saiu desesperada, alucinada de raiva e ódio no olhar, entrando no carro pra ir atrás do pai de santo. Fui até o carro, olhei com amor e carinho, mas ela me empurrou, gritando:

— Sai daqui seu maluco, me deixa! E saiu a toda velocidade, quase me atropelando. Ela era feita e protegida pelo olho do divino, por aquela que tudo vê, pelas sete cabeças da serpente. E quem era eu pra querer me meter nesse mundo, com essa gente? Mas sei que esse mundo obscuro só existe e só se sustenta porquê do lado oposto existem pessoas como eu, equilibrando. Pessoas boas, que por mais que tenham culpas e pecados, andam pelo caminho do bem.

São do amor e pelo amor. São de paz. Para todo mal existe um bem. Juro que, sem um coração puro, o dia de quem vive o mal é sempre mais escuro. Sinto saudade dos livros que diziam que o bem sempre vence no final. O certo é que quando a vida deixa de ser vantagem, quando se sente que perdeu a viagem, o que sobra é só miragem. E foi assim que vi seu carro branco ir a caminho do barracão, desaparecendo pela sombra. Deixando em mim a mesma sensação de apagar uma vela antes do fim.

No quarto escuro, de olhos abertos, às vezes eu a odiava por uma noite inteira. Olhando Halina dormir eu planejava sumir. Sem ela perceber, eu pensava em desaparecer. Subir na garupa do vento e ir embora mundo a dentro. Mas era só o sol fazer o dia amanhecer, era só ela me olhar, era só eu me lembrar de cada beijo e do seu gemido de desejo para mais uma vez me apaixonar e perdoar tudo. A verdade é que seria imperdoável não perdoá-la.

Eu era prisioneiro dos seus olhos, de todas as suas expectativas e do seu corpo. E Halina não precisava de perdão porque ela me tinha em suas mãos. E ao perceber isso seu coração fez seus olhos se transformarem num frio iceberg desses que congelam sonhos e afundam navios. Pela primeira vez ou um dia e não nos falamos, nem nos vimos de madrugada. No dia seguinte liguei pra ela e sem motivos, sem razão, lhe pedi perdão. Afinal alguma culpa eu deveria ter. Não sei bem se alguém realmente tem culpa. A vida nos fez desse jeito, o mundo é que é imperfeito.

Quase ninguém tem o direito de ser feliz e nós quase fomos, foi por um triz. Ela

me pediu desculpas também, falou que nunca tinha tratado alguém assim e que nunca mais queria tratar novamente. Mentiras vem e vão, desculpas são em vão. E aquela era só mais uma mentira. Ao perceber que eu a amava, começou a me ver como se eu não fosse nada. E só hoje eu entendo que por eu ser nada, também posso ser o que eu quiser. Mas infelizmente eu não sei o que posso querer ser, sem ser dela. Sem esperar acordado pra ela deitar do meu lado e fazer do meu dia um feriado.

Se alguém me perguntar o que eu mais gosto nela, sem pensar vou responder que são os seus defeitos. Com ela aprendi a amar o imperfeito. Ela era minha professora, me ensinou a fazer amor, a ter e perder a fé e, principalmente, me ensinou a me apaixonar por ela todo dia da semana como se fosse a primeira vez. Aprendi a amar e perdoar, mas entendi que sem o arrependimento o perdão não tem valor.

Eu nunca deixei ou vou deixar de irar e ter orgulho da sua força, beleza e coragem. Ela é, sem dúvida alguma, a mulher mais linda, corajosa e confusa que conheci e convivi na vida. Uma Medusa com muitas caras e personalidades, com seu cabelo de serpente e seus olhos que me petrificavam. Era cada vez mais evidente a certeza de que infelizmente não seria possível sobreviver à catarse que ela fez com nossas vidas e nossos dias.

Talvez Halina estivesse certa, talvez eu realmente fizesse mal a ela. E talvez por eu não ser suficiente eu tenha ado a ser demais. Sei que meu crime foi ser simplesmente o que eu sabia ser, foi não ter tido forças pra ir embora e deixá-la sozinha em tempos difíceis. Foi ter aceitado o coração mandar e deixá-lo acreditar. Ela me fazia sentir que eu era o seu castigo, sua praga, sua maldição e talvez não merecesse mesmo saber que na verdade eu poderia ser seu abrigo e sua salvação. Mas ao contrário dela, por mais desmantelado que eu fosse dormir, quando era de manhã eu sempre acordava feliz de estar ao seu lado. Por isso, com o frescor de uma bala de hortelã eu despertava pronto pra tentar mais uma vez. Ela nunca mais relaxou, nunca mais tentou se acalmar e conversar. Seus olhos, que no começo eram dois diamantes, ficaram distantes e nunca mais

foram como antes. Aquele olhar de ver sem enxergar, perdido no espaço, nunca mais a deixou, eu nunca mais a vi sorrir com os olhos.

A qualquer momento seu tormento vinha nos lembrar que sem amor, sem diálogo e sem calma, nosso destino era um caminho no escuro, sem presente, sem futuro. Mas nada pode desmerecer o que ela é, o que fomos, o que não somos mais e, principalmente, o que sua ausência me traz. Se eu pudesse mudar alguma coisa em nosso mundo, em nosso tempo que não volta mais, eu voltaria no segundo em que a beijei pela primeira vez.

Só que agora eu a beijaria ainda mais devagar, sem pressa nem hora pra parar, apenas pelo prazer de desfrutar. É triste perceber que por um instante tivemos a chance de sermos algo bom de verdade e que faria a diferença em toda uma vida. Mas ela, que tão bem dominava os idiomas, infelizmente os conjugava no pretérito mais imperfeito possível. Com raiva, com medo e sem culpa, gritava ofensas e o que mais pudesse pintar e bordar pra me machucar. Ainda acordo suado e assustado lembrando de seus gritos e de suas palavras duras e injustas. E sem dormir me pergunto porque ela não entendeu a quão maravilhosa ela é, como tem sorte e como é privilegiada. E que de jeito algum ela precisava ser assim.

Halina já tinha trabalhado muito, desde aulas em universidades aos maiores e melhores eventos do país. Seria natural que todas as portas e entradas pro creme do mundo dos eventos se abrissem pra ela.

Mas ao contrário de progredir, foi com arrogância e ganância os perdendo um a um. Ela tinha uma empresa de produção e poderia ganhar muita fama e grana, mas a empresa ficava abandonada, estagnada. Ela poderia ter tudo que quisesse, mas tirando a macumba, uma boca pra beijar e ter dinheiro pra gastar, Halina não sabia muito bem o que queria. Acabou indo trabalhar num festival de música e arte.

Ela tinha sido contratada pra cuidar do lado comercial do festival, pra trazer investidores e patrocinadores com incentivos fiscais, mas sem conseguir fazer nenhuma venda acabou virando a ‘faz-tudo da dona do festival. Dentre outras coisas trabalhou até na desmontagem do evento, quando ela mesmo poderia ter o seu próprio festival. Halina ia ficando sem os trabalhos e, como sempre, a culpa era de alguém que tinha inveja dela.

Jamais tentou ver o que ela mesmo fazia e entender onde errava. Tempos depois, uma amiga minha que trabalhou com ela num outro projeto me falou que Halina tinha ficado com fama de arrogante e maluca. E que só falava na coleção de homens que usava e dispensava. Não ia trabalhar... ou chegava sempre atrasada. ava o dia sem sair das redes sociais, fazendo do Instagram o seu Tinder. E ao tentar se insinuar ao jovem curador foi mandada embora antes mesmo do evento começar. Desperdício de talento e vida. Saber disso me deixou triste, como a sensação de uma casa vazia, pois tudo que eu queria é que ela ficasse bem, que fosse feliz e tivesse um orgulho verdadeiro do que fazia. Mas Halina não enxergava muito além do que a arrogância, o luxo e a luxúria permitiam, fazendo com que ela achasse que estava sempre certa e que os problemas eram sempre os outros.

Ela era forte e poderosa, poderia se transformar no que quisesse. Mas a água é a água, sabe bem o caminho do mar e Halina, que não aprendeu a amar, também não soube crescer pra trabalhar. Às vezes eu me perguntava se ela era feliz com esse jeito arrogante, escravizado e solitário que escolheu pra viver. Eu via o seu rosto em cada flor, sua beleza em cada cor.

E não importava o quanto eu tentasse, eu continuava sem achar a palavra certa pra dizer que tudo que eu conhecia, sentia ou esquecia de esquecer, desaparecia ao olhar nos olhos dela. Estávamos perdidos no nosso jogo maltratado e solitário.

No dia seguinte, segunda feira, fui à praia botar o pé na areia, rezar pra Iemanjá, pedir que a água do mar me lavasse, que me deixasse leve e me desse força pra tentar continuar. À noite fui encontrar um amigo, pela primeira vez eu e Halina estávamos separados. Uma vez esse amigo me contou a história do seu casamento e, pelo que me lembrava seu caso era bem parecido com o meu. Mal comecei a falar e ele bateu na mesa, gritando:

— Para tudo e sai fora agora! Engasguei com a cerveja e olhei sério pra ele, sua reação me deixou preocupado. Então meu amigo falou que isso era a ‘síndrome de comportamento narcisista’ e pegou seu telefone pra me mostrar uma infinidade de links falando sobre a patologia. Me contou tudo que ele ou, como definhou e como foi vendo sua vida acabar. Mas ele ainda tinha uma filha pequena no casamento, era um bom motivo pra tentar insistir na relação. Eu não tinha nada, nenhum motivo real que me prendesse. Meu amigo repetiu que eu não tinha a menor chance de lidar com essa situação e que isso ia acabar com o meu dinheiro, com meu fígado e com o resto de tempo e saúde que eu ainda tinha na vida.

Fui embora meio zonzo, embriagado, não sei qual sentimento era mais forte em mim: amor, preocupação ou decepção. Cheguei em casa e fui ler sobre o assunto:

A síndrome de comportamento narcisista é caracterizada por sentimentos exagerados de importância, uma necessidade excessiva de iração e uma falta de compreensão pelos sentimentos dos outros. As pessoas afetadas muitas vezes am muito tempo pensando em alcançar poder ou sucesso. Ou sobre sua aparência. Muitas vezes se aproveitam das pessoas ao seu redor. O comportamento normalmente começa na idade adulta, e ocorre em uma variedade de situações, como por exemplo: grandiosidade, com expectativas de tratamento superior dos outros. Fixação por fantasias de poder, sucesso, inteligência e atratividade. Autopercepção de ser único, superior e associado a pessoas e instituições de alto status. Necessidade constante de iração pelos

outros. Senso de direito a tratamento especial e a obediência dos outros; Exploração de outros para obter ganho pessoal; Falta de interesse em simpatizar com os sentimentos, desejos ou necessidades dos outros; intensamente invejoso com a crença de que outros têm inveja deles; Atitude pomposa e arrogante e violência ao serem contrariados.

Eu não sou médico, e muito menos quero dar diagnósticos, mas o que eu lia em cada linha me forçava a acreditar que Halina era exatamente isso, pois eu a enxergava naquelas palavras e muito pior... eu nos via. Aos pedaços, eu me sentia a pessoa mais azarada do planeta. Pois ao ver o paraíso nos seus olhos, provar sua beleza, beber da sua saliva e achar o amor mais que perfeito, eu descobri que ele estava com defeito. Uma sensação desesperada de desamparo me abraçou.

Só eu sei o quanto doeu pra encontrar alguma luz dentro de mim que me desse força e ânimo pra seguir em frente, pra aguentar a cruz que ela me fez carregar. Da minha juventude até os dias de hoje, nesses cinquenta invernos que cavaram as linhas do meu rosto, nunca senti tamanho sentimento de desânimo, desesperança e desgosto. Com sinceridade rara em minha vida posso afirmar que eu sentia todo o pesar de não ter vivido tudo como merecíamos.

Tanta dedicação, tanto amor e confusão... e eu exausto e triste. Me sentindo sem caminho, acuado, acusado, numa vida sem carinho. A expectativa que projetamos no outro e o tempo dessa breve existência que perdemos com quem não vale a pena é de nossa inteira responsabilidade. A busca pelo respeito próprio é ou deveria ser um ato de amor a si mesmo. Mas eu sabia que mesmo que tudo perdesse a cor e chovesse de desidratar o céu, dentro de mim ainda havia um pedaço de sol. No quarto dia da semana Halina me disse que apesar de ainda estar chateada comigo, sentia minha falta. Fui dormir com ela. Agora tínhamos dois modos: ruim ou muito ruim, porque não lembro se alguma vez foi bom novamente. No dia seguinte:

— Fêeee!

Deixamos o filho no colégio e voltamos pra tomar café. No caminho, já quase chegando, como ela estava sem tempo por causa do trabalho e da macumba, que ou a ser todo dia, me pediu que eu olhasse sua filha, que ava por um período difícil. Eu imediatamente disse que sim e Halina gritou:

— Mas se você vai me ajudar só pra comer a minha bunda, não precisa! Juro pelos cristais do Santo Daime, pelos búzios da macumba e por tudo que é sagrado... que me deu vontade de rir. Como e por quê tal alma destruída podia falar algo tão absurdo? Da mais fina e educada flor ela se transformou num marinheiro de rebocador, desses sem educação, sem berço e com sentimentos endurecidos e envelhecidos pelo gosto amargo da desesperança e da decepção. A vontade que tive de rir ou porque ela me olhou com seu olhar de carrasco e senti que o tempo estava pra mudar e a baiana ia rodar.

Ao chegar no pão de queijo, ela já estava possuída. O olhar travado e os dois polegares rodando sem parar no telefone me davam a certeza. Pedi o café e propus carinhosamente uma conversa pra ela deixar o telefone de lado um pouco. Ela se levantou, não sem antes de me fuzilar com os olhos e pediu o pão de queijo pra viagem. Eu a chamei, chamei outra vez, mas ela me olhou com desprezo e foi pro carro. Larguei o café e fui atrás. A distância do pão de queijo até sua casa é de menos de um quilômetro. Nesse trajeto ela fez tanta coisa, tanto escândalo, que ao lembrar disso procuro minha culpa e me perdoo. Halina começou a dirigir sem olhar pra frente, rodando os dedos no telefone. Deu uma fechada num senhor e xingou o homem bem alto como se a culpa fosse dele.

Ela gritava, o alarme do cinto apitava, mas eu não conseguia mais ouvir. Pra mudar de assunto lhe pedi um pão de queijo e isso a fez dar um o à frente na loucura. Ameaçou jogá-los na minha cara. Eu, já nervoso, dei um tapa no saco do pão de queijo, amassando tudo. Ela me chamou de louco, parou seu carro ao lado da polícia e falou que ia dar queixa de mim, que eu ia ser preso. Arrancou

com o carro me dando uma violenta e covarde cotovelada, deixando um grande e doloroso hematoma onde sempre foi abraço.

Até hoje é ruim dormir em cima desse braço. Assim como até hoje me faz falta nosso abraço. Nossa manhã foi um perfeito tobogã. Subíamos as ladeiras e lá de cima ela nos fazia despencar. Mas antes que seu cuco anunciasse a chegada da noite eu já estava em sua casa olhando seus filhos, como ela havia me pedido. Tentei falar com Halina algumas vezes, mas ela não me respondia. Já eram quase nove da noite quando ela telefonou pra filha perguntando se eu estava lá.

Desligou e me ligou logo em seguida. Dei um sorriso achando que ela tinha sentido minha falta. Mas na verdade era só pra pedir que eu comprasse um remédio tarja preta pro pai de santo. Acho muito provável que ela só não terminou nossa história nesse momento porque sentia um profundo prazer em me dominar, em me manipular. Quase sem perceber fui rebaixado de seu namorado pra seu empregado, subordinado ao seu desejo e coração.

Afinal, quem ligaria pra onze farmácias até encontrar o tal remédio e comprá-lo sem aceitar um não pela falta da receita? Convenci o entregador da farmácia a trocar a receita exigida por uma sincera gratificação. Abri o armário dela, peguei a grana do remédio e paguei do meu bolso o elegante e discreto suborno, que custou o preço do medicamento.

O prazer e a dor são irmãos. Difícil é perceber o espaço e a distância de quem sente prazer em machucar um inocente e a dor de quem se ajoelha ao seu carrasco, na hora do seu sangrento fim. Eu nunca entendi como uma entidade tinha hora e dia marcados pra descer e possuir o seu cavalo. Mas o santo parecia ser britânico, pois jamais descia atrasado. Halina me pediu que eu fosse ao barracão e levasse comigo doze moedas de um real, cravos brancos, dois baralhos, sete dados, velas brancas, pretas e vermelhas e mais uns copinhos de cachaça.

Quando eu chegava era sempre do mesmo modo, eu me encostava num muro e ninguém falava comigo. Até a hora em que ela vinha pegar o que me pediu pra comprar e novamente eu ficava sozinho esperando... e sentindo que não era bemvindo. Encostado naquele muro, por infinitas razões eu era um cosmonauta distante, viajando no meu espaço interior. Eu me sentia longe de mim. Mas sem que eu soubesse, aquela era uma noite diferente. No céu as estrelas pareciam ter se apagado no breu da escuridão. As pessoas tinham nos olhos um brilho cego e possuído. Pareciam somente cabeças humanas com rostos e expressões que, encurraladas na solidão, eram movidas por atrações e estímulos sensoriais.

Choros, desacertos e rezas mortais. A noite era de festa e eles dançavam, cantavam e festejavam como espíritos sem alma, objetos sem luz. Me fazendo perceber que o fanatismo e a bondade jamais andam juntos. Quando os tambores se calaram por um instante pude ouvir um choro agudo que, de tão desesperado, poderia partir uma taça de cristal. O ar ficou tão denso que dava pra sentir o mal à espera do final. Olhei e vi um cabritinho que não devia ter nem três meses amarrado pelo pescoço numa árvore qualquer. Percebi o que estava pra acontecer e senti um forte e imenso arrepio, desses que te congelam por dentro.

Apesar de Halina não olhar pra mim eu não tirava os olhos dela e assim pude ver o seu lado mais obscuro. Eu não entendia como aquela mulher tão fina e com uma beleza tão iluminada tinha acabado num mundo tão escuro amarrada em uma possessão que fazia dela um esfregão de barracão. Ela ria um riso

ensandecido e parecia uma megera com os olhos de Tandera e seu corpo de Quimera.

Dava pra ver que Halina sentia prazer em saber que, para os outros, a vida era só questão de viver ou morrer. E que naquela festa de noite sem lua era dia do cabritinho servir ao sacrifício pagão, por um motivo fútil e sem razão. Olhei novamente na direção da árvore, alguém pegou o cabrito e o levou até um círculo feito de giz, carregando-o de cabeça pra baixo. A festa chegara ao seu melhor momento e sem tristezas ou arrependimentos deram início ao sacrifício. Coube ao dono da festa, o santo, a honra de cortar o pescoço do animal, dando fim de uma forma precoce à sua vida.

O cabritinho, percebendo a sua sorte, chorava... e como ele chorava. Pedindo compaixão a quem não tem coração e desconhece o que é perdão. Enquanto o santo dançava com um copo na mão, os olhos de Halina, sempre tão azuis, pareciam mudar de cor. E no reflexo das facas que ela segurava, eles foram ficando vermelhos, como o sangue amaldiçoado que estava pra ser derramado.

Me recusei a ser plateia de tanto delírio e maldade. Me deu vontade de agarrar o bicho e sair correndo dali. Mas eu sabia que se fizesse isso eu é que ia parar no círculo de giz e ela com certeza teria ainda mais prazer em servir as facas ao santo. Fui embora daquele palácio de horrores construído sobre o fogo que destruía sonhos e amores, onde o bem de todos não era um desejo em comum. Saí a pé por Santa Teresa, triste de ver o que se faz em nome da fé.

Desolado por saber que a mulher que o acaso me fez amar poderia, com seu jeito bipolar, ser uma, duas e até mais Halinas diferentes. Mas que infelizmente em nenhuma delas eu veria algo de bom. E ainda que eu fosse um louco, um Deus ou um temporal, mesmo que eu pudesse decidir o destino do bem e do mal ou que eu pudesse morrer pra fazer tudo renascer, o caminho do nosso amor seria infeliz e sozinho. Como aquele pobre cabritinho, que naquele momento já estava sendo desovado por Halina em qualquer encruzilhada escura e deserta de Santa

Teresa.

Os dias avam com pressa e já era a sexta feira que me traria o fim de semana mais desesperado e louco de todos, como nunca imaginei estar vivo pra viver, me ensinando que uma simples noite pode se transformar no mais violento açoite. Nós não fazíamos mais nada, mal namorávamos, era só trabalho e macumba. Eu não reclamava, sempre aceitei que conheci Halina assim e que não adiantava tentar mudar.

Seus filhos viajaram e tínhamos a noite só pra nós dois. Ela foi trabalhar e combinamos mais uma vez de beber um vinho. Arrumei e perfumei a casa com afeto e limpei do chão ao teto. Fui na rua, comprei a bebida e uma lâmpada que rodava colorida, enchendo o quarto de estrelas. Comprei muitas pétalas de rosa, deixei tudo como ela gostava e decorei até sua porta. Eu a chamava pelas quatro primeiras letras do seu nome e assim escrevi com as pétalas em cima da cama: HALI

— . Eram dez horas da noite quando ela ligou falando que ia tentar vender um projeto com uma amiga num evento.

Falei que ia encontrá-la e Halina respondeu:

— Você ficou louco? E desligou o telefone na minha cara. Percebi que mais uma vez não faríamos nada. Cansei de esperar e fui pra rua, sentei numa calçada, todo arrumado e triste, pois essa seria ‘nossa’ noite. Bebi duas cervejas, fiquei vendo todo o movimento, todo mundo conversando, namorando e eu vestido de branco largado na calçada. De repente Halina me ligou e pensei ‘agora ela deve estar vindo’. Fiquei feliz. Mas quando atendi a ligação ela só perguntou se eu tinha mexido no seu telefone. ei dias, semanas e meses sozinho naquela casa e nunca procurei ou mexi em nada. Sempre fiz valer a confiança que ela depositou em mim. Halina, ouvindo o barulho, me perguntou onde eu estava. Quando eu disse que estava na rua ela começou a reclamar que eu não devia ficar na esquina, que encruzilhada não é lugar pra se sentar e que eu ia ficar bêbado.

Acabei a cerveja e voltei pra casa. Já ava de meia-noite quando ela chegou e eu achei que ficaríamos em paz. Ela entrou calada, cansada, subiu pro quarto, não falou uma palavra sobre as flores. Olhou pra cama e disse:

— Meu nome não é esse. Tirou a roupa, jogou as pétalas no chão e se deitou. Antes de dormir, só murmurou uma coisa:

— Amanhã você limpa isso.

O dia infelizmente amanheceu e o que aconteceu foi simplesmente a mais descontrolada e imperdoável loucura que já fui testemunha e ao mesmo tempo coadjuvante. Halina acordou inspirada. Não entendo como alguém pode abrir o olho e, num instante, sem nem mesmo olhar o sol que entrava pelo quarto, trazer uma nuvem tão pesada e carregada que apagava a luz do dia, roubando dele a energia e o deixando tão sem graça como uma música que não possui letra ou melodia. Dona de um incorrigível vocabulário, ela me ofertava uma grande lista de xingamentos e ofensas: porco, mentiroso, ogro, babaca, duro e etc... mas nessa manhã ela realmente soube se superar.

Eu escrevia poemas pra ela e os publicava nas minhas redes, muita gente gostava, curtia e comentava, mas ela não. Curtia tudo de qualquer um, menos as coisas que eram escritas por mim, pra ela. Um dia ela me falou que parou de me curtir porque sentia ciúmes das outras pessoas que gostavam, que eu já tinha muitas fãs e não precisava de mais uma. Mal sabe ela que tudo aquilo, as publicações, os textos, os poemas e aquele coração exposto, só existiam por causa dela.

Sua rede social se parecia com a de muita gente: falsa, fria, sem corresponder à realidade, com o que a pessoa sente, vive ou com o que de fato é. Um mundo onde só importava a aparência. Uma falsa felicidade num mundo fútil e irreal pra

inglês ver, fingindo que é o que não consegue ser. E quando eu disse que ela tinha vergonha de mim nesse mundo, ela me falou com todas as palavras:

— Eu não tenho vergonha de você nas redes sociais, eu tenho vergonha de você na vida, você é descartável! E talvez essas tenham sido suas palavras mais doces naquela manhã.

O namorado da sua filha ligou nos dizendo que a menina tinha se sentido mal e tinha ado a noite no hospital, mas que não quis avisar a mãe porque já tinha avisado o pai, que morava longe e estava no Rio. A filha não quis deixá-la preocupada. Lembrei da menina falando que sempre que precisava ir ao hospital sua mãe ficava histérica e isso piorava muito a situação. Então, preferia chamar o pai. Halina falou que sua filha fazia aquilo pra chamar a atenção, ligou pro pai da menina e disse que não ia ao hospital. Deu uma desculpa com os olhos para baixo, como era de costume quando lhe faltava a verdade e pediu a ele que asse lá pra pegar uma roupa pra menina.

Ele foi e ela me pediu pra eu esperar no quarto, não queria que ele me visse. Na verdade, o que a impediu de ir ao hospital é que sábado era dia de candomblé. Ela amava demais os filhos, mas também amava muito o pai de santo, talvez até mais. Não cabe a mim julgar ou tentar adivinhar pra que lado da balança de libra pendia seu coração e sua intenção, mas era isso que parecia. O dia foi andando e a cada quarto de hora ela voltava com as ofensas, com as ironias. Entre o intervalo de um e outro momento de pânico, as coisas acalmavam. Sua cachorrinha subiu no seu colo e eu tirei uma foto. Ela me pediu a foto, publicou e escreveu: foto by Ogro.

Ela se divertia me ofendendo, viciada em me machucar, em me enfraquecer e exercer seu poder sobre mim. Isso a fazia esquecer da verdade por alguns momentos e acreditar que todas as muitas frustrações e problemas que ela tinha eram culpa minha e não dela. Era hora de ir pra macumba e eu queria muito ir pra minha casa, eu estava muito perto do meu limite. Já sem paciência, com

receio de fazer uma besteira que eu me arrependesse depois, falei que ia embora. Ela, mesmo me acusando de não respeitar sua privacidade, sua liberdade e de reclamar que eu não saía da sua casa, me pediu mais uma vez pra ficar e com a cara mais lavada do mundo pediu pra eu tirar as teias de aranhas dos cantos. Fiquei novamente sozinho naquela casa enorme.

O cérebro fervia, a cabeça doía e o sangue ardia dentro de mim. Eu não conseguia entender porque eu resistia, porque eu não ia embora, porque não a deixava pra trás. Eu não me reconhecia. Antes que minha cabeça pegasse fogo me joguei na piscina e fiquei lá um tempo, até ir ando a adrenalina da nossa manhã ‘calma” de carinho e afeição.

Quando me senti mais tranquilo, escrevi um pequeno poema falando de ogros e mandei pra ela. Halina respondeu com um coração, mas eu não respondi.

Ela então me ligou toda doce e amorosa, falando que estava com saudade de namorar e me convidou pra bebermos o vinho que não bebemos na noite anterior. Fiquei feliz e achei que finalmente teríamos uma noite boa, como costumávamos ter. Ela chegou quase onze da noite. Eu arrumei tudo, catei uma infinidade de teias de aranhas e reguei suas plantas, porque de manhã ela tinha reclamado que eu tinha que molhar as plantas três vezes ao dia. Eu já molhava duas vezes e agora ela queria mais uma. Eu nem tinha plantas na minha casa, mas se fosse pra ter um pouco de sossego eu regaria até as plantas me pedirem pra parar.

Todo feliz, corri e abri a porta pra ela, que mal me olhou na cara. Já acostumado, não tentei abraçá-la nem falar muito. Ela subiu, foi tomar banho eu fiquei lá em baixo, lhe dando espaço. Já não entrava mais no banheiro para vê-la nua no chuveiro. De repente, um grito. Começou tudo de novo, só que dessa vez não era coisa pra amador. Eu nunca tinha visto tamanha agonia e descontrole.

Halina começou a xingar, me chamando de porco, de filho da puta, de fodido. Eu subi, entrei no banheiro e perguntei:

— O que aconteceu?

— Que merda é essa no chão do box?

Olhei e vi quatro gotas coloridas.

— É só um pouco de shampoo... joga água em cima que sai.

— É essa merda de shampoo de coco que você comprou pra mim? Você acabou com meus shampoos importados! Vc acha que eu sou tua mãe, pra pagar shampoo pra você? Seu merda!

Eu, quase sem cabelo, pensei na minha vasta e longa cabeleira acabando com o shampoo de alguém e respondi:

— Eu não comprei nada! Eu só paguei, quem comprou foi você!

— Você é um fodido! Isso é que dá eu me meter com um merda!

— Eu não sou um fodido, sou um profissional conhecido no mundo da música.

Tenho meu talento e não devo nada a ninguém. O que está acontecendo, não íamos tomar um vinho?

— Você gostou de ficar aqui? Pegou sol? Aproveitou a piscina? Não te cobrei nada! Está pensando que isso aqui é clube?

Eu não acreditei que ela pudesse falar aquilo. Por pensar que nosso sangue corria na mesma veia eu ei a tarde inteira catando cada teia daquela feiticeira disfarçada de sereia, pra então ouvir ela dizer que eu estava me divertindo. E tudo por causa de quatro gotas de shampoo. Ela disse então que estava com fome e que queria comer.

Novamente lembrei da sua filha, que também tinha dito pra jamais ficar do lado de sua mãe quando ela estivesse com fome. Sugeri sairmos pra jantar. Sem parar de falar nem mesmo pra respirar, Halina se vestiu. E aí... bem, era aí que a mágica acontecia. Com os olhos azuis, o corpo dourado e seu cabelo prateado, ela entrou linda de matar num vestido abençoado. Ela era tão maravilhosa a bordo daquele vestido que me fazia esquecer de toda e qualquer blasfêmia que eu tivesse escutado de sua boca.

Pedi a Deus que ele me ajudasse e que me desse somente algumas horas de calma e amor, que eu pudesse ar a noite salivando os beijos dela. Eu devia ter pedido ao santo também, porque Deus não pôde me ajudar. Desconfio que nada era capaz de acalmar aquela fera, talvez se eu simplesmente morresse ela ficaria mais calma e feliz. De um jeito enlouquecedor, na beleza e no mau humor, Halina se deitou na cama e falou que não ia a lugar algum do meu lado, que queria distância de favelado. Falei então que eu sairia sozinho pra comer. Ela respondeu me acusando de lhe abandonar e dizendo que não esperava outra coisa de mim.

Me mandou embora. Eu observava sua confusão mental. E sem conseguir lhe querer mal, resolvi insistir no jantar, mas sabia que nada ia acontecer até que eu me dobrasse de joelhos e jogado no chão me colocasse em suas mãos. Pedi que parasse de brigar comigo, que fôssemos comer, eu pagaria. Mas como era normal até pra fazer compras ou botar gasolina no seu carro, não bastava querer e poder ajudar, eu tinha que implorar. Já não esperava que ela fosse agradecer ou dar valor. Halina finalmente se levantou xingando tudo e todos e resolveu ir jantar comigo.

O que eu estava pra viver naquela noite era algo que nem nos meus mais sombrios pesadelos eu poderia imaginar. Entramos no carro, descemos a ladeira e ela recomeçou. Em certa ocasião lhe falei que meu pai era um artista, um ‘príncipe da música’. Assim ele era conhecido e assim era chamado. E ela, não sei o motivo, resolveu falar do meu pai, que tenho certeza que se remexeu na cova por, como eu, não entender o que aquela doida estava falando:

— Você disse que seu pai era um príncipe... é ruim, hein?! Ele era um favelado como vc! Porque pra criar um merda, só sendo outro merda! Fui perdendo a paciência. Eu tinha o maior respeito pelo seu pai, por que ela tinha que tratar o meu assim? O desespero e a demência estavam só começando. Se eu soubesse o que estava por vir teria pulado do carro antes, mesmo com ele andando. Eu tinha tido até ali pra aprender a conviver ou acabar com tudo, mas confesso, fracassei. Bastava ouvir a sua voz que eu esquecia de mim e de toda e qualquer maldição que ela, sem alma e coração, despejava sobre a minha cabeça. Halina prosseguiu. Do meu pai, partiu para as mulheres:

— Você tá acostumado com piranha, com favelada, não sabe o que é ter uma mulher do meu nível! Você não me merece! Mal sabia ela que em todos os sentidos, ela foi a mulher mais piranha e maravilhosa com quem já me deitei. E que toda e qualquer mulher que me envolvi, sendo de classe ou não, era muito mais amiga, leal e normal do que ela. Afinal, Halina demonstrava ser tão normal como alguém que se diverte acariciando um punhal.

O carro ia andando e ela gritando. Pra mudar de assunto, perguntei onde íamos jantar. Já era quase uma da manhã, perdemos um tempo precioso enquanto eu implorava pra sairmos. Sugeri que fôssemos ao Cervantes e ela falou que lá era um botequim, uma ‘larica da madrugada’, que não queria ir. Sugeri ir ao Lamas comer o seu famoso bife.

Ela falou que não comia ‘bife’ e que merecia o filé do Maxim’s no Copacabana Palace. E que não acreditava que eu não tinha feito uma reserva num restaurante de luxo. Como reservar algum lugar pra ir jantar com alguém que só voltava pra casa quando o pai de santo liberava, quando não precisava mais de seus serviços? Halina repetia todas as ofensas, agora na ordem contrária. Começou pelas mulheres, ou pelo meu pai até chegar em mim novamente. Duas veias pulsantes saltaram em sua testa. Isso a deixava feia e de fato foi a primeira vez que eu não a achei bonita

Eu via a beleza e o encanto do seu rosto marcados pelo ódio e pela raiva. E esperava desesperadamente por um milagre, por algum segredo guardado, algo que me fizesse achar que as coisas pudessem se acalmar. Aflito, eu guardava o grito. Não queria aumentar a fartura de conflito que ela vomitava em mim. Mudando de foco, começou a falar da gasolina.

“Me dá a gasolina que você me fez gastar! Não quero jantar, não quero mais nada! Só a gasolina! Malandra... sem gasolina pra ir pra macumba no dia seguinte e sem grana, me cobrava.

— Você não gastou comigo nem três litros. Falei com a maior frieza que já consegui ter.

— Você me deve a gasolina, seu merda!

— Não sou um merda... sou, no mínimo, seu amigo.

— Não tenho amigo favelado, muito menos um ogro e mentiroso como você!

— Se você se acalmar e a gente puder jantar eu até encho seu tanque. Para ali no posto que eu vou tirar o dinheiro.

E o que era tão simples, como parar num caixa-eletrônico, se transformou em mais um inferno. Ela andava em círculos, sem parar em nenhum posto. Seguia em frente reclamando, falando com sua complicada arrogância que queria a gasolina. Eu me sentia à deriva num trem fantasma. Tudo poderia acontecer e estar a seu lado naquele momento era como ser um kamikaze. Finalmente ela entrou num posto e me disse que queria comer um polvo na praia do Leme.

Olhei pro caixa, olhei pro meu saldo e pensei em quanto deveria custar um polvo num restaurante pra turistas no mês de dezembro. Mas se era pra acalmar, que mal poderia fazer? Enquanto eu pegava o dinheiro ela espertamente parou na bomba e pôs a tão desejada gasolina. Tenho certeza que se eu não tivesse que pagar ela me deixaria ali mesmo. Eu sabia que a qualquer momento eu poderia ser abandonado, quando ela já tivesse a gasolina e não precisasse mais de mim. Ia me largar na rua, me deixar na mão. Isso era a cara dela.

Cobra criada, pipa voada, ela era muito mais covarde e esperta do que eu jamais fui. Sua maldade e falsidade não tinham fim. Mas naquele ponto da vida eu já tinha perdido o medo das cobras, eu ei a enxergá-las com os olhos e o coração de um gavião. Sei que teria sido muito melhor se eu tivesse ficado ali,

mas não era tão simples assim, a chave da minha casa estava dentro da minha bolsa que estava dentro do seu quarto, que estava dentro da sua casa, lá em cima em Santa Teresa. E por motivo algum eu ia dormir na rua. Fomos para o Leme comer o polvo milionário. No carro, amos uns poucos minutos em silêncio, tão raro e caro em nossa relação. Mas isso era somente à espera do próximo grito e logo ela voltou à carga. Falou com seu jeito estúpido

— Se você fizer um só escândalo eu vou embora e te largo lá! Fiquei em silêncio, não lembrava de um único momento em minha vida que alguém tenha me acusado de fazer qualquer escândalo que seja. Chegamos ao restaurante, ela estacionou e repetiu:

— Sem escândalo, liga o filtro! Saiu do carro feito louca e com seus os largos sumiu na minha frente. Apertei o o, encostei do seu lado e sorri pra ela.

— Vamos ver se essa merda está aberta e se presta! Ela falou.

— Se é uma merda vamos a outro lugar, sem problemas. Retruquei. Nesse momento ela deve ter recebido alguma pomba gira, algum tranca-rua, porque o que aconteceu a partir daí não era possível de explicar ou acreditar. Perturbada e sem equilíbrio, ela explodiu:

— Chega!! Eu avisei que se você fizesse escândalo... acabou! Vou embora! Deu meia volta e, possuída, voltou pro carro.

— Que escândalo? Não fiz nada! Ela não parou e já quase no carro botei a mão em seu braço. Halina gritou bem alto, num grito desesperado e ensurdecedor.

— Me larga! Filho da puta! Socorro, ele está me machucando! Eu mal tinha encostado nela. Antes que eu contasse até três eu estava cercado de gente me xingando de ladrão, de bandido:

— Covarde! Larga a moça! Polícia, pega ladrão!

Nunca fiz mal a ninguém, sou honesto, trabalho, isso não era justo. Enquanto a pequena multidão se preparava pra me linchar ela entrou e ligou o carro, ia me deixar lá. Não como imaginei, mas desse jeito cruel e mentiroso, exatamente como ela. De maneira nenhuma eu ia dormir na calçada por causa daquela macumbeira maluca. Ela já ia arrancando com o carro em movimento quando eu, sem pensar e numa agilidade inexistente em mim até aquele momento, abri a porta de trás e como quem mergulha numa piscina me joguei de cabeça no banco. Bati o pescoço na outra coluna do carro e caí em cima das coisas do santo.

A porta fechou no vácuo causado pelo movimento e bateu com força em minhas pernas. A doida saiu em disparada avançando o sinal e eu ainda tive tempo de ver a polícia chegando para provavelmente me prender. O carro dela tinha seis marchas e na terceira ela já estava a cento e quarenta quilômetros por hora, fazendo a curva só em duas rodas. Eu comecei a sacudir no banco de trás e na primeira curva bati com a cabeça no vidro da janela. Sentindo que ia acabar me machucando, pulei pro banco da frente e botei o cinto. Ela me olhou com cara de raiva e gritou:

— Tá com medo? Enfia o dedo na bunda!

— Dedo na bunda? Já enfiei muito, você sabe. Respondi com cinismo, ironia e

vontade. Ela, vendo a verdade nos meus olhos, me deu outra cotovelada no braço, deixando-o muito mais roxo do que já estava. E berrou fazendo com que as veias que a deixavam tão feia saltassem novamente na testa:

— Filho da puta! Grosso! Escroto! Isso é coisa que se fale? Pra ela eram sempre dois pesos, duas medidas. Ela podia falar e fazer o que quisesse, mas eu tinha que me calar e lamber os seus pés. Ao entrar no Aterro do Flamengo, Halina ou a sexta marcha e acelerou. Olhei pro velocímetro que marcava cento e setenta quilômetros por hora e com o motor cheio, tinha fôlego pra muito mais. As luzes do aterro avam voando feito um Boeing decolando, os pneus do carro branco tentando fugir da calçada cantavam uma canção desesperada como ela. Alucinada, destruída e possuída por um santo embriagado e atormentado. Gritei:

— Tá maluca? Você vai matar a gente! Ela feito louca, sem controle algum, gritou mais alto.

— Eu me garanto! Aqui sou eu! E com o rosto transfigurado tirou as duas mãos do volante, delirando e levantando os braços: EHH Babá!

Em seguida soltou um monte de palavras em macumbês, que eu não entendia. O alarme do cinto apitando e ela gritando com as mãos pra cima deixavam o carro desgovernado ir pra onde ele quisesse. Olhei pra ela por um segundo e tive certeza: por mais maravilhosos que sejam os olhos e o rabo, eu tinha me juntado com o Diabo, mas mesmo que eu estivesse com a minha chave de casa no bolso eu não a deixaria sozinha naquele estado. Eu iria com aquele encosto até sua casa e como num despacho largaria em segurança aquele ebó. Subimos pela Glória em direção à Santa Teresa e eu ainda tentava fazer com que ela se acalmasse e que pudéssemos jantar. Mas à essa altura, nessa loucura, só seu pai de santo poderia trazê-la de volta do inferno, pra onde ela insistia em me arrastar. Minha paciência chegara ao fim e comecei a lhe dizer verdades, mas nem sempre a verdade é bem-vinda e no seu caso só serviu pra aumentar o tamanho

das veias, deixando Halina mais feia e pesada.

Ela então diminuiu a velocidade, mas não o suficiente porque o carro seguia derrapando nos paralelepípedos e nos trilhos do bonde. Quando gritei que isso poderia causar um acidente ela acelerou mais ainda. Comecei a sentir o carro derrapar a traseira em cada curva e falei que se ela não parasse eu ia puxar o freio de mão. Faltava muito pouco pra gente começar a brigar de verdade e até mesmo sair no tapa. Tudo isso era muito triste, porque muitas vezes amos naquele caminho rindo, felizes e nos agarrando. E em muitas dessas vezes eu a fiz gozar só ando a mão nela, onde agora ela me xingava e me ameaçava. Já quase em ebulição, Halina parou na porta do barracão e mais uma vez gritou:

— Vou acordar meu pai de santo e ele vai te quebrar todo! Me ameaçou.

— Chama! Chama ele e o Santo também! Eu não devo nada a ninguém, não fiz nada com você, só te amei e te ajudei, por que você tem que fazer isso tudo? Eu não tenho medo de nada, não tenho medo deles e muito menos de você, serpente em forma de mulher!

Nessa noite percebi que cada um é o que é e oferece o que tem pra oferecer. Seria ingenuidade demais esperar que uma cobra tivesse mais do que veneno pra me ofertar. Viver a vida da serpente pode até ser atraente, mas sua violenta e descontrolada arrogância não percebia que um dia a cobra cobraria o próprio preço. Ela arrancou de novo em velocidade e foi me xingando até em casa. Ao chegarmos eu só queria pegar minha bolsa e minha chave, mais nada. Queria ir embora.

— Na minha casa você não entra de jeito algum! Eu vou pegar as suas coisas, aqueles lixos de favelado!

— Se eu não entrar você também não entra! Ameacei.

— Como assim, vai me proibir de entrar na minha própria casa?

— A casa não é sua, você só mora aí e de favor. Não confio em você. Se você entrar, vai me deixar aqui e eu não quero dormir na rua por conta da sua loucura.

— Na minha casa você não entra!

— Eu não quero nada da sua casa, muito menos de você!

Se eu não entrar você também não entra!

— Vou chamar a polícia!

— Chama! Vou amar ver duas viaturas com as luzes acesas na frente da sua casa, os vizinhos vão adorar.

Ela tentava desviar e entrar, mas eu parava na sua frente e não a deixava ar. Ficamos assim por um tempo. Já sem mais ar aquela situação falei pela primeira vez sobre a patologia que ela tinha

— Sabe o que você tem? - Ela parou curiosa. -Síndrome de comportamento narcisista! É uma doença, uma patologia! E o pior é que não tem cura! Halina me olhou assustada e deu uma risada de bruxa que me fez tremer da costela à alma. Começou a andar pela rua sem saída e eu fiquei parado na porta. A lua brilhava, o céu todo estrelado iluminava Santa Teresa, mas ali sobre as nossas cabeças só haviam nuvens pesadas, chuvas e trovoadas. Eu estava decidido. Ela voltava e tentava me driblar pra entrar. Se entrasse me deixaria na rua e talvez ainda jogasse fora as minhas coisas. Ela estava possuída por algo que não fazia parte do meu mundo, que eu não tinha capacidade de lidar. Procurei ficar esperto pois sabia o quanto ela podia ser traiçoeira e má. Halina ficou nervosa de novo, começou a gritar e partiu na minha direção. Olhei sério pra ela e tentei impedir.

— Se você me bater vou sair na mão com você! E que se dane o que vai acontecer, não estou nem aí! Lei Maria da Penha, polícia, santo ou pai de santo! Não fiz nada de errado com você, mas vou me defender!

Já estávamos ali parados com ela me ofendendo há duas horas, tão diferente e distante da primeira vez em que gastamos as mesmas duas horas nos beijando. Ela é, com certeza, a pessoa mais interessante e interesseira com quem já convivi. Ela sabia como fingir, como mentir. De repente parou de me xingar e com cara de debutante que vive seu primeiro romance me falou de um jeito doce:

— Você tem um cigarro? Por um cigarro ela podia ser quase gentil, mas por mim, por nós, não.

— Por que você acha que eu vou te dar um cigarro? Me dá só um motivo.

— Poxa, só um cigarro, você não pode fazer isso?

— Não! Você não merece nada de mim, nem mesmo uma fumaça.

Ela insistiu quase implorando, sendo falsamente doce. Dei o cigarro achando que ia acalmar um pouco, mas foi só acender que tudo voltou. As ofensas, o olhar de louca e os berros. Seus olhos já não tinham cor. Dor, raiva e revolta, era só o que ela que sentia. Depois de três horas que estávamos parados na porta sem conclusão nem solução, Halina ligou pro irmão e o acordou. Pediu que ele fosse até lá, mas o irmão já a conhecia e sabendo de toda loucura sem cura que a dominava, não quis sair da cama e se recusou. Ela falou pra ele que eu estava fazendo um escândalo na sua rua, que eu não a deixava entrar em casa. Com o celular no viva-voz, ouvimos soar as palavras do seu irmão gêmeo.

— Pelo que vejo é um caso de desconfiança mútua. A solução é você deixar seu telefone com ele na porta, entrar e trazer as coisas dele em troca do seu celular.

Ela respondeu que não deixaria o telefone porque não confiava em mim. Talvez ela achasse que eu descobriria os seus muitos segredos, mas eu só queria ir embora. O irmão então sugeriu:

— Deixe a chave do carro e ser der algum problema eu vou aí. Mas não vou sozinho. Estou falando alto para ele me ouvir!

Resolvi me colocar:

— Boa noite, tenho muito respeito e iração pelo senhor. Não precisa me ameaçar, só quero ir pra casa, não quero e não vou brigar com ninguém. Se o

senhor vier me bater eu não vou nem me defender, pois nunca briguei na minha vida. Mas não vou dormir na rua por causa dela. Sei que ela vai me deixar na mão, como já fez outras vezes. Ela então aceitou o acordo, deixou a chave do carro e entrou na casa. Trouxe minhas coisas e eu finalmente pude ir embora exausto, desgastado e sem entender como o amor que vivemos se transformou nesse inferno sem fim que aos poucos ia dando cabo de mim. Eu tinha a mais cega certeza de que aquela criatura sem luz, sem culpa e sem cuidado, com algum prego enferrujado havia grudado meu coração na cruz.

Fui pra casa e liguei pra ela, que atendeu e disse estar magoada comigo, que eu não tinha o direito de fazer aquilo. Estava mais calma, sem xingar, mas ainda agressiva. Eu procurava desesperadamente uma solução, mas toda vez que achava uma saída, eu acabava de novo em sua vida. Eu já nem tentava mais entendê-la, eu tentava era entender por quê eu não conseguia virar as costas e ir embora. Me pergunto isso todos os dias a cada manhã e em todas as noites que fecho os olhos sem dormir.

No dia seguinte fui ler novamente sobre a tal patologia narcisista e descobri algo que além de me fazer entender onde eu havia me perdido, me abalou muito e me transformou: eu também estava doente. Sua doença, como uma flecha em chamas, tinha me atingido em cheio. Entendi que eu era um codependente, uma pessoa que deixa o comportamento de outra afetá-lo. Estava escrito:

— O codependente acredita que sua felicidade depende da pessoa que tenta ajudar, e assim se torna dependente dela emocionalmente, sendo excessivamente permissivo, tolerante e compreensivo com os abusos do outro, mesmo que este seja controlador de forma excessiva, perfeccionista e autoritário. É comum que o codependente coloque as necessidades do outro acima de suas próprias. Pode ocorrer em pessoas que lidam com narcisistas. Padrões de codependência não resolvida pode levar a problemas mais graves como alcoolismo, vício em drogas e outros comportamentos autodestrutivos. É preciso que o codependente tenha um acompanhamento psicológico.

Eu fiquei sem ação, lendo e percebendo que os narcisistas são os novos vampiros. Sangue era coisa do ado, eles agora sugavam sua energia. Vampiros energéticos. Por que eu? Por que ela tinha que fazer do meu pescoço o seu almoço? Senti o chão se abrir e nunca mais parei de cair. Tudo em mim mudou. Sem lembrar quem eu era, nada mais me alegrou. Eu sabia que tinha que a deixar, não havia mais tempo pra ficar. Mas amar é também uma paixão... e a dor, o medo e a solidão fazem parte da sua magia

Era só ela me dar a mão que a vontade de ser quem eu queria ser evaporava, me fazendo inventar motivos pra ficar ao seu lado. Mas esse tinha sido um tombo inesperado. E mesmo com toda a avaria que esse novo tombo me causou ele me mudaria por completo, me deixando mais forte, com a mais infeliz certeza de que a partir daquele momento o que tinha sobrado em mim era a falta definitiva dela. As marcas que Halina deixou dentro de mim como um lamento ainda crescem no jardim cortando o vento. E quem sabe no calor de algum momento eu consiga tirá-la do pensamento. Eu sabia que mal ou bem, bem ou mal, nossa conjunção sol e sol era um sinal de que valeu o que o destino escreveu.

Ao descobrir sobre a doença fiquei doente de verdade. ei a me sentir preso. E sem saber me libertar, me transformei num chato, tenho consciência disso. Ela, tendo a certeza de que eu realmente a amava, perdeu o interesse por mim. Não se ama quem tem por você um amor incondicional. O amor precisa de desafios. Eu não era um desafio pra ela e ela era um imenso desafio para mim.

Nosso amor virou um cão sem dono, que só late quando morde. O desejo que o sustentava era uma fantasia perigosa. E eu, um tolo apaixonado que projetava amor onde não existia. Fomos um casal, mas a partir desse dia amos a não ser nada. Ela dizia que ainda gostava de mim, mas tudo que conseguia demonstrar era exatamente o oposto, bastava olhar no seu rosto. Eu me perguntava se ela tinha noção do que fazia. Halina era a união entre a maldade e a perfeição.

Ninguém podia ser assim, ninguém nascia tão boa e tão ruim. Numa das muitas vezes em que eu disse a ela o quanto eu a achava linda, ela me respondeu que não queria ser só linda, que também queria ser legal. Ela tinha consciência disso, mas pra ser uma pessoa legal Halina deveria ter tido a decência de terminar nossa relação de um jeito simples, numa conversa, num jantar, numa mesa de bar ou até mesmo por mensagem de texto. Mas ela bancava o jogo, tinha prazer de fazer o que fazia. E afinal ela poderia precisar, entre outras coisas, do seu massagista particular.

Ela sabia que a banca nunca perdia e quando era minha vez de jogar o seu jogo de azar, sempre que eu tinha na mão um rei, ela ganhava com seu ás de espadas. Ficamos sem nos ver e pra ela responder minhas mensagens já não era algo tão simples. Com meu desejo se transformando em saudade, vendo tudo desmoronar, senti que o vento não vinha mais do mar. Mesmo sem conseguir respirar meu coração ainda tinha pressa de estar com ela. E sabendo que já havíamos ado da metade da nossa história há muito tempo, eu me sentia uma pedra de gelo no mar ou como areia voando na praia, tudo se desfazendo. Por tanto amor e perdão, fui deixando de existir. Rápido e ligeiro fui escorrendo entre os dedos da sua mão.

Na sexta-feira Halina levaria o carro pra revisão. Era o dia do baile de formatura da sua filha, com toda sua família reunida, mas eu não fui convidado. E mais uma vez ela não esteve presente porque era dia de candomblé. A convidei pra almoçar enquanto seu carro ficava pronto, mas nunca mais tivemos qualquer momento leve ou alegre. Era como se eu precisasse ficar dizendo:

— Sou seu amigo! Tivemos um bom almoço com pequenas doses de carinho... até eu comentar alguma coisa enquanto ela estava falando e ela começar a reclamar que eu não a ouvia, que eu só falava. Receio perceber que ela estava certa.

Os dias iam ando e eu já não sabia mais quem era eu e quem era ela. O tempo foi fechando sem chover e eu fechando os olhos pra esquecer. Faltando menos de uma semana para chegada do Natal falávamos de á-lo juntos. Combinamos o que comprar pra ceia e falamos de montar uma árvore natalina. Eu tinha ganho uma bolsa de um curso pro meu trabalho e me sentia privilegiado, já que o curso era importante e caro. Mas durante os três dias de curso eu não consegui prestar muita atenção em nada.

Completamente perdido, sem saber o que sentia, não via sentido em nada. Pedi desculpas ao professor, fiquei muito envergonhado e ele decepcionado, pois jogou fora uma bolsa. Eu não conseguia pensar em nada que não fosse ela e até hoje esse pensamento me assombra. Queria muito me libertar e esquecer do seu cheiro, da sua voz e do seu cabelo. Eu queria minha vida de volta.

Halina precisava pagar o colégio do filho e não tinha o dinheiro todo. Dos mil reais que recebi de um show dei seiscentos pra ajudar no colégio e mais duzentos pra botar gasolina. Fiquei só com duzentos reais para comer, me locomover e me virar.

Finalmente era véspera de Natal e eu queria muito lhe dar um presente. Pedi um dinheiro emprestado a uma amiga e depositei o valor inteiro na conta de Halina, porque ela nunca gostava dos presentes que eu dava. Era melhor dar o dinheiro pra ela gastar com o que quisesse. Logo depois ela me ligou e falou que ia ar o Natal na casa da mãe, que não queria deixar os filhos longe da família nessa data. E embora já tivesse me convidado pra ar com eles, disse que não ia me levar. Como sempre, aceitei. Sonho com o dia em que saberei lhe dizer não pois, de fato, nunca fui capaz de tal ato.

Fui ar o Natal na casa de um amigo, mas não consegui ficar nem meia hora lá. Naquela sala cheia de crianças, família e alegria eu era o próprio anticristo no nascimento de Jesus. Depois de beber três cervejas pedi licença e fui embora. Eu não estava em lugar algum, nem mesmo dentro de mim. Liguei pro professor do curso, desejei feliz Natal e de novo lhe pedi sinceras desculpas. No caminho a pé pra casa ei na casa de outro amigo. Bebemos muito e quando eu não consegui mais segurar as lágrimas, que insistiam em inundar os meus olhos e molhar o meu rosto, fui embora.

ei a data sem jantar, sem comer nem ao menos uma rabanada. O amigo me deu umas cervejas e um maço de cigarro, eu não tinha um centavo sequer. Continuei andando pra casa e quando deu meia-noite e chegou o Natal eu estava andando pela rua vazia. Nas janelas dos prédios eu via as famílias, a alegria dos outros.

Observava o amor que os unia nessa noite de festa, nessa noite toda especial, enquanto isso eu continuava andando e chorando sem parar. E a cada o eu ia ficando mais bêbado, mais solitário e mais triste. Não havia o que pensar, só sentir. Como dói só sentir. Eu tinha a mais cristalina certeza de que eu era um homem sem amor, sem o amor de ninguém, nem dela, nem meu amor próprio. Olhava as estrelas e sentia um imenso desejo de ser uma delas, só porque brilhavam em paz... e paz era algo que eu não tinha mais. Podia sentir o meu coração rachar e a pouca alma que eu ainda tinha, desaparecer. Pouco depois da meia-noite ela me mandou uma mensagem de feliz natal. E por mais que isso tenha me feito feliz, dentro de mim o espírito de Natal morria pra sempre. Cheguei em casa como um fantasma invisível. Era como se o mal tivesse tomado conta de mim e por um bom tempo me senti assim. Bebi até apagar. Ao acordar, feito um bobo inocente e inconsequente, liguei dizendo que queria vê-la... afinal, ainda era dia de Natal.

Ela concordou e falou que me chamaria mais tarde. O dia foi ando e nenhum sinal de Halina. Eu tentava ligar e mandar mensagens, mas tudo que ela me

oferecia era o vácuo. De tarde vi no Facebook dela uma fotografia da ceia, mas não era na casa da sua mãe e sim em sua casa, com o pai de santo na cabeceira da mesa, fartas comidas e a garrafa de vinho que eu tinha comprado pra bebermos juntos.

Ela disse que tinha jogado a garrafa fora, mas lá na foto estava a nossa bebida sendo apreciada por todos, menos por mim. Halina não tinha o menor cuidado comigo, sabia o mal que aquilo me faria e por meia dúzia de curtidas esfregou a mentira na minha cara. Poderia ter me convidado pra ceia, mas preferiu deixar claro que eu era um peixe fora do oceano, que eu não fazia parte do rebanho e que, caralho... eu era a carta fora do baralho.

Eu sentia que o meu destino tinha me transformado num violeiro cego, que aos berros canta por liberdade, amor próprio e compaixão. A situação, por tudo e por tanto, era sem perdão. Não se perdoa a quem vende ilusão ou empresta falsidade. É como falava o santo: “Em roda de malandragem não tem vacilação”. Mas meu estúpido e ingênuo coração ainda queria vê-la no Natal. Lhe mandei uma mensagem dizendo que ela não tinha obrigação de me convidar, mas questionei a mentira. Ela respondeu gritando através de uma mensagem de áudio:

— João! É Natal e tenho muitos lugares pra ir. Se você fosse o homem que eu achei que você era, você estaria do meu lado nisso tudo, mas como você não é, não está! Ela falava como se eu fosse a pior escolha que fez. Sorte e azar, tudo de uma vez. Eu enxuguei meu olho vermelho e perguntei pro espelho que tipo de homem eu era ou não era, pra depois de tudo o que vivemos não poder estar ao seu lado no Natal.

A semana que precedeu o ano novo me deu uma oportunidade inédita. Eu fui gravar num estúdio perto do barracão e aproveitando que ela estava trabalhando longe de lá, arrumei uma garrafa de cachaça, saí do estúdio e fui fazer uma visita ao santo. Ele normalmente nunca falava comigo, só me ignorava. Por várias vezes botei meu nome na lista, mas ele atendia algumas pessoas e a mim, não.

Em duas ocasiões ou andando perto do meu rosto, parou, deu um o pra trás, botou o dedo no meu nariz e disse:

— Cuide da sua saúde, você vai morrer! Eu não levava muita fé, afinal todo mundo morre, cada um na sua hora. Halina arregalava os olhos e fazia cara de preocupação. Chegava a dar a impressão de que ela realmente se importava comigo. Nesse dia que ela não estava lá, com meu jeito atrevido e sincero, esperei até a gira começar, mas antes me coloquei na frente do pai de santo que já estava incorporado pelo Seu Zé Malandro da Estrada.

— Seu Zé, trouxe um presente pro senhor.

— Pra mim? É uma cachaça... você quer me embebedar?

— Eu preciso falar com o senhor, eu preciso da sua ajuda!

— Eu vou falar com você, pode deixar.

Sempre me falavam que eu devia agradecer e pedir em silêncio, que tudo ele ouvia, tudo ele sabia. E eu sempre pedia pra gente se ajeitar, pra tudo se acalmar entre nós. Pedia realmente com fé. Eu queria muito saber o que ele poderia me dizer, o que eu poderia fazer pra resolver. Seu Zé me chamou e entrei no mesmo lugar dos quindins. Antes de eu falar uma única palavra ele disse:

— Eu sei o que você está me pedindo. Mas não vai dar, não! Ela não gosta de você. Eu já lhe falei duas vezes, cuide de sua saúde. Quando você conseguir o

que quer, não vai ter saúde pra aproveitar. Além de ficar doente do corpo, vai ficar doente da cabeça também.

— O senhor não pode ajudar? Perguntei.

— Não! Vá cuidar da sua vida! Cai fora! Vai embora!

Ao contrário da outra vez que estive na sua frente, dessa vez eu não o via de verdade. Algo muito estranho devia estar acontecendo porque as pessoas sempre chegavam com os mais variados e desesperados pedidos e ele era sempre disposto a ajudar. Era só elas dizerem:

— Seu Zé, eu quero conquistar a lua; ele respondia:

— É fácil, traz um litro de gasolina, um velho barreiro, vinte e sete quindins, dezenove galinhas, sessenta e quatro espadas de São Jorge, um bode e três mil reais que eu vou ajudar. Mas comigo, sem chance. Ele nunca ouviu falar em amarração? Pra quase tudo tem jeito, mas Seu Zé deixou claro que a minha presença não era bem-vinda, insistindo na mesma atitude do seu cavalo, o pai de santo, que mesmo que eu estivesse disposto a ajudar, eu sempre era persona não grata. Eu me sentia como a única alma encarnada ou desencarnada da África a Santa Teresa a ser expulso de um terreiro de macumba. Nem mesmo um criminoso sutil que comete os crimes mais perfeitos com uma fé marginal ou o mais violento dos Exus e o mais matreiro dos “Tranca rua” tiveram o meu destino.

Ao sair do lugar dos quindins eu percebi que mesmo com toda vontade, desejo ou saudade que pudéssemos ter um do outro e por mais que o nosso amor fosse

do tamanho de Vênus (nossa estrela guia), nós nunca ficaríamos juntos, nunca diríamos amém. Não dependia de nós, parecia obra do além. Tempos depois, conversando com um poderoso pai de santo da Bahia e com pessoas também bastante desenvolvidas no espinhoso caminho espiritual, todos concordaram: uma entidade jamais faria isso, jamais lhe diria que você ia morrer sem oferecer alguma solução.

As entidades são seres de luz, são o amor pelos elementos, pela natureza, pela vida e pela justiça. Nem que você fosse o diabo encarnado seria expulso do barracão sem que oferecessem ajuda ou alguma chance de perdão. A minha cabeça dava voltas pensando sem parar, cada vez mais sem saber no que acreditar e agora com um tanto para duvidar. Jamais comentei isso com ela, Halina não acreditaria.

Nunca desejei tanto uma coisa como ar o ano-novo ao seu lado. Nunca, nem quando eu era criança e esperava acordado pelos presentes nas manhãs de Natal. Eu sonhava, eu desejava um beijo de ano novo. O mais excitante dos beijos, o mais confortante dos desejos, a sensação de que o ano que chegava nos traria amor, paixão e união. No meio da semana ela me chamou pra almoçar em sua casa. Me disse pra chegar à uma da tarde e que eu levasse chocolate, mas não um qualquer. Foi clara e incisiva na marca, modelo e ano (jamais soube que chocolate tivesse isso). Talvez na Polônia ou em alguma deli da quinta avenida de Nova York eu pudesse encontrar essa pérola de cacau, mas na Tijuca, em pleno calor de dezembro, com o sol derretendo o asfalto e com um assalto em cada esquina, isso não era possível. Comprei os mais caros chocolates que encontrei na Conde de Bonfim e ao tentar conseguir um táxi, descobri que não seria fácil.

Cheguei atrasado quarenta e cinco minutos e quando eu estava bem perto ela ligou reclamando do meu atraso, que isso era irresponsabilidade minha e que como sempre, não esperava de mim outra coisa. Eu esperei por ela o dobro das horas que amos juntos, algumas valeram cada minuto, outras não. Mas eu, por não ter e não ser nada, não tinha o direito de me atrasar. Quando eu cheguei

todos já tinham comido e ela jogou um prato na mesa pra mim como quem serve ração à um cachorro. Me deixou comendo sozinho e subiu pro seu quarto, mas não sem antes me mandar lavar a louça.

Quando acabei o serviço na cozinha ela me pediu uma massagem no pé, mas recomendou que eu ficasse calado e como sempre, invisível. Enquanto eu fazia a massagem, calado e invisível, ela ficava no Facebook e no Instagram. Ia de um pro outro, rindo, curtindo e sem olhar na minha cara. Certa e confiante que seu mucamo faria com esmero e perfeição cada desejo seu. Ao final da massagem ela se irritou mais uma vez e dizendo que ia pro barracão me pegou pelo braço e me colocou pra fora da sua casa. Bateu a porta na minha cara. Nunca mais saí da sua casa sem ser dessa maneira: expulso pelo braço e com o bater da porta ecoando na minha cabeça violentamente.

Na sexta-feira de manhã Halina acordou com sinusite e me pediu que comprasse um remédio para o qual ela não possuía receita. Fui na farmácia, negociei a propina com o farmacêutico e comprei. Combinamos de ir ao Circo Voador ver um show. Ela ficou trabalhando até tarde e eu fiquei no Circo esperando sua chegada. Quase na metade do show ela me ligou me chamando pra ir na sua casa porque precisava do remédio. Fui, lhe dei o remédio e ela pediu uma massagem.

Mal comecei e uma mariposa dessas que chamam de bruxa entrou voando pela varanda. Halina me deu uma vassoura e começou a gritar pra que eu matasse o bicho. Falei que não precisava matar, que era só tirar ele da casa. Ela me pegou pelo braço e me expulsou mais uma vez, batendo a porta na minha cara. Já sem me importar muito chamei um táxi, mas não demorou nem dois minutos pra ela me ligar, me pedindo pra voltar e tirar o bicho de lá. Voltei, acendi a luz e o bicho saiu tranquilo, voando pela varanda da mesma forma que entrou.

Me sentei do seu lado e olhei pra ela, que voou nos meus ombros me abraçando com o mesmo jeito desesperado de sempre, me pedindo raras desculpas. Foi a segunda e última vez que ela fez isso. Era pura mixaria, uma migalha perto da

quantidade de desculpas que ela deveria ter me pedido. Perguntei se queria que eu fosse embora e ela me falou que era pra abraçá-la e deitar do seu lado, mas que eu fosse embora antes dos seus filhos acordarem.

Halina ia receber uma amiga de São Paulo e faria um almoço de fim de ano. Me convidou e me pediu pra ajudar a pagar as compras. A caminho do mercado perguntei se aríamos a meia noite juntos e ela começou a gritar novamente.

— Eu tenho que ir no barracão, vou ar meia noite lá! Depois nos encontramos!

Falei então que a esperaria em Santa Teresa, que seria o único jeito de nos encontrarmos. Ela travou os olhos e berrou com vontade:

— João, nós não somos nada! Entende isso! Nada! Não me segura, não! Para de me impregnar! E começou a fazer o que sempre fazia.

— Não quero mais ir em mercado nenhum, não precisa mais!

Ela mudava assustadoramente a cada segundo, como um furacão sem direção que, de tão perverso, desequilibra e desalinha a linha do mundo. Com a minha paciência de monge finalmente chegamos ao mercado, apesar da minha vontade de saltar do carro com ele em movimento, mesmo sabendo que isso acabaria me machucando. Lá dentro ela fez o que já era esperado, me largou com um carrinho numa gigantesca fila e saiu travada e apressada. Pegava as coisas e jogava tudo dentro sem me olhar e sem falar comigo.

Eu olhava as outras pessoas e todas faziam suas compras em paz, conversando e planejando a melhor maneira de fazer da noite mais importante do ano algo que pudessem chamar de festa. E ela, como se não bastassem as veias pulsando na testa, começou a reclamar que eu estava com cara de assustado e maluco. Não sei exatamente que cara ela poderia esperar que eu tivesse, me sentindo preso em algum lugar entre o limbo e o inferno.

Chegando em casa subimos em silêncio e ela, num esforço hercúleo, me agradeceu. Pediu uma massagem dentro de um vestido tão sedutor que teve um efeito matador em mim. Deitou na cama e eu a peguei, beijei, senti, toquei e pela primeira vez não fizemos amor. Pela primeira vez foi só sexo. Ela deu seu longo gemido e falou:

— Acabou? Tenho que ir buscar minha amiga! E sem nenhum pudor, saiu rápido de baixo de mim. Ela realmente conseguia me deixar na mão em muitos sentidos. Sem saber o que dizer, falei:

— Eu te amo.

Halina respondeu com cara de má:

— Eu também te amo, seu porcaria!

Parei, pensei, não acreditei e nem sei porque aceitei. Pedi uma carona pra casa, mas ela disse que estava atrasada e me largou em cima do viaduto do Sambódromo. Desci a pé numa dança perigosa e sinuosa, tentando me equilibrar e escapando dos carros, ratos, caminhões, pingos de chuva e mendigos. À noite, nesse mesmo dia, fui trabalhar num show e a convidei pra ir. Ela, como sempre,

estava no barracão e respondia minhas mensagens dizendo que já estava indo, só pra me fazer criar expectativas. O show acabou sem ela e eu a convidei pra jantar. Halina falou que seu filho queria ir ao Mac Donald. Me ofereci pra comprar o lanche e levar pra ela, que me deu uma lista enorme, quase indecente, segundo ela mesmo.

3 Big Macs

1 Quarteirão

1 Nugget de frango (grande)

3 Sucos de laranja

2 Milk Shakes

3 Batatas fritas

3 Tortas

Fiquei em dúvida sobre qual sabor eram as tortas e lhe mandei uma mensagem. Ela estava “On line”, mas não me respondia. Insisti porque já era minha vez de ser atendido. Nada, só vácuo. O mesmo vácuo que foi o Norte e o destino de nossas últimas trocas de mensagens. Comprei tudo, voltei ao táxi que deixei

esperando e fui pra sua casa. Ao chegar perguntei por que não me respondeu e ela com a cara de cínica falou:

— Meu Babá estava tão engraçado no grupo do zap... Pensei em silêncio que ela devia ter pedido o lanche a ele. Sentamos pra comer e o único sanduíche que faltou foi o que comprei pra mim. E ainda ganhei uma bronca por não ter conferido na hora. Seu filho comeu os três Big Macs e ela comeu o Quarteirão sem me oferecerem nada. Acabei comendo três nuggets e meia torta, gastando entre táxi e lanche duzentos e quarenta reais. Foram os nuggets mais caros do mundo. Nem que eu os comesse na Oxford Street, em pleno Reino Unido e pagasse em libras esterlinas eles teriam custado tanto.

Finalmente era o réveillon, a data mais esperada pela folhinha do meu calendário. Fui pro almoço do dia trinta e um na sua casa, mas eu tinha que chegar “às treze horas em ponto”. Cheguei dez minutos adiantados e fiquei esperando o relógio marcar a hora exata. À uma da tarde em ponto toquei a campainha. Ela abriu e disse que eu estava três minutos atrasado. Por sorte eu levei umas flores e uns chocolates, afinal os demônios apreciam oferendas. Conheci sua amiga e ela pareceu gostar de mim. A amiga tinha um famoso blog de literatura, coisa de primeira, escrita fina e palavras poderosas.

Eu, que escrevo sem saber escrever e sim por sentir, achei uma doce loucura ela gostar do que eu escrevia somente por tanto amar. Quanto mais sua amiga me elogiava mais Halina me menosprezava, parecendo sempre ser uma brincadeira invejosa. Aquela brincadeira que no fundo tem um tanto de verdade. Eu sentia que a agem do ano não seria coisa fácil de levar e que precisaria muito mais que flores brancas e cantos de Iemanjá pra eu não me machucar. Tentei, com jeitinho, combinar uma forma de armos o ano novo juntos. Pelo sangue de Cristo, como eu queria. Como isso me faria feliz... e ela sabia disso. Tentei combinar que a esperaria em sua casa depois do barracão porque seria mais fácil de nos encontrarmos. Ela deu um berro:

— Não! É do meu jeito ou de jeito algum! Me deixa, não me prende não! EH Babá!

Eu sabia que poderia ganhar outro “Perdido” dela pra combinar com o presente do Natal. Halina era generosa, tinha sempre uma nova surpresa pra mim. Nesse dia senti que sua filha parou de falar comigo. Ela e o gato branco eram as únicas pessoas que me tratavam bem naquela casa. Isso me deixou muito triste, mas à essa altura, “Triste” já era meu nome do meio. Insisti e ela falou que só iria ar a meia noite no barracão e que viria depois pra que fôssemos à praia. Mais uma vez lhe pedi pra esperar em sua casa e enfim ela disse sim. Sua amiga saiu e fui lhe fazer mais uma massagem, que pra minha infelicidade foi a última. Às seis da tarde ela se vestiu de baiana, pegou algumas comidas, uma garrafa de champanhe e foi pro barracão. Na despedida falou:

— Até mais tarde... e lava tudo porque não faz bem ar o ano novo com a louça suja. Pedi uma carona e ao chegar no carro sem saber que a porta do motorista não estava abrindo, parei em frente da porta do carona. Ela, sem me falar que precisava entrar por ali, simplesmente me empurrou com força e gritou pra eu sair da frente. Desisti da carona e pela última vez desci de Santa Teresa a pé. Fui em casa, peguei minha roupa e lembrando da louça suja tentei subir de volta, na véspera de ano novo.

Foi quase impossível achar um táxi e só consegui chegar de volta em sua casa às onze e quinze da noite. Olhei pra louça pensei: Halina vai reclamar muito se eu não terminar antes de ela voltar. E comecei a lavar. Era uma louça pesada, de almoço de fim de ano. Muita gordura, muitas as. Quando dei por mim comecei a ouvir a explosão dos fogos. Olhei o relógio e bingo, era o Réveillon. Fui até a piscina, vi as luzes rasgando o céu, as pessoas brindando felizes. Eu olhava a cidade acesa em festa e eu cheio de gordura, sem uma alma viva sequer ao meu lado que eu pudesse abraçar e desejar um feliz ano novo, alguém que me falasse algo de bom.

A luz dos fogos se misturava à luz das estrelas e à claridade dos flashs, registrando a alegria e a esperança que existe em todo romper de ano novo. E eu, sozinho, olhava a louça lavada e me perguntava qual o sentido de tudo aquilo. Achei que ela estava pra chegar e fui tomar um banho. Usei o chuveiro do banheiro da empregada ao lado da lavanderia, que não tinha água quente, toalha e nem sabonete. Desde o episódio do shampoo eu nunca mais entrei no banheiro dela. Me enxuguei com a minha própria camiseta e me vesti. Sentei no sofá da sala e esperei. Minutos depois ela me mandou uma mensagem de ano novo. Perguntei se íamos dançar e ela escreveu:

— Já, já. Fiquei feliz e pensei que ia dar certo. Mas o tempo foi ando e eu esperei, esperei e esperei. Uma da manhã, duas... eu, sem querer incomodar, só esperava. Às três da manhã ela postou em sua rede social uma foto abraçada ao pai de santo, mas já não estava vestida de baiana e sim de roupa de festa. Tentei falar com ela, mas o telefone estava desligado. Eu, mais uma vez, como no Natal, não tinha comido nada.

Nem uma uva sequer. Não bebi e muito menos brindei com alguém. Halina podia ter me chamado pra ir no barracão, eu conhecia o pai de santo, tinha me comprometido a gravar de graça um disco dos seus pontos de macumba e ainda gastaria dinheiro do meu bolso pra isso. Mas ela não quis, preferiu me deixar sozinho feito um sapo solitário esperando por um beijo seu, pelo nosso beijo de ano novo. Pra escapar da minha miserável tristeza e sorte, eu tinha dois caminhos possíveis: um imaginário e outro real.

O primeiro era levantar e ir pra casa, mas eu só queria estar ali, sempre ao lado dela. O segundo era começar a beber pra deixar de pensar. Há sempre alguma loucura no amor, mas também há sempre algum amor na loucura. Vai doer o fígado e o coração toda vez que eu lembrar, mas abri a geladeira e peguei uma das suas garrafas de vodca russa. Olhei e falei pra garrafa: “Feliz ano novo”. Comecei a beber e não parei mais por longos seis meses seguidos, sempre sozinho, tarde da noite, exatamente como naquele dia. Quatro horas do réveillon já haviam se ado e o nosso ano novo ia ficando tão distante quanto o que

ou. Às cinco e meia da manhã ela chegou com o dia amanhecido. Eu perguntei o que aconteceu e ela simplesmente falou que ficou sem bateria, que ficou conversando e que perdeu a hora.

— Poxa, ei a noite te esperando.

— Esperou porque quis, eu ainda fui boazinha e te emprestei a minha casa pra você ar o ano novo. É legal aqui, né?

Ao ouvi-la falar assim senti que o vento tinha errado a direção. Suas palavras foram um tiro certeiro, um disparo no meu coração. O que era raro ficou comum. Pra não brigar, falei que ainda era ano novo e que ainda podíamos aproveitar. Ela sentiu na minha boca o gosto da vodca e começou a reclamar que eu não devia ter bebido, que eu tinha acabado com a sua garrafa. Pra ela aquele dia não era réveillon pra mim, era só um dia comum. Halina se preocupou muito mais com a sua vodca russa fina do que com o fato de eu ter ado o ano novo sozinho lavando sua louça. Fomos até a piscina e eu procurava por uma senha secreta, uma entrada que me levasse pra saída, a chave daquela prisão, pra me ver livre da escravidão que era estar preso em seu falso coração. Ela falou cortando o silêncio:

— Não quero mais ter essa vida de casada com você!

— A gente se separa. Respondi sem pensar.

— Não! Não quero ficar sem você! Ela respondeu.

— Você só precisa decidir o que quer. Retruquei.

— Quero ser sua amiga!

— Amigos não fazem o que fazemos, não amam e brigam assim. As nuvens não são de algodão e nós somos o que você fez de nós.

— Eu amo você! Ela respondeu.

Tudo que você tem pra me dar são desejos ocultos, fugas, mentiras, erros e sobras.

E já no tanto faz, tanto fez, sedento por ela, num momento de embriaguez peguei sua mão e a puxei pro quarto. Tirei seu vestido e joguei na cama aquele pandemônio travestido de mulher. Eu já conseguia ver como ela era de verdade. Sua alma de bruxa, possuída por satã, que com um jeito mentiroso vendia sonhos de isopor, abria as pernas e fingia amor. Naquela manhã foi minha vez de fingir e a comi como um cão faminto pela última vez. Com força, com raiva, sem nenhum sentimento de amor e carinho. Calados, em silêncio, falávamos pelo suor dos nossos corpos.

E entre gemidos e sussurros, gritos e murros, nossos corpos se despediram um do outro. Essa foi a última vez que ela viu a minha cara de safado e a última que vi a cara de tarada que ela fazia quando começava a gemer em baixo de mim. Nunca mais nos deitamos de novo. Nunca mais vi o gato branco. Sinto falta dele. Infelizmente, nunca mais entrei naquele quarto novamente. Ela dormiu e como sempre, entupida, começou a roncar.

Terminava ali o nosso amor e o nosso ódio eterno. Eu me levantei, olhei em volta, fiz um carinho nela, outro no gato e sem falar uma palavra, entendi que aquele quarto, que sempre foi tão grande, havia ficado pequeno pra tanto amor e tanto veneno. Nosso espelho se quebrou, era a hora de ir embora. Tentando não olhar pra trás, sentindo um vazio na alma tão grande como as ruas de Santa Teresa, fui embora na primeira manhã do ano me sentindo não mais do que qualquer pano de chão usado sem cuidado. Fui pra minha casa e no caminho, me sentindo um inútil miserável, parei num posto e comprei um vinho e muitas cervejas. O mundo estava estranho e sem saber onde me segurar acabei entrando no tão desejado e frustrado ano novo completamente bêbado.

Não tenho orgulho disso, muito pelo contrário, na verdade eu me sentia um cachorro otário, que em vão corre atrás dos carros. Halina havia me dito que sua família ia fazer um churrasco em sua casa no dia primeiro, mas devido àquela nossa briga que terminou com o luxuoso auxílio do seu irmão e pra acabar de vez com o vínculo comigo, ela não queria mais a minha presença. Após os últimos acontecimentos no Natal e no Ano Novo isso quase nem doía. Depois da queda, eu só sentia a dor do coice. Ela me mandou uma mensagem de voz perguntando onde eu estava:

— Joãozinho, cadê você? Tudo vai dar certo! Acalma seu coração, eu te amo! Ela devia aprender ou tentar entender o que “Eu te amo” quer dizer, porque pra mim parecia estranho que alguém que conhecia tão bem a língua portuguesa não tivesse aprendido a conjugar o verbo amar. Como um fraco, num momento tão sensível, sem dar conta do perigo, sem agir como um verdadeiro homem ou talvez por me sentir sem abrigo, por amar demais e ver esse amor levar embora meu combustível e meu horizonte e me fazer abrir mão da própria vida, troquei barato o que me era caro por quem só sabia mentir e não sabia sentir. Mas eu acho que nasci pra amar e não imaginei que ela, filha de cobras e tempestades, me faria navegar, naufragar e afundar no seu mar de raios.

Continuei bebendo e quando tudo rodava era que eu me equilibrava, pois de outra forma eu me sentia caindo. E o que eu senti não desejo a ninguém, muito menos a ela. Não há nada que eu esqueça, não há nada que ela faça que não me amoleça. Não sei que poder invencível ela tinha sobre mim, qual macumba, qual feitiço. Se era o cheiro, o gosto ou o oposto, porque ela só precisava existir pra me fazer sorrir com os olhos, a alma e o corpo, me deixando torto, perdido, sem “f”, sem “Gps”.

Apaguei por algumas horas e acordei com várias mensagens dela... queria que eu fosse no churrasco. Olhei minha cara no espelho e era como se eu acabasse de ter tido uma crise de asma, eu parecia um fantasma. Tomei um banho frio, e como um cachorro de desenho animado, desses que levitam, sentindo e seguindo o cheiro da comida, voltei pra Santa Teresa. Depois de vinte e quatro horas sem comer e com tanto álcool, minha cabeça parecia um tambor gritando alto e tocando um batuque de candomblé e amor. Parei numa farmácia e comprei seis Engovs, entrei numa padaria e comprei uma garrafa de água de coco, um café enorme sem açúcar e dois pães de queijo. Eu tinha exatos 16 minutos pra ficar bom da bebedeira. Às vezes me pergunto porque não fiquei dormindo. Misturei tudo, tomei os seis Engovs, um após o outro. E cheguei lá quase bem, quer dizer, pelo menos por fora.

Entrei em sua casa e assim como nós, a chama da churrasqueira já havia se apagado. Comi um pequeno pedaço de carne, gelado e temperado com o gosto do carvão e da decepção. Mas talvez por tanto álcool, por tanta falta de mim mesmo, por tanta ausência ao meu redor, fui o que eu não era mais: fui o meu melhor. Simplesmente eu, sem filtros, sem o manto da invisibilidade, fui o que sou, embora já tão longe da sanidade.

Contei histórias, sorri e diverti todo mundo. De um jeito agradável e saudável, alegrei o primeiro de janeiro daquelas pessoas. Mas toda situação tem a sua exceção, e ela insistia na sua verdadeira brincadeira de fazer pouco de mim. A glicose, o álcool e a depredação que toda a decepção do ano novo me causou cobraram seu preço. Minha cabeça rodou, a vista escureceu e meu corpo parecia

me mandar um recado:

— Parei! Todos foram embora, ficando apenas os amigos da sua filha. Eu me equilibrei até o sofá e somente recostei nele, sentindo o corpo dormente. Fechei os olhos por um segundo e quando os abri novamente ela estava na minha frente me fuzilando com seus olhos de quem não pede desculpas. Os mesmos olhos que uma vez, por engano, achei que eram o doce Mar Mediterrâneo. Dei um pulo e levantei, fui até ela e pedi pra deitar um pouco em sua cama, só até me sentir melhor. Nesse momento aprendi algo de imenso valor, que vou fazer valer até o fim dos meus dias: jamais caia. Jamais. Fique firme, em pé. Deixe pra cair depois, quando estiver sozinho. Eu caí. E pra ela isso não tinha perdão, porque ela jamais caía. Ela podia gritar, chorar, berrar, bater e até espancar, mas sempre de pé.

Ela, nervosa como uma vela em dia de vento e sem qualquer sentimento na frente dos meninos, me pegou pelo braço gritando que eu não tinha limites, que eu era um folgado fracassado. Me empurrou pra fora e mais uma vez ouvi o som da porta batendo na minha cabeça. Eu me sentia um perseguido, um pianista escondido no gueto de Varsóvia que, sem carinho, precisava partir pra outros caminhos, outros vinhos, outro mar. Mas eu sabia que esse sonhado horizonte ainda estava distante. Fui pra casa e fiz a única coisa possível: apaguei. Às dez da noite ela me ligou e me disse que era pra esquecemos tudo e seguirmos em frente. Mas eu sabia que a partir daí minha sina seria enfrentar a solidão com uma faca entre os dentes.

No dia seguinte fui pro aeroporto, eu tinha um show no Uruguai, lugar onde toda nossa mágica começou a acontecer. Pedi a Halina que dessa vez o Uruguai fosse o nosso recomeço. Eu juro que fui disposto a não fumar e a não procurar por ela, eu queria simplesmente deixar rolar. Mas como um louco inconsequente e escravizado eu não consegui fazer nada do que planejei. Fumei, bebi, sofri e procurei por ela muitas vezes. E quanto mais eu a chamava, menos ela me respondia. Deve ser isso que chamam de lei da oferta e da procura. Só sei que pra evitar sofrimento não se deve nessa vida se envolver com ilusão. Eu estava

doente, acorrentado à mais doce e dourada ilusão. E ainda tinha fé de tudo melhorar. Eu ia resistindo feito um lutador que apesar dos murros continua em pé. Nem sei como consegui trabalhar, acho que se deve ao motivo de eu ter nascido pra fazer o que faço.

Ninguém, nada tinha me feito tão mal quanto ela soube fazer de um jeito tão profissional. Na minha volta pro Brasil, Halina pediu um shampoo do freeshop. Eu comprei e lhe mandei uma foto. Ela respondeu, com aquele seu jeito sempre carinhoso, que eu desse o shampoo pra outra mulher, que ela não usava aquilo. Como eu ia saber? Voltei no freeshop e fiz uma chamada de vídeo pra ela escolher o shampoo que fosse do seu agrado. Mas quem atendeu definitivamente não era ela e sim um Exu, um búfalo bravo e desgovernado que deu dois berros e desligou na minha cara. Eu só me lembro de ter visto tal expressão uma vez, quando o Tim Maia veio na minha direção pra reclamar do som na casa de shows Canecão. O voo de Montevideo fez escala em São Paulo e tinham duas mensagens dela. Não quis responder e quando desci no Rio tinham mais três.

Calma, já sem os traços do búfalo e a expressão do Tim Maia, perguntava se eu tinha chegado bem. Acho que sua preferência pela cor branca era por causa das nuvens brancas do céu, que a todo momento mudam de forma e lugar assim como ela, que no seu tormento mudava o tempo todo o jeito de sentir e de pensar. Mas eu já sentia claramente que aquilo tudo era um prelúdio, uma preparação pra tudo que caminhava energicamente adiante. E que o triste e o verdadeiro estavam por chegar. Eu sabia que iríamos nos separar.

De manhã fui encontrá-la num café em frente ao colégio do filho. Ele tinha ido tentar um desconto na milionária mensalidade da escola. Eu estava feliz, de bom humor, tudo que eu queria era estar com ela e afinal eu estava indo ao seu encontro. No caminho fomos trocando mensagens, e por sua demora em responder, mandei a pergunta

— Você tá aí ou morreu engasgada com o pão de queijo? Era só uma

brincadeira, mas ela não viu assim. Surtou mais uma vez e começou a gritar que eu desejava que ela morresse, que eu era um monstro e que ela estava indo embora. Quando cheguei no café Halina realmente não estava mais lá. Liguei, ela atendia, gritava e desligava. Eu ligava e perguntava aonde ela estava, preocupado com ela andando sozinha naquele estado pela cidade. Atravessei a rua apressado e quase fui atropelado. Finalmente ela falou onde estava e eu fui ao seu encontro em frente a uma banca de jornal, onde a encontrei tentando comprar em vão um pacote de cigarros pro santo com seu cartão de crédito, pois ela não tinha dinheiro. Me pediu pra pagar e eu paguei. Entramos num banco pra ela pegar um novo cartão. Ao entrarmos fomos até o balcão, onde ela me olhou e disse com seu habitual jeitinho doce e delicado

— Senta lá! Tá fazendo o quê do meu lado? Não preciso de segurança! Sua arrogância era a sua proteção. Ao sairmos do banco, amos em frente à uma loja de roupas e ela cismou que queria comprar umas roupas pra mim. Escolheu, me fez experimentar e foi pagar. Eu combinei que pagaria pelas roupas e disse pra comprar algo pra ela também, que escolheu um vestido e subiu as escadas em direção ao segundo andar onde ficava o provador. Na loja não havia uma viva alma, estava completamente deserta. Fui atrás dela e, de brincadeira, por sacanagem tão comum aos casais, empurrei devagar a porta do provador pra vêla de calcinha. E o que era discreto e sedução virou uma enorme confusão.

Ela deu um berro e violentamente bateu a porta na minha cara, cortando a minha orelha e chamando a atenção dos vendedores. Enxuguei o sangue da orelha, contei até mil, respirei e esperei ela sair da loja. Entramos no carro e ela me pediu pra eu botar um pouco de gasolina. Pedi a ela que parasse num posto que tivesse um caixa eletrônico, mas sempre tão egoísta, parou em um que não tinha. Eu tive que andar três quarteirões até o banco e mais três pra voltar. Entrei no carro, disse que queira um beijo e ela perguntou:

— Pra quê beijo? Eu respondi:

— Porque sim, porque eu estou com saudade da sua boca. Puxei seu rosto e beijei. Por um instante ela se rendeu e me beijou enquanto eu pensava em silêncio: não importa nada, nem toda a infelicidade que está fechando a nossa porta. Sentir o sabor da sua boca e o gosto da sua língua fazia simplesmente tudo valer a pena novamente. Pedi que ela me deixasse em Santa Teresa, eu queria matar a saudade do pão de queijo. Ela concordou, mas disse que não ia ficar conversando pois já tinha perdido muito tempo e tinha mais o que fazer. Eu lhe perguntei:

— Por quê você não pode ser normal, dar um beijo e tchau?

Eu já estava indo embora sozinho do pão de queijo quando recebi uma mensagem dela dizendo que eu era “Fofinho”. Fofinho é o cacete, sou um homem! Ela não tinha a menor ideia de quantos sucessos de rádio eu tinha gravado e mixado com vários artistas diferentes e quantas turnês de shows eu já tinha feito. Ela não tinha noção do que era comandar uma mesa de som de um show no réveillon de Copacabana com dois milhões de pessoas se divertindo, ouvindo o seu talento. E que eu era capaz de me reinventar, eu ainda tinha muito fogo pra queimar.

Halina nunca soube quem eu era de verdade e até hoje acho que não sabe.

Ela nunca tinha ido na minha casa, então a convidei pra almoçar lá. Mas ela não sabia se poderia vir porque tinha que ir pro avô de santo e tinha uns amigos da sua filha dormindo em casa, teria que arrumar um café da manhã pra eles... me ofereci pra levar o café pra ela e recebi uma lista com quinze pães, queijo, presunto, leite e uma lata de leite condensado. Sim, a doida além de tomar café com paçoca, comia pão com leite condensado. Comprei tudo e quando estava quase chegando em sua casa ela me ligou bufando, gritando, me perguntando quem era uma tal fulana e como eu a conhecia? Eu perguntei:

— Quem? Não fazia a menor ideia de quem ou o que ela falava. Gritando, ela insistiu.

— Você não pode conhecer essa pessoa, você está se metendo na minha rede social e isso eu não permito. Porque vc adicionou essa pessoa? Ela é a mulher que me chifrou com meu ex!

Eu não tinha adicionado ninguém, nem suas amigas da praia que eu tinha conhecido. Na verdade, toda vez que eu acertava e publicava um poema razoavelmente bom muita gente me adicionava, meu Instagram sempre foi e será aberto. Halina é que seguia o perfil da moça pra ficar “Stalkeando” e bisbilhotando. E o que eu tinha com isso? Despejou em cima de mim toda a fúria que o ado trouxe e não adiantava eu negar, ela era incapaz de acreditar. Falou que eu não precisava mais ir pra sua casa porque eu já tinha aprontado demais naquele dia. Eu não tinha feito nada a não ser sair de casa e comprar o café da manhã.

Enquanto ela gritava e o táxi andava eu cheguei em sua casa sem saber o que fazer. Paguei pra ver. Toquei a campainha e ela abriu com o mesmo olhar travado de sempre. Eu entrei e tentei falar que não tinha nada com isso, que não tinha adicionado ninguém. Ela me mandou ficar calado e me ofereceu um café preto. Eu tinha lhe pedido uma mala emprestada, ela tinha várias e eu viajaria no dia seguinte. Quando eu ia começar a tomar o café feito na sua bacana cafeteira italiana, escutei:

— Lava louça!

— Não, eu sou visita e visita não lava a louça.

— Lava a louça ou vai embora!

— Posso tomar meu café primeiro?

— Lava a porra da louça agora ou vai embora!

Virei o café na pia e comecei a lavar a louça, com o coração vestido de fúria e raiva. Lavei do jeito que consegui e ela reclamou.

— Isso tá uma merda, lava de novo!

Minha infinita paciência chegava ao fim e eu comecei a falar, esquecendo de tudo que havia lido e estudado sobre a patologia dela. Todos diziam pra jamais, por motivo algum, enfrentar alguém nesse estado de crise. Isso desencadearia uma avalanche de emoções, frustrações, ódio e com certeza traria inesquecíveis consequências. O limite, de mãos dadas com a razão. deixará aquela alma, a deixando desgovernada e endiabrada.

Halina me puxou até o sofá, aquele mesmo que foi testemunha do nosso início e do nosso fim. Se deixou cair sobre ele e esticando o pé em minha direção me pediu uma massagem. Ela já ia pegar o telefone quando eu, por raiva, mesmo sem intenção, mas por não poder mais lidar com tal situação, apertei seu pé com força. Talvez com toda a pouca força que me sobrava. Ela deu um pulo, um berro e um murro no meu braço. E como um lutador de boxe, desferiu uma série de jumps perto do meu ombro, no mesmo lugar que havia dado as covardes cotoveladas, destruindo a cartilagem da articulação do meu ombro e deixando meu braço machucado para sempre. Até hoje não consigo mexer, até hoje dói.

Como dói, apesar de tudo, a sua falta. Nem que eu quisesse ou pudesse eu iria me esquecer dela, pois toda vez que pego minha mochila, que abraço alguém ou tento me segurar no metrô, meu braço dói me fazendo lembrar e pensar nela. Me chamando de “Merda”, Halina gritava que ia quebrar meus dentes. Eu me afastava dos seus murros e tentava pegar a mala pra ir embora. E ela, sem parar de gritar, dizia que não ia mais emprestar nada. Desci até a lavanderia, abri a porta da sauna que tinha virado um depósito e peguei a mala. Ao subir encontrei ela parada na escada completamente surtada e do alto do seu um metro e setenta e quatro de altura, de um jeito desumano e violento, esticando o braço pra trás com muita raiva e vontade, e com uma maldita maldade me deu uma bofetada na cara. Eu senti o calor da sua mão queimar o meu rosto e a minha cabeça rodar. Como reação tentei revidar, mas por sorte, muita sorte, não acertei. Eu nunca me perdoaria. Ela riu de um jeito histérico e me falou:

— O babaca tem o bracinho pequenininho, não me acertou.

— Por que você fez isso? O que foi que eu te fiz? Eu só vim te trazer café da manhã, não adicionei ninguém!

Ela saiu me empurrando e gritando:

— Seu merda! Seu Filho da puta! Vai embora da minha casa.

Abriu a porta e foi me empurrando, enfiou as unhas no meu pescoço e rasgando minha pele manchou com o meu sangue o seu esmalte. Tomou um embalo e veio com tudo pra cima de mim, mas cometeu a besteira de achar que eu era ingênuo. Esqueceu que pra dar rasteira não basta xingar, tem que saber gingar.

Com a porta aberta eu só saí da frente e ela ou voando como uma bala perdida, atravessando a porta e parando na rua. Fechei a porta e dessa vez eu que a coloquei pra fora. Ela ficou muito mais louca do que já estava, começou a dar murros do outro lado e gritar mais. Quando abri a porta, ela, como uma boa vampira, voou novamente no meu pescoço acabando por deixá-lo todo vermelho de sangue. Não se dando por satisfeita, me acusando de fazer escândalo, pegou meu telefone e o jogou na parede. Ele quicou, voltou e ela pisou em cima dele repetidas vezes. Dei um empurrão e ela começou a gritar que eu a estava agredindo. Gritou o nome da sua filha e falou: “Chama a polícia! Eu olhei pro meu telefone e ele tinha virado quatro pedaços. Um em cada canto, a tela toda estilhaçada.

— Meu telefone! Porquê? Tudo que eu escrevi estava aí dentro!

Nesse momento olhei pra porta da sala e seus filhos estavam parados sem ação.

— Meu livro! Tudo que escrevi ...

— Babaca, não fez backup!

Eu amava aquele iPhone, ele era meu melhor amigo. Eu o comprei em Santa Bárbara, na Califórnia. Nele comecei a escrever, fiz amigos, conheci namoradas, me apaixonei por Halina e a fiz gostar de mim.

— Como vou viajar? Tenho show, e não se faz nada sem Whatsapp!

Ela gritou pro seu filho, mostrando ter um generoso coração de ouro:

— Pega seu iPhone velho e dá pra esse merda aí!

— Por que você fez isso? Não adicionei ninguém, só vim trazer um café da manhã pra você.

— Você existe, filho da puta! E isso já é suficiente. E se você tiver consideração, jamais fale a ninguém que me conhece. Eu tenho vergonha de você. Vai pra puta que o pariu, otário!

E essas foram as últimas doces palavras que eu ouvi de sua boca. Olhei nos seus olhos travados pelo ódio e lhe disse:

— Deus me perdoe por lhe querer. Deus me proteja da sua macumba, Deus me deixe imune do seu veneno e me livre e guarde de você.

O garoto correu e me deu um telefone velho. Peguei a mala e saí da sua casa. Mas tudo que eu consegui levar foi uma história pra lembrar. Saí daquele hospício, daquele ninho de urubu repleto até o teto de vodu, arrogância e feitiço. Um vício só é bom no início. Olhei pro céu e ele estava azul, sem nem uma nuvem branca sequer. Somente aconteceu, não havia mais ela e eu.

Nós nunca terminamos, só nos largamos. O branco deixou o azul e viramos dois

amigos inseparáveis que se separaram. Jamais vivemos um verão, não tivemos uma canção e nunca falamos de perdão. Mas deveras, tivemos nossa primavera e toda ilusão que ela traz.

Em Zarathustra, Friedrich Nietzsche diz que não acredita num Deus que não dance e eu acho que ele tem razão, pois a partir desse momento algum Deus da tristeza dançava dentro de mim. Uma dança endoidecida e suicida que me arrastava pro chão. Eu não tinha noção da escuridão que ia me atingir, era algo muito além do que eu poderia ar, me afastando de tudo que fosse pro meu bem e me deixando sem saber que o dar, que direção tomar, perdido num mundo inerte, sem cor e sem conseguir me dar valor. Eu ei a deixar a vida me levar pra nenhum lugar. Inocente, pensei: “Nunca mais eu vou voltar pra ela. Nada mais me prende aqui, nem desejos, nem grades ou palavras. Eu que sei do meu destino, vou seguir a minha vida. Sem milagres e delírios. Sem lágrimas e sem colírios”.

Cheguei em casa e me olhei no espelho. A marca da sua mão estava tatuada pela porrada na minha cara. Meu pescoço todo arranhado parecia que tinha ficado amarrado a um arame farpado. Via-se a marca da violência na profundeza do corte. Meu braço doía, mas isso era muito pouco perto da verdadeira dor que corroía dentro de mim de um jeito enlouquecedor. Sem meu telefone eu não sabia a hora nem a companhia aérea do meu voo. Eu tinha enviado meu roteiro pra ela e implorei pra que ela me ajudasse. Halina, além de não me responder, me bloqueou. Sem saber a hora do voo, saí pro aeroporto às seis da manhã. Mas antes de eu bater à porta de casa o pai de santo me ligou com sua voz arrastada.

— João, eu sei que você foi fazer bagunça na casa dela. Saiba que qualquer problema eu vou depor a favor dela.

Na certa eles deviam estar com medo que eu fosse dar queixa por agressão. Jamais eu faria qualquer coisa pra causar mal a Halina. Sempre desejei vê-la bem e até hoje continuo desejando. Tive vontade de desligar na cara dele, mas

procurei ser educado, porque a meu ver eu não tinha feito nada errado.

— Ela lhe disse que me deu um tapa na cara e destruiu meu telefone?

— A culpa é sua.

— Minha???

— Sim! Isso só aconteceu porque você permitiu.

Fiquei em silêncio e vi que ele estava certo, desliguei sem me despedir e fui pro aeroporto. E assim como ela fez comigo, bloqueei o santo e o pai de santo.

A chuva castigava a quinta-feira e encharcava a cidade. ei três horas debaixo da água esperando por alguém da equipe. Sem telefone, eu fumava e escrevia rimas num pedaço de papel. A chuva e as lágrimas borravam as letras inventado novas palavras.

Aviões e aeroportos foram constantes e presentes em toda a minha vida. Desde que aprendi a andar sozinho eles estão no meu caminho. Quantos voos e viagens em noites de friagem já ei à procura da bagagem. Sobe, desce, levanta, voa e vai mudando a paisagem. Já viajei de primeira classe, de classe executiva e até sem classe alguma, num avião remendado com Durepóxi, somente com uma hélice e incapaz de voar em linha reta. Já pousei na selva, em Carajás, em Serra Pelada e até numa base militar de um país em guerra civil. Já cheguei de todo jeito que se pode chegar num aeroporto.

Louco, lúcido, triste, doente, carente, feliz, bêbado, infeliz, sóbrio, animado, arrasado, apaixonado, casado e separado. Já terminei relacionamentos de madrugada e fui direto pro aeroporto sem entender o que a vida faz com a gente. Aprendi na prática, de um jeito diferente, o que é se sentir nas nuvens de verdade. Já saí de Nova York com seis graus negativos e desci em São Luiz do Maranhão com quarenta e cinco positivos, tendo um choque térmico. Já saí de Paris na véspera da final da Copa do Mundo e fui parar em Juazeiro do Norte, e tive um choque cultural. Já andei pra trás no finger tentando, sem sucesso, perder um voo para Angola. Já me agarrei com uma loura da Noruega no banheiro de uma aeronave a caminho de Berlim, num voo que parecia não ter fim. Vi a escola de samba Portela acordar todos os ageiros tocando e cantando seus sambas enquanto o avião descia em Roma. Nunca durmo no avião, já fui acordado do Rio até a China. Eu sou um “Jet leg” em estado terminal. O chão do aeroporto é extensão da minha cama e minha mochila é um perfeito travesseiro.

Nasci com o dom de fazer do meu casaco o mais confortável e aconchegante edredom. Já tive uma crise de riso vendo todos chorando enquanto nosso avião, sacudindo num tufão na costa do Japão, caía em direção ao chão feito folha de

papel como se não existisse o céu.

Onze horas depois eu descia em Nova York e apesar da vontade de manter os pés no chão, entrei sem falar palavra alguma em outro voo. Já viajei vinte dias só com uma mochila pra fugir da revista de malas nos apavorados USA logo após o incidente de onze de setembro. No Chile, me joguei no chão e abracei o cachorro labrador da polícia federal, pra um amigo ar despercebido com uns baseados escondido no gorro.

Como eu também sou cachorro o labrador parou pra me lamber, meu amigo ou e o guarda me deu um esporro. São anos e mais anos de viagens e viagens, já tive todo tipo de milhagens. Mas hoje não tenho nem uma sequer, ia ser preciso uma mulher muito mais que especial, assim como ela, pra me fazer entrar num avião num dia de folga qualquer. O tempo voa, tristezas vem e vão e o bom da vida vai continuar sempre a voar. Talvez uma hora eu ache meu lugar e a vida finalmente me dê seu ombro pra pousar, me acalmar e descansar esse meu coração itinerante, sempre tão distante, sempre viajante.

Nada se comparava ao Aeroporto Santos Dumont naquela manhã de chuva. O temporal continuava alagando a cidade e eu chorando sangue pelos olhos. Por infinitas razões a tristeza e a mágoa faziam dos meus olhos duas poças d′água, e eu achava a chuva uma benção pois assim ninguém podia vê-los vermelhos e molhados. A partir desse dia eu entendi que apesar de inundado de desesperança e tristeza eu ia ter que aprender a tomar banho no meu próprio temporal. Todo molhado eu tremia, não pelo frio e sim pelo vazio que dentro de mim me preenchia por inteiro. ei a ser o homem que chora por um olho só.

Nunca mais, uma lágrima sequer desceu do meu olho esquerdo, foi como se ele tivesse cansado, parado e se recusado a me ver sofrer tanto por alguém que me levava pro fim. Mas metade de mim sempre foi e será dela, e essa outra metade chorava de saudade pelo olho direito. Sem saber a companhia aérea e a hora do voo, já que Halina se recusou a me dizer, só me restava esperar alguém da

produção aparecer. Finalmente encontrei meu amigo, o mesmo que havia visto todo aquele amor nascer. Eu o abracei chorando sem parar de soluçar. Nesse instante meu patrão e a produtora chegaram. Ele olhou pra mim e falou sério:

— Que é isso no seu rosto? Quem fez isso com você??

A marca acesa e queimando no rosto era visível. Era a prova da violência descontrolada. O machucado no pescoço e o roxo no braço eram impossíveis de serem escondidos. Eram como um arauto do mal agouro anunciando o fim. A produtora, nervosa, também ficou assustada:

— Seu pescoço está todo cortado, o que fizeram com você?

Meu patrão, por tanto me conhecer, definiu:

— Já sei o que houve. Eu te falei, eu te avisei. Que bom que acabou antes de acontecer uma tragédia com ela te matando com uma facada. Você revidou, também bateu nela? Falei que não e disse que além disso ela tinha destruído meu Iphone. Ele propôs ligarmos pra um advogado pra dar queixa. Eu não queria dar queixa de nada, nunca faria isso, eu ainda desejava e ainda desejo o bem dela. Embarquei pra São Paulo sabendo que o meu coração sem direção, batendo só por bater, sem saber aonde ir, me dizia que de nada adiantava ter olhos se não fosse pra revê-la. E que não haveria silêncio que pudesse comovê-la, música pra acalmá-la e palavra certa para convencê-la. E que as minhas noites e madrugadas seriam noites de velas acesas até o primeiro raio de sol da alvorada. E que eu gastaria cada dia inventando mapas e caminhos para lhe encontrar. Enquanto eu via o avião subir eu me sentia caindo sem saber prever a altura do abismo ou a velocidade da queda.

Desci em São Paulo me sentindo um miserável e me lembrei do dia em que Halina me perguntou se eu iria no hospital com ela e eu respondi que “Com ela eu iria até o inferno”.

Depois de tanta confusão agora eu sei que religião é pra quem tem medo de ir pro inferno e espiritualidade é pra quem já esteve lá. E era lá que eu estava, no mais verdadeiro e ardente inferno. Nada colocaria as coisas no lugar e eu sabia que mesmo que eu pudesse levitar ou mesmo parar a água do mar, de nada adiantaria. Eu sempre lembraria da roupa branca no varal, das suas mentiras no Natal, da sua fé no candomblé e de toda escravidão que há na servidão de tanta obrigação. Lembraria do nosso sarro no seu carro, de comprar e acender o seu cigarro. Do olho azul, do corpo dourado, do seu cabelo prateado. Do nosso sexo e dos seus gritos sem nexo.

Do meu corpo tremendo de paixão e a sua falta de razão. Lembraria de respirar bem fundo e devagar, pra saber amar e perdoar. Lembraria do gosto do pão de queijo e do sabor do seu beijo. Da vontade de ir embora toda vez que me colocou porta afora. Da inesquecível lembrança de vê-la de quatro no espelho do seu quarto. De sua falta de vontade de sair comigo num retrato. Das noites de carinho e cafuné, das massagens no seu pé. Do seu perfume que, como era de costume, enchia o espaço deixando o cheiro no travesseiro e no abraço.

De sua beleza sem igual, Santa Teresa jamais viu algo tão especial. Lembraria do nosso jeito de dançar e do seu jeito de me provocar. Da sua cafeteira italiana, de ouvi-la falar que me ama. Da alegria de estar com ela e da tristeza de saber que eu não posso mais vê-la. Do calor do seu verde cobertor. De arrancar seus suspiros, de fazer amor. Do jeito que ela se vestia, da maneira que se despia, sem segredos ou pudor. Lembraria do nosso banho de chuva, do calor na pele e de vê-la nua. Da sua pressa de acabar antes da gente começar. Do seu modo duro de falar, do seu jeito dócil de beijar. Da sua contraditória mania de me olhar, me amar e me expulsar. De lavar a louça do almoço e do jantar. De me perder por horas observando-a dormir e sonhar. Lembraria do receio de saber que poderia ser possível que fosse impossível algum dia eu esquecer.

As teorias que explicam o universo, os livros e os versos que vasculham o coração não são capazes de dar solução a qualquer tipo de paixão. Uma nova forma de desastre se aproximava de mim e entre quartos de hotéis, músicas e aviões eu viveria longas madrugadas sem rumo ou direção. Contra a dor não há remédio, o amor só vê saída se seguir caminho reto, rumo ao centro da ferida. Mas por falta de sorte eu não era assim tão forte. Eu não saberia explicar, mas pra não lembrar, pra esconder toda tristeza que eu sentia eu sorria um sorriso falso. O meu lugar era ao lado dela, mas infelizmente, sem pensar, ela esqueceu que, se deixar quebrar, nada faz o amor voltar.

Se fosse adiantar, pra tirar o peso das costas eu bateria em sua porta, cheio de perguntas e respostas, pedindo pra ficar onde quer que ela fosse estar. O que é certo no amor? Quem vai me calar? Por qual motivo eu só sei desejá-la?

O terceiro sinal tocou, a luz apagou e outras tantas acenderam. Mais um show começou. Chorar é triste, eu sei, mas chorei pelo olho direito por nove músicas seguidas. Eu via o palco e os botões da minha mesa de som pelo meu olho esquerdo. Não me lembrava da última vez que fiz um show chorando. Mas na décima canção, algo em mim mudou.

Recomeçar é dar a partida, viver é mais que despedida. E eu que me sentia tão fraco, percebi que eu era forte como poucos, porque sobrevivi a toda a essa catástrofe e ainda estou vivo e de pé. Sem ódio ou raiva no coração.

Eu sou um super-homem e, infelizmente, Halina é minha Kryptonita. Sempre ouvi dizer que o amor salva, mas hoje tenho minhas dúvidas. Se o amor não salva, a música com certeza, sim. E foi nela que eu me segurei pra me salvar. Decidi, com o último fôlego que me restava, produzir discos, dar aulas e escrever.

Com o tempo, de tanto estudar, perguntar, sentir e ouvir, desisti de botar em nossa conta o destino escuro do nosso futuro.

Fui a todos os lugares que um homem adulto e sem fé pode ir. Todos me diziam as mesmas palavras. Fui a rituais do Santo Dime onde senti no corpo o coice que o Ayahuasca te dá ao olhar pra dentro de si próprio. Em Salvador, trabalhando num show na concha acústica, conheci um famoso e poderoso pai de santo da Bahia.

No camarim, ele disse baixinho:

— Filho (ele me chama assim até hoje), você precisa de ajuda. Vá me visitar amanhã, mas vá como amigo, venha almoçar comigo. No dia seguinte, em seu terreiro no bairro do Rio Vermelho, ele sentou numa mesa coberta por uma toalha branca e de frente pro conga (onde jogava o Odu Ifá), cercado de fumos, bebidas, velas de inúmeras cores, folhas, frutos e pedras. Um verdadeiro arsenal de diferentes energias para as diversas necessidades dos seus filhos de fé. Ele acendeu uma cigarrilha e um cheiro agridoce de defumador e tabaco perfumou o ambiente. Jogou os búzios numa pequena cesta de palha e falou alto:

— Por Oxum!!!! Parou um instante, respirou e soltando a fumaça da tragada olhou nos meus olhos e disse:

— Ekedi de luxo, piriquita quente.

Ela gosta de você. Vocês se encantaram. Tiveram um encontro cósmico, mas

vocês nunca ficarão juntos. Por isso ela lhe odeia tanto, ela sabe que você é diferente, mas jamais vai lhe perdoar por você não ter dinheiro pra ela gastar e botar no barracão. Você não é o homem que ela quer. O sonho dela é ser a primeira dama da macumba. Mas isso não vai acontecer, se fosse pra ser já teria acontecido. Eles foram cruéis com você! Você ainda está de pé porque é filho de Xangô! E Xangô é força, justiça e amor. Se tem algo que os que flertam com o mal não entendem, é o amor.

O seu amor por ela, puro e verdadeiro, somado à sua sincera vontade de que ela fique bem e seja feliz lhe manteve vivo. A melhor oferenda, a melhor proteção sempre será um bom coração.

Na procura de salvação continuei a minha peregrinação e fui à um Coven de bruxas onde, vestindo um emprestado manto negro, me vi dentro da fogueira e à minha volta, dividindo a minha sombra, espíritos e obsessores. A sacerdotisa, ao perceber o que me atingia, tirou do dedo um anel em forma de pentagrama e o colocou em mim:

— Use sempre esse anel. Ele vai ser a sua proteção, querem muito acabar com você.

E entre a culpa e o perdão percebi que a macumba e seu pai de santo jamais iriam permitir nossa união. Pra eles seria melhor que ela permanecesse incólume e serviçal, exatamente assim, até o fim. Uma mulher encantada pelas Brumas de Avalon e que de madrugada voa incendiada, apaixonada pelas noites de verão, oferecendo seu corpo e seu perigo como uma curva de autoestrada pra quem vem na contramão. Tudo pode acontecer, basta você saber sobreviver. Halina não namora nem demora, faz do amor um carrossel e por uma noite vive o reino do céu. Ninguém sabe, ninguém viu, nada sentiu.

Nós fomos diferentes de tudo isso. De um jeito inocente, em apenas dois dias ela me fez ficar, me incluiu em sua vida, no seu lar. A macumba traz muita coisa, mas cobra de volta um sem número de vezes. E eles jamais deixariam que ela fosse feliz com alguém que não viesse de lá. Eles a tinham prisioneira do desespero como um peão sem tabuleiro, numa amarração que impedia todo tipo de união.

E eu?

Bem... fui ferido de morte negociando com a sorte. Eles deram o mesmo tapa em duas caras e eu vi nosso destino em outras mãos. Pra eles a vida e a morte não valiam nada. E no final venceu o mal. Foi feito um feitiço num pacto místico, com o sacrifício do coração de um animal. Me levando pra onde a morte é sempre presente, num nível superior de consciência que não tem promessa alguma de ressurreição. O trabalho foi feito não pra nos separar. Eles sabiam que não ia adiantar, que eu não ia desistir, eu iria insistir em estar do lado dela. O trabalho foi pra me sangrar, pra me aleijar, pra me matar. E somente um guerreiro que virou santo, montado em seu cavalo branco com sua espada de quebrar quebranto poderia nos libertar e nos dar asas pra escapar.

Mas pela falta do guerreiro e por tudo mais, o resgate cármico que tivemos quando nos reconhecemos terá que esperar por uma outra vida, talvez na nossa próxima encarnação. Tenho certeza que nunca mais estarei com alguma mulher que tenha a sua beleza e a sua grandeza. Que desconheça o relógio e saiba que qualquer hora pode ser a hora certa. Que ame e se sinta amada às três da madrugada.

Alguém com atitude, mesmo sem saber o que quer e o que não quer. Halina fez tudo, tudo. Ela me escolheu, se aproximou, me comeu e me ganhou. Me pediu em namoro, me levou pra sua casa e me prendeu na sua família, na sua vida e no seu corpo. Jogou em mim todo o inferno que fez de nós dois inimigos que se gostam.

Ela é a mulher mais apaixonante e deslumbrante que os meus olhos já viram e as minhas mãos já tocaram. E eu juro que mesmo tropeçando no escuro ela sempre poderá ver em mim o seu abrigo. Ela pode contar comigo pra tudo, todo dia e toda noite. E mesmo que a dor varra os ares e apesar dos muitos pesares, será dela meus melhores olhares.

Há milhares de anos atrás alguém criou o princípio da impermanência. A beleza que há na inevitabilidade das mudanças. Naquela primavera em que a conheci, a Halina que eu sonhei era exatamente como é agora. Sólida, substanciosa e quase bondosa. Ela era o sal da terra, como eu gostava de dizer. Eu senti um eterno e infindável carinho por ela, um enorme respeito. Isso deve ser algum tipo de amor. E eu, que nunca acreditei no amor, descobri que deveria ter acreditado. Isso me atordoou, essa nova felicidade, essa porta secreta que se abriu em mim. Nunca me senti tão vivo. E é tão tentador que me esqueço de tudo que aconteceu de ruim e aceito esse presente. Talvez se tivéssemos tido um pouco mais de tempo pela frente eu poderia descobrir algo sobre ela que eu não gostasse ou não asse.

Seria muito útil nesse momento. Mas eu duvido. Dizem que nenhum amor é perfeito, mas falam isso porque nunca a conheceram. As paixões precisam ir pra algum lugar e a palavra foi o único lugar que me sobrou. É quando estamos tristes que mais precisamos escrever, pra conversar consigo mesmo. Tudo que nos marca deve trazer algo bom. Não sou eu quem decide se as palavras valem a pena, o que sei é que elas me fazem lembrar dela todos os dias. Sei que eu cuidaria do seu coração com mais ternura do que eu dedico ao meu. E só porque a relação não foi pra sempre, não significa que foi menor. É melhor ter vivido tudo do que se lamentar por algo que poderia ter sido. Não sei... escolhi acreditar na intuição. Escolhi acreditar que um vínculo intenso como o nosso jamais se quebrará e que em meus sonhos teremos um ao outro, em nossos corações, como uma secreta particularidade.

Halina me tornou um poeta, fez de mim um homem. Outros amores vieram e outros virão. Mas só o nosso permanece perfeito.

Como resultado, sua lembrança, nunca me deixou em paz. E muitas perguntas seguem sem resposta. Me pergunto se agora tudo está perfeito pra ela. Na vida nós nunca conseguimos ficar muito distantes de alguém tão importante. E embora eu saiba que avançamos todos os limites, o tempo, sempre atento, acerta

tudo. E um dia, de um jeito diferente, nos veremos novamente. O amor não escolhe, ele enfeitiça.

Agradecimentos

Desde que me entendo por gente, desde o tempo em que aprendi a pensar, procuro por guias e sinais. E achei nas palavras o caminho que me fez andar, me fez parar pra sentir e respirar. Eu vivo de música, mas são as palavras que me movem. Sempre as vi de um jeito diferente e fui deixando guardado dentro de mim cada uma delas que, com sua beleza verdadeira, me tocava. E como um réu confesso eu ito que fui roubando num crime sutil as palavras que me marcavam e viravam parte de mim. Sendo assim, é natural que elas se façam presentes nesse livro. Gostaria de agradecer e dar o devido crédito a cada um dos autores que roubei, mas de verdade, não consigo lembrar quem cantou, escreveu ou falou. Aos que me lembro, de coração, eu gostaria de deixar gravado aqui a minha gratidão e iração.

Martha Medeiros: AH, Martha Medeiros, esse livro não existiria se eu não tivesse conhecido o que você escreve. Cada frase sua é uma aula, cada palavra um romance, um flerte com o que é belo. Eu adoraria conhecê-la.

Daniel Lopes: Meu irmão, o príncipe do pop.

Rodrigo Suricato: As melhores palavras cantadas em muito tempo. Suas canções foram e sempre serão, meu mais puro e verdadeiro e emocional.

Zelia Duncan: Ler o que você escreve me ensinou que as palavras e rimas fazem a beleza do seu dia. Gostaria de ter lhe conhecido melhor.

Moska: Vinte e sete anos ouvindo e prestando atenção ao que fala e escreve. Tem um mundo do que você escreve dentro de mim. Eu não escreveria uma palavra se não andasse do seu lado.

Zeca Baleiro: Pela elegância das rimas.

Herbert Vianna: O melhor poeta da minha geração.

Luiz Guilherme de Beaurepaire: Pela inteligência e cultura e por ter me dado o caminho e o sentindo ao que não era entendido e estava sem se mover.

Meus amigos do Barão Vermelho: Pelas referências e por rock my world.

Luciana Lumix: Pela paciência e eterna juventude.

Arnaldo Brandão: Pela benção, por ser tão generoso e pelo gigante prazer de aprender lhe ouvindo falar. Tenho orgulho de ser seu amigo.

Tavinho Paes: Meu mestre. Por me deixar ouvir o que fala, pela inteligência maliciosa das suas palavras, por me mostrar o outro lado, por ter mudado tudo em mim e ter me dado um final pra essa história.

Daisy Gardner. Vitor Hugo. Vitor Levin. Milan Kundera.

Agradeço a todos, pela inteligência e pela inspiração. Muito obrigado

Desenho da capa e gravuras: Waldyr Neto

Este livro é uma ficção. Qualquer nome e semelhança com a realidade é mera coincidência.

www.edfross.com