@ 2004 Casa do Psicólogo@
~ proibida
a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade, sem autorização por escrito dos editores.
GRACIElA CRESPIN
1" Edição 2004 Editores /ngo Bernd Güntert e Myriam Chinalli Assitente
Editorial
Sheila Cardoso da Silva Produção Gráfica & Capa Renata Vieira Nunes
A CLíNICAPRECOCE:
Editoração Eletrônica Valquíria Kloss Ilustração/Capa Angustiado, /934. de Paul Klee
O NASCIMENTO 00 HUMANO
Preparação de texto e Revisão Christiane Gradvohl Colas Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
TRADUÇÃO
Crespin, Graciela, A clínica precoce: o nascimento humano / Graciela Crespin. São Paulo: Casa do Psicólogo@, 2004. - (Coleção I" infância I dirigida por Claudia Mascarenhas Fernandes)
-
Claudio Mascorenhas F ernandes Mario Auxihadoro Fernandes Mario do Carmo Camarotti Reqina Orlh Aroqão REVISÃO DA TRADUÇÃO lia Batista
Bibliografia. ISBN 85-7396-336-0
I. Bebês - Psicologia 2. Psicanálise 3. Psicologia clínica 4. Psicologia infantil 5. Subjetividade l. Fernandes, Claudia MascarenhaslI. Tírulo m. Série. CDD-155.422
04-5638 Índices para catálogo sistemático: I. Bebês e crianças pequenas: Psicologia clínical
COLEÇÃO1~ INfÂNClfl 155.422
DIRIGIDAroR: CLAUDIA MASCARlNI~ASfERNAI'IDLS
Impresso no Brasil Printed in Brazil Reservados
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1(1111
'J't'1
todos os direitos de publicação
em língua portuguesa
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do PsiCólogo@
SllIInnÁlvllres, 1.020- Vila Madalena - CEP 05417-020 - São Paulo/SP- Brasil (11) 1034.3600- E-mail:
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1. A CUNICA PRECOCE:CONSTRIBUIÇÃOAO ESTUOODA EMERGÊNCIA DO PSIQUISMONO BEBÊI
f
1,1111'10
de um encontro
t A clínica precoce é uma noção que elaborei durante vários anos 111'll'rne de um percurso entre uma abordagem psicanalítica da I' 1\'1lpatologia do bebê e a prática dos médicos que realizam consulI'I' com a pequena infância2 . Há vinte anos, quando terminei meus estudos e minha formação IIltllfticapessoal, dediquei-me ao tratamento de adultos, mais particular111' '1111' à psiquiatria de adultos. Mas, ajudada pelo acaso do mercado de " IlIlIlho,cheguei até os centros de prevenção que cuidavam de crianças. Isso não foi pouca surpresa, pois assim como eu, as equipes '1'11me acolheram estavam pouco preparadas: na melhor das hipótelIão me esperavam; na pior, não me queriam. De fato, o que um psi poderia fazer em um lugar, com bebês e 11II11',,"
em boa saúde, sem precisar de quaisquer cuidados psíquicos?3
( npítulo traduzido por Claudia Mascarenhas I'mla-se de Centros de Atendimento
Fernandes, psicanalista,
em Proteção Materno-Infantil
li, rato, esses Centros de PMI recebiam uma população 1IIII'IInhamento pediátrico habitual.
SP.
(PMI) na França.
que vinha inicialmente
para o
14
A CLÍNICA PRECOCE:
o NASCIMEN'JU
DO
HUMASO
Eu não estava longe de compartilhar tal impressão. ColocavlI para mim mesma a questão de saber como poderia contribuir, como psi, numa consulta de lactentes, na qual a dimensão médica reinavu como mestre e a problemática social, mesmo que levada em conta. assim como o aspecto educativo, eram tomados em consideração pelo viés das animações na sala de espera e dos conselhos forneci. dos aos familiares. Foi nesse contexto que encontrei o lactente e seu entorno: n maior parte do tempo, sua mãe e seus irmãos, dado que as consultas eram durante o dia. Por vezes o pai, que aprendi a solicitar, e isso fez parte de meu percurso. O início desse diálogo foi trabalhoso. Pouco a pouco aprendi a me interessar pelo que incomodava os médicos. Precisamente um tipo de problemática que eles não apreciavam, porque eram aquelas que os deixavam com poucos recursos aquelas em que seu savoir. faire, seu arsenal terapêutico clássico era colocado à prova mesmo que não implicasse uma urgência: sintomas que alertavam menos por sua gravidade, e mais por sua freqüência e recorrência. O bebê não fixava bem olhar, não engordava, mesmo com todos os esforços que lhe eram dedicados... Eis o que me interessou: era sem dúvida nesse tipo de situação que um psi poderia trazer um outro esclarecimento, sem se meter nem no domínio dos médicos, nem no dos educadores, nem no dos assistentes sociais; quer dizer, dos representantes dos três outros campos profissionais presentes nesses lugares. Segui com determinação esse limite e me sustentando por textos de outros analistas que tinham trabalhado com as questões dos primeiros anos - em particular Winnicott -, atirei-me nos problemas clínicos que essas equipes terminaram por me deixar compartilhar. Foi assim que me apaixonei pela psicopatologia do bebê e mais particularmente pelo processo de constituição psíquica precoce. Isso me levou naturalmente a me interessar pelas problemáticas pesadas e precoces, em particular o autismo.
..' ."
11 1I1I1'lsu'() AO NASCIMENI'OpsIQUlco: o SURPREENDENI'EPERCURSODO BFJlt HUMANO 15
h 'I qlll' isso? Porque, quando um bebê se desenvolve normalItI.'I,I, !t, 11',de apresenta o que eu chamo a aparente simplicidade 14.,11.'I 1/"" ou ainda a opacidade do normal. Que dizer que um t...11I'1'11l'lImparece às consultas previstas pela "carteirinha de saú-
.
'.
111111I quem
nós vamos registrando cada comparecimento tran-
"1111""11'1111', à medida que ele cresce, nos dá uma impressão de má,li 'I '111qlll' tudo caminha por si só. Nossa impressão consciente é 'I''' IlIdo se desenvolve sem nós. De fato, é muito difícil delimitar li' ,ti1I!'1t'iIdade dos processos subjacentes a partir da opacidade prótt.'" '\,1 Iluação dita normal. I .11I\l~ssemomento que cruzei com Maxime, a primeira crian_ti oIlIlI,liIque atendi. Era um bebê que se desenvolvia de maneira "'11'1.,I I' que foi tratado por todos os tipos de médicos: oftalmolo.' I' 1"11'conta do seu estrabismo fisiológico que havia se fixado; 111"'11110" porque pensavam que era surdo, etc. Na sua história, que ., '11'olllra na terceira parte desse livro, eu mostro como a surdez 11'1'" ,I.IVIIligada a um deficit sensorial, mas a uma dificuldade de , 01ti 11 11111 ação, que o trabalho analítico pôde fazer regredir.
IuoSl'~ um dos ensinamentos fundamentais que retirei das ex111 ". 1"
11111I"
1111'
com o autismo: face às suspeitas de deficits sensoriais do é preciso sempre deixar uma margem para a hipótese
1111uno,
,I. 11111tlt:/icitde comunicação.Quer dizer,algo que não seja da or,1,111dll
l'quipamento sensorial, nem do funcionamento do órgão,
ItI,1 di lima aparelhagem significante. ( ""11 efeito, o que chamamos a percepção humana é o resulta,I" .I. lima montagem entre um funcionamento do órgão e um apare11", oIplllficante. Ml'lI interesse por esse tipo de patologias muito raras, mas exli. IIIIIIIWIIIC invalidantes, explica-se pelo fato de que elas desnudam, '''111,1111 visíveis, se posso dizer, como um filme em câmera lenta, os ",'" . ...os subjacentes emergentes do psiquismo. São crianças que Inll"lrinha
de saúde na França comporta
um certo nu meros de provas clássicas do
IIIvl1l1l'1110dilo psicomotor, que os médicos verificam a cada exame pediátrico. Por 1"". nl ~Mlnoas grandes aquisições da motricidade fina, da coordenação, da maturação. ,nllll Indo. as competencias relacionaissão relativamente pouco exploradas.
, 16
A CLINICAPRECOCE:
O NASCIMENTO no
11,
HUMANO
\_mw.NTO FfsICO AO NASCIMENTOPSIQUICO: O SURPREENDENTEPERCURSOno BEBÊ IRJMANO
17
levam anos para olhar ou falar, coisa que as crianças que se desenvolvem normalmente fazem num espaço de algumas semanas a alguns meses. Assim, no segundo artigo consagrado a Maxime5 , eu relato como ocorreu, ao longo de três anos de paciente trabalho ana-
111'qlludro das ações de prevenção de longo prazo com famI1ias em II " 11, até as equipes do centro maternal, que acolhem as jovens mães
lítico, a construção do objet06 a partir do objeto autístico7 .
1111111'10 flexível segundo as necessidades dos pais, e as creches coleti' li, lambém chamaram muito minha atenção, pois as ações de pre-
Minha experiência de terapeuta de crianças com graves patologias permitiu-me abordar de outra forma a clínica cotidiana, indistinta, das consultas com bebês, nas quais sinais muito discretos permitiam intervenções leves e rápidas, às vezes por meio de intermediários8 . Um outro ensinamento que retirei desse percurso foi que o saber específico do terapeuta se extrapola em situações fora do âmbito do tratamento clássico, e pode ser colocado à disposição dos profissionais médicos e educadores que se ocupam das crianças nas diversas instituições. Existem formas múltiplas de atendimento indireto ou institucional, que são possíveis de se fazer ou promover. E esses diferentes efeitos praticáveis se revelam extremamente fecundos em matéria de resultados. Assim, pude diversificar minha prática, e em particular intervir nas equipes educativas sob forma de grupos de reflexão clínica, de ob. servação e de análise de situações, que permitem aumentar o efeito das ações e obter resultados interessantes, seja sobre a gestão de certas situações pesadas, seja pela obtenção de atendimentos especializados. O trabalho com intermediários foi aos poucos se desenvolvendo: desde as puericultoras que iam a domicílio a partir do aviso de nascimento ou nos quadros de "assinalamentos"9, ando por monitoras em educação familiar (antigas trabalhadoras familiares) 5.
"Maxirne e o balão azul: a propósito da construção do objeto" na terceira parte desse livro.
6. O objeto deve ser entendido no sentido psicanalítico do termo, a saber, objeto de investimento que detennina dois pólos (o sujeito e o objeto) que se instituem reciprocamente, ao sair da dinâmica inicial de indiferenciação do eu-não eu. Assim definido, o objeto pode ser muito variável (uma pessoa, mas também parte do próprio corpo, ou o próprio eu [moi] do sujeito). 7. Termo introduzido por F. Tustin para designar objetos do corpo (baba, sons) com os quais a criança autista estabelece uma relação que não revela necessariamente uma dinâmica de instituição de um sujeito e de um objeto. R. Profissionais ou cuidadores que trabalham desenvolvido no decorrer do livro. (NT)
diretamente
com o bebê. Termo melhor
"11
vrande dificuldade. As modalidades de acolhimento
clássicas, tipo creches com
II 111110 nesses lugares em que não há triagem poderiam se tomar 1'11'1 losas para numerosas crianças. Retomarei a esses aspectos na última parte desse livro, dedicada " 'IIIl''itão da prevenção.
\
1t,lllção primordial ao outro
Nas últimas décadas, nós aprendemos muito sobre a vida intra"I, 1111<1, e mesmo se ainda há muito a descobrir, tomou-se corriqueiro 11'IIlIhecer que o estado emocional da mãe tem importante papel, de 1I11"'I'iramanifesta, no que vai se ar com a criança, não somente 1111 lIIomento neonatal, mas também durante e no final da gestação. Sabemos em especial que o feto ouve ainda no útero e que se 1I11I'tlra sensível à palavra e ao som da voz. Numerosos estudos che1""11111 a
essas conclusões,tanto no planoexperimentallO quantono
,,111110clínico.
Eu mesma me interessei sobre essa questão complexa
11.".Irocas matemo-fetais,
em particular na história de Christelle,
Chloé, que se encontra na terceira parte desse livro. Detenhol'm três casos clínicos: um bebê anoréxico, um bebê bulímico e 11111hebê que está bem, para mostrar como as trocas que suas mães Illillllinhamcom eles no fim da gravidez e durante o período pré",11..1 influenciaram seu futuro,u
I'
Ill'
1111
Ollando existe algum chamado ou pedido especial para uma visita domiciliar, por '1IIplo.a partir de um processo judicial. (N.T.) 111 Mehler 1. e Dupoux, E. Naftre humain O. Jacob, Paris, 1995. II ('omunicação apresentada sob o nome de Cabassu, Graciela Os alimentos terrestres: 1'/"/1
I 'I.
ou alimento? no colóquio Função e campo da palavra no lactente. Paris, março o essencial desse texto é retomado na terceira parte desse livro.
,~~t 'IMENTOFlsICO AO NASCIMENTOpsIQUlco: O SURPREEII'DENTE PERCURSO DO BEBi HL'MA.'\O
li"
18
19
A CLOOCA PRECOCE: O NASCIMENTO DOHUMANO
Dito de outra forma, provavelmente antes do nascimento - nu sentido da expulsão biológica -, o bebê humano já é um ser de rela. ção. Um ser para quem a relação que estabelece com esse outro humano que o segura já se revela fundamental para seu futuro. Isso não ocorre sem que nos questionemos. Poderíamos legitImamente nos perguntar por que, nos humanos, o laço com o outro toma tal importância. A resposta, me parece, não é estranha àquilo que nos ocupa. Elu me parece ligada ao estado de prematuridade da criança humana n.I nascimento. Não à prematuridade clínica, que determina as intervenções em reanimação neonatal, mas à prematuridade normal, de tOth1 bebê em boa saúde, nascido a termo de uma gravidez sem problemas, Essa prematuridade que caracteriza o estado dito de sofrimento primordial está na origem do fato de que a sobrevida nos humanos não se garante sem ajuda exterior. Mesmo quando um recém-nas<"1 ' do se encontra em seu estado ótimo ao nascimento, quando possui todas as competências de que nos fala Brazelton, ele não tem nenhuM ma possibilidade de sobreviver sem ajuda de um semelhante. SUlI esperança de vida na ausência de um semelhante é de quatro a cin<.'o horas, se não estiver muito frio. Nesta hora entra em cena o que chamamos de mãe, a mamãe. O personagem maternal tomou-se inl'. vitável por culpa dessa prematuridade da espécie, dado que nossll vida dependeu dele, no sentido absolutamente literal. Esse sentido se tomará figurado no decorrer do tempo, mas é sem dúvida desse alicerce do real, sobre o qual se apóia a relaçi111 dita primordial, que nós guardamos essa espécie de cicatriz, absolu tamente indelével, sob a forma que chamamos de amor. Pois mes11I<, quando não dependemos de mais ninguém, no sentido literal, pOl' termos nos tomado adultos capazes de sobreviver por nós mesmos. dependeremos sempre dos outros pelo viés do amor. Essa força in crível que tem, nos humanos, a ligação ao outro, é baseada, penso, na experiência da dependência absoluta que todos nós amos nll relação primordial com esse outro a quem devemos a sobrevivêm:w
E ficamosmarcadospelo resto de nossasvidas,qualquerque seja li
",1\1Je maturidade psicoafetiva que sejamos capazes de atingir na 1,111li' adulta.
No entanto, pode-se objetar com razão que os bebês humanos 'ido os únicos seres que nascem prematuros. De fato, em grande ,,,"lIero de outras espécies, os bebês nascem também prematuros e " IIllultos genitores são obrigados a cuidar dos jovens durante um " 111(10 variável para assegurar sua sobrevivência. É os que os etólogos , hllnam de comportamento de couvade.12 De acordo. A diferença é que as outras espécies possuem "instin-
11,111
"" '. o que
os etólogos definem como "comportamentos
geneticamente
l'II')tramados próprios de uma espécie". Os instintos permitem aos IllIhvíduos de diferentes espécies ajustarem sua relação com o real. I lili'"dizer, organizar seu período de cio, seus acasalamentos, a couvade, III'1lI1dutano seio do próprio grupo, o comportamento face ao preda.lill. etc. Por isso eles são dispensados de pensar. Esses comportamentos podem atingir uma imensa complexidade, e .1,11 lugar ao que foi chamado, por exemplo, de linguagem das abelhas ou ,II'~cupins, dado que eles cumprem verdadeiros atos de comunicação. O 1\111' não muda em nada a questão, pois são sistemas de signos e não de I~"ificantes, e por isso não chegam à formulação de um pensamento. Em Souvenirs entomologiques.13 lH. Favre, evocando o com1"ll'lamento de um inseto, o bembex,14 ilustra-nos magistralmente a ,hkrença entre instinto e pensamento: "Tal é a ligação entre os atos
,\IIS instintos, chamando-se um a outro dentro de uma ordem que as IIlIlisgraves circunstâncias são impotentes para perturbar. O que pro1'lIrao bembex, em última análise? A larva, evidentemente. Mas para hl~gara essa larva, é preciso penetrar no buraco da terra, e para pene1111I' no buraco da terra é preciso achar a porta. E é à procura da porta qUI'a mãe se obstina, diante da galeria livremente aberta, diante das provisões, diante da própria larva - a casa em ruínas, a fanulia em I,,'l'igo, no momento não lhe dizem nada: ela precisa, antes de tudo, de
I
I' I' 1,1 'lI'
Cobrir. (NT) Lembranças entomológicas, (NT) Variedadede vespa que cava buracos no solo arenoso para construir ninhos onde deposita ovos
20
A CÚNlCA
PRECOCE:
o NASCIMENTODO IRJMA1\iO
uma agem conhecida...Seus atos são como uma série de ecos que se despertam um ao outro numa ordem fixa, em que o seguinte não fala antes que o precedente tenha falado. Não por causa de um obstáculo, pois a morada está totalmente aberta, mas na falta da entrada habitual, o primeiro ato não pode se cumprir - isso basta: os atos seguintes não se cumprirão... Que abismo de separação entre a inteligência e o instinto! Através das ruínas de uma habitação destruída,a mãe, guiada pela inteligência, corre em direção ao filho; guiada pelo instinto, ela pára obstinadamente onde estivera a porta"15. Os humanos, então, são desprovidos dessas cadeias comportamentais pré-registradas.Por isso, para regular sua relação ao real eles seriam obrigados a pensá-Ia a cada vez. É provavelmente nessa articulação que se situa a diferença mais fundamental do que se a entre uma mãe mamífera e uma mãe humana: a relação ocorrida durante a couvade se desfaz no momento da maturidade do jovem, sem se soldar pela construção de nenhum laço. Por outro lado, entre ao adulto humano e o bebê de quem ele cuidou, produziu-se uma cons. trução, uma relação complexa, que preside o advento psíquico da criança, e que costumamos de chamar de "o laço mãe/criança". Sem dúvida, o fato de podermos recorrer a um sistema significante para nos orientar no real, e que ao mesmo tempo regula nossas relações com o outro, é que faz os psicanalistas dizerem que os humanos são seres de linguagem, presos na linguagem. Uma hipótese antropológica pretende que a espécie humana teria perdido, no curso da evolução, suas programações instintuais, conservadas até os primatas superiores, nossos primos mais próxi-
mos.A perdadessesregistrosteria sidoproduzidaapós Q prolongamento do tempo necessário à gestação, sem que, no entanto, o tempo de estadia intra-uterino tenha se modificado. A conseqüência teria sido um estado crescente de imaturidade no nascimento, ao qual a espécie teve de se adaptar para chegar ao que conhecemos atualmente como o bebê humano, O interessante é que essa teoria postula
' 1',11 11I 1'lSItU AONASCIMENTO PSIQUICO: O SURPREENDENTE PERCURSO DOBEBt HUMANO 21
ft.
11.11111111111"expansão
..', I" 111"'I-Luir durante o primeiro ano de vida na curva da carteirinha '"111.I. ), lJue só se produz
1914-lere
série, Chap. 19, p. 316-17.
», édition définitive ilIustrée, Paris, Delagravc
porque
o bebê é expulso
111"11111111111;:10, a qual pode prosseguir no espaço ..,ti 11111"..sim teria se desenvolvido o neocórtex,
ht~ 11111I,111"
no curso de
livre do mundo
que responde peditas superiores, em particular a linguagem. A lingua-
. 1II\I'I'hida comoum sistemasignificanteque codificao realdo
11"111
'fllllll dlll'J'l~nteslínguas faladas seriam a expressão. jll IlIpotese, mesmo se inverificável é sedutora, pois nos per11I11,,IIIIl'I'hl'J'a linguagem como ferramenta específica da adapta".. '1"1 I1I''ipécie humana teria produzido para assegurar sua sobre~I\I'II' II1 'iubstituindo as programações instintuais perdidas.
I'
1111,
( )lIlro e o pequenooutro
1111 dl~signar esse outro inevitável da relação primordial, Preud 1'1111'" ""11o termo alemão: nebensmench, que também se traduz em li '111" 1'11I'próximo prestativo. Esses dois termos constituem cada 11111 '111111 dl'linição própria. Inicialmente, pr6ximo: trata-se do pró xiI'
111111111
,l'l1tidobíblico de semelhante.Por que um semelhante?O
111-".t,I I fianças-lobo tem muitos ensinamentos. Sabemos, com efeiti. '1'11loram poucos, no máximo uma dezena de casos listados, t""I" til tlll1ulmenteaos seis bilhões de habitantes do planeta. Sabe11111 1lllIIhl'lI1lJue são histórias problemáticas: alguns acreditam que '-I I lIillu;asforam abandonadas por causa de patologias que porI" ,1111 l\tll1uscer.Não importam os motivos: existiu sobrevida fisio1111'" ,I .1'111 dúvida por intermédio de animais, Mas o que nos inte'1 I I 'I' 11'l1essescasos, como ilustrado na história de Victor, a crian1,1, \\ I ymn, e do Dr. Itard - em que Truffaut se inspirou para o I I
11Ia111() menino ,li
15. Favre, I.H. « Souvenirs entomologiques
da caixa craniana" (que os médicos sabem
selvagem-, vê-sebem que faltamjustamente
I\'I I!IIhll de slIúde sa, existe uma curva correspondente
"I""" 1111primeiro ,I. I.. dll normll.
ano de vida, o que permite facilmente
ao crescimento
da
aos médicos observar
r ,
22
A CLOOCA PRECOCE: o NASCIMENro 00 HUMANO
.to, ." ",111'11I .1sICO AO NASCIMENTOpsÍQmco:
I ,
t
os processos de humanização, e em particular a linguagem. Meslllu a verticalização não parece completamente inscrita no patrimôlIl() genético humano: ela também resultaria de uma "intrincação" entl'l registro genético e identificação. Essas histórias provam que a sobrevivênciapode eventualmentll ser assegurada - aindaque em casosextremamenteraros-, mas'lU' essa forma excepcional de sobrevivênciadeixa inteiramente suspenslL a questão da humanização. Esta só poderia ser transmitida, portanto, por um semelhante, quer dizer, por um outro ser falante, sobre o quul as operações de identificação poderão ocorrer. Porém o fato de que seja um semelhante também não parc.'~'o ser suficiente: ele deve também ser prestativo, isto é, portador do desejo de sobrevivência pelo recém-nascido. Seguramente, as foI" mas graves de disparentalidade nos confrontam ao fato que o dcsl" jo de sobrevivência não está garantido pela gestação biológica. Lacan fala do outro da relação primordial. Mas ele distingut' dois "outros": um grande, com O maiúsculo, e que designa não UI1lI1 pessoa física, mas uma instância. O grande Outro é uma noção complexa, mas que podemos aproximar dizendo que se trata do conjunto (no sentido da teoria dos conjuntos, impossível de se enumerar, e no entanto não-infinito no sentido matemático do termo), dos elementos que compõem o universo simbólico no qual o indivíduo humano está mergulhado. Esse universo simbólico é maior que cada sujeito que o habita, e o determina de muitas formas, em essência, in conscientemente. Antes do seu nascimento, e talvez antes mesmo de sua gestação, o recém-nascido humano é preso no universo simbólico de seus pais, tanto no âmbito individual deles, quanto a título da sociedade e da cultura a que pertencem. O pequeno outro, com um a minúsculo, designa cada sujeito, na singularidade de seu avatar, que faz dele um representante únicII e não-esgotável do grande Outro ao qual pertence. Segundo Lacan, a mãe é para o bebê um pequeno outro servindo de grande Outro/ 17. Lacan J. Seminário «A Angústia» Freudienne.
(1962/63) - Paris, documento
interno da Associlllinn
O SURPREENDENTE PERCURSO 00 BEBt HUMANO
23
I'111quê? Porque, inconscientemente, na qualidade de interlocutor ,11,1,1111111 primordial, ela transmite ao bebê de quem cuida uma gama .111"lIlll'ularidades do grande Outro que a determina, porém revisa-
""
I
1
I
"J'ri~idas,se assim posso dizer, pelo prisma da subjetividade
'li" '."li ou seja, o que o avatar de sua história singular tenha inscrito ,",1, 1'01..durante essas trocas em tomo dos cuidados primários, é a ,.." 11'11I111 ao sistema simbólico a que ela pertence - entenda-se: sua .-11111111I' o modo
como
dela se apropriou
- que
permitirá
à mãe orga-
'1".11 ,lItlSrespostas face ao seu recém-nascido. \ 1~lm,uma mãe que pertence a uma cultura tradicional africana to"11111 Ilulc ocidental (sa, por exemplo), não terão as mesmas h'I'1I 1I1I1:lliõesda maternidade, do lugar da mãe e do pai em relação 1111 I' I .'1\1nascido, das práticas de maternagem, do sofrimento, da doen\., ,111d,I morte. É o que será "lisível" no estágio do grande Outro. I 1'01'outro lado, duas mães ocidentais, que compartilhem sen.1 . IlIlI'ntcas mesmas representações, não reagirão da mesma ma111'111dlllnte do seu recém-nascido se uma delas tiver, por exemplo, 1"11lido um bebê anterior por morte súbita. É o que será "lisível" no "..t"I'11Ido pequeno outro.
I
1,1,. IlUmano
é um ser de linguagem:
lI.'I I. ,I" necessidade, demando,desejo
I~o que uma mãe transmite a seu recém-nascido, sem saber, IJlloIIIdo cuida dele? Essencialmente que ela entende como deman/, qUI'ela deseja satisfazer, o que ele manifesta como necessida/. I isso, da mesma maneira como fizeram com ela. Os registros l'IIIIIItIVISsimos e inconscientes da maneira de como o Outro cuidou I, II qUllndoela própria era bebê serão, em grande parte, os registros I' '!ullis uma mulher fará apelo ao cuidar de seu bebê. r~lIIguémpode se lembrar, no plano consciente, como foi car,1110,t:ünsolado, acarinhado, ninado, mas isso não impede que I
,
24
A CLÍNICA PRECOCE:
O NASCIMENTO 00
HUMANO
"11
sejam esses os registros que se reativam quando tomamos um l1l'h'; nos braços. E isso é verdade, seja ou não nosso próprio filho, é numl movimento identificatório que cuidamos dele.
· j,1 IlIlIslrução
do esquema
O SURPREENDENTEPERCURSO00 8FJlt HUMANO
chamado
"o grafo do desejo",'9
.,. .I. .1'1aquccido, ele terá fome e terá necessidade '
de ser alimen· I, 11.10poderá se deslocar de modo autônomo e ele terá neces-
,1. .1"I'Il'arregado, segurado. O grito, tal qual a agitação motora, ..' II.\.1I" dl~scargafrente ao montante de tensões, mas se revelarão :.
1'..
I
dI' sozinhos ajudarem o sujeito.
Essa simplesconstatação nos permite abordar o campo das tntn~ missões transgeracionais: pois, se a capacidade dos pais não fOSSt', ela também, adquirida, quer dizer, resultante da parentalidade reCt'. bida, nós estaríamos ao abrigo da repetição mortífera do fracasso parental sob diversas formas; nós estaríamos protegidos d« disparentalidade. Porém isso nos introduz igualmente a esse aspecto radical di) funcionamento do psiquismo humano: pelo fato de que suas necessidades sejam entendidas como demandas desejando serem satisfcitas, o bebê humano, desde que entra em contato com o outro dll relação, deixa seu estatuto de ser de necessidade para se transformar em ser de desejo. Nós, seres humanos, somos os únicos seres vivos a dar mais importância ao desejo que à necessidade, quer tenhamos urnu anorexia, quer façamos uma greve de fome - o que ,in fine, dá no mesmo, a não ser pelo fato de que no primeiro caso está em jogo o inconsciente, e, no segundo, o consciente: nos dois casos, a existência, no sentido simbólico, tem primado sobre a sobrevivência. IR 18. Outras numerosas situações da atualidade mundial _ os camicazes suicidas por exemplo nos colocam ante as mesmas evidências.
e outros atenl
25
1.""1 1111,1111 a mudança radical de registro que opera, para todo lU"'''' ,11/1Introdução no mundo da linguagem: a linha que sobe a "'"1 01"""'(11(real do corpo do recém-nascido, situado em S) repre"tI,. '1111 '1I'ssidade:o recém-nascido vai sentir frio, ele terá necessi-
Assim, esse saber espontâneo - "intuitivo" dirão alguns _ a qu.. as mães se referem, apesar de inconsciente não é genético, no sent(. do de uma programação inata. Proponho definir o que foi chamado. erroneamente, no meu entender, considerando o que acabo de dií'or - de "instinto materno "como: "a reativação de traços mnésicos /11-
conscientes da maternagem recebida". A experiência cotidiana dUII mães nos prova, aliás, a grande variabilidade do o a esse lipll de saber que têm as mulheres, e a correlação certa entre matemagl'lI1 recebida e a capacidade matemante no presente. Essas consider"o ções são igualmenteaplicáveisao pais, e será preciso nesse caso falar de parentalidade.
111II~IIU AO NASCIMENTOpslQmco:
I(A) Figura: o grafo do desejü
'111
I (,. Ilmp(/(' du désir, em particular a segunda versão, chamada grafo 2, no
I. 0111"1I.1l'ilo c dialética do desejo" nos Escritos. (Na versão sa: Ed. Seuil. I' NON.
, ,
26
A CLlNICA
'111 H~II'O AU NASCIMENTOPSÍQUICO:O SURPREE)\'DENTE PERCURSO DO BEBt HUMAXU
PRECOCE: O NASCIMENTO DO HUMANO
11I'I, ,', "'I" '('dência do simbólico à questão da necessidade, e práNtll' , '111\11 .\ haptonomia, por exemplo, evidenciam no feto uma ca101..01, II lacional antes do nascimento, que dizer, antes do adven~t 11.,. ,Iull' de necessidade. Chego quase a pensar que, em matéria ItI,," 111" por exemplo, seja somente a pacificação da relação do IIftu! ,I'I ,111()utro da relação que lhe permite satisfazer corretamen8",1lU' "'isidade, que dizer, beber à vontade, sem experimentar a
Porém, naquele instante, a linha ascendente da necessidade l'l1' contrar o grande Outro em A, encarnado no personagem maternal. que isso quer dizer? Que essa subida cega da necessidade vai enl'O trar, naquele que o acolhe, uma resposta humana. Quer dizer que, pu a mamãe que ouve seu recém-nascido gritar, aquilo não é, de forn alguma, um ruído, uma simples descarga; é seu bebê que a chama, C!l lhe fala e ela responde: "estou aqui". E desde esse instante, que cll mamos de "encontro intlugural", esse grito não é mais um ruído.
I I I
1 j
I ,
um apelo, e a partir daí, antes de qualquer linguagem propriaml'l1 dita, o bebê fala, o bebê é promovido ao estatuto de sujeito falanll'. Portanto, a força da necessidade está muito presente no humu' no; porém ela não tem uma programação ível de lhe pennillr satisfazê-Ia de maneira autônoma: é isso que a diferencia do inslino to, e que os psicanalistas,a partir de Freud,chamaram"pulsão".rt realmente impressionante constatar como, por causa dessa pro~I'II' mação genética faltante, o Outro vem no lugar daquele com qUl'''' se aprende, no sentido literal do termo, aquele de quem recebemo!' I significância, e que Lacan designa como "o tesouro dos significantd': o grande Outro no grafo.
27
.
."'I.lIull'
,
'i.
dl' se manifestar no plano oral. 1111,parece que a satisfação da pulsão é obtida, no caso da
"'"\ ,I" .UI ( )utro, somente pela experiência de ser o sujeito um obje-
ftl ,.,,, ",/I,)!'/()para o Outro. Quer dizer, colocando-se no lugar do '.111.I,. plIls;íopara o Outro, que se mostra, a partir daí, desejante 't.. I. 'ILlo ao bebê. É o que Lacan chama de terceiro tempo "11.." ,",11 l' que M.C. Laznik retomou na elaboração de seu segun.' ,.11",1pH'ditor do risco autístico.21 I 1'"IIH1110precisamente nesse cruzamento entre necessidade, 111.11111,1 I desejo - onde se articula a pulsão -, que nós interrogaM'" 111'IlIl' momento está a construção psíquica do bebê em sua '11
.
...1'1\.11'.11''il'U Outro da relação.
A relação da pulsão a seu objeto deverá assim se construir . tomar para isso o caminho do significante. É o que fará que, mcslllt! se servindo do objeto, não é com ele que a pulsão vai se satisfan'r.' mas muito mais da relação ao Outro assim construída.
Freud rapidamente nos advertiu sobre a defasagem que existiu entre a satisfação da necessidade e a satisfação da pulsão, e elaborou a teoria do apoio para dar conta do fato de que a satisfação da pulsOIl acontecia mediante, quando de,ou se apoiando sobre a satisfação dl\ necessidade, mas sem jamais se confundir com ela. Segundo Frt'ud, uma "boa experiência" da relação alimentar seria uma condição 1It.. cessária para que um bebê pudesse alcançar a satisfação da pulsão, Será que tal hierarquização de fenômenos é aceitável? - a qUl'" tão poderia ser colocada, e nossa experiência clínica com o priml'lIlI ano de vida nos incita a tanto. Todos os estudos recentes sobl\' recém-nascido parecem indicar, ao contrário, que existiria uma l"
1I
t
1.111,11111111'1110 do laço ao Outro:
funções maternas e paternas
,
1111que pensamos em cuidados primários, costumamos pen.,11" hllOllll'nos em função da pessoa de carne e osso que os encarna '"'11 111'IlIl'l1ll'mente: aquela que familiarmente nós chamamos de 111.11.,."Nlll'ntanto, nas práticas de parentalidades modernas de nossa .111I, "..d, . 11pai participa amplamente desses cuidados, mesmo que I." '1Itldl1 "l'.ia muito recente. Sabemos também que certas crianças
, " ,. 01' propósito:
,11
.
Lacan, J. Seminário
1/1'1'11,Rl'vUC de I' Association
da
Freudienne,
N° 10, septembre
1993.
'l'ÍI'l'UitO pulsional completo" faz parte de uma pesquisa atual em andamento IIIIIUparceria entre a Associação PREAUT (Prevenção Autismo) e a PMI de
111,110111
11.01,
11 "Os quatro conceitos fundamentais
M C. Laznik "Por uma teoria lacaniana das pulsões" in Le discours
., I,,"IIIIII('IIIOS
ses.
28
1
I
11
A CÚNlCA PRECOCE:O NASCIMENTODO HUMANO
'"
,,''',
PERCURSO DO OEOt HUMASU 11) 111l'I~11'tIAO NASCIMENTOpsíQUICO: o SURPREE1'<'DENTE
- nascidas de um parto em "X",22 por exemplo, ou sob incapacidw" grave dos pais -, deverão ser criadas por outros que não seus pl\l Ou ainda, certas modalidades culturais tradicionais (às vezes ai11"] presentes nos meios de fanu1ias de migrantes) a criação dos filho" assumida de forma grupal. Assim que a configuração do meio se distancia muito do tnOn
11."" Ili l. rcal biológico - durantea gestaçãoe o aleitamento, '111'1111111011'0do bebê se constitui a partir de substâncias do corpo ..,,'101111'1IIlIilc continua a ocupar, após o nascimento, no momento 1M"'1"' 'I IIlIdum as trocas, um lugar atributivo. Quer seja o con. 11I11.11, ,11I' ,I'USpensamentos, conscientes e inconscientes, ou os enun. .-1",1.. ,11 ,"U discurso, representações que ela projeta sobre o bebê
guIo clássico "papai-mamãe-bebê" - como, por exemplo, nas f"l11(11
't '1111 "111II1l'01l
as monoparentais ou reconstituídas, ou nos casos de bebês criados l' instituições pelas equipes cuidadoras, ou ainda bebês Cl'l1t dos segundo certas modalidades culturais -, podemos perder as l'f ferências. De fato, pode ser difícil discernir quando o laço proP0.\'ft' um bebê, muito além das pessoas que o encarnam, é portador de qUI/li. dades favoráveis a seu desenvolvimento. Podemos então ficar prCOl'U' pados ou muito tranqüilos, sem necessariamente termos razão, Dito de outro modo, para além das pessoas, o que é uma nu\,,1 O que é um pai? Podemos circunscrever algo sobre as suas funçOt \,1 Para além dos seres humanos ou das equipes de cuidadores qUl''li encamam, parece-me possível propor que o que chamamos de fl(// mãe, ou melhor, suas funções, são duas vertentes do laço primonlitll, duas modalidades diferentes de entrar em contato entre o bebê e ,\'t'" Outro da relação. E postular que esse laço só poderia ser portador do qualidades necessárias ao desenvolvimento do psiquismo do beol\ " medida que ele comporte essas duas vertentes, essas duas modalidades, e que elas estejam numa articulação dialética. Vejamos por que'.
"" 1'1111111111,""1 ., a mãe pensa seu bebê, ela lhe atribui conteúdos
,
Para entrar em contato com seu bebê, a mãe se toma por ele. 011 melhor, ela o toma como um pedaço dela mesma. Com efeito, 11
exemplo do real biológico - e eu ressalto a exemplo, e não flor 22. Chamados accouchement sous X, designam os partos em que as mães já manifcsllII'II1I1 a vontade de dar o filho para a adoção; a história familiar dessas crianças é manlidll ,'111 segredo pelo Estado.
loucura
das mães
na "preocupação
mater
"" lI'j () que constitui manifestadamente uma efração simbólili 111' 11111ido de uma forçagem, mas é assim que a mãe sabe pelo I" 1'1 "111sabe por ele como ela sabe por ela mesma: é a dimen"li 1I.1II"lIlv1Ida função materna. E essa forçagem no entanto é ine. ~lItl\ I, IIIIISlitutivado sujeito, dado que isso comporta sua ascenI
tIO IlIlívl'rso
,
"
simbólico.
, 11I1I,'lio maternaforneceo substrato.O laço primordialem '11I'lIll'maternaé atributivoe transitivo,e correspondeà onipo-
81... I I
oIllL'lIIliriu da mãe.
111,,' 11
I
111'1'110
\ c' ,,'mplo do real biológico durante a gestação e aleitamento '1"1 I 1I1'''l~nvolvem fora dele-, para o homemo bebê de inícioé ""1 ""tw () homem encarna mais facilmente a função paterna por"Ih
A função materna
chamava
.' "'" 11 IIllo é pensado por ele como uma parte dele mesmo. , 11111\110 paterna é um operador psíquico da separação. O laço
'111'""1111111, nu sua vertente paterna, introduz um corte. Ele "'1111'"1111,'1\capacidade separadora do pai e à sua função regula.1", . .LI 1111I potência primordial da mãe.
-
I
I IIU' I1l1portante sublinhar que existe a mesma relação complexa entre o real 11'1~I.III~I\O c das posições parentais que entre o real da diferença anatõmica dos I" ..I~'{"'s I'cminias e masculinas nno desejo.
""111 1111 D.
,"
W. "La préoccupation matemelle primaire" in: De Ia pédiatrie à Ia
Op. ~K5. Paris, Payot 1989.
30
A CLOOCA PRECOCE: o NASCIMENTO DOHUMA."'O
...""
Parece-me possível dizer que, assim concebidas, essas
111IhllH
.\(1 NASCIMENTOpsIQUlco: O SURPREENDENTE PERCURSO DO BEB~ HUMANO 31
I. '1111 IIIII~o exemplo de Mathias. Sua mãe é uma senhora muilIt til "I' 1111NIISdias ensolarados, que a maioria das pessoas consi-
~.." 11"'IIh''1,"Ia sente um "friozinho". Assim, Mathias está geral"
"11 .. .1" 111 I dos pés à cabeça, capuz e boina, mesmo se a tempera-
c
I' 11\
I1 IIIlIl'lHl. Mathias transpira, envia "sinais" de sua diferen-
~... ,"., 11,111 mlianta: ele permanece coberto. . I, I IlhN"l'vação, freqüente e banal, coloca-nos em posição de 1\.1111\'l'l'Iente materna do laço primordial: a mãe procede de "'11'1 ",,.,l,,,tiva - Mathias sente o mesmo friozinho que ela, não 1".1" 1'.1111 I1l11aoutra sensação térmica25 -, e de maneira transiti-
I' '",h h'lIl frio e então ela cobre Mathias. Qual é o sujeito desse .1 I 1"1'\11\11 itir que existe apenas um, ou ainda dois sujeitos e.'II,.".., , " II,'/Ilt'paterna do mesmo laço poderia ser observada, se no ., 1'11'I ,11,., lIeontecimentos a mãe viesse a itir, vendo as gran." 'I I IJllIl'jando na testa de Mathias, que ele está com muito ..1111 '1"' 1'1,'(' diferente dela; ela e o descobriria um pouco, mesmo ' II 11h ,1I1acontinuasse sentindo muito frio...
..
\ \, 1II'IIIepaterna introduz um limite ao gozo matemo, articu"'1.. ti "IIII'"ll'llcia primordial: graças a ele, o bebê deixa seu estatuto
..
plll'leda mãe,e não se faz maistãoprevisível,totalmente
01 I 11111,1
114t"I"'I n..lwl, fotalmente em seu poder. A função paterna introduz
. .111111 11.111da
alteridade
e garante assim o espaço para que o
""1"1 11111 dll eriança possa se desenvolver. \1111"" Iwsse exemplo muito simples como as mulheres têm a tI. li. II1d,' funcionar como mães e como elas têm necessidade de
""
11I11
I 1111
não necessariamente o pai biológico da criança, aliás-
tt"l 111. ,IIUIIlCa atenção para aquilo que elas não vêem ou têm .11'I. ,,,ti, 111, dl' itir.
I
til
I'
,'h'I'l'l'iro é necessariamente alguém investido pela mãe, e o ti '111.da lhe concede é intimamente cOITelativo ao lugar que I 1111" ,i' outras pessoas que estão à volta e em particular os pro\ 1'"11")"1\0 du "dimensão do desconhecimento" sobre qual se apoia o transitivismo. ,1'"11 1I1'I1ot~sc Balbo, em "leu de Places de Ia mere et de l'enfant Essai sur le
-
'111' PllriS. Eres, 1998 p, 39,
32
A CLOOCA PRECOCE: O NASCIMENTO 00 HUMANO
""
fissionais. Se existe um lugar para o terceiro, quer dizer, se a nu)" reconhece um poder que limita o seu, o médico, por exemplo, 1\ terá nenhuma dificuldade para ser ouvido nas indicações que dá pu o bebê. Por outro lado, se a posição materna está particularmentl'
I I 'I'''
t
A mudança de necessidade para desejo se opera em todos 01 registros da pulsão, quer dizer, em todos os registros de troca, no qu, concerne o recém-nascido ao seu Outro da relação primordial. ('onl sideraremos o primeiro ano de vida, até cerca de 15 meses, idade l'l! que o conjunto de fenômenos que vamos descrever já está instaludu, no desenvolvimento do bebê normal. Esses três registros fundamentais do primeiro ano de vida sIlU.' respectivamente: a oralidade, que remete ao estatuto simbólico dI!. trocas alimentares, a especularidade, que interessa a questão do olhllf. e a pulsão invocante, que se refere à questão da voz.
A orolidade Em todas as histórias alimentares do primeiro ano de vida qll~ alimentam (é bem o caso de se dizer) a clínica pediátrica, o prohl(' ma raramente é o que se a no estômago ou na mamadeira, I' quando é o caso, resolve-se rapidamente. 26. Não nos esqueçamos que a mãe designa uma posição na relação, e por isso ela pode 01'1 assumida pelo homem genitor, por exemplo.
.11
Essa é a questão da ,lIlIorque a troca alimentar a.
N" 11111111111'1110 de dificuldades
alimentares
precoces,
essa leitu-
I" 1I1IIh'avançar: quanto mais a mãe responde unicamente no
ttl'"
Os três registros da pulsão: oralidade, especularidade,invocante
implicasimultaneamenteo deseconscienteda
,.. 1'11 1'111atribui como desejo ao bebê.
I
,UIIIti
onipotência,o médicoterá o mesmo fim do pai: nem um 11"11\
leIrlla a situação complexa é o sentido que toma a relação
I'.1I I que
outro serão ouvidos.
Isso pode ser esc1arecedor para aquelas situações em qUt' médico tem a impressão que algo "funciona" ou "não funciona" l'O uma mãe, sem saber muito o porquê. O fato de saber que à noilO pai dorme no sofá da sala pode muito útil para ajudar a SUP(U'! nossa dificuldade de ser ouvidos!
1'I~IIII\n NASCIMENTO !'SIQUlco:O SURPREENDENTE PERCURSO 00 BEBtHUMANO 33
"""'
tI' .1,1 1I1'I'I'''isidade - por exemplo, "enchendo" o bebê -, mais o li . 11iI I' gt'ralmente essa dinâmica se acentua se a mãe insiste.
,
-
, 11111111 das recusas alimentares simples do primeiro ano ou 111111 IlIdt' deve orientar nossa atenção sobre a tonalidade das I'" I 11111li miíe e o bebê: uma recusa no plano alimentar pode 111,,, d.1 !llIrle do bebê, uma tentativa de colocar um limite à t..".,. IlIilh'ma, que por vezes se encontra em outro plano. I'''''I'IIIO~ i\s vezes ser confundidos por uma mãe aparentemen"11Itll"lI. II,IIt'llIl'nlc aos nossos conselhos de não forçar o bebê, se não ,...1.. 11".. ohservar que ela se mostra constrangedora em outros .,* I t" dlll llI1lt'as trocas. Tudo se a como se ela se mostrasse
""1' "I,IIIIII'lIteintolerante a qualquer manifestação do bebê que .I"~" '1IIIIIIIllil.cra imagem que ela faz dele. Ou seja, essa mãe o..1I..tll o,,.1 dl'cl'pcionar, no sentido do que Winnicott chamou a "de"tI-II, . Ilperação indispensável que coloca um limite à onipotênlU 11'111.11111dll mãe anterior à etapa transicional. O bebê de tal mãe , 1I1I111IlIlII' recusando, mesmo que ela não o force no plano tlltll' 111.11 ,1111 rcivindicação visará agora um outro plano da relação.
i'"
"I
\,IIIIIIl'xill severa do bebê, quadro grave e pouco freqüente, de I8I"tllI" 111o I<'lal a curto prazo, existe para nos provar, para desnu"'1111l'l;lá subentendido na relação alimentar: um sujeito pode ."11111 IIUlllo rcdo, e até à morte, a satisfação da necessidade em ""1'" ,I. .1'11rcconhecimento como ser de desej028. "I, .1111 "il' o conjuntodessesfenômenosé globalmenteconhe.1,1, I" I. IllUlor parte dos médicos, não é de todo inútillembrá-los
..,
" 10,'11 I) W. « Phénomenes ""VIII, Paris 1989.
et objets transitionnels
» in : De ia pédiatrie
,1,11' " IIlIposiç1io entre ser de necessidade I ser de desejo.
à ia
,
34
""
A CLOOCA PRECOCE: O NASCIMENTO 00 HUMANO
'I
I
aqui, pois a proximidade da oralidade ao estritamente do rc~IN alimentar, com suas conotações médicas, expõe muitas ven'N
11'11H\U
,11
"""I
NASCIMENTOpsíQUICO: O SURPREENDENTE PERCURSO DO BEBJ!:HL1tfA1\iO
35
'11110designa uma construção psíquica essencialmente
li 1111
dll qual são portadoras as mulheres, pois ela é conse-
til \lI "'I 11''oolllçao da problemática edipiana feminina. Freud disI 1111IlIlIa resolve sua questão edípica elaborando uma equiti. 1.1 1"111.. criança", que se encontraria não somente na ori11111 di ,I10dI' filhos na mulher, mas também do lugar que a crian-
médicos ao risco de se contentar pura e simplesmente com o I mais superficial da necessidade, negligenciando sua dimensão '11 bólica, quer dizer, naquilo que a oralidade está ligada à questno desejo, traduzi da pela palavra do bebê.
""I'
til
111111 111('mnomia
libidinal
do inconsciente
feminino,
dito "lu-
"1111 1I \,
A especularidade
J
t
A especularidade, de speculum, espelho em latim, concl'I'l1' questão do olhar. Este deve ser distinguido da visão, no sentid. I que visão é um funcionamento de órgão, enquanto o olhar é \I função psíquica, que implica a questão da representaçã029 . A clínica do olhar é central no primeiro ano de vida, não SOIl1(' por que a ausência de olhar constitui o sinal patognomônico das pll logias autísticas, mas também porque a instauração do olhar, no ".'1\ do de o ao especular, constitui a entrada no mundo visível Efetivamente, o o ao especular depende do reconhecil1ll'n
da imagem de si, a partir da qual Lacan elaborou o estado do 1''1 lho,30conservando-o como momento fundador em que a antl'l'l ção sobre a imaturidade motora conduz à constituição da imagl'lI1 corpo. O conjunto das aquisições ditas do desenvolvi II1l'O psicomotor depende da imagem do corpo, quer dizer, de uma l. I trução psíquica. Assim que o recém-nascido aparece fenomenologicamenh' campo perceptivo de sua mãe, no momento da expulsão biol(l~IC tornando-se perceptível no sentido visual, auditivo, tátil, ele 1'1\1 em contato com o que costumamos chamar, com M. Soulé, "o hl1l' imaginário" . 29. Ver a esse propósito "A esquize do olho e do olhar", in: J. Lacan, Seminário\/ quatro conceitos fundamentais da psicanálise", em francês: Seuil, Paris 1973. 30. Lacan, J. "O estado do espelho como formador Ecrits, Seuil, Paris 1966.
1111
1I,..ultariadesse lugar no desejo inconsciente feminino,
I IoI'lllllll0 particular da relação da mãe à criança, e certamente 1111..1111 'I do lugar que a criança ocupa no desejo inconsciente
da função do Eu" (em rrnlld"1
11111111
'IIU'por conseqüência, orientaria diferentemente a rela-
. 1111I' 11' 1111 relaçãoà
criança.É o que nossa clínicacotidiana
". ,tlldi11' 1I 11,1,1IlIll'nto corresponde a esse tempo de encontro, em que, ... 1""\ 11111 '1110 que chamamos de reconhecimento primordial, o re~"t" "" 'Idll l'ste completo estranho -, encontra-se, pela via das "tlt.1I1 111.1 iIlll~ridoao conhecido, reconhecido como familiar: ele 11111 1110 U'IlIl'IC que nós esperamos, ele é realmente nosso. 1I " , olllll'l'Ímentoprimordial é um ato de pura projeção. Não ,.h. 111101.1 111I11.. subjetivo que uma semelhança; em volta do recém-
.
· '1'011'11I sempre pessoas para afirmar: "ele parece com o
11111
1111I o Il'lrato escarrado 111111'IIIII0rdial 111 1101'11 Idol'ntrar
da mãe". Pouco importa.
O reconhe-
tira seu valor fundador do seu poder de fazer o numa filiação, numa pertença, e de colocar a
I~.10de se identificar com ele. É a partir daí que o recém1.111101111.1"11' verdadeiramente um semelhante e que sua genitora .111
"tlh
1111'
1.01.11 ,11 1'1\1
ação a função materna.
"" 10 IIIIIIUlosabe, aliás, que uma adoção bem-sucedida deter"'''101 I 1lIllIlIllIças: provavelmente o que costumamos considerar 1111111
,I
1111 I!lanças dependa muito mais do tom de voz, da estilo motor e do ritmo, coisas que podem ser ad-
811 I" 11"111111do
11""' II 111li'
,
I Pll'valcça sobre os aspectos mais "materiais" das seme111111111'01'
de cabelos e olhos, ou a forma dos traços.
36
A CLÍNICAPRECOCE:O NASCIMENTODOIIUMA.'IO
1'" ,
Assim, parece-me possível dizer que nesse sentido, (Oe/II,' nossos filhos são adotados, mesmo os que tivemos biologiclIlI/t' Tal concepção poderia nos ajudar a trabalhar com pais adotivo!\, se sentem tão incomodados por acharem que os pais naturUl'i ajudados pela questão biológica, quando esta se reduz, nos dOI" sos, a um simples fantasma. Efetivamente, os pais naturais h~11\
.
I . ! 1 .
I
i ,I
11'11 ti ~tI NASCIMENTO psíQUICO:O SURPREENDENTE PERCURSO DOBEBt IIUMAl',O
,"'li' 1.111"1'111 l'l'al produzida . IltI,
37
por um espelho côncavo, o vaso vazio
,,!l1I ,I \"aixa se encontra repleto de flores. O sucesso dessa
11'11. 111',1.11'111 que o observador- contanto que se encontre no inteI~' ,,,,,. di .1'lIhado pela difração de raios do espelho côncavo -, perIIIId Icio de flores, sem desconfiar do fato de que se trata de 111"1111"1111 dI' um objeto real (o vaso) e de uma imagem (as flores).
impressão de conhecer seu filho, antes mesmo de encontrá-Ia. o q é um ato de pura identificação, ao o que os pais adotivos I~ impressão de não saber nada sobre o filho, o que perturba a op~ ção identificatória. Porém, a questão do reconhecimento primordial nos permill' I bém abordar a abundante clínica dos fatores de risco ligados aos 1111
cios de deficiências, doenças ou malformações, feitos em tOflll1 nascimento. O risco corresponde aqui, além da doença 011 malformação propriamente dita, ao fato que o anúncio acentua o 11111 entre bebê imaginário e bebê real, tomando esse encontro praticam te impossível. O anúncio pode provocar então uma catástrofe SIIh/'i va, quer dizer, um desinvestimento do bebê real, num luto impos~í do bebê esperado. E isso permanece verdadeiro, mesmo qllf desinvestimento se traduza por um superinvestimento, pois IW" casos, é a deficiência que se encontra superinvestida, em detril11~ do bebê como sujeito, dado que ele se tomará um puro objeto di I' dados, deixando intocável o "outro bebê", o bebê imaginário. Em compensação, se o tempo do reconhecimento primlll'J não está travado, e se produz um encontro entre o "bebê imagillllrl e o "bebê real", então esse tempo coloca a mãe em posição de 1'0' atribuir, a esse bebê tomado seu, os objetos de seu desejo. COl1slti se assim, no olhar que a mãe tem sobre ele, uma imagem compllll do real do corpo do bebê e das atribuições do desejo materno" Lacan se apropriou de uma experiência da física óptica, dita "1'\1 riência do buquê invertido" de Bouasse, em que uma pequena caixa
_
conde do observador o buquê de flores no seu interior. Pela inteffi1cdilU~'A&t 31. Laznik-Penor, M.C. trabalhou bastante essa questão no seu artigo "O papel flu"",,luf do olhar do Outro". In: La Psychanalyse Freudienne, 1991.
de I'Enfant
Figura: buquê invertido
I ,1\'111apoderou-se dessa experiência, pois ela constitui um "" I" ,llI,Iltlgico notável, diz ele, do modo como a imagem espe1..1 .I. I
,1111'110 vai se constituir, Podemos considerar, com Mme. I I III~.que o vaso representa o real do corpo do bebê no
I
...
1110(lwhê real), que as flores representam os objetos do de"'11' 111'1I1I,.IIl'lIlcmaternal (bebê imaginário), e que o resultado des.. til' "1111'\'11I 110olhar da mãe constitui a imagem à qual o bebê irá ... ..1.'11111\ 011Creio poder dizer que é o bebê assim olhado que se 1111'
111111 II1
"1"1'''' que perceberá sua própria imagem no espelho.
"I I .qlll'ma ótico, Lacan modifica o esquema de Bouasse para ,11' 1'1' ,,"1.11o "estado do espelho",32
N° !O, Paris, Ed. de I' AssndAllt1ll
li' , "I', <'11.
, I
38
A CLÍNIcAPRECOCE: o NASCIMENro DO HUMM'o ·
... ,I.
côncavo
I
I
n'ccber de volta o que eles mesmos estão dando (u.) 11thI se vêm eles mesmos" diz Winnicott. E mais: "Se o
11,111
1111'
,I.. III,h 11I10rcsponde
(u.) a ameaça de um caos se precipita, e o
1111101111 .;1.,'u rctraimento ou não olha nada (u.) o espelho se torna 11111, 1111111' ver, mas no qual não é mais preciso se 0Ihar"33.
t Esquema dos dois espelhos
J
t
IlIdl deprimida ou psiquicamente ausente na relação resti-
... t.. I.. d, qucm ela cuida uma imagem dele mesmo que é 111,11".1 '()s bebês (u.) muito tempo confrontados com a expe-
Espelho
i
I I
I" I" l' a maneira como este reagirá.
1111111
.
t
39
. 111II'\simo texto, todos os avatares que esse olhar pode
li. 11 '1"
i
r
Ibllll \11NASCIMENTOpslQUlco: O SURPREENDENTEPERCURSODO BEBt HUMANO
No lugar do olhar matemo, Lacan introduz o grande OUIIO a forma de um espelho plano que devolve, dessa vez ao suj"lfll lugar de observador, a imagem virtual - ou especular - dele 1I1t'~ que acelerará a formação de seu eu (moi).
~ Lacan situa esse momento entre seis e dezoito meses, L~III num movimento de antecipação visual à imaturidade motora, () I se percebe como uma unidade na qual se lançam ao mesmo temp,) eu (moi) e a imagem do corpo. O que o autor destaca como eSSI'!I nesse momento inaugural é a confIrmação que a criança rcc"~ adulto que a segura, esse vaivém em que é o Outro que validll . percepção dele mesmo. Isso fará Lacan dizer que o sujeito em,'I'~t' campo do Outro, descentrado dele mesmo e num movimento L'II1li a alienação será o cerne de sua relação à sua própria imagem. Winnicott, logo após a publicação de o Estado do e!)lJt'II,tI Lacan, escreveu um artigo intitulado O papel do espelho da 11I1711 da família no desenvolvimento da criança. Ele postula ser no olh
que a mãe coloca sobre o bebê que sua imagem se forma e ~ <111111 ti bebê vai poder se identifIcar. À questão: "Quando o bebê olhll ~II' mãe, o que ele vê?", responderá: "Ele mesmo". E Winnicotl dc,tj('",
0111"II
"Kprimir tão bem o fator de risco considerável que
til11I 1""11o recém-nascido a depressão materna, sobretudo se ... '11'" .. 11111 como uma depressão "branca" ou assintomática, · 111"1 I(111111I de ausência psíquica. Esse tipo de depressão pode ..I. I' 11 I"11'Llueas mães permanecem capazes de cumprir com IlIoIi'lU 11", inclusive em relação ao bebê. Todavia, a natureza ""1 I .1,1'lrocas que estabelecem com ele pode comprometer o 1,1. "lIlIlvIII1Cnto dos processos que descrevemos aqui. I 01'. IIlIl'ks constatação nos permite abordar o campo das caI.". 1I1I11I.Hlus pelos funcionamentos institucionais, em que o pro1""'11 1111"1110 muito competente e hábil em seus gestos, pode """" "'" l'ncarnar uma mãe ausente na relação, simplesmente 111'"11'11 I'''' conceber como tarefa a relação que mantém com a t""~" d, '1"('111se ocupa. Vemos tranqüilamente as lições que po1111
'" li pllm trabalhar com as equipes de cuidadores, sobretudo
1M'1111'.111 di' tipo berçário ou lar, ou hospitalizações neonatais ou ~.It\lll' ,I' dt' longo prazo. 1,"111'("SL~Saspectos que eu chamaria de "clínica do olhar" ,,,' 111.. 1 11I1I~idcradoscomo fundamentais durante o primeiro ano ,d., '.1'01111 que os estabelecimentos psíquicos correspondentes .. I,. '1I1.h IllOdo favorável, geralmente observamos que o estrabis111,I. ".h wh'o, L'até mesmo o nistagmo, próprios da imaturidade da 'li" 1.11111ocular no nascimento regridem espontaneamente em ,I, '11 I) W op. cit, p. 156.
./
,
40
A CLlNICAPRECOCE:
O NASCIMENTO DO HUMANO
"li .., , I "''' 11 lU NASCIMENTOpsIQwco:
favor da constituição de um campo visual em torno do fim du meiro trimestre.
I
i
t f ,
O SURPREENDENTEPERCURSODO BEBt IRJMANO 41
IIposde casos, considerados muito raros, o médico é "'""1" 11,111111 frcqüentemente solicitado para esses bebês que "ft',,", 11 olhur" ou cujo o olhar parece "transparente". Esses t
Entretanto, nos bebês com desenvolvimento satisfatório, 1\ tauração da fixação do olhar ocorre nas horas seguintes ao n mento, portanto bem antes da constituição do campo visual A podemos itir a hipótese, de acordo com Lacan: na insllIlI do olhar não está se tratando do visual, o olhar não é a visão; l'~1 muito mais no campo em que a questão é representaçã034. Com efeito, parece que a representação, mesmo se às Vl'l é persecutória, hostil ou desvalorizadora, permite ao bebê Sl' 10' truir, ao o que é a ausência da representação que se 10 verdadeiro ime, pois tudo transcorre como se o bebê fosse
.. ", ''', IllIfOO do olhar, que podem durar de alguns dias a ~ · Jll,11I1I~
C até alguns
meses
em certos
li "10'"1ili' "I' rcsolver espontaneamente, I
casos
-, parecem
sem que se saiba mui-
.. ,,' 1111Esses poucos elementos de compreensão sobre a
11" , '1"'I'lIlur podem talvez nos ajudar no entendimento .1.
,
de
I II\\IIS.
'1111'1111.,: CJpalavra e a voz
frontado com um olhar que não o vê, e por isso a identifica<,'l\n cristaliza o eu (moi) não é possível.
'I. 11111'" IIu Invocação interessa pela questão da voz como ob.1.. , "'I" I IIIVI\slidolibidinalmente. Ele recobre um largo leque "'"11'" 1111'IIl'nlreos quais gostariade isolardois: a instituição ..I, 'I IlIfrodução do código linguístico, no sentido da língua .. .I". 111Ij.\UU materna".
A história de uma garotinha autista, Amélie, que chulIl,,1 boneca sem rosto" e que se encontra na terceira parte desst 11 parece-me particularmente exemplar. Com efeito, o traço '11 endente desse caso era precisamente que sua mãe havia mUlt'rl zado sob a forma de uma boneca a ausência de representa<,'lIo ela tinha de sua filhinha. Esta boneca, que tinha inspirado o li de meu trabalho, era uma boneca de pano confeccionada Ix'lal durante a gravidez e destinada a ser colocada no berço do " Uma vez terminada a boneca, a mãe não consegue bordar os 11' de seu rosto.
N.. "'"1111'1110 do nascimento, a expulsão do sopro correspon.. ,\ ,.1" 1111111 dus
Esse caso é efetivamente exemplar do que eu chamei d&1
"'"1.11111111 rUldo,simplesfenômenode física acústica:o
gueira especular, para distingui-Ia da cegueira normal _ POl" mãe não era cega, e sua filhinha muito menos, mas ambas se l'IW travam em uma espécie de impossibilidade de se verem uma a 1111
li"'"
34. Lacan. da J. psicanálise". «A esquise doSeuil. olho Paris e do 1973. olhar» In: Séminário XI "Os qualro,\'/'"". "',... fudamentais
11111 '1111I
grito
Aquele ou aquela que ouve, e que se coloca como
." 1111,,"11111, lransforma esse grito, do qual podemos com razão 1'1'" 11,1111 l'l1lilidopor
É isso que designamoscomoausênciade representação,um 111"1 impossibilidade de pensar o outro, e é essa ausência de reprl'~I'1I ção que parece constituir, do ponto de vista da instauração da dll~ mica especular, o ime mais radical.
vias respiratórias faz vibrar as cordas vocais
""I
"
ninguém, em um ato de alguém. Isso não
,I,I I II l1l'bê que chama e a mãe responde "presente".
.
exemplo do reconhecimento primor."11 I, 1"'llIluridade:o grito do nascimento é ouvido como apeh. I li" I IlIndador,pois anterior a qualquer fenômeno de consI
í
111111111'1110 inaugural, a
I'" I I 'ti I. II hl~hê é promovido
ao estatuto
de sujeito falante.
A
42
A CUNJCA PREt'OCE: o NASCIMENTO DOIfUMANO
I hll 1110 NASCIMENTOpslQ\JIco: O SURPREE:'IDENTE PERCURSO DO BEBi I!L'MA;XO
explusão vocal e a agitação motora, que têm valor de descal'J,u1 ao montante de tensões, tomam valor de linguagem para aqud",. os ouvem. A mãe atribui ao grito um estatuto de mensagem Os bebês saudáveis não têm nenhum problema em se "111
M," I 11dI lias situações de troca com sua mãe, ele se dirige a ""111'I .IllIdlllk' sua própria voz, e ela responde, retomando suas No'- estamos bem antes de qualquer palavra verbal, no 11,01, IIII.L'IIII falada. Essas trocas constituem
dessa atribuição,e eles compreendemmuito bem como fazer 11111
i.
t
I ,
rápido, servindo-se de sua ferramenta vocal. Eles saberão reclllllll11' e forte, mas se acalmarão logo que uma resposta adequada lhes l' di11; inclusive uma simples resposta verballhes dizendo para espl'l'IU', poderão esperar, antecipando a satisfação, sem se desorganizar. Em compensação, os bebês criados em instituições POUl'Il ciosas, ou por mães que sofrem, que dão respostas anônimas, I'\) por grades de horários ou respostas caóticas e aleatórias, COII'-l'll produzi-Ias muito menos bem, pois sua agitação não produi' 1\ sariamente uma resposta. Esses bebês têm a maior dificuldlldo interiorizar o fato de que seus gritos ou sua agitaçãoo excl'l'l'ln, gum poder sobre o ambiente, quer dizer, a integrar que eles "'ul que eles emitem mensagens. Por isso são muitas vezes difíceis de consolar, se agilillll esperar que alguém responda, e assim que a respota chega, l'hl
acalma, como se o laço entre a satisfação da necessidade c \I
A introduçãodo código linguístico:a língua materna
Quando um bebê vai bem, ele desenvolve, entre as
11111111
pausasde repouso.Duranteesses momentos,descansado('
111111
tado, o bebê brinca com sua voz, como ele brinca com os SI'U"
Esse balbucio emitido dos para todo mundo, esse cantarolar (' \'11 modulações correspondem ao investimento libidinal da VIIi''I" objeto da pulsão.
uma espécie de con-
. "tenda,
pelo viés de um prazer de ser compartihado. 11111'pl'lIsar que a tendência do ser humano de ter prazer
"., .1.1 I 1"..1,
'11111111'I
""11"
I
tMcr música e poesia, se liga a essa experiência mui1111
que a textura sonora da voz, sua melopéia longe de
111" I.'111 tll'ução, e no entanto, já e de trocas, constituía, '111'""I 1111111 afirmação de existência, validando para nós nossa 'li 1.1 1',11,1 o
..., \
11 .11
"I,
IIIISl' a introdução
111 1111
."'..!I'Id. 1"1,,, 'I, ..
Outro.
. 1',11111 (kssa afirmação de existência que as trocas vocais
,
do código linguístico.
l'studa magistralmente essas trocas em sua tese de
onde foi tirado seu artigo Da interação mãe-bebê ao /I,'/I(? Ela descreve o funcionamento do mamanhês
l'orno se diz inglês ou japonês - , a língua das ma" I "11111'1I considera que o mamanhês como a modalidade de
"III~ .1.'dI Ifngua
N"
14
guamento não tivesse sido feito. É a não instalação do apelo, 10 do à sua cessação, que conduz ao mutismo completo nas sílldn autísticas.
43
falada na cadeia sonora produzida pela criança.
111,1111 1111\ mam" emitido pelo bebê, a
mãe vai recortara
"~'I ,I., ,"dlgO: ela fará disso um "mamãe". A mãe isola duas lliulo quc uma ou três iterações não correspondem a ne11I1j,"1I11Ilntl~sda língua. Esta operaçãoo depende, ao mesmo 1"' 01,."" tll/lirão e do corte, portanto da articulação dialética 11111'.'", IIlIItcnas e paternas e atingirá num primeiro tempo a '1'-11,. h,,'o da paleta sonora emitida pela criança. Esta diversifi_li 011"1l'lIl'iação de choros, aparição de vocalizações próximas t"II.1' I I' d,1 hngua, a dimiuição ou mesmo o desaparecimento de . ,. ",,1111,IIl.ldos - é a fonte do que chamamos a lisibilidade do ...,... I" I,. .,'11('11torno. I ''I t.. 1,,1lJUl.'vai bem é um bebê lisível, inclusive por outros, .Ir,,, I, IIIli IJ111bebê de quem se dirá que ele é "fácil" de cuidar,
I' , I
'"IIIII('('ndemosbem oque acontece com ele e o que ele nos
44
A CÚNlCA
PREOOCE:
. ","
o NASCIMENTO DO HUMANO
11 <\lI NASCIMENTO psíQUICO:
diz: a tarefa codificadora da mãe teve seus frutos. Nós dizl'lIll18 aí que a mãe decodifica; elas codificam, pois a verdadclI'IIt, materna é a de organziar o real pela coerência de suas reposl Ao contrário, nós conhecemos bebês inconsoláveis, t'l1\ agitação motora e os gritos, nem mesmo entrecortad vocalizações dirigidas, colocam em cheque as repetidas knl dos próximos para ajudá-los.
I
i I ,
I
I
'H 1 "III\I
subjetiva em seguida à qual as trocas pareciam não acontecer
1111
limento
..,,1,10 111,('I'purações, '''1,
no bebê),
tI.II 11I,10
seja
vindos
perturbações
acidentes
,II,/\//'(!f'e subjetiva
"1111"
Acho realmente muito importante lembrar que essa IIP" "incapacidade" das mães em se comunicar com as crianças qll('11 sentam síndromes autísticas parece ser o resultado de uma call'l/1'1
perinatais).
determina
36,
"Maxime, ou ouvir não é escutar",
na terceira parte desse livro.
do pai (estados
psíquicas),
seja vindos
O que nos interessa
o que chamei de estado de
'1"1 Ill'signa um estado particular que impede o pai de se S
" ' IIllIl I.
11.. l'onfigurações que encontramos mais freqüentemente ,"
d.ls sindromes autísticas, impressionantes
sobretudo
"""li ,I. 1Il'Iwsque não apresentam nunhuma outra dificuldade I I "11'"I'stadosde sideraçãosão particularmentedignos I'0l~parecem reversíveis se um acompanhamento apro, I", 1'1111'0'110 logo no início. \ 11111'IIUtCS realmente competentes3?para os outros filhos ",," '" 1"llknío todas as suas capacidades maternantes diante I
li I 11,1111, 'I 1'lIcontrando-se nessa espécie de estado de sideração ..~
11111" .I, dI' funcionar. Durante o tratamento dessas crianças, a
tI'" 01,1IIIMIiscrão capazes de testemunhar a dificuldade de fun. I 11111 I h'" l'omo "com os outros", só o conseguirão se forem ,"11.11111 III!' apoiadas pelo terapeuta. ",.." ' '1'1'I'íl' de destituição recíproca parece característica do ~",. .11111.111'0. Ela se instala na circularidade das trocas, e pare1'..11., 11I11"ll'ltII'. a partir daí, de que lado - da criança ou dos pais til 1'/1, "111111111a dificuldade inicial, pois se a mãe não consegue "," li,'" n postas, o bebê então não será codificado. A única ,,1111101,,11 I'lIn'cc
ser a de intervirno âmbito do funcionamento
'.'It. " '111110\ I1\staurado.
mais funcionar. E é em substituição dessas trocas ausentc,,"1111'" processo autístico se põe a funcionar. 35. "A boneca sem rosto: Amelie ou a parada especular e a surdez significantc", capítulo desse livro.
45
(particularidades na capacidade de trocas do
11110complicado,
de crianças com uma sindrome autística, assim como a apllU bebês comuns em se apropriar de significantes parece falllll 1)11 sente nos bebês que se organizam de modo autístico.
Os estadosde sideroção
HUMAJI"O
,I. I" 11'111 lU ou doença detectadas no nascimento que tornaram
'''.01.''
que a vocalização, por aproximação, seja assimilada à palllvrl código: o que Freud chamou de ilusão antecipatória. E no mou balho sobre Maxime36, examino a dificuldade de um bebê qUI'U em se servir das imagens acústicas registradas como signifu: na troca.
PERCURSO DO BEBt
subjetivapode ter sido provocadapor fatores
, 11101.,dll I !'lança
A aptidão de mães comuns - suficientemente b(hlN, Winnicott - em recortar e atribuir sentido, parece ausente 111I11
No meu trabalho sobre Amelie35 , descrevi a surdez siglllllc que corresponde a essa meneira particular, que algumas /IIR'1 crianças autistas têm, de compreender as emissões vocais dlll'rl ao pé da letra, quer dizer, não preenchem o intervalo necesstl/'lll
'111I"lrnfc
O SURPREE.'IDENTE
1111 11I' 1IIIIII'I111iunode "suficientemente
boas'~.