Tyler, Anne_o Turista Acidental 2s70s

Anne Tyler O turista acidental Tradução de Adriana Lisboa Editora Record Rio de Janeiro – São Paulo 2009

Tyler, Anne, j 941-T97 O turista Acidental / Anne Tyler; tradução de Adriana Lisboa Rio de Janeiro: Record, 2009. Tradução de: The accidental tourist ISBN 978-85-01-07813-1 I. Romance americano. I. Lisboa, Adriana, 1970-. II. Título. 09-2029 CDD — 813 CDU — 821.1 11(73)-3 Título original inglês: The accidental tourist © Copyright Anne Tyler, 1985 Editoração Eletrônica: Abreu’s System Crédito de imagem: Abrams/Getty Images Capa: Rafael Saraiva Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela Editora Record Ltda. Rua Argentina 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 —Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução

1 Eles deveriam ficar na praia durante uma semana, mas nenhum dos dois tinha disposição para isso e decidiram voltar mais cedo. Macon dirigia. Sarah estava sentada a seu lado, a cabeça apoiada na janela lateral. Nesgas do céu nublado apareciam entre seus cachos castanhos embaraçados. Macon usava um terno formal de verão, seu terno de viagem — muito mais lógico para viajar do que jeans, ele sempre dizia. Calças jeans tinham aquelas costuras grossas e duras e aquelas tachas. Sarah usava um vestido de praia atoalhado, sem alças. Eles podiam estar voltando de duas viagens inteiramente diferentes. Sarah estava bronzeada, mas Macon, não. Era um homem alto, pálido, de olhos cinzentos, o cabelo louro e liso bem curto, e sua pele era daquele tipo que se queima com facilidade. Ele ficara longe do sol no período mais quente, todos os dias. Logo após o início da rodovia com pistas divididas, o céu ficou quase preto e várias gotas enormes respingaram no para-brisa. Sarah se endireitou no assento. — Vamos torcer para que não chova — ela disse. — Uma chuvinha não me incomoda — Macon disse. Sarah recostou-se novamente, mas manteve os olhos na estrada. Era uma manhã de quinta-feira. Não havia muito trânsito. aram por uma picape, depois por uma van coberta de adesivos de uma centena de atrações pitorescas. As gotas no para-brisa ficaram menos espaçadas. Macon ligou o limpador. Tic-suosh, ele fazia, um som que embalava; e havia um suave tamborilar na capota. De tempos em tempos, uma rajada de vento soprava. A chuva aplainava o mato alto e claro nas margens da estrada, e caía inclinada sobre as garagens de barcos, os depósitos de madeira e as lojas de mobília barata, que estavam com um aspecto escurecido, como se ali já chovesse havia algum tempo. — Você está conseguindo enxergar direito? — Sarah perguntou. — Claro — Macon disse. — Isto não é nada. Chegaram atrás de um trailer cujas rodas traseiras levantavam arcos de água. Macon jogou o carro para a esquerda e ultraou. Um jorro de água no parabrisa causou um momento de cegueira antes de o trailer ficar para trás. Sarah agarrou o com uma das mãos. — Não sei como você consegue enxergar o suficiente para dirigir — ela disse.

— Talvez você devesse colocar os óculos. — Colocar meus óculos ajudaria você a enxergar? — Eu não; você — Macon disse. — Você está focalizando o para-brisa em vez da estrada. Sarah continuou agarrada ao . Tinha um rosto largo e macio que dava uma impressão de calma, mas se você olhasse de Perto notava a tensão nos cantos de seus olhos. O carro os envolvia como se fosse um quarto. A respiração deles embaçava as janelas. Mais cedo o ar-condicionado estava ligado e ainda havia algum frio, que tornava-se úmido, trazendo consigo o odor de mofo. Cruzaram uma agem subterrânea. A chuva parou de repente e por completo durante um inexpressivo segundo. Sarah soltou um pequeno arquejo de alívio, mas quase no mesmo instante o martelar na capota recomeçou. Ela se virou e olhou saudosa para a agem lá atrás. Macon avançava, as mãos relaxadas no volante. — Você reparou naquele garoto com a moto? — Sarah perguntou. Teve que levantar a voz; um rumor constante e insistente os engolfava. — Que garoto? — Ele estava parado debaixo da agem. — É loucura dirigir uma moto num dia como hoje — Macon disse. — Loucura dirigir uma moto em qualquer dia. Você fica tão exposto ao tempo. — Podíamos fazer isso — Sarah disse. — Parar e esperar. — Sarah, se eu achasse que estamos correndo o menor perigo eu teria parado há muito tempo. — Bem, não sei se teria. aram por um campo onde a chuva parecia cair em lençóis, camadas e camadas de chuva golpeando os pés de milho, alagando a terra sulcada. Grandes chicotadas de água se atiravam contra o para-brisa. Macon colocou o limpador na velocidade máxima. — Não sei se você se importa tanto assim — Sarah disse. — Importa-se? Macon disse: — Se eu me importo? — Eu disse a você outro dia: “Macon, agora que Ethan está morto eu às vezes me pergunto se existe algum sentido na vida.” Você se lembra do que respondeu? — Bem, não sem pensar antes — Macon disse. — Você disse: “Querida, para dizer a verdade nunca me pareceu existir, para começo de conversa.” Essas foram suas exatas palavras. — Hm... — E você nem mesmo sabe o que havia de errado com isso.

— Não, acho que não — Macon disse. Ele ultraou uma fila de carros parados no acostamento da estrada, as janelas opacas, as superfícies reluzentes fazendo a chuva ricochetear em pequenas explosões. Um carro estava ligeiramente inclinado, como se estivesse prestes a cair na torrente lamacenta que corria na vala. Macon mantinha velocidade constante. — Você não me dá nenhum consolo, Macon — Sarah disse. — Querida, estou tentando. — Você só continua do mesmo jeito que era antes. Suas pequenas rotinas e rituais, seus hábitos deprimentes, dia após dia. Nenhum consolo em absoluto. — Será que eu também não estaria precisando de consolo? — Macon perguntou. — Você não é a única, Sarah. Não sei por que você pensa que é uma perda só sua. — Bem, eu apenas penso, às vezes — Sarah disse. Ficaram quietos por um momento. O que parecia um lago amplo no meio da rodovia colidiu com a parte inferior do carro e jogou-o para a direita. Macon pisou no freio e seguiu em frente. — Esta chuva, por exemplo — Sarah disse. — Você sabe que ela me deixa nervosa. Que mal haveria em esperar que acabasse? Você estaria demonstrando que se importa um pouco. Estaria dizendo que estamos juntos nisto. Macon espiou através do para-brisa, onde tantos filetes de água escorriam que ele parecia de mármore. Disse: — Tenho um sistema, Sarah. Você sabe que eu dirijo de acordo com um sistema. — Você e seus sistemas! — Além disso — ele falou —, se você não vê sentido na vida, não posso imaginar por que uma tempestade haveria de deixá-la nervosa. Sarah se encolheu no assento. — Olhe só para aquilo! — ele disse. — A água arrastou um trailer pelo estacionamento. — Macon, quero me divorciar — Sarah disse a ele. Macon freou e olhou de soslaio para ela. — O quê? — ele disse. O carro deu uma guinada. Ele teve que olhar para a frente outra vez. — O que foi que disse? — ele perguntou. — O que foi que quis dizer com isso? — Eu simplesmente não consigo mais viver com você — Sarah disse. Macon continuou olhando para a estrada, mas seu nariz parecia mais fino e mais pálido, como se a pele de seu rosto tivesse sido esticada. Ele pigarreou. Disse: — Querida. Escute. Foi um ano difícil. Tivemos momentos ruins. As pessoas que perdem um filho frequentemente se sentem assim; todo mundo diz

isso; todo mundo diz que é uma tensão violenta num casamento... — Eu gostaria de encontrar um lugar para mim assim que voltarmos — Sarah disse a ele. — Lugar para você — Macon ecoou, mas falou com tanta delicadeza, e a chuva batia com tanta força no teto que era como se ele só estivesse movendo os lábios. — Bem — ele disse. — Está certo. Se é o que você realmente quer. — Você pode ficar com a casa — Sarah disse. — Você jamais gostou de se mudar.

Por algum motivo, foi isso o que enfim a fez desmoronar. Ela virou-se para o lado de forma brusca. Macon ligou a seta da direita. Entrou num posto Texaco, parou na área coberta e desligou o motor. Depois começou a massagear os joelhos com as palmas das mãos. Sarah estava encolhida no canto. O único som era o martelar da chuva no telhado bem alto acima deles.

2 Depois que sua mulher o deixou, Macon achou que a casa pareceria maior. Ao contrário, ele se sentiu mais apertado. As janelas encolheram. O teto abaixou. Havia algo de insistente na mobília, como se o estivesse comprimindo. É claro que os objetos pessoais de Sarah já não estavam lá, as pequenas coisas como roupas e joias. Mas ele descobria que algumas das coisas grandes eram mais pessoais do que imaginara. Havia a escrivaninha com tampo de abrir na sala de estar, os escaninhos abarrotados com seus montes de envelopes rasgados e cartas sem resposta. Havia o rádio na cozinha, programado para tocar a rádio 98 Rock. (Ela gostava de manter contato com os alunos, costumava dizer nos velhos dias, enquanto cantarolava e saltitava ao redor da mesa do café da manhã.) Havia a cadeira lá fora onde ela tomava sol, instalada no único lugar que recebia algum sol. Ele olhava para as almofadas floridas e se maravilhava ao perceber como um espaço vazio podia estar tão ocupado por uma pessoa — o cheiro discreto de óleo de coco que sempre o fizera desejar uma pina colada; o rosto largo e reluzente dela inescrutável atrás dos óculos escuros; seu corpo compacto no maiô com saiote que ela insistira chorosa em comprar depois de seu aniversário de 40 anos. Fios de seu cabelo exuberante apareciam no fundo da pia. A prateleira dela no armário de remédios, despida, estava salpicada de gotas de rouge líquido num tom particular de ameixa que a trazia instantaneamente à cabeça de Macon. Ele sempre desaprovara a bagunça que ela fazia, mas agora esses salpicos pareciam comoventes, como brinquedos coloridos deixados no chão depois que a criança foi para a cama. A casa em si era de tamanho médio, de aspecto nada excepcional, erguida numa rua de casas semelhantes numa parte mais antiga de Baltimore. Pesados carvalhos se inclinavam sobre ela, fazendo sombra durante o verão quente mas também bloqueando a brisa. Os quartos, no interior, eram quadrados e escuros. Tudo o que restava no closet de Sarah era uma faixa de seda marrom pendurada num gancho; em suas gavetas na cômoda, bolas de gaze e frascos vazios de perfume. O antigo quarto do filho deles estava arrumado com capricho, asseado como um quarto num Holiday Inn. Em alguns lugares, as paredes devolviam uma espécie de eco. Ainda assim, Macon notava que tinha uma tendência a segurar os braços junto ao corpo, a ar pelos móveis de lado, como se imaginasse que a casa mal pudesse acomodá-lo. Sentia-se alto demais. Seus pés

compridos e desajeitados pareciam extraordinariamente distantes. Ele abaixava a cabeça ao ar pelas portas. Agora era sua chance de se reorganizar, ele disse a si mesmo. Foi tomado por um incongruente pequeno choque de interesse. O fato era que gerenciar uma casa requeria algum tipo de sistema, e Sarah nunca entendera isso. Ela era o tipo de mulher que guardava os talheres misturados. Não via nenhum problema em fazer funcionar a lava-louças com apenas um punhado de garfos metidos lá dentro. Macon achava isso angustiante. Opunha-se às lava-louças de modo geral; achava que desperdiçavam energia. Poupar energia era um hobby seu, seria possível dizer. Ele começou a manter a pia da cozinha cheia o tempo todo, acrescentando um pouco de água sanitária para desinfetar. Quando acabava de usar cada prato, colocava-o lá dentro. Em dias alternados tirava o tampão e borrifava água bem quente em tudo. Então guardava os pratos enxaguados dentro da lava-louça vazia — que se tornara, sob seu novo sistema, uma área gigante de armazenagem. Quando se debruçava sobre a pia para ligar o borrifador de água, frequentemente tinha a sensação de que Sarah o estava observando. Sentia que se virasse os olhos apenas de leve para a esquerda ia encontrá-la com os braços cruzados sobre o peito, a cabeça inclinada e os lábios cheios e curvos franzidos em meditação. Num primeiro olhar, ela estava apenas estudando os procedimentos dele; num segundo (ele sabia), estava rindo dele. Havia um brilho secreto em seus olhos com o qual ele estava bastante familiarizado. “Entendo”, ela diria, anuindo diante de alguma explicação maçante; então ele ergueria os olhos e veria o brilho e o vinco denunciador no canto de sua boca. Nessa visão que tinha dela — seria possível dizer que era uma visão, considerando-se que ele nunca chegava a olhar em sua direção — ela usava um vestido azul-claro dos primeiros dias de seu casamento. Ele não tinha ideia de quando ela se desfizera daquele vestido, mas certamente fora muitos anos antes. Ele quase sentia que Sarah era um fantasma, que estava morta. Num certo sentido (ele pensou, desligando a torneira), ela estava morta, aquela Sarah vívida e jovem de seu primeiro e entusiasmado apartamento em Cold Spring Lane. Quando ele tentava se lembrar desses dias, qualquer imagem de Sarah era alterada pelo fato de que ela o deixara. Quando o momento em que haviam sido apresentados lhe vinha à mente — numa época em que mal tinham saído da infância — não parecia mais do que o início de sua separação. Quando ela erguera os olhos para ele naquela primeira noite e agitara os cubos de gelo em seu copo de papel, eles já se encaminhavam ao seu último ano juntos, infeliz e irascível, àqueles meses em que qualquer coisa que um dos dois dissesse estava errada, àquela sensação de que por muito pouco as conexões não se faziam.

Eram como pessoas que correm para se encontrar, de braços abertos, mas calculam mal a direção; am uma pela outra e continuam correndo. Tudo se reduzira a nada, no fim. Ele abaixou os olhos para a pia, e o calor que vinha dos pratos se projetou suavemente na direção de seu rosto. Bem, você tem que seguir em frente. Tem que seguir em frente. Ele decidiu trocar o banho da manhã para a noite. Isso demonstrava adaptabilidade, ele sentia, algum frescor de espírito. Enquanto tomava banho de chuveiro, deixava a água se acumular na banheira, e arrastava os pés em círculos ruidosos, chapinhando sobre as roupas sujas daquele dia. Mais tarde, torcia as roupas e pendurava-as em cabides para secar. Então vestia a roupa de baixo do dia seguinte para não ter que lavar nenhum pijama. Na verdade, a única coisa que lavava na máquina eram toalhas e lençóis, uma vez por semana — só duas toalhas, mas um bocado de lençóis. Isso porque desenvolvera um sistema que lhe permitia dormir em lençóis limpos todas as noites sem o trabalho de fazer a cama. Durante anos propa o sistema a Sarah, mas ela era presa demais ao próprio jeito de fazer as coisas. O que ele fez foi tirar toda a roupa de cama do colchão, substituindo-a por uma espécie de arquivo gigante feito com sete lençóis que ele dobrara e costurara na máquina à forma de sete compartimentos sobrepostos que eram revezados. Pensava nessa invenção como a Bolsa Corporal Macon Leary. Uma bolsa corporal não precisava ser enfiada debaixo do colchão, não amarrotava, era facilmente trocável e adequada às noites de verão. No inverno ele teria que arquitetar algo mais quente, mas ainda não podia pensar no inverno. Mal conseguia pensar de um dia a outro, do jeito como estavam as coisas. Em certos momentos — enquanto estava patinando sobre roupas desfiguradas na banheira ou lutando para entrar em sua bolsa corporal sobre o colchão nu e manchado — ele se dava conta de que talvez estivesse levando as coisas longe demais. Também não conseguia explicar por quê. Sempre tivera uma afeição pelo método, mas não por aquilo que você poderia chamar de mania. Pensando então na falta de método de Sarah, ele se perguntava se isso também fugira ao controle. Talvez durante todos aqueles anos eles estivessem mantendo um ao outro dentro de limites razoáveis. Separados, de algum modo desmagnetizados, eles vagavam desordenadamente fora dos trilhos. Ele imaginava o novo apartamento de Sarah, que nunca tinha visto, como sendo caótico às raias da loucura, com tênis em cima do sofá onde a louça se empilhava. O mero pensamento o irritava. Olhava com gratidão ao redor.

A maior parte do seu trabalho era feito em casa; do contrário ele talvez não se importasse tanto com a mecânica do ambiente. Tinha um pequeno estúdio num quarto extra junto à cozinha. Sentado numa cadeira de estenógrafo, datilografando numa máquina que lhe servira durante quatro anos de faculdade, escrevia uma série de guias para pessoas forçadas a viajar a trabalho. Era ridículo, quando você parava para pensar: Macon detestava viajar. Ele ava por territórios estrangeiros em visitas-relâmpago desesperadas — fechando os olhos e prendendo a respiração e se agarrando à própria vida, ele às vezes imaginava — e depois se instalava de novo em casa com um suspiro de alívio a fim de escrever seus livros grossos, do tamanho de um aporte. Turista acidental na França. Turista acidental na Alemanha. Na Bélgica. Não havia o nome do autor, só um logotipo: uma poltrona alada na capa. Ele cobria apenas as cidades naqueles guias, para pessoas que faziam viagens de negócios e voltavam sem conhecer em absoluto o interior. Na verdade, tampouco viam as cidades. Sua preocupação era fazer de conta que não tinham saído de casa. Que hotéis em Madri se gabavam de ter colchões Beauty-rest king-size? Que restaurantes em Tóquio ofereciam adoçante Sweet’n’Low? Havia McDonald’s em Amsterdã? Havia Taco Bell na Cidade do México? Havia em Roma algum lugar que servisse ravióli da marca Chef Boyardee? Outros viajantes esperavam descobrir vinhos locais característicos; os leitores de Macon procuravam leite pasteurizado e homogeneizado. Ele adorava escrever tanto quanto detestava viajar — as delícias virtuais de organizar um país desorganizado, de se livrar do que não era essencial e do que era de segunda classe, classificar tudo o que sobrava em parágrafos elegantes e concisos. Ele colava de outros guias, apoderando-se de certos trechos que tinham valor e se livrando do resto. ava horas prazerosas ocupando-se excitado de questões de pontuação. Com justeza e sem piedade, removia a voz iva. O esforço de datilografar fazia os cantos de sua boca se retorcerem para baixo de tal modo que ninguém teria adivinhado o quanto ele estava se divertindo. Fico feliz em dizer, ele escreveu alegremente, mas seu rosto permaneceu taciturno e carregado. Fico feliz em dizer que é possível agora comprar Kentucky Fried Chicken em Estocolmo. Pão árabe também, ele acrescentou, como uma reflexão posterior. Não tinha certeza de como acontecera, mas ultimamente pão árabe parecia algo tão americano quanto cachorro-quente.

— É claro que você está se saindo bem — sua irmã lhe disse por telefone. — Eu disse que você não ia se sair? Mas pelo menos você podia ter contado. Já são três semanas! Sarah foi embora faz três semanas e só fiquei sabendo hoje. E por acaso, aliás. Se eu não tivesse pedido para falar com ela, você por acaso nos teria dito que ela o deixou? — Ela não me deixou — Macon disse. — Isto é, não foi do jeito que parece quando você fala. Discutimos como adultos e decidimos nos separar, isso é tudo. A última coisa de que eu preciso é da minha família se reunindo ao meu redor e dizendo, “Oh, pobre Macon, como Sarah pôde fazer isso com você...” — Por que eu diria isso? — Rose perguntou. — Todo mundo sabe que é difícil viver com os homens da família Leary. — Oh — Macon disse. — Onde ela está? — Arranjou um lugar mais para o centro da cidade — ele disse. — E olhe — ele acrescentou —, você também não precisa começar a chamá-la para jantar ou coisa do gênero. Ela tem a própria família. Vocês teoricamente devem ficar do meu lado em tudo isso. — Achei que você não queria que tomássemos partido. — Não, não, não quero. Isto é, não quero que tomem o partido dela, é o que estou tentando dizer. — Quando a mulher do Charles se divorciou — Rose disse, — continuamos a recebê-la para jantar no Natal, como sempre. Você se lembra? — Eu me lembro — Macon disse, com enfado. Charles era o irmão mais velho deles. — Acho que ela ainda virá, se não tiver se casado de novo com alguém muito longe daqui. — O quê? Se o marido dela fosse um homem de Baltimore vocês iam convidar os dois? — Ela, a mulher de Porter e Sarah costumavam se sentar na cozinha, isso antes da mulher de Porter se divorciar, e elas falavam sem parar dos homens da família Leary. Oh, era os homens da família Leary isto, os homens da família Leary aquilo: de como eles sempre tinham que fazer tudo da maneira justa, tudo sempre tão bem refletido de antemão, sempre agarrando o mundo como se realmente achassem que podiam mantê-lo na linha. Os homens da família Leary!

Ainda posso ouvi-las. Eu tinha que rir: certa vez, no feriado de Ação de Graças, Porter e June estavam se aprontando para sair, quando seus filhos ainda eram pequenos, e June se dirigia à porta com o bebê no colo e Danny pendurado em seu casaco e esse monte de brinquedos e órios quando Porter gritou: “Alto!” e começou a ler um daqueles rolos de papel de caixa registradora em que ele sempre escreve suas listas: bolsa de fraldas, cobertor, leite que estava na geladeira, mamadeiras... June só se voltou para as outras duas e revirou os olhos. — Bem, não era uma ideia tão ruim — Macon disse —, quando você pensa em June. — Não, e você percebe que também era em ordem alfabética — Rose disse. — Acho que colocar as coisas em ordem alfabética ajuda a arrumá-las um pouco. Rose tinha uma cozinha que estava tão completamente colocada em ordem alfabética que você encontrava o fermento ao lado do formicida. Quem era ela para falar dos homens da família Leary. — Seja como for — ela disse. — Sarah entrou em contato desde que foi embora? — Veio uma ou duas vezes. Uma, na verdade — Macon disse. — Buscar coisas de que precisava. — Que coisas? — Bem, uma a de cozinhar no vapor. Coisas desse tipo. — É uma desculpa, então — Rose disse, prontamente. — Ela poderia comprar uma a em qualquer loja. — Ela disse que gostava da nossa. — Ela queria saber como você estava. Ainda gosta de você. Chegaram a conversar? — Não — Macon disse —, só lhe entreguei a a. E também aquela engenhoca que tira o tampo das garrafas. — Oh, Macon, você podia tê-la convidado a entrar. — Eu tive medo de que ela dissesse que não — ele falou. Houve um silêncio. — Bem, você é quem sabe — Rose disse, por fim. — Mas estou me saindo bem! — Sim, é claro que está — ela lhe disse. Então ela falou que tinha alguma coisa no forno e desligou. Macon foi até a janela de seu estúdio. Era um dia quente do início de junho, o céu tão azul que fazia seus olhos doerem. Descansou a testa no vidro e ficou olhando para o quintal, as mãos enfiadas no fundo dos bolsos de sua calça cáqui. No alto de um dos carvalhos, um pássaro cantava o que parecia ser as primeiras

três notas de “My Little Gypsy Sweetheart”. “Slum... ber... on...”1 ele cantava. Macon se perguntou se aquele momento ia se transformar, um dia, em algo que ele recordasse com melancolia. Não conseguia imaginá-lo; não conseguia pensar em nenhum período mais árido do que aquele em toda a sua vida, mas notara como o tempo tinha um modo de colorir as coisas. Aquele pássaro, por exemplo, tinha uma voz pura, doce, penetrante. Ele virou as costas para a janela, cobriu a máquina de escrever e saiu do quarto.

Ele já não fazia refeições de verdade. Quando sentia fome, bebia um copo de leite, ou pegava uma colherada de sorvete diretamente da embalagem. Após o menor dos lanches ele se sentia superalimentado e pesado, mas notava ao se vestir pela manhã que aparentemente estava perdendo peso. A gola da camisa estava frouxa em torno de seu pescoço. O sulco vertical entre seu nariz e sua boca estava tão fundo que ele tinha dificuldade em barbeá-lo. Seu cabelo, que Sarah costumava cortar, caía-lhe sobre a testa. E alguma coisa tinha feito com que suas pálpebras inferiores caíssem. Seus olhos antes eram fendas estreitas e cinzentas; agora estavam arregalados e alarmados. Seria isso um sinal de má nutrição? Café da manhã: o café da manhã era sua refeição mais importante. Ele prendeu a cafeteira e a a elétrica ao radiorrelógio no batente da janela de seu quarto. É claro que estava procurando intoxicação alimentar ao deixar dois ovos crus a noite inteira em temperatura ambiente, mas uma vez tendo alterado o cardápio isso não seria um problema. Você tem que ser flexível nessas questões. Agora ele era acordado pelo cheiro do café fresco e de pipoca com manteiga, e podia consumir ambos sem sair da cama. Ah, ele estava se saindo bem, muito bem. Levando tudo em consideração. Mas suas noites eram terríveis. Não que tivesse dificuldade para pegar no sono. Isso era fácil. Ele assistia à TV até os olhos estarem queimando; depois subia a escada. Ligava o chuveiro e espalhava suas roupas na banheira. Às vezes pensava em pular essa parte, mas temia perder o controle de seu sistema. Então cumpria cada o: pendurar a roupa lavada, aprontar as coisas do café da manhã, ar fio dental. Por alguma

razão, Sarah achava isso irritante. Se Macon fosse condenado à morte, ela disse uma vez, e lhe informassem de que seria executado pelo pelotão de fuzilamento na alvorada, ele sem dúvida insistiria em ar o fio dental na véspera. Macon, depois de pensar no assunto, concordara. Sim, claro que faria isso. Não usara o fio dental em plena crise de pneumonia? No hospital, com cálculos biliares? Num motel na noite em que seu filho foi morto? Verificou os dentes no espelho. Nunca estavam inteiramente brancos, apesar de todo o seu cuidado. E agora sua pele parecia estar adquirindo um tom amarelado também. Apagou as luzes, pegou a gata, ajudou o cachorro a subir na cama. O cachorro era um welsh corgi, de pernas muito curtas, mas que adorava dormir na cama, então toda noite ficava parado, ereto, e apoiava os cotovelos no colchão e fitava Macon com expectativa, até Macon lhe dar uma ajuda. Então os três se instalavam, juntos. Macon deslizava para dentro de seu envelope, a gata se aninhava na curva quente debaixo de seu braço e o cachorro se estatelava perto dos seus pés. Macon fechava os olhos e se deixava levar. Mas em algum momento adquiria consciência de seus sonhos — não era mais carregado por eles, mas os construía, enfadonhamente, sofismando sobre detalhes. Quando lhe ocorria que estava acordado, abria os olhos e os apertava para enxergar o radiorrelógio. Mas era só uma da manhã. No máximo duas. Havia todas aquelas horas às quais sobreviver. Seu cérebro zumbia com pequenas preocupações. Será que ele tinha deixado a porta de trás destrancada? Esquecido de colocar o leite do lado de fora? Feito um cheque no valor do saldo do banco em vez da conta de gás? Lembrou-se de repente que abrira uma lata de suco V-8 e depois colocara a lata na geladeira. Oxidação das beiradas do metal! Resultando em envenenamento por chumbo! As preocupações mudaram, ficaram mais profundas. Ele se perguntava o que tinha dado errado em seu casamento. Sarah tinha sido sua primeira e única namorada; agora ele achava que devia ter treinado com outra pessoa antes. Durante os vinte anos de seu casamento tinha havido momentos — tinha havido meses — em que ele não sentia que eles de fato formavam uma unidade do modo como os casais formavam. Às vezes pareciam mais dois rivais, cutucando um ao outro, competindo para ver quem era o melhor estilo de pessoa. Seria Sarah, imprevisível, ativa? Seria Macon, metódico e estável? Quando Ethan nasceu, as diferenças entre os dois só se ressaltaram. As coisas que eles tinham aprendido a ignorar um no outro voltaram à tona. Sarah nunca estabelecera qualquer tipo de horário para o filho, era indulgente e despreocupada. E Macon (oh, ele sabia disso, ele o itia) ficava tão atento em prepará-lo para qualquer eventualidade que não tinha tempo de desfrutar dele. Ethan aos 2 anos, aos 4, flutuava para dentro de sua visão com a nitidez de um

filme a cores projetado no teto do quarto. Um menininho risonho e radiante, o que ele era, e Macon uma sombra curvada sobre ele, torcendo as mãos. Macon fora arrebatado ao ensiná-lo, aos 6 anos, a como usar o taco; teria dilacerado sua alma se Ethan fosse escolhido por último para qualquer time. — Por quê? — Sarah havia perguntado. — Se ele for escolhido por último, foi escolhido por último. Por que você não deixa estar? Deixar estar! A vida era tão cheia de coisas sobre as quais você não podia fazer nada; era preciso evitar o que fosse possível. Ela riu quando Macon ou um outono colecionando Wacky Packs, que vinham com aqueles adesivos engraçados com os quais Ethan gostava de cobrir a porta do seu quarto. Tinha mais do que qualquer outra criança da terceira série, Macon jurava. Muito depois de Ethan ter perdido o interesse, Macon ainda os trazia obstinadamente para casa. Sabia que era absurdo, mas havia aquele último adesivo que eles ainda não tinham conseguido... Ethan foi acampar quando tinha 12 anos — um ano atrás, quase que exatamente. A maioria dos garotos começava antes, mas Macon ficara adiando. Por que ter um filho, ele perguntava a Sarah, se tudo o que você queria fazer era despachá-lo para algum fim de mundo na Virgínia? Quando ele finalmente cedeu, Ethan ficou no grupo dos mais velhos — um garoto alto e louro com um rosto franco e amigável e o hábito adorável de se balançar nas pontas dos pés quando ficava nervoso. Não pense nisso. Ele foi assassinado num Burger Bonanza em sua segunda noite no acampamento. Foi uma daquelas mortes que não faziam sentido — do tipo em que o assaltante já pegou o dinheiro e pode ir embora mas decide, em vez disso, atirar na parte de trás do crânio de todo mundo. Ethan nem deveria estar lá. Tinha escapulido do acampamento com um colega de cabana, que ficou esperando do lado de fora como sentinela. O acampamento era culpado por não supervisionar. O Burger Bonanza era culpado pela segurança insuficiente. O colega de cabana era culpado por não ter entrado também e alterado, talvez, o que aconteceu. (Sentinela de que, meu Deus?). Sarah era culpada por ter deixado Ethan sair de casa; Macon era culpado por ter concordado; até mesmo Ethan (diabos, sim) era culpado. Era culpado por querer ir àquele acampamento e por escapulir dele, por entrar no Burger Bonanza como um tolo voluntarioso quando um assalto estava acontecendo. Era culpado por ter tão resignadamente ido para a cozinha com os outros, por ter colocado as mãos na parede conforme lhe ordenaram e sem dúvida se balançado de leve nas pontas dos pés...

Não pense nisso. O diretor do acampamento, sem querer dar a notícia por telefone, tinha ido de carro até Baltimore contar-lhes pessoalmente. E então os levara até a Virginia. Macon se lembrava com frequência daquele diretor. Qual era o nome dele, Jim Robinson ou talvez Robertson — um homem troncudo, de bigodes brancos e cabelo escovinha, usando um blazer, como se fosse em sinal de respeito, sobre uma camiseta dos Redskins. Parecia desconfortável com o silêncio e fazia o melhor para preenchê-lo com pequenos e abruptos fragmentos de conversa fiada. Macon não escutara, ou pelo menos achava que não, mas agora os fragmentos regressavam: a mãe de Jim era de Baltimore, nascida no ano em que Baby Ruth jogava com os Orioles; os pés de tomate de Jim estavam se comportando de um modo estranho, produzindo apenas bolinhas de gude verdes que caíam do pé antes de amadurecer; a mulher de Jim tinha pavor de dirigir de ré e evitava qualquer situação em que isso fosse necessário. Macon pensava muito naquilo, deitado na cama, à noite. Será que você realmente podia dirigir um carro sem dar ré? E quanto aos cruzamentos, onde um motorista de ônibus mete a cabeça para fora da janela e te pede para recuar alguns metros para ele poder fazer a curva? Ela recusaria? Macon a imaginou, firme e desafiadora, olhando diretamente à sua frente e fingindo não perceber. O motorista começando a xingar, buzinas soando, outros motoristas gritando, “Ei, minha senhora!” Era um belo quadro. Ele o manteve firmemente na cabeça. Por fim se sentou e se retorceu para sair do lençol. O cachorro, suspirando, se levantou e desceu da cama, indo ao andar de baixo atrás dele. As tábuas do piso estavam frias sob seus pés, o linóleo da cozinha, ainda mais frio; um brilho saiu da geladeira quando Macon se serviu de um copo de leite. Foi para a sala de estar e ligou a TV. Em geral, algum filme em preto e branco estava ando — homens de terno e chapéu de feltro, mulheres com ombros rechonchudos. Ele não tentava acompanhar a trama. Dava goles pequenos e regulares em seu leite, sentindo o cálcio viajar até seus ossos. Não tinha lido que o cálcio curava insônia? Afagou de maneira ausente a gata, que de algum modo subira no seu colo. Estava quente demais para ficar com um gato no colo, especialmente este — uma fêmea de pelo cinzento e comprido que parecia feita de alguma substância excepcionalmente densa. E o cachorro, na maioria das vezes, deitava sobre seus pés. “Somos só eu e vocês, velhos amigos,” Macon diria a eles. A gata deixava uma vírgula de suor sobre suas coxas nuas. Por fim ele deslizava por baixo dos animais e desligava a TV. Colocava o copo em sua solução de cloro na pia da cozinha. Subia a escada. Ficava parado diante da janela do quarto olhando para a vizinhança — galhos pretos rabiscados sobre um céu noturno púrpura, um lampejo de um sarrafo branco aqui e ali,

ocasionalmente uma luz. Macon sempre se sentia reconfortado quando descobria uma luz. Mais alguém estava tendo dificuldade para dormir, ele deduzia. Não queria considerar nenhuma outra possibilidade — uma festa, por exemplo, ou uma conversa íntima com velhos amigos. Preferia acreditar que mais alguém estava sozinho, sentado, sem sono algum, tentando manter afastados seus pensamentos. Isso fazia com que ele se sentisse muito melhor. Voltava para a cama. Deitava-se. Fechava os olhos e sem nem mesmo tentar, caía no sono.

________________ 1 “Minha querida ciganinha” e “Continue... dor...mindo...”, respectivamente. A canção citada se chama, na verdade, “Gypsy Love Song”, ou “Canção de amor cigana”, e faz parte de uma opereta do fim do século XIX, The Fortune Teller — “A adivinha”. (N. da T.)

3 Sarah telefonou para Macon e lhe perguntou se podia ir pegar o tapete azulmarinho da sala de jantar. — Tapete azul-marinho — Macon repetiu. (Estava tentando ganhar tempo.) — Eu nunca mencionaria isso, exceto pelo fato de você nunca ter gostado dele — Sarah lhe disse. — Você falava que era um erro ter um tapete onde as pessoas comiam. Sim, ele falara isso. Só servia para juntar migalhas, ele falara. Não era higiênico. Por que ele sentia aquela súbita e arrebatadora necessidade de ficar com o tapete para si? — Macon, você está aí? — Sim, estou aqui. — Então você se importaria se eu fosse pegar? — Não, acho que não. — Oh, ótimo. Meu apartamento tem esse piso nu e você não tem ideia de como... Ela ia parar para pegar o tapete e ele ia convidá-la para entrar. Ia lhe oferecer uma taça de xerez. Iam se sentar no sofá com o xerez e ele diria: “Sarah, você tem sentido falta de mim?” Ou não, ele diria: “Tenho sentido sua falta, Sarah.” Ela diria... Ela disse: — Pensei em ar por aí no sábado de manhã, se for conveniente. Mas as pessoas não bebem xerez pela manhã. E além disso: ele nem estaria lá. — Vou para a Inglaterra amanhã à tarde — ele disse. — Oh, está na hora da Inglaterra de novo? — Talvez você pudesse vir esta noite. — Não, meu carro está na oficina. — Seu carro? O que há de errado com ele? — Bem, eu estava dirigindo e... sabe aquela luzinha vermelha do lado esquerdo do ? — O quê, a luz do óleo? — Sim, e então eu pensei: “Bem, vou me atrasar para o dentista se parar para ver o que é e seja como for o carro parece estar bem, então...” — Espere. Você está dizendo que a luz acendeu? E você continuou

dirigindo? — Bem, não havia nenhum barulho diferente e não estava acontecendo nada de diferente com o carro, então achei... — Jesus, Sarah. — O que há de tão terrível com isso? — Você provavelmente arruinou o motor. — Não, eu não arruinei o motor, para sua informação. Só precisa de um conserto, mas infelizmente vai levar alguns dias para ficar pronto. Bem, isso não importa. Tenho uma chave da casa; no sábado eu mesma abro. — Talvez eu pudesse levar para você o tapete. — Eu espero até sábado. — Assim eu poderia ver seu apartamento — Macon disse. — Nunca estive aí dentro, você sabe. — Não, ainda não está arrumado. — Não me importo que não esteja arrumado. — Está um desastre. Nada foi feito ainda. — Como é possível que nada tenha sido feito? Você está morando aí faz mais de um mês. — Bem, eu não sou tão maravilhosa e perfeitamente eficiente quanto você é, Macon. — Você não precisa ser eficiente para... — Em certos dias — Sarah disse —, não consigo nem sair do meu roupão. Macon ficou em silêncio. — Eu devia ter concordado em dar aulas durante o verão — Sarah disse. — Algo para dar um sentido às coisas. Abro os olhos pela manhã e penso, “Por que me dar ao trabalho de levantar?” — Eu também — Macon disse. — Por que me dar ao trabalho de comer? Por que me dar ao trabalho de respirar? — Eu também, querida. — Macon, você acha que aquela pessoa tem alguma ideia do que fez? Quero ir vê-lo na prisão, Macon. Quero me sentar do outro lado da grade ou da tela ou o que quer que eles usem e dizer: “Olhe para mim. Olhe para o que você fez. Você não matou só as pessoas em quem atirou; matou outras pessoas além delas. O que você fez não terá fim nunca. Você não matou apenas meu filho; matou a mim; matou meu marido. Não consigo sequer abrir as cortinas; você tem ideia do que fez?” Então, quando eu tiver certeza de que ele entendeu, de que está se sentindo péssimo, vou abrir a bolsa e tirar dali uma arma e dar um tiro entre os olhos dele.

— Oh, bem, querida... — Você acha que estou delirando, não é? Mas Macon, eu juro, posso sentir aquele leve coice na palma da mão quando disparar. Nunca disparei uma arma em minha vida... Deus, acho que nunca vi uma arma. Não é esquisito? Ethan viu; Ethan teve uma experiência da qual eu e você não temos a menor noção. Mas às vezes estico a mão com o polegar engatilhado como quando as crianças brincam de caubói, e dobro o dedo do gatilho e sinto que satisfação seria. — Sarah, é ruim para você falar desse jeito. — Oh? Como é que eu deveria falar? — Isto é, se você se deixa ficar zangada, você vai... se consumir. Vai se esgotar. Não é produtivo. — Oh, produtivo! Bem, meu Deus, não, não vamos gastar nosso tempo em algo improdutivo. Macon massageou a testa. Disse: — Sarah, só acho que não podemos nos dar ao luxo de ter esses pensamentos. — É fácil para você dizer. — Não, não é fácil dizer, droga... — Feche a porta, Macon. Vá embora. Finja que nunca aconteceu. Vá rearrumar suas ferramentas. Porque não faz o seguinte: alinhe suas chavesinglesas da maior para a menor em vez de alinhar da menor para a maior; isso sempre é divertido. — Mas que droga, Sarah... — Não fale assim comigo, Macon Leary! Fizeram uma pausa. Macon disse: — Bem. Sarah disse: — Bem, seja como for. — Então imagino que você venha quando eu estiver fora — ele disse. — Se estiver tudo bem. — Sim, claro — ele disse. Ao desligar sentia um desconforto, como se fosse deixar um estranho entrar em casa. Como se ela pudesse sair levando mais do que apenas o tapete da sala de jantar. Para a viagem à Inglaterra, vestiu seu terno mais confortável. Um terno é o bastante, ele aconselhava nos guias, se você levar também algumas embalagens para viagem de removedor de manchas. (Macon sabia tudo o que vinha em pacotes para viagem, desde desodorante até lustra-calçados.) O terno deve ser de um cinza médio. O cinza não apenas esconde a sujeira; vem a calhar para súbitos

funerais e outros eventos formais. Ao mesmo tempo, não é sóbrio demais para o dia a dia. Colocou na mala o mínimo de roupas e um estojo de barbear. Um exemplar de seu mais recente guia da Inglaterra. Um romance para ler lá. Só leve o que couber na mala de mão. Despachar sua bagagem é procurar problemas. Inclua vários pacotes de sabão em pó para não cair nas mãos de lavanderias estrangeiras. Quando terminou de arrumar suas roupas, sentou-se no sofá para descansar. Ou não exatamente para descansar, mas para se recompor — como alguém que inspira profundamente várias vezes antes de mergulhar num rio. A mobília estava toda arrumada em linhas retas e curvas suaves. Grãos de poeira flutuavam numa nesga de sol. Que vida pacífica ele tinha ali! Se fosse qualquer outro dia, estaria fazendo um pouco de café solúvel. Largaria a colher dentro da pia e ficaria em pé bebendo de sua xícara enquanto a gata se entrelaçava aos seus pés. Depois talvez abrisse a correspondência. Essas ações pareciam caras e suaves, agora. Como ele poderia ter reclamado de tédio? Em casa, tinha tudo tão arrumado ao seu redor, que mal precisava pensar. Em viagens, mesmo a menor das tarefas requeria esforço e decisão. Quando faltavam duas horas para a decolagem, ele se levantou. O aeroporto ficava a no máximo meia hora de carro, mas ele detestava se apressar. Inspecionou a casa uma última vez, parando no banheiro do andar de baixo — o último banheiro de verdade (era assim que pensava) que veria ao longo da próxima semana. Assobiou para o cachorro. Pegou a mala e saiu pela porta da frente. O calor golpeou-o como algo sólido. O cachorro só ia com ele até o veterinário. Se soubesse disso, nunca teria pulado para dentro do carro. Sentou-se ao lado de Macon, arfando entusiasmado, seu corpo em formato de barril, alerta com a expectativa. Macon falou com ele no que esperava não ser um tom alarmante. — Quente, não está, Edward. Quer que eu ligue o ar-condicionado? — ele ajustou os controles. — Pronto. Está se sentindo melhor? Ouviu algo melífluo na própria voz. Talvez Edward também, pois parou de arfar e lançou para Macon um olhar desconfiado. Seguiram pela vizinhança, desceram ruas cobertas pelas árvores. Entraram numa parte mais ensolarada, cheia de lojas e postos de gasolina. Conforme se aproximavam da Murray Avenue, Edward começou a choramingar. No estacionamento do Hospital Veterinário da Murray Avenue ele de algum modo se tornara um animal muito menor. Macon saiu do carro e deu a volta para abrir a porta. Quando pegou a coleira de Edward, ele enterrou as garras no estofamento. Teve que ser arrastado por

todo o caminho até o edifício, ganindo através do concreto quente. A sala de espera estava vazia. Um aquário de peixinhos dourados borbulhava num canto, com um cartaz colorido acima ilustrando o ciclo de vida do verme do coração. Havia uma garota num banco atrás do balcão, uma pessoinha com ar de abandono usando um top. — Trouxe o meu cachorro para se hospedar — Macon disse. Teve que levantar a voz para ser ouvido acima dos ganidos de Edward. Mascando seu chiclete calmamente, a garota lhe estendeu um formulário impresso e um lápis. — Já esteve aqui antes? — ela perguntou. — Sim, com frequência. — Qual o sobrenome? — Leary. — Leary. Leary — ela disse, procurando numa caixa de fichas. Macon começou a preencher o formulário. Edward estava de pé agora e se agarrava aos joelhos de Macon, como uma criança pequena com medo da creche. — Opa — a garota disse. Franziu a testa diante da ficha que pegou. — Edward? — ela disse. — De Rayford Road? — Isso mesmo. — Não podemos aceitá-lo. — O quê? — Diz aqui que ele mordeu um assistente. Diz: “Mordeu Barry no tornozelo, não reitir”. — Ninguém me disse isso. — Bem, deviam ter dito. — Ninguém disse uma palavra! Deixei-o aqui em junho quando fomos à praia; voltei e o entregaram para mim. A garota ficou piscando os olhos, sem expressão no rosto. — Olhe — Macon disse. — Estou a caminho do aeroporto, neste exato minuto. Preciso pegar um avião. — Só estou seguindo ordens — a garota disse. — E o que o irritou, aliás? — Macon perguntou. — Alguém se perguntou isso? Talvez Edward tivesse um bom motivo. A garota piscou os olhos de novo. Edward estava sobre as quatro patas agora e olhava para cima com interesse, como se acompanhasse a conversa. — Ah, aos diabos com tudo isso — Macon disse. — Venha, Edward.

Não teve que segurar a coleira de Edward ao sair. Ele galopou à sua frente por toda a extensão do estacionamento. Naquele curto intervalo de tempo, o carro se transformara num forno. Macon abriu sua janela e ficou sentado ali com o motor funcionando. E agora? Considerou ir para a casa de sua irmã, mas ela provavelmente também não ia querer Edward. Para dizer a verdade, não era a primeira vez que reclamações aconteciam. Na semana ada, por exemplo, o irmão de Macon, Charles, tinha parado para pegar uma esmerilhadeira, e Edward disparara num círculo completo ao redor de seus pés, dando mordidinhas furiosas nas barras de sua calça. Charles ficou tão surpreso que simplesmente virou a cabeça devagar, boquiaberto. — O que deu nele? — perguntou. — Ele não costumava fazer isso. Então, quando Macon agarrou sua coleira, Edward rosnou. Contraiu o focinho e rosnou. Será que um cachorro podia ter um colapso nervoso? Macon não era muito familiarizado com cachorros. Preferia gatos. Gostava do modo como os gatos cuidavam de si. Só recentemente ele começara a pensar em Edward. Agora que estava tanto tempo sozinho começara a falar com ele em voz alta, ou às vezes apenas se sentava, estudando-o. irava os olhos castanhos e inteligentes de Edward e sua carinha de raposa. Apreciava as espirais cor de mel que brotavam de forma tão simétrica do seu focinho. E seu modo de caminhar! Ethan costumava dizer que Edward caminhava como se tivesse areia em seu calção de banho. Sua traseira gingava ativamente; suas pernas curtas pareciam se articular através de um mecanismo mais primitivo do que as pernas de cachorros mais altos. Macon dirigia para casa agora, por falta de uma ideia melhor. Ficou se perguntando o que aconteceria se deixasse Edward na casa do modo como deixava a gata, com bastante comida e água. Não. Ou será que Sarah podia vir vê-lo, duas ou três vezes por dia? Recuou diante desse pensamento; significava ter que pedir a ela. Significava ligar para aquele número que ele nunca havia usado e lhe pedir um favor. MIAU-AU HOSPITAL DE ANIMAIS, dizia uma placa na rua. Macon freou e Edward foi projetado para a frente. — Desculpe — Macon disse a ele. Virou à esquerda no estacionamento. A sala de espera do Miau-Au tinha um cheiro forte de desinfetante. Atrás do balcão estava uma jovem magra com uma bata franzida. Tinha cabelo preto agressivamente frisado que lhe chegava aos ombros como uma touca árabe. — Olá — ela disse a Macon. Macon disse: — Vocês hospedam cachorros?

— Claro. — Gostaria de hospedar este, Edward. Ela se inclinou por cima do balcão e olhou para Edward. Edward arfou para ela alegremente. Estava claro que ele ainda não tinha se dado conta de que tipo de lugar era aquele. — Tem uma reserva? — a mulher perguntou a Macon. — Reserva! Não. — A maioria das pessoas faz reserva. — Bem, eu não sabia disso. — Especialmente no verão. — Você não poderia abrir uma exceção? Ela pensou no assunto, franzindo a testa para Edward. Os olhos dela eram muito pequenos, como sementes de cominho, e seu rosto era afilado e sem cor. — Por favor — Macon disse. — Tenho que pegar um avião daqui a pouco. Vou viajar por uma semana, e não tenho ninguém para cuidar dele. Estou desesperado, sinceramente. A julgar pelo olhar que ela lhe dirigiu, ele sentiu que a havia sensibilizado de algum modo. — Você não pode deixá-lo em casa com a sua mulher? — ela perguntou. Ele se perguntou como diabos a mente dela funcionava. — Se eu pudesse fazer isso — ele disse —, por que estaria aqui? — Oh — ela disse. — Você não é casado? — Bem, sou, mas ela está... morando noutro lugar. Eles não permitem animais. — Oh. Ela saiu de trás do balcão. Estava usando short vermelho muito curto; suas pernas eram como palitos. — Eu também sou divorciada — ela disse. — Sei pelo que você está ando. — E veja — Macon disse —, tenho um lugar onde normalmente o hospedo mas eles de repente estão dizendo que ele morde. Alegaram que mordeu um auxiliar e não podem iti-lo mais. — Edward? Você morde? — a mulher perguntou. Macon se deu conta de que não deveria ter mencionado isso, mas ela pareceu ter aceitado com naturalidade. — Como você pôde fazer uma coisa dessas? — ela perguntou a Edward. Ele mostrou os dentes de forma amigável e dobrou para trás as orelhas, pedindo carinho. Ela se inclinou e afagou sua cabeça. — Então você vai ficar com ele? — Macon perguntou.

— Oh, acho que sim — ela disse, se endireitando. — Se você está desesperado. Ela sublinhou a palavra — fitando Macon com aqueles olhinhos castanhos — como se desse àquilo mais peso do que ele tencionara. — Preencha isto — ela estendeu para ele um formulário de uma pilha no balcão. — Seu nome e endereço e quando vai estar de volta. Não se esqueça de colocar quando vai estar de volta. Macon fez que sim, destampando sua caneta-tinteiro. — Eu provavelmente vou ver você de novo quando vier buscá-lo — ela disse. — Isto é, se colocar a hora do dia em que posso esperar você. Meu nome é Muriel. — Este lugar abre à noite? — Macon perguntou. — Todos os dias exceto domingos. Até as 20 horas. — Oh, ótimo. — Muriel Pritchett — ela disse. Macon preencheu o formulário enquanto a mulher se ajoelhava para abrir a coleira de Edward. Edward lambeu seu rosto, devia ter achado que ela só estava sendo gentil. Então, quando Macon terminou, ele não se despediu. Colocou o formulário sobre o balcão e saiu rapidamente, deixando a mão dentro do bolso para que as chaves não fizessem ruído. No voo para Nova York, ele se sentou ao lado de um homem de bigode e com aspecto estrangeiro. Preso aos ouvidos do homem estava um par de fones para um daqueles gravadores miniatura. Perfeito: nenhum risco de conversa. Macon se recostou no assento, satisfeito. Gostava de aviões. Quando o tempo estava bom, você nem poderia dizer que estava se movendo. Podia fingir que estava sentado na segurança de sua casa. A vista da janela era sempre a mesma — ar e mais ar — e o interior de um avião era praticamente intercambiante com o interior de qualquer outro. Ele não aceitou nenhuma bebida, mas o homem a seu lado tirou os fones de ouvido e pediu um Bloody Mary. Uma melodia intrincada, metálica, do oriente médio, veio sussurrando dos fones cobertos com uma esponja cor-de-rosa. Macon abaixou os olhos para a máquina e se perguntou se deveria comprar uma. Não para música, pelos céus — já havia barulho demais no mundo — mas para isolamento. Podia colocar os fones nos ouvidos e ninguém ia perturbá-lo. Podia tocar uma fita sem nada gravado: trinta minutos inteiros de silêncio. Virar a fita e mais trinta minutos. Pousaram no Kennedy e ele pegou um ônibus para a conexão, que só ia partir à noite. Uma vez instalado no terminal, começou a fazer palavras cruzadas que tinha guardado para essa ocasião do New York Times do último domingo.

Estava sentado dentro de uma espécie de barricada — sua mala numa cadeira, o paletó de seu terno na outra. As pessoas se moviam lentamente ao seu redor mas ele mantinha os olhos na folha, ando sem dificuldades para os acrósticos depois que terminou as palavras cruzadas. Quando terminou os dois quebracabeças, estavam começando a embarcar no avião. Sua companheira de assento era uma mulher de cabelo grisalho e óculos. Tinha trazido sua própria coberta de tricô. Não era um bom sinal, Macon sentiu, mas podia lidar com ele. Primeiro ele executou pequenas tarefas, afrouxou a gravata, tirou o sapato e puxou o livro de dentro da mala. Depois abriu o livro e começou ostentosamente a ler. O nome de seu livro era Miss Macintosh, My Darling, e tinha 1.198 páginas. (Leve sempre um livro, como proteção contra estranhos. Revistas não duram. Jornais de casa vão deixá-lo com saudades, e jornais de outro lugar vão lembrálo de que é um forasteiro. Você sabe o quão estranho o layout de um outro jornal parece.) Ele se arrastava por Miss Macintosh havia anos. Tinha a vantagem de não possuir um enredo, até onde ele podia dizer, mas era invariavelmente interessante, então podia mergulhar nele de modo aleatório. A qualquer momento em que levantava os olhos tomava o cuidado de marcar o parágrafo com o dedo e manter uma expressão confusa no rosto. Seguiu-se o habitual murmúrio melífluo dos alto-falantes sobre cintos de segurança, saídas de emergência, máscaras de oxigênio. Ele se perguntava por que aeromoças acentuavam palavras tão improváveis. “No nosso voo esta noite vamos oferecer...” A mulher ao seu lado perguntou se ele queria uma bala. — Não, obrigado — Macon disse, e continuou com o livro. Ela produziu um farfalhar com um pedacinho de papel e pouco depois o cheiro de hortelã chegou até ele. Ele recusou o drinque e depois, a bandeja com a refeição, embora aceitasse o leite que era oferecido com ela. Comeu uma maçã e uma caixinha de uvas-as de sua mala, bebeu o leite e foi até o banheiro ar fio dental e escovar os dentes. Quando voltou, o avião estava mais escuro, salpicado aqui e ali por luzes de leitura. Alguns dos ageiros já estavam adormecidos. Sua companheira de assento tinha enrolado o cabelo em pequenos rolinhos e prendera-os com grampos. Macon achava incrível que as pessoas fossem tão pouco inibidas em aviões. Tinha visto homens usando pijamas completos; tinha visto mulheres besuntadas de creme. Você podia sentir que eles não tinham necessidade de ficar de guarda. Ele posicionou seu livro sob uma faixa delgada de luz e virou a página. O motor tinha um som tedioso e obstinado. Era o período que ele considerava o

grande trajeto — o intervalo entre o jantar e o café da manhã, durante o qual estavam suspensos sobre o oceano, esperando pelo clarear do céu que deveria corresponder à manhã, embora, claro, não estivesse nem perto de amanhecer em casa. Na opinião de Macon, a manhã em outros fusos horários era algo encenado — uma cortina pintada com um sol nascente, sobreposta à escuridão verdadeira. Deixou a cabeça recostar no assento e fechou os olhos. A voz de uma aeromoça, vinda de algum lugar perto da frente do avião, se misturava ao zumbido do motor. “Estávamos sentados ali e não havia nada para fazer e tudo o que tínhamos era o jornal de quarta-feira e você sabe que nada parece acontecer às quartas-feiras...” Macon ouviu um homem falando na altura de seu ouvido. “Macon.” Mas ele nem mesmo virou a cabeça. A essa altura conhecia as peças pregadas pelo som em aviões, à noite. Viu, por trás das pálpebras, a saboneteira na pia da cozinha, em casa — mais um truque, essa concretude da visão. Era uma saboneteira oval de porcelana com flores amarelas pintadas, contendo um pedaço gasto de sabão e os anéis de Sarah, seu anel de noivado e sua aliança de casamento, do jeito como ela os deixara ao ir embora. — Estou com os ingressos — ele ouviu Ethan dizer. — E eles vão abrir as portas em cinco minutos. — Tudo bem — Macon disse a ele. — Vamos planejar nossa estratégia. — Estratégia? — Onde vamos nos sentar. — Por que precisamos de estratégia para isso? — Foi você quem pediu para ver este filme, Ethan. Acho que devia se interessar pelo lugar onde vai se sentar. Agora, eis o meu plano. Você contorna aquela fila pela esquerda. Conte as crianças pequenas. Eu conto as da fila da direita. — Ah, pai... — Você quer se sentar perto de alguma criancinha barulhenta? — Bem, não. — E o que você prefere: um assento no corredor? — Não me importo. — Corredor, Ethan? Ou no meio da fileira? Você tem que ter alguma opinião. — Na verdade não tenho. — No meio da fileira? — Não faz nenhuma diferença. — Ethan. Faz muita diferença. No corredor, você pode sair mais rápido.

Então, se planeja comprar algo para beliscar ou ir ao banheiro, é melhor se sentar no corredor. Por outro lado, todo mundo fica te espremendo para ar. Então, se você não pretende sair do seu lugar, eu sugiro... — Ah, pai, pelo amor de Deus! — Ethan disse. — Bem — Macon disse. — Se é esse o tom com que você vai falar, então vamos sentar em qualquer droga de lugar que aparecer. — Ótimo — Ethan disse. — Ótimo — Macon disse. Agora ele virou a cabeça; girou-a para um lado e para o outro. Mas manteve os olhos bem fechados, e com o tempo as vozes pararam, e ele se encontrou naquela zona de sombra que equivale ao sono quando se está viajando. Ao amanhecer ele aceitou uma xícara de café, e engoliu uma pílula de vitamina que trazia na bolsa. Os outros ageiros tinham o aspecto rançoso e pálido. Sua companheira de assento arrastou uma mala inteira ao banheiro e voltou toda penteada, mas seu rosto estava inchado. Macon acreditava que viajar causava retenção de líquidos. Quando calçou os sapatos, estavam apertados, e quando foi se barbear descobriu bolsas de pele sob os olhos que não lhe eram familiares. Mas estava melhor do que a maioria das pessoas, porque não comera nada salgado nem bebera álcool. O álcool era definitivamente retido. Beba álcool num avião e você vai se sentir intoxicado durante dias, Macon acreditava. As aeromoças anunciaram que horas eram em Londres e houve um alvoroço de gente acertando seus relógios. Macon ajustou o despertador digital em seu estojo de barbear. O relógio em seu pulso — que não era digital mas sim, tempo real, circular — deixou como estava. Aterrissaram abruptamente. Era como ser chamado à realidade — toda aquela fricção subitamente, o correr sobre a pista áspera, o ruído e os freios. O alto-falante voltou à vida, ronronando lembranças cordiais. A mulher ao lado de Macon dobrou o cobertor. — Estou tão animada — ela disse. — Vou ver meu neto pela primeira vez. Macon sorriu e lhe disse que esperava que corresse tudo bem. Agora que ele já não tinha medo de cair numa armadilha, achou-a bastante agradável. Além do mais, tinha um aspecto bastante americano. Em Heathrow, havia a sensação usual de algum desastre recente. Pessoas corriam distraídas de um lado a outro, outras pessoas ficavam paradas como refugiados, cercados por baús e pacotes, e autoridades uniformizadas tentavam lidar com um clamor de perguntas. Como não tinha que esperar por sua bagagem, Macon ou tranquilamente pela faixa vermelha muito antes dos

outros. Então trocou dinheiro e embarcou no metrô. Recomendo o metrô para todos, exceto para os que têm medo de altura, ou mesmo para eles, se evitarem as seguintes estações, que têm escadas rolantes excepcionalmente íngremes... Enquanto o trem avançava ruidosamente, ele organizou o dinheiro em envelopes que tinha trazido de casa — cada envelope nitidamente marcado com uma denominação diferente (Nada de ficar mexendo com moedas pouco familiares, nada de ficar espiando impressões enganosas, se você separar e classificar o dinheiro estrangeiro de antemão.) Diante dele, uma fileira de rostos o observava. As pessoas tinham um aspecto diferente ali, embora ele não soubesse dizer como. Achava que pareciam ao mesmo tempo mais bonitas e menos saudáveis. Uma mulher com um bebê rabugento repetia: “Shhh, meu amor. Shhh, meu amor”, com aquela voz inglesa nítida, fluida, sem esforço. Estava quente, e sua testa tinha um brilho pálido. Assim como a de Macon, sem dúvida. Ele colocou os envelopes dentro do bolso junto ao peito. O trem parou e mais gente entrou. Ficaram de pé, agarradas não a tiras, mas a bulbos presos em cabos flexíveis, que Macon, em sua primeira visita, pensara serem algum tipo de microfone. Ele se instalava em Londres, como de hábito. Dali podia dar rápidas escapadas a outras cidades, nunca listando mais do que um punhado de hotéis, um punhado de restaurantes dentro de um raio pequeno e facilmente ível em cada lugar; pois seus guias eram tudo, exceto abrangentes. (“Vários outros livros dizem como conhecer o máximo possível de uma cidade”, seu chefe lhe havia dito. “Você precisa dizer como conhecer o mínimo.”) O nome do hotel de Macon era Jones Terrace. Ele teria preferido o de alguma cadeia americana, mas esses custavam caro demais. O Jones Terrace era bom — contudo, pequeno e bem cuidado. Ele se pôs imediatamente em ação para transformar o quarto em seu quarto, tirando a colcha feia e colocando-a num armário, tirando da mala suas coisas e escondendo a mala. Trocou de roupa, lavou as que tinha usado e pendurou-as no chuveiro. Então, depois de lançar um olhar melancólico à cama, saiu para tomar café. Não estava nem perto do amanhecer em seu país, mas o café da manhã era a refeição com que os homens de negócios tinham que lidar por conta própria com mais frequência. Ele fazia questão de pesquisar a respeito aonde quer que fosse. Caminhou até o Yankee Delight, onde pediu ovos mexidos e café. O serviço ali era excelente. O café vinha de imediato, e sua xícara estava constantemente cheia. Os ovos não tinham gosto de ovos caseiros, mas isso nunca tinham. O que havia com os ovos dos restaurantes? Não tinham personalidade, não tinham firmeza. Mesmo assim, ele abriu seu guia e marcou o Yankee Delight. Por volta do fim da semana, essas páginas mal estariam legíveis. Ele teria rabiscado alguns

nomes, inserido outros e rabiscado notas nas margens. Ele sempre revisitava anotações adas — cada hotel e restaurante. Era enfadonho, mas seu chefe insistia. “Só pense como seria”, Julian dizia, “se um leitor entrasse em algum café que você tivesse sugerido e descobrisse que foi dominado por vegetarianos.” Depois de pagar a conta, seguiu pela rua até o New American, onde pediu mais ovos e mais café. — Descafeinado — acrescentou. (Seus nervos estavam à flor da pele a essa altura.) O garçom disse que não tinham descafeinado. — Ah, vocês não têm — Macon disse. Depois que o garçom foi embora, Macon tomou nota em seu guia. Sua terceira parada foi num restaurante chamado U.S. Open, onde as salsichas estavam tão secas que poderiam ter sido assadas num telhado. Fazia sentido: o U.S Open tinha sido sugerido por um leitor. Oh, os lugares que os leitores sugeriam! Macon uma vez (antes de ficar mais esperto) reservara um quarto de motel baseado exclusivamente na força de uma sugestão dessas — algum lugar em Detroit, ou seria Pittsburgh, uma cidade dessas, para O turista acidental nos Estados Unidos. Tinha saído do motel ao pôr os olhos na roupa de cama e atravessado a rua em disparada para um Hilton, onde o porteiro correra para recebê-lo e pegara sua mala com um grito de piedade como se Macon tivesse acabado de chegar ali vindo do deserto. Nunca mais, Macon havia jurado. Deixou as salsichas no prato e pediu a conta. À tarde (por assim dizer), ele visitou hotéis. Falou com vários gerentes e inspecionou quartos onde testava as camas, dava descarga no vaso, apertava os olhos para ver o chuveiro. A maioria mantinha seu padrão, mais ou menos, mas algo acontecera ao Royal Prince. O fato era que parecia... bem, estrangeiro. Homens escuros e bonitos em ternos de seda murmuravam no saguão enquanto criancinhas morenas corriam umas atrás das outras em torno das escarradeiras. Macon tinha a sensação de que estava ainda mais desesperadamente perdido do que o habitual e tinha ido parar no Cairo. Senhoras em formato de cone usando longos véus pretos lotavam a porta giratória, vindo da rua, com sacolas de compras cheias de... de quê? Ele tentou imaginá-las comprando shorts de brim desbotado e botas altas de tela cor-de-rosa — produtos que vira na maioria das vitrines. — Ahn... — ele disse ao gerente. Como dizer aquilo? Ele detestava parecer muito intolerante, mas seus leitores evitavam o exótico. — O hotel por acaso... mudou de dono? — ele perguntou. O gerente pareceu excepcionalmente sensível. Endireitou-se e disse que o Royal Prince pertencia a uma corporação, sempre pertencera e sempre

pertenceria, sempre a mesma corporação. — Entendo — Macon disse. Saiu dali sentindo-se deslocado.

Na hora do jantar, devia ter tentado algum lugar formal. Tinha uma lista de pelo menos um restaurante formal em cada cidade para divertir os clientes. Mas naquela noite não sentia vontade. Em vez disso, foi a um café de que gostava, chamado My American Cousin. As refeições ali tinham sotaque americano, bem como parte do pessoal, e a recepcionista entregava bilhetes com números na porta. Se o seu número fosse chamado pelo alto-falante, você podia ganhar uma TV ou pelo menos uma fotografia em cores, emoldurada, do restaurante. Macon pediu um jantar reconfortante composto de legumes cozidos e duas costeletas de carneiro em meinhas brancas de papel, com um copo de leite. O homem na mesa ao lado também estava sozinho. Comia uma bela torta de porco, e quando a garçonete lhe ofereceu uma sobremesa ele disse: “Hm, deixe-me ver, talvez eu tente isto aqui”, no tom lento, satisfeito, estilo “convença-me”, de alguém cujos familiares encorajaram a vida inteira a colocar um pouco mais de carne ao redor dos ossos. Macon pediu o pão de mel. Vinha com creme, exatamente do modo como era na casa de sua avó. Às 20 horas, de acordo com seu relógio de pulso, ele estava na cama. Era cedo demais, claro, mas ele só conseguia esticar o dia até aquele ponto; os ingleses achavam que era meia-noite. No dia seguinte ele começaria seu turbilhão de corridas a outras cidades. Escolheria alguns hotéis simbólicos, provaria alguns cafés da manhã simbólicos. Café com cafeína e café sem cafeína. Bacon meio cru ou frito demais. Suco de laranja fresco, enlatado ou congelado. Mais chuveiros, mais colchões. Secadores de cabelo fornecidos a pedido? Chaves de 110 volts para barbeadores elétricos? Quando caiu no sono, pensou em quartos anônimos ando num carrossel. Pensou que estantes de lona para malas, extintores de incêndio no teto e listas laminadas de regulamentos de incêndio se aproximavam e se afastavam e se aproximavam de novo, um após o outro para o resto de sua vida. Pensou que Ethan montava um camelo de gesso e gritava “Me segure!” e caía, mas Macon não conseguia chegar a tempo e quando estendia os braços Ethan se fora. Era um dos maus hábitos de Macon começar a se coçar para voltar para casa cedo demais. Não importava o quão curta era a viagem que tinha planejado, no

meio do caminho ele chegaria à conclusão de que precisava ir embora, que tinha se permitido tempo demais, que tudo o que era realmente necessário já tinha sido feito — ou quase tudo, quase feito. Então o restante de sua visita se ava em telefonemas para agentes de viagens e idas infrutíferas a escritórios de companhias aéreas e esperas que não davam em nada, e ele era obrigado a voltar ao hotel onde acabara de fechar a conta. Ele sempre se prometia que isso não aconteceria de novo, mas de algum modo sempre acontecia. Na Inglaterra, aconteceu em sua quarta tarde. O que mais havia a fazer?, ele começou a se perguntar. Será que ele não tinha encontrado o ponto principal daquele lugar? Bem, para ser honesto: era sábado. Ele notou por acaso, ao anotar a data em seu livro de despesas, que em casa era sábado de manhã. Sarah estaria ando para pegar o tapete. Ela abriria a porta da frente e sentiria cheiro de casa. aria pelos cômodos onde havia sido tão feliz durante todos aqueles anos. (Ela não tinha sido feliz?) Encontraria a gata esticada no sofá, comprida, preguiçosa e lânguida, e ia se sentar na almofada ao lado dela e pensar: Como eu pude ir embora? Infelizmente, era verão, e as companhias aéreas estavam com ageiros em excesso. Ele ou dois dias rastreando remotas possibilidades de conseguir uma agem que evaporavam no instante em que se aproximava. “Qualquer coisa! Consiga qualquer coisa! Não preciso ir para Nova York, posso ir para Dulles! Posso ir para Montreal! Chicago! Posso ir para Paris ou Berlim ver se eles têm voos. Há navios? Quanto tempo os navios levam, hoje em dia? E se fosse uma emergência? Quero dizer, e se minha mãe estivesse em seu leito de morte ou coisa do gênero? Você está me dizendo que simplesmente não há como ir embora deste lugar? As pessoas com as quais ele lidava eram de uma cordialidade ímpar e de um enorme bom humor — se não fosse pela tensão da viagem, ele achava que poderia de fato gostar dos ingleses — mas não podiam resolver seu problema. No fim ele teve que ficar. ou o resto da semana entocado em seu quarto assistindo à TV, mordendo os nós dos dedos, subsistindo à base de comida não perecível e refrigerantes quentes, porque não tinha condições de enfrentar mais um restaurante. Então era o primeiro na fila, naturalmente, no balcão do checkin no dia da partida. Escolheu o assento: janela, não fumante. Ao seu lado estava um casal jovem completamente absorto um no outro, então ele não precisou de Miss Macintosh e ficou olhando para as nuvens lá fora durante toda a longa e tediosa tarde.

A tarde nunca foi sua hora do dia preferida; era a pior parte desses voos de regresso. A tarde durava horas e horas, avam as bebidas e o almoço e as bebidas de novo — tudo isso ele recusava. Era de tarde quando exibiam o filme; os ageiros tinham que fechar as janelas. Uma luz alaranjada enchia o avião, opressiva e densa.

Certa vez, quando ele embarcara numa viagem excepcionalmente difícil — para o Japão, onde você não podia nem mesmo memorizar as placas a fim de encontrar seu caminho de volta a algum lugar —, Sarah encontrara seu avião em Nova York. Completavam 15 anos de casados, e ela quis fazer uma surpresa. Telefonou a Becky na agência de viagens para perguntar qual o número do voo, deixou Ethan com a avó e voou até o aeroporto Kennedy, levando consigo um cesto de piquenique com vinho e queijos, que eles comeram no terminal enquanto esperavam pelo voo para casa. Cada detalhe daquela refeição permanecia na memória de Macon: os queijos dispostos numa base de mármore, o vinho em taças de cristal que, de algum modo, sobreviveram à viagem. Ainda podia sentir o gosto do brie acetinado. Ainda podia ver a mão pequena e bem proporcionada de Sarah cortando, resoluta, o pão. Mas ela não foi encontrá-lo em Nova York hoje. Não foi encontrá-lo nem mesmo em Baltimore. Ele pegou o carro no estacionamento e dirigiu até a cidade em meio a um crepúsculo ameaçador que parecia prometer alguma coisa — uma tempestade ou relâmpagos, algo dramático. Será que ela estaria esperando em casa? Em sua túnica listrada da qual ele gostava tanto? Com um jantar frio de verão posto na mesa do pátio? Tomando cuidado para não criar expectativas, ele parou num Seven-Eleven para comprar leite. Foi até o veterinário pegar Edward. Chegou ao Miau-Au minutos antes da hora de fecharem; de algum modo, tinha conseguido se perder. Não havia ninguém no balcão. Ele teve que tocar a campainha. Uma garota de rabo de cavalo colocou a cabeça para fora de uma porta, através da qual entrou uma confusão de sons de animais que se elevavam em todos os tons, como uma orquestra afinando. — Sim? — ela disse. — Vim buscar meu cachorro.

Ela se adiantou e abriu uma pasta que estava sobre o balcão. — Seu sobrenome? — Leary. — Oh — ela disse. — Só um minuto. Macon se perguntou o que Edward teria feito de errado dessa vez. A garota desapareceu, e um instante depois outra surgiu, a de cabelo frisado. Esta noite ela usava um vestido preto com gola em V e salpicado de flores corde-rosa, com ombreiras e a saia bastante insuficiente; e sandálias de saltos ridiculamente altos. — Ora, olá! — ela disse, com vivacidade. — Como foi a viagem? — Oh, foi... onde está Edward? Ele não está bem? — Claro, ele está bem. Foi tão bonzinho, dócil e amigável! — Ora, que ótimo — Macon disse. — Nós nos entendemos de cara. Parece que ele gostou de mim, não sei dizer por quê. — Maravilha — Macon disse. Ele pigarreou. — Então posso pegá-lo de volta, por favor. — Caroline vai trazê-lo. — Ah. Fez-se silêncio. A mulher esperou, encarando-o e exibindo um sorriso animado, os dedos entrelaçados sobre o balcão. Tinha pintado as unhas de vermelho-escuro, Macon viu, e ado um batom escuro que revelava o formato excepcionalmente complicado de sua boca — anguloso, como certos tipos de maçã. — Hm — Macon disse, por fim. — Talvez eu pudesse pagar. — Oh, sim. Ela parou de sorrir e olhou para a pasta aberta. — São 42 dólares — ela disse. Macon lhe entregou o cartão de crédito. Ela teve dificuldade com a máquina; tudo tinha que ser feito com as palmas das mãos, para poupar as unhas. Ela preencheu a nota com uma garatuja irregular e virou-a na direção dele. — e telefone — disse. Inclinou-se sobre o balcão para observar o que ele escrevia. — É o seu telefone de casa ou do trabalho? — As duas coisas. Por quê? Que diferença faz? — ele perguntou. — Só estava imaginando... — ela lhe disse. Tirou a via dele, naquele seu estilo desajeitado, e colocou a sua numa gaveta. — Não sei se mencionei antes que, por acaso, eu treino cachorros. — É mesmo — Macon disse. Ele olhou na direção da porta onde a primeira garota desaparecera. Sempre

ficava nervoso quando levavam tempo demais para trazer Edward. O que estavam fazendo lá dentro — se livrando de alguma prova? — Sou especializada em cachorros que mordem — a mulher disse. — Especialista. — Perdão? — O dicionário preferiria “especialista”. Ela o fitou de modo inexpressivo. — Deve ser um trabalho perigoso — Macon disse, de maneira polida. — Oh, não para mim! Não tenho medo de nada neste mundo. Um som de arranhões veio da porta atrás dela. Edward irrompeu na sala, seguido pela garota de rabo de cavalo. Edward latia tão alto e saltitava tanto quando Macon se curvou para lhe fazer carinho, que não ele conseguia tocá-lo. — Agora pare com isso — a garota disse a Edward. Estava tentando afivelar sua coleira. Enquanto isso, a mulher atrás do balcão dizia: — Cães que mordem, que latem, cães surdos, tímidos, cães que não foram tratados direito, cães que adquiriram hábitos ruins, cães que cresceram em pet shops e não confiam em seres humanos... posso lidar com todos esses. — Ora, que bom — Macon disse. — Não que ele fosse me morder, é claro — a mulher disse. — Ele simplesmente se apaixonou por mim, como eu estava dizendo. — Fico feliz em saber disso. — Mas eu poderia treiná-lo a não morder outras pessoas. Pense nisso e me telefone. Muriel, lembra-se? Muriel Pritchett. Deixe-me lhe dar meu cartão. Ela entregou um cartão de visitas rosa-salmão que parecia ter sacado de lugar nenhum. Ele teve que abrir caminho entre os pulos de Edward para aceitá-lo. — Estudei com um homem que costumava treinar cães que atacavam — ela disse. — Você não está olhando para nenhuma amadora. — Bem, vou me lembrar disso — Macon disse. — Muito obrigado. — Ou então telefone sem motivo! Telefone para falar. — Falar? — Claro! Falar de Edward, dos problemas dele, falar de... qualquer coisa! Pegar o telefone e simplesmente falar. Você já sentiu a necessidade de fazer isso? — Na verdade, não — Macon disse. Então Edward deu um latido particularmente agudo e os dois correram para casa. Bem, é claro que ela não estava lá. Ele soube no instante em que pisou dentro de casa, quando sentiu o cheiro daquele ar quente e estagnado e percebeu a densidade abafada de um lugar onde todas as janelas estavam fechadas. Na verdade, ele sabia o tempo todo. Apenas se iludira. Criara contos de fadas.

A gata ou por ele como um raio e escapou pela porta, uivando de um modo acusatório. O cachorro se atirou para a sala de jantar, rolando pelo tapete para se livrar do cheiro do canil. Mas não havia tapete — só o chão nu com alguns fiapos, e Edward parou no ato, com um ar tolo. Macon sabia exatamente como ele se sentia. Guardou o leite e subiu para desfazer a mala. Tomou um banho, pisando nas roupas da véspera, e se preparou para ir para a cama. Quando apagou a luz do banheiro, a visão da roupa lavada pingando sobre a banheira fez com que se lembrasse das viagens. Onde estava a verdadeira diferença? O turista acidental em casa, pensou, e deslizou, cansado, para dentro de sua bolsa corporal.

4 Quando o telefone tocou, Macon sonhou que era Ethan. Sonhou que Ethan lhe telefonava do acampamento, perguntando por que eles nunca tinham ido buscá-lo. “Mas pensamos que você estava morto”, Macon disse, e Ethan disse — naquele seu tom claro de voz que falhava nas notas agudas — “Por que vocês haveriam de pensar uma coisa dessas?” O telefone tocou de novo e Macon acordou. Houve um baque de desapontamento em algum lugar dentro de suas costelas. Compreendeu por que as pessoas diziam que seus corações “afundavam”. Em câmera lenta, estendeu o braço para o telefone. — Sim — ele disse. — Macon! Bem-vindo de volta! Era Julian Edge, o chefe de Macon, com seu jeito habitual, sonoro e animado, mesmo tão cedo pela manhã. — Oh — Macon disse. — Como foi a viagem? — Tudo bem. — Chegou ontem à noite? — Sim. — Descobriu algum lugar novo maravilhoso? — Bem, “maravilhoso” seria falar de modo um pouco excessivo. — Então agora imagino que você vá começar a escrever. Macon não disse nada. — Quando você acha que pode me trazer os originais? — Julian perguntou. — Não sei — Macon disse. — Em breve, você acha? — Não sei. Houve uma pausa. — Acho que te acordei — Julian disse. — Sim. — Macon Leary na cama — Julian disse. Pelo seu modo de falar, parecia o título de alguma coisa. Julian era mais novo do que Macon e mais impetuoso, jovial, não era um homem sério. Parecia gostar de fingir que Macon era alguma espécie de personagem. — Então, seja como for, posso esperá-lo no fim do mês?

— Não — Macon disse. — Por que não? — Não estou organizado. — Não está organizado! O que há para organizar? Tudo o que você precisa fazer é reescrever seu antigo guia, basicamente. — Há muito mais coisas a fazer além disso — Macon disse. — Olhe. Amigo. A questão é a seguinte — a voz de Julian ficou mais fraca. Ele devia estar se afastando e franzindo a testa para seu vistoso relógio de ouro com calendário e a faixa de couro perfurado. — Hoje é dia 3 de agosto. Quero isso na estante em outubro. Isso significa que vou precisar do seu original no dia 31 de agosto. — Não posso fazer isso — Macon disse. Na verdade, ele estava surpreso por ter forças para continuar com aquela conversa. — Dia 31 de agosto, Macon. Isso é daqui a quatro semanas completas. — Não é suficiente — Macon disse. — Não é suficiente — Julian disse. — Bem. Está certo, então: meados de setembro. Vai desorganizar uma série de coisas, mas te dou até meados de setembro. Que tal? — Não sei — Macon disse. O tom impessoal de sua voz lhe chamou a atenção. Ele se sentia estranhamente distante de si mesmo. Julian talvez tenha percebido isso, pois depois de uma pausa disse: — Ei, cara. Você está bem? — Estou — Macon lhe disse. — Sei que você ou por um bocado de coisas, cara... — Está tudo bem! Tudo bem! O que poderia haver de errado? Tudo de que preciso é tempo para me organizar. O original estará pronto no dia 15 de setembro. Antes disso, é possível. Sim, é bem possível. Talvez no fim de agosto. Está bem? Depois ele desligou. Mas seu estúdio estava tão pouco iluminado e abafado, e exalava o cheiro salgado e sombrio da inquietude mental. Ele entrou ali e se sentiu sobrepujado por sua tarefa, como se finalmente o caos tivesse triunfado. Virou-se e saiu. Talvez não fosse conseguir organizar seu guia, mas organizar a casa era outra história completamente diferente. Havia algo de satisfatório naquilo, algo de reconfortante — ou mais do que reconfortante; dava-lhe a sensação de se precaver contra um perigo. Durante uma semana depois disso, ou coisa assim, ele percorreu os cômodos estabelecendo novos sistemas. Rearrumou radicalmente todos os armários da cozinha, jogando fora todas aquelas coisinhas

dentro de garrafas pegajosas e empoeiradas que Sarah não abria fazia anos. Ligou o aspirador de pó numa extensão de 30 metros originalmente destinada a cortadores de grama. Foi para o jardim e tirou as ervas daninhas, podou, aparou, tosquiou — despindo tudo, era como pensava naquilo. Até então, Sarah fizera toda a jardinagem, e certos aspectos o surpreenderam. Uma variedade de ervas daninhas expelia sementes de modo explosivo no instante em que ele as tocava, um último e magnífico gesto de resistência, enquanto outras cediam facilmente — facilmente demais, partindo-se na junta superior de modo que suas raízes continuavam no chão. Que tenacidade! Que genialidade quando se tratava de sobrevivência! Por que os seres humanos não podiam fazer o mesmo? Ele estendeu uma corda de secar roupas no porão para não ter que usar a secadora. Secadoras eram um terrível gasto de energia. Então desconectou o tubo largo e flexível, depois ensinou a gata a entrar e sair pela vidraça aberta por onde antes o tubo saía. Isso significava o fim da caixa de areia. Várias vezes por dia a gata pulava sem fazer ruído na pia da lavanderia, se levantava, comprida e vigorosa em suas patas traseiras, e saltava pela janela. Uma pena que Edward não pudesse fazer o mesmo. Macon detestava andar com ele; Edward nunca tinha sido treinado para caminhar acompanhando-o e ficava o tempo todo enrolando a guia em torno das pernas de Macon. Oh, cachorros davam tanto trabalho. Cachorros também comiam quantidades mastodônticas de comida; a ração de Edward tinha que ser rebocada para casa do supermercado, arrastada para fora da mala do carro, pelos degraus íngremes da entrada acima e através da casa até a despensa. Mas para isso, pelo menos, Macon por fim pensou numa solução. Ao pé da velha rampa de carvão no porão ele colocou uma lata de lixo de plástico, com uma seção quadrada removida do fundo. Então despejou o que restava de um saco de ração na lata de lixo, que magicamente se tornou um comedouro contínuo, como o da gata. Na próxima vez que comprasse comida para cachorro, só precisaria dar a volta com o carro até a lateral da casa e despejá-la pela rampa de carvão. O único obstáculo era que por acaso Edward tinha medo do porão. Todas as manhãs ele ia para a despensa, onde seu café da manhã costumava ser servido, e se sentava em suas ancas gordas e atarracadas, choramingando. Macon tinha que carregá-lo no colo pela escada que dava no porão, cambaleando um pouco enquanto Edward se debatia em seus braços. Como a ideia toda tinha sido poupar as costas fracas de Macon, ele se sentia derrotado em seu propósito. Ainda assim, continuou tentando. Também com as costas em mente, ele amarrou o cesto de roupas ao velho skate de Ethan e pendurou uma sacola numa corda, jogando-a pela rampa da lavanderia. Isso significava que ele nunca teria que carregar as roupas escada

acima ou escada abaixo, ou mesmo pelo porão. Às vezes, porém — laboriosamente puxando o cesto com rodas desde a corda de secar roupas até a rampa da lavanderia, enfiando lençóis limpos na sacola, correndo escada acima para içá-los por meio da corda comprida e rígida —, Macon sentia uma pontada de vergonha. Seria possível que aquilo fosse um pouco tolo? Bem, todas as coisas eram tolas, se examinadas de perto. Os vizinhos a essa altura já deviam estar sabendo que Sarah o havia deixado. As pessoas começaram a telefonar à noite em dias de semana e convidá-lo para potlucks. Macon achou, a princípio, que se referiam a esses encontros em que cada pessoa leva um prato diferente e, com sorte, você consegue uma refeição balanceada. Chegou à casa de Bob e Sue Carney com uma tigela de macarrão com queijo. Como Sue estava servindo espaguete, não se sentiu com tanta sorte assim. Ela colocou o macarrão dele numa ponta da mesa e ninguém comeu, exceto Delilah, a menina de 3 anos. Mas ela se serviu várias vezes. Macon não esperara encontrar as crianças na mesa. Viu que era uma pessoa diferente agora, algum tipo de tio solteirão que teoricamente precisava de um pouco de vida em família de tempos em tempos. Mas o fato era que ele jamais gostara muito dos filhos das outras pessoas. E reuniões de qualquer tipo o deprimiam. O contato físico, se fosse com pessoas que não eram ligadas a ele — o braço em torno de seu ombro, a mão na manga de sua camisa —, fazia com que se encolhesse como uma cobra. — Você sabe, Macon — Sue Carney disse, inclinando-se sobre a mesa para dar tapinhas em seu punho, —, sempre que precisar é bem-vindo aqui. Não fique esperando um convite. — Isso é gentil da sua parte, Sue — ele disse. Ele se perguntava o que havia na pele dos forasteiros que a fazia parecer tão irreal — quase de cera, como se houvesse uma camada extrainvisível entre ele e essas pessoas. Logo que foi possível, ele mudou o punho de lugar. — Se você pudesse viver do jeito que quisesse — Sarah lhe havia dito uma vez —, acho que ia parar numa ilha deserta sem nenhum outro ser humano. — Ora! Isso não é verdade em absoluto — ele dissera. — Eu gostaria de estar com você e Ethan, e minha irmã e meus irmãos... — Mas não com as pessoas. Isto é, pessoas que estivessem ali por acaso, pessoas que você não conhecesse. — Bem, não, acho que não — ele dissera. — Você gostaria? Mas ela gostaria, claro — naquela época. Antes que Ethan morresse. Ela sempre havia sido uma pessoa sociável. Quando não havia mais nada a fazer, ela eava feliz por um shopping center — a ideia que Macon fazia do inferno, com todos aqueles ombros estranhos roçando nos seus. Sarah achava as

multidões excitantes. Gostava de encontrar novas pessoas. Adorava festas, até mesmo coquetéis. Você tem que ser maluco para gostar de ir a coquetéis, Macon pensava — aqueles cenários de confusão aos quais ela costumava arrastá-lo, onde ele era levado a se sentir culpado se conseguisse, por algum acaso, se envolver numa conversa com um pouco mais de profundidade. “Circulando, circulando”, Sarah sussurrava, ao ar por ele com seu drinque. Isso havia mudado durante aquele último ano. Sarah já não gostava das multidões. Não ara nem perto de shopping centers, não o fizera ir a nenhuma festa. Só iam a jantares tranquilos e ela própria não dera nenhum jantar desde que Ethan morrera. Ele tinha perguntado a ela uma vez: — Não devíamos chamar os Smith e os Millard para jantar? Eles nos chamaram tantas vezes. Sarah disse: — Sim. Você tem razão. Em breve — e não fez nada sobre o assunto. Eles tinham se conhecido numa festa. Estavam com 17 anos de idade. Era uma daquelas confraternizações, reunindo as escolas dos dois. Mesmo àquela idade Macon não gostava de festas, mas estava secretamente desejando se apaixonar, então encarou aquela confraternização, mas ficou afastado num canto, parecendo indiferente, ele esperava, e bebendo sua ginger ale. O ano era 1958. O resto do mundo estava de camisa, mas Macon usava um suéter de gola rulê, calças pretas largas e sandálias. (Estava ando por sua fase poeta.) E Sarah, uma garota vivaz com uma desordem de cachos acobreados e rosto redondo, grandes olhos azuis, um lábio inferior carnudo — ela usava alguma coisa cor-derosa, ele se lembrava, que deixava sua pele com um aspecto radiante. Ela estava rodeada por garotos cheios de iração. Era baixa e estava bem-arrumada, e havia algo de resoluto no modo como suas pequenas panturrilhas bronzeadas estavam tão firmemente esticadas, como se ela estivesse determinada a não deixar que aquele bando de estrelas do basquete e do futebol americano, que assomava sobre ela, a derrubasse. Macon desistiu imediatamente dela. Não, nem sequer isso — ele nem a considerou, nem por um instante, mas se pôs a olhar para as outras garotas, mais alcançáveis. Então tinha que ser Sarah a fazer o primeiro movimento. Ela se aproximou dele e perguntou por que ele estava com aquele ar tão convencido. — Convencido? — ele disse. — Não sou convencido. — Mas é o que você parece. — Não, eu só estou... entediado — ele disse a ela. — Bem, você quer dançar ou não? Eles dançaram. Ele estava tão despreparado que tudo ou como um borrão. Ele só desfrutou de tudo mais tarde, em casa, onde pôde pensar a

respeito num estado mental mais calmo. E pensando a respeito ele viu que se não parecesse convencido ela nunca teria reparado nele. Era o único garoto que não a perseguia abertamente. Seria sábio não persegui-la no futuro, não parecer muito ansioso, não demonstrar seus sentimentos. Com Sarah você tinha que manter sua dignidade, ele pressentiu. Mas só Deus sabe, manter sua dignidade não era fácil. Macon morava com os avós, e eles achavam que ninguém com menos de 18 anos de idade devia ter uma carteira de motorista. (Pouco importava se o estado de Maryland pensava de outro modo.) Então o avô Leary levava Macon e Sarah de carro em seus encontros. Seu carro era um Buick preto e comprido, com um banco traseiro cinza aveludado, onde Macon se sentava sozinho, pois o avô achava indecoroso que os dois se sentassem juntos. “Não sou seu motorista”, ele dizia, “e além disso o banco traseiro tem conotações.” (Grande parte da juventude de Macon foi regida por conotações.) Então Macon se sentava sozinho atrás enquanto Sarah se sentava na frente com o avô Leary. A nuvem de cabelo dela, vista contra o brilho dos faróis que vinham na contramão, fazia Macon pensar num arbusto em chamas. Ele se inclinava para a frente, pigarreava e perguntava: — Hm, você terminou o seu ensaio final? Sarah dizia: — Como? — Ensaio final — o avô Leary dizia a ela. — O garoto quer saber se você terminou. — Oh. Terminei, sim. — Ela terminou — o avô Leary transmitia a Macon. — Eu tenho ouvidos, vô. — Você quer sair do carro e ir andando? Porque eu não tenho que ficar ouvindo reclamações. Podia estar em casa com meus entes queridos, em vez de ficar por aí dirigindo no escuro. — Desculpe, vô. A única esperança de Macon era o silêncio. Ele recostava no banco, quieto e distante, sabendo que quando Sarah olhasse não veria nada além de um lampejo de cabelo louro e um rosto inexpressivo — o resto, escuridão, seu suéter de gola rulê se misturando à escuridão. Funcionava. — Em que você pensa o tempo todo? — ela perguntou em seu ouvido enquanto eles dançavam pelo ginásio da escola em como de dois tempos. Ele só levantava um canto da boca, como se achasse aquilo divertido, e não respondia. As coisas não mudaram muito quando ele tirou a carteira de motorista. As coisas não mudaram muito quando foi para a faculdade, embora desistisse da

gola rulê preta e se transformasse num homem de Princeton, informal mas bemapresentado com suas camisas brancas e calças cáqui. Separado de Sarah, ele sentia um vazio constante, mas em suas cartas só falava dos estudos. Sarah, em casa, em Goucher, respondia: Você não sente um pouco a minha falta? Não posso ir a nenhum lugar aonde fomos com medo de te ver com aquele jeito tão misterioso do outro lado do salão. Ela assinava as cartas com Eu te amo, ele assinava as dele com Afetuosamente. A noite sonhava que ela estava deitada ao seu lado, seus cachos fazendo um ruído sussurrado sobre o travesseiro, embora tudo o que tivessem feito na vida real se resumisse a uma grande quantidade de beijos. Ele não tinha certeza, para falar a verdade, de poder continuar muito mais tempo sem... como é que diziam naqueles tempos? Perder a cabeça. Às vezes ele ficava quase zangado com Sarah. Sentia que tinha sido obrigado a recuar a uma posição falsa. Era obrigado a apresentar aquela aparência imível se queria que ela o amasse. Oh, quanta coisa se esperava de um homem! Ela escreveu que não estava saindo com outras pessoas. Nem Macon, mas é claro que ele não disse. Foi para casa no verão e trabalhou na fábrica de seu avô; Sarah trabalhava adquirindo um bronzeado na piscina da vizinha. Na metade do verão ela disse que se perguntava por que ele nunca pedira para dormir com ela. Macon pensou a respeito e então disse, com franqueza, que na verdade ia pedir agora. Foram para a casa dos pais dela; eles estavam de férias em Rehoboth. Subiram a escada para o quartinho dela, todo de babados brancos e o sol quente cozinhando o cheiro de tinta fresca. — Você trouxe um como-é-que-os-homens-chamam? — Sarah perguntou. Macon, sem querer itir que mal sabia como era o aspecto da coisa, bradou: — Não, eu não trouxe um como-é-que-os-homens-chamam, quem você pensa que eu sou? — uma pergunta sem sentido, se você parasse para examinála, mas Sarah entendeu que ele estava chocado com ela, e disse: — Bem, me desculpe por viver! — e desceu a escada correndo, para fora da casa. Ele levou meia hora para encontrá-la, e mais do que isso para fazê-la parar de chorar. Na verdade, ele disse, só estava pensando na segurança dela: em sua experiência, os como-é-que-os-homens-chamam não eram tão seguros assim. Ele tentou parecer instruído e imune às paixões do momento. Sugeriu que ela visitasse um médico que ele conhecia — por acaso era o médico que tratara as mazelas femininas de sua avó. Sarah secou as lágrimas e pegou emprestada a caneta de Macon para escrever o nome do médico nas costas de uma embalagem de chiclete. Mas e se o médico se recusasse a recebê-la?, ela perguntou. Ele não diria que ela precisava ser pelo menos noiva? Bem, está certo, Macon disse, eles ficariam noivos. Sarah disse que isso seria encantador.

O noivado deles durou três anos, durante toda a faculdade. O avô Leary achava que o casamento devia esperar ainda mais, até Macon estar firmemente estabelecido em seu local de trabalho; mas já que seu local de trabalho seria a Metais Leary, que manufaturava tampinhas para garrafas de refrigerante, Macon não conseguia se ver concentrado naquilo, nem por pouco tempo. Além disso, as correrias para dentro e para fora do quarto de Sarah nos dias em que a mãe dela tinha reuniões da Cruz Vermelha começaram a delatar os dois. Então eles se casaram na primavera em que se formaram na faculdade, e Macon foi trabalhar na fábrica enquanto Sarah ensinava inglês numa escola particular. Isso foi sete anos antes de Ethan nascer. A essa altura, Sarah já não chamava Macon de “misterioso”. Seus momentos de reclusão agora pareciam aborrecê-la. Macon percebia isso, mas não havia nada que pudesse fazer a respeito. De alguma estranha maneira, ele estava trancado dentro da atitude reservada que assumira quando os dois se conheceram. Estava congelado ali. Era como aquela antiga advertência de sua avó: Não fique vesgo, seus olhos podem ficar assim para sempre. Não importava o quanto ele tentasse mudar seu modo de agir, Sarah continuava a lidar com ele como se ele fosse alguém anormalmente calmo, alguém mais constante em seu temperamento do que ela, mas talvez não tanto em seus sentimentos. Certa vez ele se deparara com um questionário que ela preenchera numa revista feminina — uma daquelas coisas no estilo “Será que o seu casamento é feliz?” — e onde dizia Acredito que amo meu marido/minha esposa mais do que ele/ela me ama, Sarah marcara Verdadeiro. A parte inquietante foi que depois de Macon soltar uma desdenhosa risadinha de negação, ele se perguntou se afinal aquilo poderia ser verdade. De algum modo, o papel que interpretava descera e chegara ao coração. Mesmo internamente, a essa altura, ele era um homem bastante frio, e se você não contasse seu filho (que era fácil, fácil; um filho não chega a ser um teste), não havia uma única pessoa em sua vida por quem ele realmente tivesse sofrido. Quando pensou nisso agora, foi um alívio lembrar-se de que sentia, sim, falta de Sarah, afinal de contas. Mas então seu alívio lhe pareceu insensível também, e ele gemeu e sacudiu a cabeça e puxou os cabelos em grandes tufos. Uma mulher telefonou e disse: — Macon? Ele podia dizer de imediato que não era Sarah. A voz de Sarah era leve e sussurrada; aquela era áspera, dura, metálica. — É Muriel — ela disse. — Muriel — ele disse. — Muriel Pritchett. — Ah, sim — ele respondeu, mas ainda não tinha a menor ideia de quem era.

— Do veterinário — ela disse. — Que se entendeu tão bem com o seu cachorro. — Ah, do veterinário! Ele a visualizou, mesmo que de forma meio indistinta. Visualizou-a dizendo o próprio nome, o som longo do u e o p puxando para cima sua boca vermelhoescura. — Eu só estava me perguntando como Edward andaria. Macon deu uma olhada na direção de Edward. Os dois estavam no escritório, onde Macon conseguira datilografar meia página. Edward estava deitado de barriga para baixo com as pernas esticadas para trás — pernas curtas e rechonchudas como as coxas de um pato de Long Island assado. — Ele me parece bem — Macon disse. — Quero dizer, ele está mordendo? — Bem, ultimamente não, mas desenvolveu esse novo sintoma. Fica zangado se eu saio de casa. Começa a latir e a mostrar os dentes. — Ainda acho que ele deveria ser treinado. — Ah, sabe como é, ele está com 4 anos e meio e eu acho que... — Ele não está velho demais! Eu poderia fazer isso num piscar de olhos. Sabe o que mais, talvez eu apenas pudesse aparecer para conversar sobre isso. Você e eu poderíamos beber alguma coisa e conversar sobre os problemas dele. — Bem, eu na verdade não acho... — Ou você podia vir à minha casa. Eu preparo um jantar. Macon se perguntou em que ajudaria Edward ser arrastado para jantar na casa de uma estranha. — Macon? O que você me diz? — ela perguntou. — Oh, sabe, hm... Acho que por enquanto vou tentar resolver isso por conta própria. — Bem, posso entender — ela disse. — Acredite em mim. ei por esse estágio. Então vou fazer o seguinte, vou esperar que você entre em contato. Você ainda tem meu cartão, não tem? Macon disse que tinha, embora não fizesse a menor ideia de onde havia ido parar. — Não quero forçar a barra! — ela disse. — Não, bem... — Macon disse. Depois desligou e voltou ao guia. Ainda estava na introdução, e já era quase o final de agosto. Como ele conseguiria cumprir o prazo? As costas da cadeira de sua mesa de trabalho encostavam em sua coluna justamente no lugar errado. A tecla do s ficava prendendo. A máquina de escrever datilografava palavras audíveis. “Inimitável”, ela dizia.

A datilografia dele soava exatamente como Sarah dizendo “inimitável”. “Você com esse seu jeito inimitável...” ela dizia a ele. Ele sacudiu de leve a cabeça. Geralmente a comida na Inglaterra não é uma questão tão problemática quanto em outros países estrangeiros. Bons legumes cozidos, pratos com molho branco, pudim de sobremesa... Não sei por que certos viajantes reclamam da comida inglesa. Em setembro, ele decidiu alterar seu sistema de vestuário. Se usasse um training em casa — do tipo sem zíper, nada para arranhá-lo ou prendê-lo — podia ar de um banho a outro sem ter que trocar de roupa. O training serviria tanto como pijama quanto como roupa para usar durante o dia. Comprou um par deles, de um cinza médio. Na primeira noite em que usou um na cama ele gostou da sensação, e gostou de não ter que se vestir na manhã seguinte. Na verdade, ocorreu-lhe que talvez pudesse usar a mesma roupa durante dois dias seguidos; pular o banho em noites alternadas. Isso sim era economizar energia! Pela manhã, tudo o que tinha que fazer era se barbear. Perguntou-se se devia deixar crescer a barba. No segundo dia, por volta do meio-dia, começou a se sentir um pouco baixo. Estava sentado diante de sua máquina de escrever e algo o fez reparar em sua postura baixa — curvada e desleixada. Pôs a culpa no training. Levantou-se e foi até o espelho de corpo inteiro no hall. Seu reflexo lhe recordava um paciente numa instituição mental. Parte do problema, talvez, fossem seus sapatos — sapatos normais estilo rigor, destinados a roupas mais formais. Será que ele devia comprar tênis? Mas detestaria ser confundido com um praticante de cooper. Notou que sem um cinto ao redor da cintura ele tendia a deixar a barriga se projetar. Endireitou a postura. Naquela noite, quando chegou o momento de lavar seu training, ele usou água mais quente do que o habitual, para fazer encolher um pouco das sobras do tecido. Sentia-se muito pior pela manhã. Tinha sido uma noite quente e ele acordara pegajoso e mal-humorado. Não conseguia encarar o pensamento de comer pipoca no café da manhã. Lavou os lençóis e então, quando os estava pendurando, descobriu-se parado, imóvel, com a cabeça baixa, os dois punhos pendurados por cima da corda como se ele próprio estivesse preso ali. “Animese”, ele disse em voz alta. Sua voz falhou, fora de forma. Aquele era o dia das compras de supermercado — terça-feira, quando o supermercado estava menos cheio de outros seres humanos. Mas de algum modo ele não conseguia se obrigar a sair. Temia todo aquele negócio dos cadernos de telefone, os três cadernos etiquetados que ele usava para fazer compras. (Um continha informações do Consumer Reports — a marca de pão mais conceituada, por exemplo, que ficava na letra P. Em outro ele anotava preços e

no terceiro arquivava seus cupons.) Ele tinha que ficar parando e folheando os cadernos, murmurando os preços para si mesmo, comparando os produtos da marca do supermercado com marcas que ofereciam descontos. Oh, tudo parecia tão complicado. Por que se importar? Por que, aliás, comer? Por outro lado, precisava de leite. E a ração para cães de Edward estava acabando, e a ração para gatos de Helen havia acabado. Ele fez algo que nunca tinha feito antes. Telefonou para o The Market Basket, um mercado pequeno e caro que fazia entregas. E ele tampouco pediu só os suprimentos de emergência. Não, ele comprou a lista da semana toda. — Entregamos na porta da frente ou na dos fundos? — a atendente perguntou, em sua voz relaxada. — Na dos fundos — Macon disse. — Não, espere. Traga os perecíveis para os fundos, mas coloque a ração para cães junto à rampa de carvão. — Rampa de carvão — a atendente repetiu, aparentemente escrevendo. — A rampa de carvão fica na lateral da casa. Mas a ração para gatos não; essa vem pelos fundos, com os perecíveis. — Bem, um momento... — E os itens do andar de cima na frente da casa. — Que itens do andar de cima? — Pasta de dente, sabonete Ivory, biscoitos para cães... — Pensei que o senhor tinha dito que os biscoitos para cães iam para a rampa de carvão. — Não os biscoitos para cães, a ração para cães! É a ração que vai para a rampa de carvão, diabos. — Olhe — a atendente disse. — Não há necessidade de ser rude. — Bem, me desculpe — Macon disse a ela —, mas só estou pedindo a coisa mais simples, ao que me parece: uma caixa pequena de biscoitos Milkbone ao lado da minha cama. Se eu der a Edward minhas pipocas com manteiga, ele vai ar mal do estômago. Do contrário eu não me importaria; não é que eu esteja querendo ficar com tudo só para mim ou coisa do gênero, mas ele tem essa sensibilidade à gordura e sou só eu na casa, sou eu quem tem que limpar se ele ar mal. Sou só eu para fazer isso; estou completamente sozinho; sou só eu; parece que todo mundo simplesmente... fugiu de mim, não sei, eu os perdi, fiquei parado aqui dizendo, “Para onde eles foram? Onde está todo mundo? Oh, Deus, o que foi que eu fiz de tão mau?” A voz dele não estava se comportando da maneira certa e ele desligou. Ficou parado diante do telefone massageando a testa. Será que tinha dado seu nome? Ou não. Ele não se lembrava. Por favor, por favor, que ele não tivesse dado a ela seu

nome. Ele estava perdendo a cabeça; isso era óbvio. Teria que se controlar. Em primeiro lugar: fora daquele training. Bateu as palmas das mãos energeticamente, depois foi para o andar de cima. No banheiro, arrancou o training e jogou-o na banheira. O da véspera estava pendurado na haste da cortina do chuveiro, ainda úmido. Não havia nenhuma chance de que fosse estar seco à noite. Que erro! Ele se sentia um tolo. Tinha chegado a um centímetro, a um milímetro de se tornar uma daquelas criaturas patéticas que você vê na rua de tempos em tempos — sem se lavar, sem se barbear, sem forma, falando consigo mesma, vagabundeando por aí em seu lixo institucionalizado. Bem-vestido agora, com uma camisa branca e calça cáqui, ele pegou o training molhado e levou-o para o porão. Daria um bom pijama para o inverno, pelo menos. Colocou-o na secadora, pôs o tubo exaustor na janela novamente e ajustou o programa. Melhor consumir um pouco de energia do que entrar em desespero por causa de um training ensopado. No alto da escada que descia para o porão, Edward estava reclamando. Tinha fome, mas não era corajoso o suficiente para descer sozinho a escada. Quando viu Macon, deitou-se no chão, o focinho aparecendo por cima do degrau do alto, e pôs no rosto uma expressão esperançosa. — Covarde — Macon disse a ele. Pegou Edward com os dois braços e se virou, descendo outra vez, pesadamente. Os dentes de Edward começaram a tremer — um ruído como o de arroz numa xícara. Ocorreu a Macon que Edward pudesse saber de alguma coisa que ele não sabia. O porão era mal-assombrado, ou o quê? Tinham se ado semanas agora, e Edward ainda sentia tanto medo que às vezes, parado diante de sua comida, ele apenas ficava ali desolado e fazia uma poça sem nem se incomodar em levantar a pata. — Você está sendo muito bobo, Edward — Macon disse a ele. Nesse exato instante, um uivo sobrenatural veio de... onde? Do próprio ar do porão, ao que parecia. Continuou firmemente; aumentou. Edward, que devia o tempo todo estar esperando isso, começou instantaneamente a se debater com suas patas robustas e com suas unhas contra o diafragma de Macon. Macon se sentiu perder o fôlego. Edward bateu contra a parede de bolsas corporais molhadas que estavam penduradas na corda, quicou e veio cair bem sobre a barriga de Macon. Macon pôs um pé, às cegas, no cesto com rodas, e suas pernas vacilaram sob seu corpo. Ele pisou com força no espaço vazio. Estava caído de costas, no chão úmido de cimento, com a perna esquerda dobrada debaixo do corpo. O som que desencadeou aquilo tudo parou por uma

fração de segundo e depois recomeçou. Estava claro agora que vinha do tubo de exaustão da secadora. — Droga — Macon disse a Edward, que estava arquejando em cima dele. — Será que essa gata idiota não percebe que a secadora está funcionando? Ele via como podia ter acontecido. Tentando entrar em casa, ela fora recebida por um vendaval, mas obstinadamente tentara seguir pelo tubo adentro. Ele imaginou seus olhos transformados em fendas, suas orelhas coladas atrás por um vendaval cheio de fiapos de pano. Gemendo e protestando, ela mesmo assim se mantivera em seu trajeto. Que persistência! Macon sacudiu Edward para longe e rolou para cima da barriga. Mesmo um movimento tão pequeno lhe causava agonia. Ele sentiu a náusea formando um bolo em sua garganta, mas rolou mais uma vez, arrastando a perna atrás de si. Com os dentes cerrados, estendeu a mão para a porta da secadora e abriu-a. O training aos poucos parou de girar. A gata parou de uivar. Macon observou seu vulto desajeitado e redondo recuando devagar dentro do tubo. No instante em que ela chegou à saída, o tubo inteiro caiu da janela dentro da pia da lavanderia, mas Helen não caiu com ele. Ele esperava que ela estivesse bem. Ficou observando enquanto ela ava correndo pela outra janela, parecendo ligeiramente amarrotada. Ele respirou fundo e começou a longa e difícil jornada escada acima em busca de ajuda.

5 — Uh, eu errei e tropecei — a irmã de Macon cantava, na cozinha —, fui pecador e imprudente... Sua voz era a de um soprano trêmulo que parecia a de uma velha, embora ela fosse mais jovem do que Macon. Você podia imaginar uma voz como aquela numa igreja, alguma igreja de interior onde as mulheres ainda usassem chapéus retos de palha. Sou só um peregrino com sorte No caminho ao Paraíso. Macon estava deitado no sofá-cama no solário da casa de seus avós. Sua perna esquerda, engessada desde a metade da coxa até o peito do pé, não estava tão dolorida, estava mais ausente. Havia uma dormência constante e algodoada que lhe dava vontade de beliscar a própria canela. Não que ele pudesse, claro. Estava fechado fora do alcance de si mesmo. O menor golpe dava a sensação de ser um soco na parede de um cômodo vizinho. Ainda assim ele sentia uma espécie de contentamento. Estava deitado ouvindo sua irmã preparar o café da manhã, afagando preguiçosamente a gata que tinha feito um ninho nas cobertas. — Tive provações, tive sofrimentos — Rose trinava alegremente —, tive tristezas e sacrifícios... Depois que colocava o café para fazer, ela vinha ajudá-lo a atravessar a sala de estar para ir ao banheiro, no andar de baixo. Ele ainda achava difícil caminhar, principalmente em piso encerado. Agora irava todas aquelas pessoas de muletas às quais não costumava prestar atenção. Via-as como um bando de pássaros avançando persistentemente, com uma fascinante competência, em seus saltos alegres e seus rodopios joviais. Como é que eles faziam isso? Suas próprias muletas, tão novas que as pontas de borracha ainda não estavam gastas, se encontravam apoiadas na parede. Seu roupão de banho estava pendurado numa cadeira. Sob a janela ficava uma mesa de jogos dobrável com um tampo de papelão imitando madeira e pernas frouxas. Fazia anos que seus avós estavam mortos, mas a mesa continuava montada como se estivesse pronta para um de seus eternos jogos de bridge. Macon sabia que na parte de baixo

havia uma etiqueta amarela que dizia ATLAS MFG. CO, com uma estampa em aço de seis homens roliços e sérios com ternos de colarinho alto de pé sobre uma tábua atravessada na mesma mesa. mobília de falsa delicadeza, dizia a legenda. Macon associava a frase com sua avó: falsa delicadeza. Deitado no solário quando era garoto, ele estudava suas pernas frágeis, cujos ossos dos tornozelos se destacavam como maçanetas. Seus sapatos sólidos, pretos, de saltos grossos, estavam plantados com exatamente 30 centímetros de distância um do outro, sem jamais ficar batendo no chão ou se agitando. Ele ouviu seu irmão Porter no andar de cima, assobiando junto com a canção de Rose. Sabia que era Porter porque Charles nunca assobiava. Ouviu o som do chuveiro ligado. Sua irmã olhou pela porta do solário, com Edward espiando ao seu lado e arfando para Macon como se estivesse rindo. — Macon? Você está acordado? — Rose perguntou. — Estou acordado faz horas — ele lhe disse, pois havia algo nela que fazia com que seus irmãos agissem como vítimas e como necessitados todas as vezes que ela por acaso prestava atenção neles. Ela era bonita de um modo sóbrio e empertigado, com o cabelo bege preso na nuca de modo a não atrapalhá-la. Sua aparência era a de uma garota muito jovem, mas suas roupas eram de solteirona, feitas para esconder. Ela o envolveu com o roupão de banho e o ajudou a ficar de pé. Agora a perna dele doía efetivamente. Parecia que a dor era uma questão de gravidade. Um incômodo descia devagar pelo osso. Com Rose apoiando-o num dos lados e uma muleta no outro, ele saiu mancando do solário e atravessou a sala de estar, com sua mobília surrada e cheia de floreios. O cachorro ava a todo o momento por baixo de suas pernas. — Talvez eu pudesse parar e descansar por um momento — Macon disse, quando aram pelo sofá. — É só um pouco mais adiante. Entraram na copa. Rose abriu a porta do banheiro e o ajudou a entrar. — Chame quando estiver pronto — ela disse, fechando a porta atrás dele. Macon foi cambaleando até a pia. No café da manhã, Porter estava alegremente falante enquanto os outros comiam em silêncio. Porter era o mais bonito dos Leary — de traços mais firmes que os de Macon, e o cabelo num tom de louro mais claro. Ele dava uma impressão de vitalidade e determinação que faltava a seus irmãos. — Tenho um bocado de coisas a fazer hoje — ele disse, entre uma colherada e outra. — Aquele encontro com Herrin, entrevistas para o antigo emprego de Dave, Cates chegando de avião de Atlanta... Charles apenas bebia seu café. Enquanto Porter já se encontrava vestido,

Charles ainda estava de pijama. Ele era um homem delicado, de rosto suave, que nunca parecia se mexer; todas as vezes que alguém olhava para ele, se deparava com seus olhos tristes, inclinados para os cantos. Rose trouxe a cafeteira do fogão. — Na noite ada Edward me acordou duas vezes pedindo para sair — ela disse. — Você acha que ele tem algum tipo de problema nos rins? — É só a adaptação — Macon disse. — Adaptação à mudança. Eu me pergunto como é que ele sabe que não é para me acordar. Porter disse: — Talvez nós pudéssemos construir algum tipo de sistema. Uma daquelas portinhas redondas para bichos ou algo do gênero. — Edward é meio corpulento para essas portas — Macon disse. — Além do mais — Rose disse —, o quintal não tem cerca. Não podemos deixá-lo sair sozinho se não há uma cerca. — Uma caixa de areia, então — Porter sugeriu. — Caixa de areia! Para um cachorro? — Por que não? Se for grande o suficiente. Macon disse: — Use uma banheira. A que fica no porão. Ninguém vai mais lá. — Mas quem ia limpá-la? — Ah. Todos abaixaram os olhos para Edward, que estava deitado aos pés de Rose. Ele revirou os olhos para eles. — Por que é que você tem esse cachorro, aliás? — Ele era de Ethan. — Ah. Entendo — Porter disse. Ele tossiu de leve. — Animais! — ele disse, com vivacidade. — Já se perguntaram o que eles devem pensar de nós? Isto é, aqui estamos nós de volta do supermercado com as presas mais incríveis, frango, porco, metade de um boi. Saímos de casa às 9 horas e estamos de volta às 10, tendo evidentemente capturado um bando inteiro de animais. Eles devem achar que somos os maiores caçadores sobre a terra! Macon se recostou na cadeira com a xícara de café entre as mãos. O sol estava quente sobre a mesa do café da manhã e a cozinha tinha cheiro de torradas. Ele quase se perguntou se por meio de algum expediente tortuoso e subconsciente arquitetara aquele acidente — cada o elaborado que levara a ele — só para poder repousar a salvo entre as pessoas com as quais tudo começara. Charles e Porter saíram para ir à fábrica, e Rose foi para o andar de cima com o aspirador de pó. Macon, que teoricamente devia estar datilografando seu

guia, voltou com esforço ao solário e desabou. Desde que voltara para casa andava dormindo demais. A necessidade de dormir era como uma imensa bala de canhão rolando dentro de seu crânio, deixando sua cabeça pesada e caída. Na parede do solário estava pendurado um retrato das quatro crianças Leary: Charles, Porter, Macon e Rose, amontoados numa poltrona. O avô tinha encomendado aquele retrato vários anos antes de eles irem morar com ele. Ainda estavam na Califórnia com a mãe — uma viúva de guerra, jovem e meio cabeça oca. De tempos em tempos, enviavam fotos, mas o avô Leary as considerava inadequadas. Devido à sua própria natureza, ele dizia em suas cartas, as fotos mentiam. Mostravam como era o aspecto de uma pessoa numa fração de segundo — não durante longos e vagarosos minutos, o que era o necessário para estudar uma pessoa na vida real. Nesse caso, disse Alicia, as pinturas também não mentiam? Elas mostravam horas em vez de minutos. Não foi para o avô Leary que ela disse isso, mas para o artista, um senhor californiano cujo nome de algum modo chegara ao conhecimento do avô Leary. Se o artista respondeu, Macon não se lembrava o que havia sido. Mas se lembrava, isto sim, de posar para o retrato, agora enquanto olhava para ele, e tinha uma imagem bastante nítida de sua mãe sentada logo ao lado da moldura dourada, num quimono cor-de-rosa, observando a pintura ser feita enquanto secava o cabelo com uma toalha. Tinha cabelo macio, curto e quebradiço cuja cor ela “ajudava”, como costumava dizer. Seu rosto era de um tipo que não se via mais — não apenas não estava na moda, tinha desaparecido por completo. Como as mulheres moldavam suas formas básicas para se adaptar aos novos tempos? Não havia mais daqueles queixos redondos, testas redondas e boquinhas barrocas e vermelhas tão populares nos anos 1940. O artista, era óbvio, achava-a muito atraente. Ficava interrompendo a toda hora o trabalho para dizer que desejava que ela fosse o tema. Alicia dava uma risada de perder o fôlego e descartava as palavras dele com um gesto da mão. Provavelmente, mais tarde, ela saíra com ele algumas vezes. Ela estava sempre se metendo com novos homens, e eles eram sempre os homens mais excitantes do mundo, a julgar pelo que ela dizia. Se fossem artistas, ora, ela precisava dar uma festa e fazer com que todos os seus amigos comprassem as pinturas dele. Se ele pilotasse aviões de pequeno porte nos fins de semana, ela precisava começar a ter aulas para pilotar. Se eles fossem políticos, lá estava ela nas esquinas entregando petições aos antes. Seus filhos eram pequenos demais para se preocupar com os homens em si, se é que havia algum motivo para preocupação. Não, era seu entusiasmo que os perturbava. Seu entusiasmo vinha aos jorros, um ziguezague violento de hobbies,

amigos, namorados, causas. Ela sempre parecia prestes a cair pela borda de alguma coisa. Estava sempre indo rápido demais. Sua voz tinha uma certa tensão, como se a qualquer momento pudesse falhar. Quanto mais rápido ela falasse e quanto mais brilhantes seus olhos se tornassem, mais fixamente seus filhos olhavam para ela, como se permitissem que ela seguisse seu exemplo de estabilidade e segurança. “Ah, o que há com vocês?”, ela perguntaria. “Por que vocês são tão sem graça?” E ela desistia deles e saía bruscamente para ir encontrar sua turma. Rose, o bebê, costumava esperar ela voltar no vestíbulo, chupando o dedo e acariciando uma velha estola de pele que Alicia não usava mais. Às vezes o entusiasmo de Alicia se voltava para os filhos — uma experiência inquietante. Ela levava todos ao circo e comprava-lhes algodão doce, de que nenhum deles gostava. (Eles gostavam de ficar limpos.) Ela os tirou da escola e os inscreveu por um curto período numa comunidade experimental de ensino onde ninguém usava roupas. Os quatro, com frio e infelizes, ficaram sentados em fila no salão comum com as mãos espalmadas sobre os joelhos nus. Ela se vestiu como bruxa e foi pedir balas com eles, no Dia das Bruxas mais humilhante de suas vidas, pois ela se empolgou como de hábito e ficou cacarejando, grasnindo e avançando sobre os estranhos, sacudindo sua vassoura esfarrapada diante de seus rostos. Começou a fazer roupas estilo mãe-filha para ela própria e para Rose, cor de morango, com mangas fofas, mas parou quando a máquina de costura furou seu dedo e a fez chorar. (Ela estava sempre se machucando. Talvez porque corresse tanto.) Então se voltou para outra coisa, e para outra coisa, e para outra coisa. Ela acreditava na mudança como se fosse uma religião. Sente-se triste? Encontre um homem novo! Credores atrás de você, aluguel atrasado, crianças com febre? Mude-se para um novo apartamento! Durante um ano, eles se mudaram tanto que todos os dias depois da escola Macon tinha que ficar parado pensando um pouco antes de se pôr a caminho de casa.

Em 1950, ela decidiu se casar com um engenheiro que viajava pelo mundo construindo pontes. — Portugal. Panamá. Brasil — ela disse às crianças. — Finalmente vamos conhecer nosso planeta. Eles ficaram olhando para ela, imíveis. Se tinham encontrado esse

homem antes, não se lembravam dele. Alicia disse: — Vocês não estão animados? Mais tarde — talvez depois de tê-los levado para jantar fora — ela disse que ia mandá-los, em vez disso, morar com os avós. — Baltimore é mais apropriado para crianças, na verdade — ela disse. Eles protestaram? Macon não se lembrava. Lembrava-se de sua infância como um lugar envidraçado por onde adultos avam rapidamente, falando com ele, fazendo modificações, enquanto ele próprio ficava mudo. De todo modo, em certa noite quente de junho Alicia colocou-os num avião para Baltimore. Foram recebidos por seus avós, duas pessoas magras, vestidas com roupas escuras, severas e distintas. As crianças os aprovaram imediatamente. Depois disso, aram a ver Alicia só em raras ocasiões. Ela ava rapidamente pela cidade com um punhado de presentes insignificantes de países tropicais. Seus vestidos estampados pareciam vulgares às crianças; sua maquiagem era chamativa demais, como a de uma estrangeira. Ela parecia achar seus filhos cômicos — seus uniformes escolares em azul-marinho e branco, sua postura perfeita. — Meu Deus! Como vocês ficaram caretas! — ela exclamava, evidentemente esquecendo-se de que ela sempre os achara caretas. Dizia que eles tinham puxado ao pai. Eles percebiam que isso não era um elogio. (Quando perguntavam como tinha sido seu pai, ela abaixava os olhos para o próprio queixo e dizia, “Oh, Alicia, cresça.”) Mais tarde, quando seus filhos homens se casaram, ela parecia ver ainda mais semelhanças, pois vez ou outra desculpava-se junto às suas três noras por tudo o que elas tinham que ar. Como alguma fada maldosa e alegre, Macon imaginava, ela entrava em suas vidas e saía delas deixando um rastro de observações irresponsáveis, aparentemente nunca considerando que elas pudessem ser adas adiante. — Não sei como você pode ficar casada com esse homem — ela disse a Sarah. Ela própria já estava em seu quarto marido, um arquiteto que desenhava jardins de pedra e tinha um cavanhaque. Era verdade que as crianças no retrato não pareciam ser parentes dela. Não tinham seu colorido azul e dourado; seus cabelos eram de um tom acinzentado e seus olhos, de um cinza metálico. Todos eles tinham aquele sulco distinto do nariz até o lábio superior. E nunca, em um milhão de anos, Alicia teria uma expressão tão circunspecta e desconfiada. Desconfortavelmente parados com uma expressão arranjada, eles olhavam para o observador. Os dois garotos mais velhos, o roliço Charles e o bem-

arrumado Porter, empoleiravam-se um em cada braço da poltrona com camisas brancas e colarinhos abertos, largos e achatados. Rose e Macon estavam sentados usando macacões combinando. Rose parecia estar no colo de Macon, embora na verdade estivesse sentada entre os joelhos dele, e Macon tinha a tensão interna de alguém colocado numa situação de proximidade física a que não estava acostumado. Seu cabelo, como o dos outros, estava sedoso, atravessado em sua testa. Sua boca era fina, quase sem cor, e um pouco rígida, como se ele tivesse decidido tomar uma posição firme sobre alguma coisa. Ele olhou para o retrato, afastou o olhar, olhou de novo. Era a boca de Ethan. Macon ara 12 anos imaginando Ethan como uma espécie de estudante de intercâmbio, um visitante, e agora se dava conta de que ele fora um Leary o tempo todo. Que coisa peculiar de se reconhecer, com tanto atraso. Ele se sentou ereto e estendeu o braço para pegar sua calça, que Rose tinha encurtado na coxa esquerda e feito bainha com pontos pequeninos e regulares. Ninguém mais no mundo tinha a menor ideia de onde ele estava. Nem Julian nem Sarah, ninguém mais. Macon gostava de saber disso. Disse-o a Rose. — É bom estar desconectado — ele lhe falou. — Eu gostaria que as coisas pudessem ficar assim por algum tempo. — Por que não podem? — Oh, bem, você sabe, alguém vai ligar para cá, Sarah ou alguém... — Talvez nós pudéssemos simplesmente não atender o telefone. — O quê, deixá-lo ficar tocando? — Por que não? — Não atender nunca? — A maioria das pessoas que me ligam são os vizinhos — Rose disse. — Eles vão aparecer por aqui pessoalmente se ninguém atender. E você conhece os meninos: nenhum dos dois gosta de ter que lidar com telefones. — Isso é verdade — Macon disse. Julian viria bater à sua porta, planejando arengar por ele ter estourado o prazo final. Ele teria que desistir. Então Sarah viria tomar um pouco de sopa ou coisa do gênero, e se ele não atendesse, ela ia perguntar aos vizinhos, e eles diriam que ele não mostrava a cara havia algum tempo. Ela tentaria entrar em contato com a família dele, e o telefone ia tocar e tocar, e então ela começaria a se preocupar. O que aconteceu?, ela haveria de se perguntar. Como pude deixá-lo sozinho? Mais tarde, Macon notou que começava a ver Sarah como uma espécie de inimiga. Parou de sentir falta dela e começou a tramar o remorso que ela sentiria. Surpreendeu-o a rapidez com que fez a transição. Era a isso que se resumiam duas décadas de casamento? Ele gostava de imaginar suas declarações de culpa.

Compunha e recompunha seus pedidos de desculpas. Ele não tinha esse tipo de pensamento desde a infância, sonhando com o modo como sua mãe choraria em seu enterro. Durante o dia, trabalhando na mesa de jantar, ele ouvia o telefone e se interrompia, os dedos descansando nas teclas da máquina de escrever. Um toque, dois toques. Três toques. Rose entrava com uma jarra de substância para polir prata. Nem parecia ouvir. — E se for alguma espécie de emergência? — ele perguntava. Ela dizia: — Hmm? Quem poderia telefonar para nós numa emergência? — e então pegava os talheres de prata no bufê e os espalhava na outra ponta da mesa. Sempre houvera algum membro da família requerendo a atenção de Rose. Sua avó ficara confinada à cama durante anos antes de morrer, e então seu avô ficou senil, e primeiro Charles e depois Porter não tinham dado certo em seus casamentos e voltaram para casa. Então Rose tinha todo o direito de preencher seu tempo. Ou então o preenchia demais; pois é claro que não seria necessário polir cada peça de prata a cada semana. Fechado em casa com ela o dia inteiro, Macon notou com que esmero ela organizava os cardápios; com que frequência ela reorganizava a gaveta de utensílios; como ela ava a ferro até mesmo as meias dos irmãos, primeiro separando-as das espertas presilhas de plástico que usava para mantê-las casadas na máquina de lavar roupa. Para o almoço de Macon ela preparava uma refeição de verdade e a servia em jogos americanos comuns. Colocava travessas de cristal com picles e azeitonas que tinham que ser postos de volta em suas jarras depois. Colocava maionese feita em casa numa pequena tigela. Macon se perguntava se alguma vez ocorrera a ela que vivia uma vida esquisita — desempregada, solteira, sustentada pelos irmãos. Mas para que emprego ela serviria?, ele se perguntava. Embora pudesse imaginá-la, agora que pensava nisso, como o pilar de alguma antiga e rançosa firma de advocacia ou de contabilidade. Oficialmente uma secretária, ela na verdade mandaria no negócio como um todo, arrumando tudo na mesa do patrão a cada manhã e não permitindo que ninguém abaixo ou acima dela se descuidasse de um único detalhe que fosse. Macon gostaria de ter uma secretária assim. Lembrando-se da ruiva mascando chicletes no caótico escritório de Julian, ele suspirou e desejou que o mundo tivesse mais Roses. Ele puxou uma folha da sua máquina de escrever e colocou-a voltada para baixo numa pilha de outras folhas. Tinha terminado a introdução — instruções gerais como O metrô não é um trem subterrâneo e Não diga banheiro, diga

toalete — e o capítulo chamado “Tentando comer na Inglaterra”. Rose os havia enviado pelo correio na véspera. Esse era seu novo estratagema: enviar o livro parte por parte daquela localidade não especificada. — Isto está sem o endereço do remetente — Rose disse a ele. — Não é para ter — Macon disse. Rose fizera que sim de modo solene. Ela era a única da família que via os guias dele como escrita de verdade. Tinha uma fileira deles na estante de livros de seu quarto, organizados alfabeticamente por país. No meio da tarde, Rose parava de trabalhar para assistir à sua novela favorita. Era algo que Macon não entendia. Como ela podia perder tempo com um lixo daqueles? Ela dizia que era porque havia uma mulher espetacularmente má na novela. — Há gente má o suficiente no mundo — Macon disse a ela. — Sim, mas não espetacularmente má. — Bem, isso é certo. — Esta aqui, sabe, é tão óbvia. Você sabe exatamente de quem desconfiar. Enquanto ela assistia, falava em voz alta com os personagens. Macon podia ouvi-la da sala de jantar. “Não é de você que ele está atrás, queridinha”, ela dizia, e “Espere só. Há!” — não era em absoluto seu estilo habitual de fala. Um comercial interrompeu, mas Rose permaneceu paralisada ali onde estava. Macon, enquanto isso, trabalhava em “Tentando dormir na Inglaterra”, datilografando num ritmo obstinado e desinteressante. Quando a campainha soou, Rose não atendeu. Edward ficou maluco, latindo, arranhando a porta e correndo de volta até Macon e até a porta outra vez. — Rose? — Macon chamou. Ela não disse nada. Por fim ele se levantou, equilibrou-se nas muletas e foi o mais silenciosamente possível até o hall. Bem, não era Sarah. Uma olhada através da cortina de renda já lhe revelava isso. Ele abriu a porta e espiou lá fora. — Sim? — ele disse. Era Garner Bolt, um vizinho seu — um homenzinho esquelético e cinzento que fizera fortuna com artigos de limpeza. Quando viu Macon, todas as linhas de seu rosto vivo e pontudo se viraram para cima. — Aí está você! — ele disse. Era difícil escutá-lo por cima do barulho que Edward fazia, latindo freneticamente. — Ora, Garner — Macon disse. — Estávamos com medo de que você tivesse morrido. — Estavam?

Macon tentou pegar a coleira de Edward, mas não conseguiu. — Vimos o jornal se empilhando no seu gramado, correspondência na sua porta, não sabíamos o que pensar. — Bem, eu pretendia mandar minha irmã ir buscar essas coisas — Macon disse. — Quebrei a perna, como vê. — Ora, como foi que você fez isso? — É uma longa história. Ele desistiu de bloquear a porta. — Entre — disse a Garner. Garner tirou o boné, que tinha o logotipo das tintas Sherwin-Williams na frente. Seu paletó era parte de algum terno antigo, um marrom usado e lustroso, e seu macacão estava desbotado nos joelhos. Ele entrou, contornando o cachorro, e fechou a porta em seguida. Os latidos de Edward se transformaram num choramingo. — Meu carro está cheio de correspondência sua — Garner disse. — Brenda falou que eu devia trazê-la à sua irmã e perguntar se ela sabia onde você estava. Também prometi à sua amiga. — Que amiga? — Aquela moça de calça ciclista. — Não conheço nenhuma moça de calça ciclista — Macon disse. Ele nem mesmo sabia que calças ciclista ainda existiam. — Eu a vi parada na sua varanda, mexendo na maçaneta. Chamando “Macon, você está aí?” Uma mocinha magrela com aquele cabelão. Parecia ter uns 20 e poucos anos. — Bem, não posso imaginar quem seria. — Apertando os olhos e fazendo sombra neles. — Quem poderia ser? — Descendo os degraus da varanda com seus saltos muito altos e pontudos. — A moça dos cachorros — Macon disse. — Jesus. — Meio novinha, não é, não? — Eu nem sequer a conheço! — Dando a volta pela casa e chamando “Macon? Macon?” — Nós mal nos encontramos! — Foi ela quem me falou sobre a janela. — Janela? — A janela do porão, que estava toda quebrada. O outono chega e vai ligar o seu aquecimento. Gasta uma energia danada. — Oh. Sim. Suponho que sim — Macon disse. — Pensamos que você podia ter sido assaltado ou coisa do tipo.

Macon foi na frente para a sala de jantar. — Veja, o que aconteceu — ele disse — foi que eu quebrei a perna e vim morar com a minha família até conseguir me virar sozinho de novo. — Mas não vimos ambulância nem nada desse tipo. — Bem, eu telefonei para a minha irmã. — Sua irmã é médica? — Só foi me buscar e me levar para o pronto-socorro. — Quando Brenda quebrou o quadril num degrau que estava faltando — Garner disse —, ela chamou a ambulância. — Bem, eu chamei a minha irmã. Eles pareciam ter chegado a um ime. — Acho que preciso avisar a agência dos correios sobre minha correspondência — Macon disse, por fim. Ele se recostou em sua cadeira. Garner puxou uma outra cadeira e se sentou com o boné nas mãos. Disse: — Eu podia continuar trazendo. — Não, vou mandar Rose avisar. Deus, todas essas contas devem estar chegando atrasadas, e tudo mais... — Eu podia trazer, seria tão fácil. — Obrigado, de todo modo. — Por que eu não trago? — Para dizer a verdade — Macon falou —, não tenho certeza de que eu vá voltar para lá. Isso não lhe ocorrera antes. Ele juntou as muletas delicadamente, como um par de pauzinhos iguais aos que os orientais usam para comer, e colocou-as no chão do lado de sua cadeira. — Talvez eu fique aqui com a minha família — ele disse. — E abandonar aquela bela casinha? — É meio grande para uma pessoa só. Garner franziu as sobrancelhas para o boné. Colocou-o na cabeça, mudou de ideia e tirou-o novamente. — Olhe — ele disse. — Quando eu e Brenda éramos recém-casados, nós éramos péssimos juntos. Simplesmente péssimos. Se um dos dois não conseguisse ar o outro, não sei como o casamento teria durado. — Mas nós não somos recém-casados — Macon disse. — Ficamos casados por vinte anos. — Brenda e eu praticamente não falamos um com o outro durante todo o ano de 1935 — Garner disse. — De janeiro a agosto, 1935. Desde o ano-novo até minhas férias de verão. Nem uma única palavra. Isso chamou a atenção de Macon.

— O quê? — ele disse —, nem mesmo “e o sal”? “Abra a janela”? — Nem mesmo isso. — Ora, como vocês faziam em sua vida cotidiana? — Na maior parte do tempo ela ficou na casa da irmã. — Ah, então foi assim. — Na manhã em que as minhas férias começaram, eu me sentia tão infeliz que tinha vontade de morrer. Pensei comigo mesmo, “O que é que eu estou fazendo, afinal?” Dei um telefonema interurbano para Ocean City e reservei um quarto para duas pessoas. Naqueles tempos, interurbano era um negócio difícil, vou te dizer. Precisava de todas aquelas telefonistas e tudo mais e custava uma nota. Então fiz a mala com algumas roupas para mim e algumas roupas para Brenda e fui até a casa da irmã dela. A irmã disse: “O que você quer?” Ela era do tipo que gostava de ver uma desavença. ei por ela, ignorandoa. Achei Brenda na sala de estar, remendando meias. Abri minha mala. “Olhe aqui. Seu vestido de verão para jantar num restaurante de frutos do mar”, eu disse a ela. “Dois shorts. Duas blusas. Seu maiô.” Ela nem olhou para mim. “Seu roupão”, eu disse. “A camisola que você usou na nossa lua de mel.” Ela agia como se eu nem estivesse ali. “Brenda”, eu disse a ela. Falei, “Brenda, estou com 19 anos e não vou ter 19 anos outra vez. Não vou estar vivo outra vez. Veja, esta é a única vida que eu tenho para viver, Brenda, até onde eu sei, e ei esse tempão sentado sozinho num apartamento vazio, orgulhoso demais para tentar fazer as pazes, com medo de que você fosse dizer que não, mas mesmo que você diga não, isso não pode ser pior do que tenho no momento. Sou o homem mais solitário do mundo, Brenda, então por favor venha para Ocean City comigo”. E Brenda largou a costura e disse: “Bem, já que você está me pedindo, mas me parece que você esqueceu minha touca de banho.” E lá fomos nós. Ele se recostou triunfante em sua cadeira. — Então — ele disse. — Então — Macon disse. — Então você entende o que estou querendo dizer. — O quê? — Você tem que fazer com que ela saiba que você precisa dela. — Olhe, Garner, acho que já ultraamos pequenas coisas como fazer com que ela saiba que eu... — Não leve isso ao nível pessoal, Macon, mas tenho que ser franco: há momentos em que você foi meio frustrante. Não estou falando de mim mesmo, veja bem; eu entendo. É só que outras pessoas na vizinhança ficaram meio

desconcertadas. Por exemplo, durante sua tragédia. Isto é, as pessoas gostam de oferecer ajuda em ocasiões como essas, mandar flores e ir ao velório e trazer comida depois do enterro. Só que vocês nem mesmo fizeram um enterro. Fizeram uma cremação, meu Deus, em algum lugar lá na Virginia sem dizer uma palavra a ninguém e voltaram diretamente para casa. Peg Everett diz a vocês que vai orar por vocês e Sarah diz: “Oh, Deus te abençoe, Peg”, mas o que você diz? Você pergunta a Peg se o filho dela gostaria de ficar com a bicicleta de Ethan. Macon deu um gemido. — É — ele disse —, eu nunca sei como agir nessas situações. — E depois você vai aparar a grama como se nada tivesse acontecido. — A grama continuou crescendo, Garner. — Todo mundo estava morrendo de vontade de fazer isso por você. — Bem, obrigado — Macon disse —, mas eu gostava do trabalho. — Está vendo o que eu quero dizer? Macon disse. — Espere. Só para colocar um pouco de lógica nesta discussão... — É exatamente o que estou querendo dizer! — Você começou falando de Sarah. E mudou de assunto para falar do quanto eu desaponto os vizinhos. — Qual a diferença? Você talvez não saiba disso, Macon, mas você sempre se apresenta como uma pessoa que faz as coisas à sua própria maneira. Olhe só para o modo como você anda! O modo como você avança, trota pela rua com a cabeça na frente do corpo. Se um sujeito quer parar você e, sei lá, oferecer suas condolências, ele corre o risco de ser atropelado. Eu sei que você se importa, e você sabe que você se importa, mas o que parece aos olhos dos outros? Eu te pergunto! Não me ira que ela tenha ido embora. — Garner, eu agradeço por você se preocupar com isso — Macon disse —, mas Sarah sabe perfeitamente bem que eu me importo. Não sou tão mudo quanto você gosta de dizer que sou. E esta também não é uma daquelas situações indefinidas, estilo será-que-este-casamento-pode-ser-salvo. Veja, você está completamente enganado, Garner. — Bem — Garner disse. Ele abaixou os olhos para o boné, e depois de um momento enfiou-o abruptamente na cabeça. — Acho que vou buscar sua correspondência, então — ele disse. — Certo. Obrigado. Garner se pôs de pé e saiu arrastando os pés. Sua saída alertou Edward, que começou a latir outra vez. Houve um momento vazio em que Macon ficou olhando para o seu gesso e escutando a novela que vinha da sala de estar.

Enquanto isso, Edward choramingava junto à porta e andava de um lado a outro, as unhas fazendo um ruído sobre o chão. Então Garner voltou. — Catálogos, em sua maioria — ele disse, lançando a pilha sobre a mesa. Ele trazia consigo o cheiro de ar fresco e folhas secas. — Brenda disse que nós não devíamos nos preocupar com os jornais; era só jogar fora. — Oh, sim, é claro — Macon disse. Levantou-se e eles apertaram as mãos. Os dedos de Garner eram firmes e com um formato intrincado, como papel amassado. — Obrigado por ter vindo — Macon disse a ele. — Sempre que precisar — Garner respondeu, desviando o olhar. Macon disse: — Eu não quis dizer, você sabe... espero que não tenha parecido estar com o pavio curto. — Que nada — Garner respondeu. Levantou o braço e deixou-o cair. — Bobagem. Não pense mais nisso — e então se virou para ir embora. Assim que ele fez isso, Macon pensou num monte de outras coisas que devia ter mencionado. Não era tudo culpa sua, ele queria dizer. Sarah tinha uma certa responsabilidade também. O que Sarah precisava era de uma rocha, ele queria dizer; alguém que não fosse desabar. De outro modo, por que ela o escolhera para se casar? Mas ele manteve a calma e observou Garner sair. Havia algo digno de pena nas duas cordas pronunciadas que corriam pela nuca de Garner, criando um pequeno fosso de pele marrom enrugada entre si. Quando seus irmãos chegaram do trabalho, a casa assumiu uma atmosfera relaxada e calma. Rose puxou as cortinas da sala de estar e acendeu alguns abajures fracos. Charles e Porter vestiram suéteres. Macon começou a preparar seu molho especial para salada. Ele achava que se você pulverizasse os temperos primeiro num pilão, fazia toda a diferença. Os outros concordavam que não havia quem fizesse um molho tão bom quanto o de Macon. — Desde que você foi embora — Charles disse a ele —, tivemos que comprar aquela coisa engarrafada no supermercado — pelo jeito como ele falava, parecia que Macon tinha ido embora umas poucas semanas antes, que todo seu casamento tivesse sido apenas uma rápida viagem para algum outro lugar. No jantar comeram o assado de Rose, uma salada com o molho de Macon e batatas assadas. Batatas assadas sempre tinham sido o prato favorito deles. Tinham aprendido a prepará-las quando ainda eram crianças, e mesmo quando já eram grandes o bastante para fazer uma refeição equilibrada, eles sobreviviam unicamente à base de batatas assadas sempre que Alicia os deixava por conta

própria. Havia algo de reconfortante no cheiro de uma batata Idaho sendo assada, e, bem, conservador, era o que Macon dizia a si mesmo. Ele recuava na memória ando por anos de noites de inverno: as janelas da cozinha negras do lado de fora, os cantos acolchoados com as sombras que se reuniam, os quatro sentados na mesa de esmalte lascado cobrindo meticulosamente com manteiga as cascas de batata escavadas. Você deixava a manteiga derreter nas cascas enquanto amassava e temperava o interior farinhento; as cascas eram deixadas para o fim. Era quase um ritual. Ele se lembrava que uma vez, durante uma das ausências mais longas de sua mãe, a amiga dela, Eliza, preparara para eles o que chamava de barcos de batata — recheados, nem um pouco parecidos com o artigo genuíno. As crianças, com expressões incomodadas e rabugentas, tinham retirado o recheio e procedido do modo habitual com as cascas, fingindo não reparar no erro dela. As cascas tinham que ser crocantes. Não deviam estar salgadas. A pimenta devia ser moída na hora. Páprica era aceitável, mas só se fosse americana. A páprica húngara tinha um gosto peculiar demais. Pessoalmente, Macon não fazia questão nenhuma de páprica. Enquanto comiam, Porter discutia o que fazer com seus filhos. A noite seguinte era sua noite semanal de visita, quando ele ia de carro até Washington, onde seus filhos moravam com a mãe. — O problema com tudo isso — ele falou — é que comer em restaurantes é artificial. Não parece comida de verdade. E de todo modo os três têm gostos diferentes. Sempre discutem sobre aonde ir. Alguém está de dieta, alguém se tornou vegetariano, alguém não a comida que faz barulho ao ser mastigada. E eu acabo gritando: “Oh, pelo amor de Deus, nós vamos a tal lugar e pronto!” Então nós vamos e todo mundo fica de mau humor durante a refeição inteira. — Talvez você devesse simplesmente não visitá-los — Charles disse, com sensatez. (Ele próprio nunca tivera filhos.) — Bem, é claro que eu quero visitálos, Charles. Só gostaria que fizéssemos algum programa diferente. Sabem o que seria ideal? Que pudéssemos todos fazer alguma coisa com ferramentas, juntos. Isto é, como nos velhos tempos antes do divórcio, quando Danny me ajudava a drenar o aquecedor de água ou Susan se sentava numa tábua que eu estivesse serrando. Se eu pudesse apenas ar na casa deles, digamos, e June e o marido pudessem ir ao cinema ou coisa assim, então as crianças e eu limparíamos as calhas, colocaríamos tiras de borracha para calafetar as janelas, envolveríamos os canos de água quente... Bem, aquele marido dela não presta para nada, podem apostar que ele deixa os canos de água quente sem qualquer proteção. Eu poderia até levar minhas próprias ferramentas. íamos nos divertir muito! Susan podia preparar chocolate quente. Então, no fim da noite eu guardaria

minhas ferramentas e iria embora, deixando a casa toda consertada. Ora, June deveria se agarrar a essa oportunidade. — Então por que não sugere? — Macon disse. — Que nada. Ela não ia querer. Ela é muito pouco prática. Eu lhe disse na semana ada: “Você sabia que o degrau da varanda da frente está solto? Saindo dos pregos todas as vezes que você pisa nele da maneira errada.” Ela disse: “Oh, meu Deus, sim, ele é desse jeito”, como se a Providência o tivesse decretado. Como se nada pudesse ser feito a respeito. Eles têm folhas do inverno ado nas calhas, mas folhas são naturais, afinal de contas; por que ir contra a natureza. Ela é tão pouco prática. O próprio Porter era o homem mais prático que Macon já conhecera. Era o único Leary que entendia de dinheiro. Seu talento com o dinheiro era o que mantinha a empresa da família estável — mesmo que no limite. Não era um negócio muito lucrativo. O avô Leary fundara-a no começo do século como uma fábrica de utensílios de folha de flandres, depois mudou para tampas de garrafa em 1915. O Rei das Tampas de Garrafa, era como ele se chamava, e como foi chamado em seu obituário, mas na verdade a maioria das tampas era manufaturada pela Crown Cork e sempre havia sido; o avô Leary estava num distante segundo ou terceiro lugar. Seu único filho, o Príncipe das Tampas de Garrafa, mal assumira seu lugar na empresa quando se demitiu para ir como voluntário à Segunda Guerra Mundial — um entusiasmo que se revelou bem mais prejudicial do que qualquer um dos de Alicia. Depois que ele foi morto, os negócios seguiram em frente aos trancos, sem jamais dar certo de verdade e sem jamais fracassar por completo, até que Porter chegou, vindo diretamente da faculdade, e assumiu o controle do dinheiro. Dinheiro para Porter era algo quase químico — uma substância volátil que reagia de várias formas interessantes quando combinada a outras substâncias. Ele não era o que você poderia chamar de mercenário; não queria o dinheiro pelo dinheiro, mas por suas possibilidades intrigantes, e na verdade quando sua mulher pediu o divórcio, ele lhe deu a maior parte de suas posses sem uma palavra de reclamação. Era Porter quem dirigia a empresa, bombeando nela dinheiro e ideias. Charles, mais mecânico, lidava com a linha de produção. Macon tinha feito um pouco de tudo quando trabalhava lá, e definhara de tédio, pois não havia, na verdade, trabalho suficiente para ocupar um terceiro homem. Era só em nome da harmonia que Porter vivia lhe dizendo para voltar. — Vou lhe dizer uma coisa, Macon — ele falou, agora —, por que você não vem conosco amanhã e dá uma olhada no seu velho território? — Não, obrigado — Macon disse a ele. — Tem bastante espaço para as suas muletas na traseira do carro.

— Talvez num outro momento. Eles acompanharam Rose enquanto ela lavava os pratos. Ela não gostava que eles ajudassem porque tinha seu próprio método, dizia. Movia-se silenciosamente pela cozinha antiquada, guardando de volta os pratos nos altos armários de madeira. Charles levou o cachorro lá fora; Macon não conseguia usar suas muletas no quintal de chão irregular. E Porter puxou as cortinas da cozinha, ando um sermão em Rose enquanto isso sobre como as superfícies brancas refletiam o calor de volta ao cômodo agora que as noites estavam mais frias. Rose disse: — Sim, Porter, eu sei de tudo isso — e ergueu a saladeira junto da luz, examinando a salada durante um instante antes de jogá-la fora. Eles assistiram ao noticiário, zelosamente, e depois foram para o solário e se sentaram à mesa de jogos de seus avós. Jogaram uma coisa chamada Vacinação — um jogo de cartas que tinham inventado quando eram crianças, e que se tornara tão intrincado ao longo dos anos que ninguém mais tinha paciência para aprender. Na verdade, mais de um forasteiro os acusara de alterar as regras para adequá-las às circunstâncias. — Ora, espere um minuto — Sarah dissera, quando ainda tinha esperanças de entender o jogo. — Pensei que vocês tinham dito que os ases valiam mais. — E valem. — Então isso significa que... — Mas não quando são comprados da mesa. — Ahá! Então por que aquele que Rose comprou valeu mais? — Bem, ela comprou-o depois de um dois, Sarah. — Ases comprados depois de um dois valem mais? — Não, ases comprados depois de um número que foi comprado duas vezes seguidas antes disso. Sarah fechara o seu leque de cartas e colocara-o na mesa, virado para baixo — a última das esposas a desistir. Macon estava de quarentena e teve que doar todas as suas cartas a Rose. Rose puxou a cadeira para junto dele e jogou com seus pontos enquanto ele se recostava na cadeira, coçando a gata atrás das orelhas. À sua frente, nos pequeninos e escuros vidros da janela, via seus reflexos — com olhos ocos e ossos do rosto proeminentes, versões mais interessantes de si mesmos. O telefone na sala de estar deu um pequeno guincho e depois, um toque completo. Ninguém pareceu notar. Rose colocou um rei sobre a dama de Porter e Porter disse: — Desgraçada. O telefone tocava sem parar. No meio do quarto toque, se calou. — Hipodérmico — Rose disse a Porter, e colocou um ás sobre o rei. — Você é uma desgraçada, Rose.

No retrato na parede, as crianças Leary fitavam o observador com seus olhos velados. Ocorreu a Macon que estavam sentados mais ou menos nas mesmas posições ali, naquela noite: Charles e Porter um de cada lado seu, Rose no primeiro plano. Teria havido alguma mudança real? Ele sentiu o choque de algo bem próximo do pânico. Ele ainda estava ali! O mesmo de sempre! Aonde é que eu fui e o que eu fiz?, ele se perguntou, engoliu com dificuldade e olhou para suas próprias mãos vazias.

6 — Socorro! Socorro! Chame o seu cão! Macon parou de datilografar e levantou a cabeça. A voz vinha de algum lugar lá na frente, elevando-se sobre uma série de latidos agudos e excitados. Mas Edward tinha saído para andar com Porter. Devia ser algum outro cachorro. — Chame-o, droga! Macon se levantou, apoiando-se nas muletas, e se arrastou até a janela. Era Edward, com certeza. Parecia ter feito alguém trepar na magnólia gigante à direita da calçada. Ele latia tanto que quicava do chão numa horizontal perfeita, todas as quatro patas ao mesmo tempo, como um daqueles brinquedos que pulam quando se aperta uma bomba de borracha. — Edward! Pare com isso! — Macon gritou. Edward não parou. Talvez não tivesse nem escutado. Macon saiu aos tropeços até o vestíbulo, abriu a porta da frente e disse: — Venha aqui neste instante! Edward nem mesmo interrompeu os latidos. Era uma manhã de sábado no início de outubro, de um cinza claro e fresca. Macon sentiu o frio entrando pela perna cortada de sua calça quando atravessou a varanda. Quando largou uma das muletas e segurou o corrimão de ferro para descer os degraus, notou que o metal estava coberto de umidade. Foi pulando num pé só até a magnólia, se abaixou precariamente e agarrou a coleira que Edward estava arrastando. Sem muito esforço, enrolou-a; Edward já estava perdendo o interesse. Macon espiou o interior escuro da magnólia. — Quem é? — ele perguntou. — É seu chefe, Macon. — Julian? Julian desceu de um dos galhos fracos e escarrapachados da magnólia. Tinha uma linha de terra na parte da frente de sua calça esporte. Seu cabelo louro, quase branco, normalmente tão arrumado que o deixava parecendo o personagem de um anúncio de camisas, espichado em vários ângulos. — Macon — ele disse —, eu realmente odeio um homem com um cachorro irritante. Não odeio só o cachorro, odeio o homem que é dono dele. — Bem, eu sinto muito. Achei que ele tinha ido ear. — Você manda ele ear sozinho? — Não, não...

— Um cachorro que faz caminhadas solitárias — Julian disse. — Só Macon Leary teria um — ele sacudiu as folhas de seu blazer de camurça. Depois disse: — O que aconteceu com a sua perna? — Quebrei. — Bem, isso se vê, mas como? — É meio difícil de explicar — Macon disse a ele. Encaminharam-se para a casa, com Edward trotando obediente ao lado. Julian amparou Macon quando subiram os degraus. Era um homem de porte atlético com um estilo informal, relaxado — um iatista. Você podia dizer que ele era iatista pelo nariz, que estava descascando mesmo àquela época do ano. Ninguém tão ostensivamente louro, com o rosto tão intensamente corado, devia se expor a queimaduras de sol, Macon sempre dizia a ele. Mas esse era Julian: um imprudente. Iatista arrojado, motorista veloz, frequentador de bares para solteiros, ele era o tipo de homem que faria uma compra sem consultar o Guia do Consumidor. Nunca parecia ter um momento de falta de autoconfiança e entrava na casa agora tão lampeiro como se tivesse sido convidado, primeiro pegando a outra muleta de Macon e depois segurando a porta e fazendo um sinal para ele entrar. — E aliás como foi que você me encontrou? — Por que, você está se escondendo? — Não, é claro que não. Julian inspecionou o hall de entrada, que imediatamente pareceu a Macon algo desalinhado. A cúpula de cetim na mesa tinha dezenas de compridos rasgões verticais; parecia estar apodrecendo sobre sua estrutura. — Seu vizinho me disse onde você estava — Julian falou, por fim. — Oh, Garner. — ei na sua casa, já que não conseguia encontrá-lo por telefone. Você sabe como está atrasado com esse guia? — Bem, você pode ver que sofri um acidente — Macon disse. — Todo mundo está com o trabalho interrompido, esperando o original. Eu fico prometendo que vai chegar, mas... — A qualquer momento — Macon disse. — Hã? — Vai chegar a qualquer momento. — Sim, e tudo o que vi até aqui foram dois capítulos enviados pelo correio sem qualquer explicação. Julian foi andando na frente para a sala de estar enquanto falava. Escolheu a cadeira mais confortável e se sentou. — Onde está Sarah? — ele perguntou.

— Quem? — Sua mulher, Macon. — Ah. Hm, eu e ela estamos... Macon devia ter ensaiado dizer aquilo em voz alta. A palavra “separados” era direta demais; era algo que acontecia com outras pessoas. Ele foi até o sofá e ficou um bom tempo se acomodando e ajeitando as muletas ao seu lado. Depois disse: — Ela arranjou um apartamento no centro da cidade. — O casamento acabou? Macon fez que sim. — Jesus. Edward meteu o focinho autoritário na palma da mão de Macon, exigindo carinho. Macon se sentiu grato por ter algo para fazer. — Ora, Jesus, Macon, o que deu errado? — Julian perguntou. — Nada! — Macon disse a ele. Sua voz estava um pouco alta demais. Ele a abaixou. — Isto é, não é nada que eu possa responder — ele disse. — Oh, desculpe. — Não, isto é... não há resposta. Na verdade essas coisas acontecem sem um motivo particular. — Bem, vocês aram por um bocado de tensão, vocês dois — Julian disse. — Puxa, o que aconteceu, e tudo mais... Ela vai voltar, assim que superar isso. Ou não superar, é claro, mas você sabe... — Talvez — Macon disse. Ele se sentia embaraçado por Julian, que ficava sacudindo um de seus Docksiders. Disse: — O que você achou daqueles dois primeiros capítulos? Julian abriu a boca para responder, mas foi interrompido pelo cachorro. Edward tinha saído correndo até o vestíbulo e estava latindo furiosamente. Houve um ruído metálico que Macon reconheceu como a porta da frente se abrindo e acertando o radiador. — Shh — ele ouviu Rose dizer a Edward. Ela atravessou o vestíbulo e olhou para a sala de estar. Julian se levantou. Macon disse: — Julian Edge, esta é minha irmã, Rose. E este — ele disse, quando Charles apareceu atrás dela — é meu irmão Charles. Nem Rose nem Charles podiam cumprimentá-lo com um aperto de mão; estavam carregando as compras. Ficaram parados no meio da sala, segurando sacolas de papel pardo, enquanto Julian começou a encenar o que considerava seu número Macon Leary. — Macon Leary com uma irmã! E um irmão também! Quem teria imaginado? Macon Leary ter uma família foi algo que nunca me ou pela

cabeça, de modo algum. Rose abriu um sorriso educado e confuso. Não estava com a melhor das aparências. Usava um casaco preto longo que tirava toda a cor de seu rosto. E Charles, amarrotado e sem fôlego, estava tendo problemas com uma das sacolas. Ficava tentando segurá-la melhor. — Deixe-me ajudá-lo — Julian disse. Pegou a sacola e espiou lá dentro. Macon estava com medo de que ele pegasse alguma tangente sobre as compras de Macon Leary, mas ele não fez isso. Disse a Rose: — Sim, estou vendo uma semelhança familiar. — Você é o editor de Macon — Rose disse. — Lembro-me da etiqueta do endereço. — Etiqueta do endereço? — Fui eu quem enviou a você os capítulos de Macon. — Oh, sim. — Tenho que te mandar mais alguns, mas primeiro preciso comprar envelopes 22 x 30. Tudo o que restou foram os 25 x 33. É terrível quando as coisas não se ajustam direito. Ficam todas desalinhadas. — Ah — Julian disse. Olhou para ela por um momento. Macon interveio: — Não queremos atrapalhar vocês, Rose. — Ah! Não — ela disse. Sorriu para Julian, ergueu as compras mais no alto e saiu da sala. Charles pegou a sacola com Julian e foi se arrastando atrás dela. — A Crise de Envelopes 22 x 30 de Macon Leary! — Julian comentou, sentando outra vez. Macon disse: — Oh, Julian, pare com isso. — Desculpe — Julian disse, parecendo surpreso. Houve uma pausa. Então Julian quebrou o silêncio: — Eu realmente não fazia a menor ideia, Macon. Isto é, se você tivesse me contado o que andava acontecendo na sua vida... Ele sacudia um Docksider de novo. Sempre parecia desconfortável quando não podia encenar seu número Macon Leary. Depois da morte de Ethan ele evitara Macon durante semanas; mandara um buquê do tamanho de uma árvore para a casa dele, mas nunca mais mencionara o nome de Ethan. — Olhe — ele disse, agora. — Se você quiser mais um, não sei, mais um mês... Macon respondeu: — Ah, bobagem, que falta faz uma esposa ou duas, certo? Ha, ha! Olhe, deixe-me pegar o que já datilografei e você confere.

— Bem, se você diz. — Depois disso há apenas a conclusão — Macon completou. Ele falava por cima do ombro enquanto se encaminhava à sala de jantar, onde seu mais recente capítulo estava empilhado sobre o bufê. — A conclusão não é nada, vai ser mole. Vou copiar da antiga, basicamente. Ele regressou com o original e o entregou a Julian. Então se sentou de novo no sofá, e Julian começou a ler. Enquanto isso, Macon ouviu Porter entrar pelos fundos, onde foi saudado por latidos explosivos de Edward. — Monstro — Porter disse. — Sabe quanto tempo faz que estou te procurando? O telefone começou a tocar sem parar, e ninguém atendia. Julian olhou para Macon e levantou as sobrancelhas, mas não fez qualquer comentário.

Macon e Julian tinham se conhecido uns 12 anos antes, quando Macon ainda estava na fábrica de tampas de garrafa. Ele andara procurando outras ocupações à época. Começara a achar que talvez fosse gostar de trabalhar para um jornal. Mas não tinha treinamento algum, nem sequer um curso de jornalismo. Então começou da única maneira em que conseguia pensar: submeteu um artigo em caráter freelance a um semanário da vizinhança. Seu tema era uma feira de artesanato em Washington. Chegar até lá é difícil, porque a estrada é tão vazia que você começa a se sentir perdido e triste. E uma vez chegando, é pior. As ruas não são como as nossas e nem mesmo foram traçadas em ângulos retos. Ele seguiu em frente para avaliar a comida que tinha experimentado numa barraca do lado de fora, mas descobriu que continha um tempero com o qual não estava acostumado, algo meio frio e amarelo que eu quase poderia descrever como sendo estrangeiro, e optou por um cachorro-quente de um vendedor do outro lado da rua que nem mesmo fazia parte da feira. O cachorro-quente eu posso recomendar, ele escreveu, embora tenha me deixado um pouco triste porque Sarah, minha esposa, usa o mesmo molho de chili e lembrei de casa no instante em que senti aquele cheiro. Ele também recomendou as colchas de patchwork, que tinham um padrão de raios como a coberta no quarto de sua avó. Sugeriu que os leitores não fossem embora da feira depois das 15h11min30, já que você vai dirigir para Baltimore ando pelo Lexington Market e vai querer comprar caranguejos antes que

feche. Seu artigo foi publicado sob o título de Feira de artesanato encanta e instrui. Havia um subtítulo logo abaixo. Ou, ele leu, sinto-me tão confuso, quero voltar para casa. Até ver esse subtítulo, Macon não se dera conta do tom do artigo. Então se sentiu tolo. Mas Julian Edge achou que era perfeito. E lhe telefonou. — Você é o cara que escreveu aquela história do cachorro-quente no Watchbird? — Bem, sim. — Há! — Bem, não vejo o que seja tão engraçado — Macon disse, friamente. — Quem disse que era engraçado? É perfeito. Tenho uma proposta para você. Eles se encontraram no restaurante Old Bay, onde os avós de Macon costumavam levar as quatro crianças em seus aniversários. — Eu pessoalmente garanto a sopa de siri — Macon disse. — Eles não a mudaram em nada desde que eu tinha 9 anos. Julian disse “Há!” outra vez e se balançou para trás na cadeira. Usava uma camisa polo e calça branca de algodão, e seu nariz tinha uma leve sombra rosada. Era verão, ou talvez primavera. De qualquer modo, seu barco estava na ativa. — Bem, este é o meu plano — ele disse, durante a sopa. — Tenho essa pequena empresa chamada Editora dos Homens de Negócios. Ora, pequena: digo pequena. Na verdade vendemos de costa a costa. Nada de luxuoso, mas útil, sabe? Blocos para anotar compromissos, livrinhos para anotar as despesas, gráficos de juros compostos, rodas para conversão de moedas... E agora quero publicar um guia para quem viaja a trabalho. Só os Estados Unidos, para começar; talvez outros países mais tarde. Podíamos dar um nome atraente, não sei: O turista relutante... e você seria o cara que iria escrevê-lo. — Eu? — Eu soube no instante em que li seu artigo sobre o cachorro-quente. — Mas eu detesto viajar. — Eu já imaginava — Julian disse. — Os homens de negócios também. Veja, esses caras não ficam andando pelo país por diversão, Macon. Preferiam estar na sala de casa. Então você vai ajudá-los a fingir que é onde estão. Em seguida ele puxou do bolso da camisa um quadrado de papel e disse: — O que você acha? Era uma gravura em metal de uma poltrona acolchoada. Presas à poltrona estavam asas gigantes, de penas, como as que você vê em serafins das Bíblias

antigas. Macon piscou os olhos. — Seu logotipo — Julian explicou. — Entendeu? — Hm... — Enquanto turistas televisivos sonham, de suas poltronas, em ir aos lugares — Julian disse —, poltronas viajantes sonham em ficar paradas. Achei que podíamos usar isso na capa. — Ah! — Macon disse, animado. Depois falou: — Mas eu teria de viajar, eu mesmo? — Bem, sim. — Oh. — Mas só por pouco tempo. Não estou em busca de nada enciclopédico, estou em busca do oposto do enciclopédico. E pense no pagamento. — Dá dinheiro? — Dá uma nota. Bem, não era uma nota, exatamente. Mas ainda assim dava para uma vida confortável. Vendia muito em bancas de aeroportos, estações de trem e lojas de produtos de escritório. Seu guia da França vendeu ainda mais. Era parte de uma grande promoção feita por uma agência internacional de aluguel de veículos, colocado numa mesma embalagem com O livro de frases do homem de negócios estrangeiro, que dava versões em alemão, francês e espanhol para “Prevemos um crescimento nos fundos internacionais”. Macon, é claro, não era o autor do livro de frases. O único idioma estrangeiro que sabia era latim. Agora, Julian empilhou de novo as páginas que estava lendo. — Ótimo — ele disse. — Acho que podemos mandar do jeito que está. O que falta da conclusão? — Não muito. — Depois disso quero recomeçar nos Estados Unidos. — Tão cedo? — Faz três anos, Macon. — Bem, mas... — Macon disse. Ele fez um gesto na direção da perna. — Você pode ver que eu teria problemas para viajar. — Quando é que você tira o gesso? — Não antes do dia primeiro de novembro, no mínimo. — Então? Umas poucas semanas! — Mas tenho a impressão de que acabamos de fazer os Estados Unidos — Macon disse. Uma espécie de cansaço se apoderou dele. Aquelas viagens eternamente recorrentes, Boston e Atlanta e Chicago... ele deixou a cabeça cair para trás no

sofá. Julian disse: — As coisas estão mudando a cada minuto, Macon. Mudança! É o que nos mantém prosperando. Até quando você acha que íamos continuar vendendo guias desatualizados? Macon pensou no decrépito Dicas para o continente na biblioteca de seu avô. Os viajantes eram aconselhados a colocar uma taça de vinho emborcada na cama do hotel para testar a umidade dos lençóis. As senhoras deviam selar as rolhas de seus frascos de perfume com cera derretida antes de fazer as malas. Algo naquele livro fazia crer que os turistas estavam todos juntos naquilo, igualmente ansiosos e indefesos. Macon talvez até tivesse gostado de fazer uma viagem naqueles dias. Julian se preparava agora para ir embora. Levantou-se e, com alguma dificuldade, Macon fez o mesmo. Então Edward, pressentindo que alguém saía de casa, correu até a sala de estar e começou a latir. — Desculpe — Macon gritou sobre os latidos. — Edward, pare com isso! Imagino que sejam seus instintos de pastor — ele explicou a Julian. — Detesta ver alguém saindo do rebanho. Eles foram até o vestíbulo, avançando com dificuldade ao lado daquele cachorro que dançava e latia. Quando chegaram à porta, Edward a bloqueou. Por sorte ainda estava arrastando a coleira, então Macon deu uma muleta a Julian e se abaixou para pegá-la. No instante em que Edward sentiu o puxão, virou-se e mostrou os dentes para Macon. — Opa! — Julian disse, pois Edward, quando mostrava os dentes, ficava realmente feio. Suas presas pareciam maiores do que eram. Ele tentou morder a coleira com um estalo audível. Depois tentou morder a mão de Macon. Macon sentiu o hálito quente de Edward e a umidade estranhamente íntima de seus dentes. Não foi exatamente como levar uma mordida na mão, mas mais como uma pancada — uma batida com um choque como o que você receberia de uma cerca elétrica. Ele recuou e largou a coleira. Sua outra muleta desabou com um estrondo. O hall de entrada parecia estar cheio de muletas; havia uma sensação de estilhaços, de espigões no ar. — Opa, você aí! — Julian disse. Falou enquanto se fazia um silêncio súbito. O cachorro se sentou, arfando e com uma expressão envergonhada. — Macon? Ele te mordeu? — Julian perguntou. Macon olhou para a própria mão. Havia quatro marcas de furos vermelhos na parte carnuda (dois na frente, dois nas costas) mas nenhum sangue e muito pouca dor.

— Estou bem — ele disse. Julian lhe deu suas muletas, mantendo um olho em Edward. — Eu não teria um cachorro como esse — ele disse. — Daria um tiro nele. — Ele só estava tentando me proteger — Macon disse. — Eu chamaria a Sociedade Protetora dos Animais. — Por que você não vai agora, Julian, enquanto ele está calmo? — Ou então a, como é que se chama?, carrocinha. Diria a eles que você quer que sumam com ele. — Vá logo, Julian. Julian disse: — Está certo — ele abriu a porta e ou por ela de lado, olhando para Edward às suas costas. — Este cachorro não está bem — ele disse, antes de desaparecer. Macon foi mancando até os fundos da casa e Edward o seguiu, fungando um pouco e andando cabisbaixo. Na cozinha, Rose estava em pé num banco, diante de um imenso armário de porta de vidro, arrumando as compras que Charles e Porter lhe entregavam. — Agora preciso dos M, qualquer coisa começando com M — ela dizia. — Que tal aquele macarrão? — Porter perguntou. — M para macarrão? Para massa? — C para canelone. Você podia ter me dado isso antes, Porter. — Rose? — Macon disse. — Parece que Edward me deu uma mordidinha. Ela se virou, e Charles e Porter pararam de trabalhar para ver a mão que ele estendia. A essa altura estava doendo — uma dor funda e aguda. — Oh, Macon! — Rose exclamou. Desceu do banco. — Como aconteceu? — Um acidente, foi tudo. Mas acho que preciso de um antisséptico. — Também precisa de uma vacina antitetânica — Charles disse. — Precisa se livrar desse cachorro — Porter disse. Olharam para Edward, que mostrou os dentes para eles, nervoso. — Ele não quis causar nenhum mal — Macon disse. — Arranca a sua mão na altura do cotovelo e não quis causar nenhum mal? Você devia se livrar dele, estou te dizendo. — Vejam, não posso — Macon disse. — Por que não? — Bem, vejam... Eles esperaram. — Você sabe que não me importo com a gata — Rose disse. — Mas Edward cria tantos problemas, Macon. Todo dia ele sai um pouco mais do controle. — Talvez você pudesse dá-lo a alguém que queira um cão de guarda —

Charles disse. — Um posto de gasolina — Rose sugeriu. Ela pegou um rolo de gaze numa gaveta. — Oh, nunca — Macon disse. Ele se sentou onde ela apontou, numa cadeira à mesa da cozinha. Apoiou as muletas no canto. — Edward sozinho em algum posto Exxon? Ele ficaria arrasado. Rose aplicou mercurocromo na mão dele. Parecia ferida; cada uma das perfurações estava inchando e ficando azulada. — Ele está acostumado a dormir comigo — Macon disse a ela. — Nunca ficou sozinho em toda a sua vida. Além disso, Edward não era um cachorro mau no fundo do coração — só um pouco indisciplinado. Era simpático e gostava de Macon, e se arrastava atrás dele aonde quer que fosse. Havia um W peludo em sua testa que lhe conferia um ar de preocupação. Suas orelhas grandes, pontudas e aveludadas pareciam mais expressivas do que as orelhas de outros cachorros; quando ele estava feliz elas se estendiam ao lado de sua cabeça como asas de avião. Seu cheiro era surpreendentemente agradável — o cheiro doce que um suéter favorito adquire quando é guardado sem ter sido lavado. E ele tinha sido de Ethan. Antigamente Ethan o escovava, dava banho nele, lutava com ele no chão; e quando Edward parava para coçar uma orelha, Ethan dizia, com a mais sóbria das cortesias: “Oh, posso coçar para você?” Os dois ficavam vigiando a janela diariamente à espera do jornal da tarde, e no instante em que chegava, Ethan mandava Edward aos pulos buscá-lo — as patas de trás encontrando as da frente, os calcanhares saltitando alegremente. Edward fazia uma pausa depois de pegar o jornal com a boca e olhava ao redor, como se esperasse ser notado, e depois voltava num o altivo, todo alvoroçado e se achando importante e parava outra vez diante do espelho para irar sua aparência. “Vaidoso”, Ethan dizia, carinhosamente. Ethan pegava uma bola de tênis para arremessar e Edward ficava tão excitado que abanava a traseira toda. Ethan levava Edward lá para fora com uma bola de futebol e quando o cachorro se empolgava — correndo e arremessando a bola, empurrando-a numa cerca viva e rosnando ferozmente — a risada de Ethan saía tão alta e cristalina, um som alegre flutuando no ar numa noite de verão. — Simplesmente não posso — Macon disse. Fez-se silêncio. Rose envolveu sua mão com a gaze, com tanta suavidade que ele mal sentiu. Ela prendeu a ponta por baixo e estendeu a mão para pegar um rolo de

esparadrapo. Depois disse: — Talvez pudéssemos mandá-lo para um treinador. — Treinadores são para coisas menores, andar sobre duas pernas e essas coisas — Porter lhe disse. — O que temos aqui é uma situação séria. — Não é! — Macon disse. — Na verdade não é nada. Ora, aquela mulher na Miau-Au se deu maravilhosamente bem com ele. — Miau-Au? — Onde eu o hospedei quando fui para a Inglaterra. Ela ficou maluca por ele. Queria que eu a deixasse treiná-lo. — Então ligue para ela, por que não? — Talvez eu ligue — Macon disse. Ele não ligaria, é claro. A mulher lhe parecera esquisita. Mas não fazia sentido falar nisso agora.

Na manhã de domingo Edward rasgou a porta de tela tentando pegar um vizinho idoso que tinha ado para pedir emprestada uma chave-inglesa. Na tarde de domingo ele pulou em Porter para impedi-lo de sair para um afazer qualquer. Porter teve que se esgueirar pela porta dos fundos enquanto Edward não estava vendo. — Isso é indigno — Porter disse a Macon. — Quando é que você vai chamar a Kit-Kat ou seja lá qual for o nome dela? Macon explicou que aos domingos o Miau-Au com certeza estaria fechado. Na manhã de segunda-feira, quando Edward saiu para ear com Rose, ele investiu contra um corredor que ava e derrubou Rose com um puxão. Ela voltou para casa com o joelho ralado. Disse: — Você já ligou para o Miau-Au? — Não exatamente — Macon disse. — Macon — Rose disse. Sua voz estava muito baixa. — Diga-me uma coisa. — O que foi, Rose? — Você pode me explicar por que está deixando as coisas continuarem desse jeito? Não, ele não podia, e essa era a verdade. As coisas tinham chegado a um ponto em que ele estava frustrando até a si mesmo. Sentia-se furioso com as más atitudes de Edward, mas de algum modo via-as como provações do destino. Não havia nada que pudesse fazer a respeito. Quando Edward se aproximou dele mais tarde com um cinto dilacerado de Porter pendurado na boca, tudo o que

Macon disse foi: “Oh, Edward...” Ele estava sentado no sofá naquele momento, capturado por um momento particularmente escandaloso da novela de Rose. Rose olhou para ele. Sua expressão era estranha. Não era de desaprovação, era mais como... ele tentou encontrar a palavra. Renúncia. Era isso. Ela olhou para ele como olharia para, digamos, algum pobre coitado andando a esmo, drogado, por uma rua do centro da cidade. Afinal de contas, ela parecia estar pensando, provavelmente não havia muito o que você pudesse fazer por uma pessoa assim. — Miau-Au Hospital de Animais. — Será que, hm, Muriel está, por favor? — Aguarde um minuto. Ele esperou, apoiado num armário. (Estava usando o telefone da copa.) Ouviu duas mulheres discutindo a vacina antirrábica de Fluffball Cohen. Então Muriel pegou o telefone. — Alô? — Sim, aqui é Macon Leary. Não sei se você se lembra de mim ou... — Oh, Macon! Olá! Como vai Edward? — Bem, ele está piorando. Ela fez tsk-tsk. — Está atacando a torto e a direito. Rosnando, mordendo, roendo coisas... — O seu vizinho lhe disse que fui procurar você? — O quê? Ah, falou, sim. — Eu estava bem na sua rua, tinha algo a fazer por lá. Ganho um dinheirinho extra com essas coisas. George, é o nome. Você não acha que é uma graça? — Perdão? — George. É o nome da minha empresa. Enfiei um folheto por baixo da sua porta. Deixe por conta do George, diz ali, e depois há uma lista de todos os preços: receber gente no aeroporto, motorista, serviço de entrega, compras... compras de presentes é o mais caro porque preciso usar o meu próprio gosto. Você não recebeu meu folheto? Mas eu na verdade ei só para visitar. Só que o seu vizinho disse que você não andava por lá. — Não, eu quebrei a perna. — Oh, que chato. — E eu não ia conseguir me virar sozinho, então... — Você devia ter chamado o George. — Que George? — George, a minha empresa! Estava te falando dela agora. — Ah, sim.

— Então você não precisaria ir embora daquela casa bacana. Gostei da sua casa. Você também morava lá quando era casado? — Bem, sim. — Fico surpresa por ela ter concordado em abrir mão da casa. — A questão — Macon disse — é que eu estou realmente no limite com Edward, e estava me perguntando se você poderia me ajudar. — Claro que posso ajudar! — Oh, isso é ótimo — Macon respondeu. — Posso fazer qualquer coisa — Muriel disse a ele. — Busca e alerta, busca e resgate, bombas, narcóticos... — Narcóticos? — Treinamento de guarda, treinamento de ataque, antienvenenamento, síndrome de institucionalização... — Espere, eu nem sei o que algumas dessas coisas querem dizer — Macon disse. — Posso até ensinar dupla personalidade. — O que é dupla personalidade? — É quando o seu cachorro é, sabe, bom com você mas mata todas as outras pessoas. — Sabe de uma coisa, acho que estou lidando com algo fora do meu alcance — Macon disse. — Não, não! Não diga isso! — Mas esse é o mais simples dos problemas. O único defeito dele é que ele quer me proteger. — Você pode levar a proteção longe demais — Muriel disse a ele. Macon tentou fazer uma piadinha: — “É uma selva lá fora”, ele está dizendo. É o que ele está tentando dizer. “Sei melhor do que você, Macon.” — Oh! — Muriel disse. — Você deixa que ele te chame pelo primeiro nome? — Bem... — Ele precisa aprender respeito — ela disse. — Vou cinco ou seis vezes por semana, pelo tempo que for preciso. Começo com o básico; sempre se faz isso: sentar, ajoelhar... Meu preço é 5 dólares a aula. Você está levando uma pechincha. Normalmente cobro 10. Macon apertou o fone com mais força. — Então por que não cobra 10 a mim? — ele perguntou. — Ah, não! Você é um amigo. Ele se sentiu confuso. Deu a ela seu endereço e combinou um horário com a sensação incômoda de que alguma coisa saía de seu controle. — Mas olhe — ele disse —, sobre o preço...

— Vejo você amanhã! — ela completou e desligou. Durante o jantar, naquela noite, quando ele contou aos outros, achou que reagiram com surpresa. Porter disse: — Você ligou mesmo? Macon respondeu: — Sim, por que não? — completou com um comentário brusco, e os outros entenderam e deixaram o assunto imediatamente de lado.

7 — Quando eu era pequena — Muriel disse —, não gostava nem um pouco de cachorros, nem de qualquer outro tipo de animal. Eu achava que eles podiam ler a minha mente. Meus pais me deram um cãozinho no meu aniversário e ele, sabe, virava a cabeça de lado, você sabe como eles fazem? Virava a cabeça de lado e me olhava com aqueles olhos grandes e vivos e eu dizia: “Uuh! Tirem ele daqui! Vocês sabem que não o que fiquem me encarando.” Tinha uma voz que se estendia longe demais em todas as direções. Subia, num guincho; depois caía num rosnado rouco. — Tiveram que levá-lo de volta. Tiveram que dá-lo a um menino da vizinhança e me deram outro presente inteiramente diferente, um permanente num salão de cabeleireiro, que era o que eu queria desde o começo. Ela e Macon estavam parados no hall de entrada. Ela ainda estava de casaco — algo de um preto embolotado, de ombros grandes, comprimento três quartos, num estilo visto pela última vez em 1940. Edward se sentou ao lado dela como se tivesse recebido ordem para fazê-lo. Recebeu-a na porta com sua habitual exibição, pulando e rosnando, mas ela ou diretamente por ele, apontou para a sua traseira e mandou que ele sentasse. Ele ficara boquiaberto. Ela estendera a mão e cutucara sua traseira com um dedo indicador longo e afiado. — Agora você faz um ruído com a língua, assim — ela disse a Macon, demonstrando. — Eles ficam sabendo que esse ruído significa elogio. E quando estendo a mão, está vendo?, isso significa que ele deve ficar parado. Edward ficou parado, mas um latido irrompia a cada intervalo de poucos segundos, lembrando a Macon os ruídos periódicos de uma cafeteira. Muriel não parecia ouvir. Ela começou a discutir seu plano de aula e depois, sem nenhuma razão aparente, ou à sua autobiografia. Mas Edward não poderia ter permissão de se levantar, agora? Por quanto tempo ela esperava que ele se sentasse ali? — Acho que você está se perguntando por que eu quis fazer um permanente se meu cabelo já é tão frisado — ela disse. — Esta vassoura velha! Mas vou ser honesta com você, isto não é natural. Meu cabelo natural é bem liso. Às vezes eu ficava desesperada. Eu era loura quando era bebê, dá para acreditar? Loura como uma princesa de conto de fadas. As pessoas diziam à minha mãe que eu ficaria parecendo a Shirley Temple se ela

fizesse cachos no meu cabelo; então ela fez, enrolou meu cabelo em latas de suco de laranja. Eu tinha olhos azuis, também, e eles ficaram assim por um bom tempo, um tempo bem maior do que o da maioria dos bebês. As pessoas achavam que eu ficaria assim para sempre e falavam sobre eu fazer cinema. Sério! Minha mãe arranjou uma escola de sapateado quando eu mal tinha aprendido a andar. Ninguém jamais imaginaria que meu cabelo fosse se virar contra mim. Edward deu um gemido. Muriel olhou para o vidro de um quadro que estava pendurado atrás de Macon. Colocou as mãos em concha na ponta do cabelo, como se lhe testasse o peso. — Pense em como deve ser — ela disse — acordar uma manhã e descobrir que virou morena. Isso quase matou minha mãe, vou te dizer. A velha Muriel, comum e sem graça, com olhos castanhos e turvos, e cabelo preto como terra. Macon sentiu que devia oferecer algum argumento, mas estava ansioso demais com relação a Edward. — Oh, bem... — ele disse. E em seguida: — Será que não devíamos deixar ele se levantar agora? — Levantar? Ah, o cachorro. Num minuto — ela disse. — Então, seja como for: o motivo para ele ser tão frisado foi eu ter feito essa coisa chamada permanente. Já ouviu falar? Teoricamente ele só deveria encorpar, mas algo deu errado. Você acha que isto é ruim! Se eu asse uma escova nele, meu cabelo ia saltar da cabeça feito uma mola. Saltar mesmo, sabe. Meio como uma dessas perucas para dar susto, não é assim que vocês dizem? Então não posso nem escová-lo. Acordo pela manhã e lá estou eu, pronta para a luta. Deus, detesto pensar nos nós. — Talvez você pudesse apenas ar o pente. — Difícil ar um pente através dele. Todos os dentinhos iriam quebrar. — Talvez um desses pentes de dentes grossos que os negros usam. — Sei o que você quer dizer, mas eu iria me sentir tola comprando um. — Por quê? — Macon perguntou. — Eles estão simplesmente pendurados por aí nos supermercados. Não seria grande coisa. Compre leite e pão ou algo do gênero, e um pente afro, ninguém vai nem notar. — Bem, acho que você está certo — ela disse, mas agora que tinha conseguido envolvê-lo parecia ela própria ter perdido o interesse no problema. Estalou os dedos acima da cabeça de Edward. — Muito bem — ela disse. Edward deu um pulo, latindo. — Isso foi muito bom — ela o elogiou. Na verdade, foi tão bom que Macon se sentiu meio mal-humorado. As coisas não podiam ser tão fáceis assim, ele queria dizer. Edward tinha melhorado rápido

demais, do modo como uma dor de dente melhora quando você põe o pé na sala de espera de um dentista. Muriel deslizou a bolsa para baixo do ombro e colocou-a na mesa do vestíbulo. De lá saiu uma comprida coleira azul ligada a um enforcador. — Ele tem que usar isso o tempo todo — ela disse. — Todos os minutos até estar treinado. Desse modo você pode puxá-lo todas as vezes que ele fizer alguma coisa de errado. A guia custa 6 dólares redondos, e o enforcador é 2,95. Com as taxas chega a, digamos, 9,40. Você pode me pagar no fim da aula. Ela ou o enforcador por cima da cabeça de Edward. Depois parou para examinar uma unha. — Se eu quebrar outra unha vou gritar — ela disse. Recuou um o e apontou para a traseira de Edward. Depois de uma breve hesitação, ele se sentou. Sentado, tinha um aspecto nobre, Macon pensou — com o peito estufado e solene, em nada parecido com seu ser habitual. Mas quando Muriel estalou os dedos ele pulou, tão indisciplinado como sempre. — Agora tente você — Muriel disse a Macon. Macon aceitou a guia e apontou para o traseiro de Edward. Edward ficou do jeito que estava. Macon franziu o cenho e apontou de modo mais severo. Sentiase um tolo. Edward sabia, mesmo que aquela mulher não soubesse, quão pouca autoridade Macon tinha. — Dê uma cutucada nele — Muriel disse. Isso seria embaraçoso. Ele apoiou as muletas no radiador e se curvou, colocando-se numa posição rígida para dar uma estocada em Edward com o dedo. Edward se sentou. Macon fez aquele ruído com a língua. Depois se endireitou e recuou, mantendo a palma da mão estendida, mas em vez de ficar parado, Edward se levantou e o seguiu. Muriel soltou o ar por entre os dentes. Edward se encolheu outra vez. — Ele não te leva a sério — Muriel falou. — Bem, disso eu sei — Macon disse, rispidamente. Sua perna quebrada estava começando a doer. — Na verdade eu só tive um gatinho durante todo meu período de crescimento — Muriel disse. Será que ela ia simplesmente deixar Edward sentado ali? — Então, há uns dois anos, vi esse anúncio no jornal: Ganhe dinheiro extra em suas horas vagas. Trabalhe tanto quanto quiser. O lugar era uma empresa de treinamento de cães que ia na casa das pessoas. Doggie Do, era

o nome. Você não detesta esse nome? Ele me lembra cocô de cachorro.2 Mas seja como for, respondi ao anúncio. “Para ser honesta, eu não gosto de animais”, eu disse, mas o Sr. Quarles, o dono, me respondeu que não tinha importância. Disse que as pessoas que ficam todas melosas com eles são as que têm mais trabalho. — Bem, isso faz sentido — Macon comentou, lançando um olhar para Edward. Ele tinha ouvido dizer que os cães ficavam com dores nas costas se obrigados a sentar durante tempo demais. — No final eu era talvez a melhor aluna dele. Parece que tinha um jeito com os animais. E então arrumei um emprego no Miau-Au. Antes disso trabalhei na Copiadora RapidEz e, acredite em mim, estava querendo mudar. Quem é a moça? — Moça? — A moça que vi ando pela sala de jantar. — É Rose. — Ela é sua ex-mulher, ou o quê? — Ela é minha irmã. — Ah, sua irmã! — Esta casa pertence a ela — Macon disse. — Também não vivo com ninguém — Muriel disse a ele. Macon piscou os olhos. Ele não tinha acabado de dizer que vivia com a irmã? — Às vezes, tarde da noite, quando fico desesperada para ter alguém com quem falar eu ligo para a hora certa — Muriel disse. — “Ao sinal serão 23 e... 48. E 50 segundos.” Sua voz assumiu um tom adocicado. “Ao sinal serão 23 e... 49. Em ponto.” Você pode liberá-lo agora. — Perdão? — Liberar seu cachorro. Macon estalou os dedos e Edward deu um pulo, latindo. — E quanto a você? — Muriel perguntou. — No que você trabalha? Macon respondeu: — Escrevo guias turísticos. — Guias turísticos! Sortudo. — O que há de sorte nisso? — Ora, você deve poder viajar a todo tipo de lugar! — Ah, bem, viagens — Macon disse. — Eu adoraria viajar. — É só um trabalho maçante, na maioria das vezes — Macon respondeu. — Nunca estive num avião, dá para acreditar?

— É trabalho maçante em movimento. Filas para as agens, filas para a alfândega... Edward deveria estar latindo deste jeito? Muriel apertou os olhos para Edward e ele ficou quieto. — Se eu pudesse ir a algum lugar, iria a Paris — ela disse. — Paris é terrível. Todo mundo é indelicado. — Eu caminharia à beira do Sena, como eles dizem na canção. “Você vai encontrar seu amor em Paris”, ela cantou, em voz áspera, “se você caminhar à beira do...” Eu acho que soa tão romântico. — Bem, não é — Macon disse. — Aposto que você não sabe onde procurar, isso é tudo. Leve-me com você na próxima vez! Eu poderia te mostrar as coisas boas. Macon pigarreou. — Na verdade eu tenho um orçamento bem limitado — ele disse. — Nunca sequer levei minha mulher, ou, hm, minha... mulher. — Eu só estava brincando — ela disse. — Ah. — Você achou que eu estava falando sério? — Oh, não. Ela ficou subitamente animada. — Vão ser 14,40, incluindo a guia e o enforcador — então, quando Macon estava mexendo na carteira, ela disse: — Você tem que treinar o que ele aprendeu, e ninguém mais pode treinar por você. Vou voltar amanhã para a segunda aula. Às 8 horas é cedo demais? Tenho que estar no Miau-Au às 9 horas. — Às 8 horas está bem — Macon respondeu. Ele tirou 14 dólares e todas as moedas que tinha soltas no bolso: 36 centavos. — Você pode me pagar os outros 4 centavos amanhã — ela disse. Então ela fez Edward se sentar e entregou a guia a Macon. — Solte-o depois que eu tiver ido embora — ela disse. Macon estendeu a palma da mão e fitou Edward nos olhos, implorando-lhe que ficasse. Edward ficou, mas gemeu quando viu Muriel ir embora. Quando Macon estalou os dedos, Edward deu um salto e atacou a porta da frente. Durante toda aquela tarde e noite, Macon e Edward treinaram. Edward aprendeu a abaixar o traseiro ao menor movimento de um dedo. Ficava ali, reclamando e revirando os olhos, enquanto Macon estalava a língua em aprovação. Na hora do jantar, o estalo da língua já era parte do idioma da família. Charles estalou diante das costeletas de porco de Rose. Porter estalou quando Macon lhe deu uma boa mão de cartas. — Imagine uma dançarina de flamenco que tenha uma tuberculose galopante

— Rose disse a Charles e Porter. — Assim é a treinadora de Edward. Fala sem parar, não sei quando é que respira. Quando falava de seu plano de aulas ficava dizendo “simplista” em vez de “simples”. — Achei que você fosse ficar fora de vista — Macon disse a Rose. — Bem? E você por acaso me viu? — Muriel viu. — Imagino que sim! Do modo como não parava de olhar ao redor e bisbilhotar. Ouviram-se vários estrondos na sala de estar, porque a nova coleira de Edward ficava prendendo na cadeira de balanço e arrastando-a atrás dele. Ao longo da noite, ele dilacerou um lápis a mordidas, roubou um osso de costeleta de porco da lata de lixo e vomitou no tapete do solário; mas agora que ele podia se sentar ao receber a ordem, todos se sentiam mais esperançosos. — Quando eu estava no segundo grau da escola só tirava A — Muriel disse. — Você ficou surpreso com isso, não ficou? Você acha que eu não sou nem um pouco intelectual. Sei o que você está pensando! Ficou surpreso. — Não fiquei, não — Macon respondeu, embora na verdade estivesse. — Tirava A porque peguei o jeito da coisa — Muriel disse a ele. — Você acha que não é um jeito? Há um jeito para tudo; é assim que amos pela vida. Eles estavam diante de casa, ambos de capa de chuva, pois era uma manhã úmida e chuvosa. Muriel usava botas pretas de camurça, curtas, de bico fino e salto agulha. Suas pernas se projetavam delas como palitos de dente. A guia estava enrolada em seus dedos. Em teoria ela estava ensinando Edward a andar corretamente. Mas em vez disso, não parava de falar de seus dias de escola. — Alguns dos professores me diziam que eu devia ir para a faculdade — ela disse. — Havia uma em particular, não era uma professora, mas sim uma bibliotecária, eu trabalhava na biblioteca para ela, colocando nas estantes os livros e outras coisas; ela disse, “Muriel, por que você não vai para Towson State?” Mas eu não sei... e agora digo à minha irmã: “Você pense na faculdade, está ouvindo? Não largue tudo como eu larguei.” Eu tenho essa irmã mais nova. Claire. O cabelo dela nunca mudou. Ela é loura como um anjo. Mas o mais engraçado é isso: ela não dá a mínima. Faz uma trança de qualquer jeito para que o cabelo não caia nos olhos. Usa jeans esfarrapados e se esquece de raspar as pernas. Não é sempre assim? Meus pais a acham maravilhosa. Ela é a boa e eu sou a ruim. Mas não é culpa dela; não censuro Claire. As pessoas simplesmente se fixam nesses moldes das opiniões dos outros, você não acha que isso é verdade? Claire sempre era Maria nas peças de Natal, na escola. Os meninos da escola primária estavam sempre pedindo para namorá-la, mas lá estava eu no

segundo grau e ninguém pedia para me namorar, vou lhe dizer. Os garotos do segundo grau não são simplesmente frustrantes? Isto é, eles me chamavam para sair e tudo mais, para o drive-in e coisas do tipo, e agiam de um modo tão tenso e secreto, deslizando o braço ao redor do meu ombro centímetro por centímetro, como se achassem que eu não ia notar, e depois abaixando a mão, você sabe como eles fazem, abaixando cada vez mais e olhando o tempo todo diretamente para o filme como se fosse o espetáculo mais fascinante que já tivessem visto na vida. Não dava para não ter pena deles. Mas então, na manhã de segunda, lá estavam eles como se nada tivesse acontecido, agitados e aprontando com os colegas e cutucando-se uns aos outros quando eu ava, mas sem nem sequer me dizer olá. Você acha que isso não me magoava? Nem um único garoto em todo aquele tempo me tratou como uma namorada estável. Chamavam-me para sair na noite de sábado e esperavam que eu fosse boazinha com eles, mas você acha que alguma vez eles almoçavam comigo no refeitório da escola, na segunda seguinte, ou me acompanhavam de sala de aula em sala de aula? Ela baixou os olhos para Edward. Abruptamente, deu um tapa no quadril, a capa de chuva de vinil deu um estalo. — Esse é o comando de “caminhar junto” — ela disse a Macon. Começou a andar, e Edward a seguiu, inseguro. Macon ficou para trás. Já tinha sido difícil o suficiente descer os degraus da varanda da frente. — Ele precisa equiparar seu o a qualquer coisa — ela exclamou, virando-se para trás. — Devagar, rápido, qualquer coisa que eu faça. Ela se apressou. Quando Edward cruzou na sua frente, ela continuou andando, dando um encontrão nele. Quando ele ficou parado à toa, ela deu um puxão em sua guia. Ela seguiu energicamente para o leste, seu casaco um triângulo duro e oscilante debaixo do pequeno triângulo de seu cabelo que o vento soprava para trás. Macon esperou, afundado nas folhas secas até os tornozelos. No caminho de volta, Edward ficou bem junto de Muriel, ao seu lado esquerdo. — Acho que ele pegou o jeito — ela exclamou. Chegou diante de Macon e ofereceu-lhe a guia. — Agora você. Ele tentou dar um tapa no quadril, o que era difícil, de muletas. Então se pôs a caminho. Andava angustiantemente devagar e Edward não parava de puxá-lo para a frente. — Puxe a guia! — Muriel disse, batendo os calcanhares atrás deles. — Ele sabe o que tem que fazer. O contrário. Edward começou a andar no o certo, finalmente, embora olhasse para longe de um jeito entediado e altivo.

— Não esqueça de estalar a língua — Muriel disse. — A cada minuto que a você tem que elogiá-lo. — Seus saltos faziam um ruído de arranhões atrás dela. — Uma vez trabalhei com essa cadela que nunca em sua vida tinha sido educada para fazer suas necessidades. Dois anos de idade e nenhuma educação, e os donos estavam perdendo a cabeça. A princípio não sabia o que fazer; depois uma coisa me ocorreu. Aquela cadela achava que não tinha permissão para urinar em lugar nenhum, nem dentro de casa, nem fora de casa. Veja, ninguém a elogiava quando ela fazia a coisa certa. Já ouviu falar numa coisa dessas? Tive que surpreendê-la fazendo xixi do lado de fora, o que não foi fácil, acredite, porque ela estava o tempo todo envergonhada e tentando esconder o que fazia, e depois de um tempo ela entendeu. Eles chegaram à esquina. — Agora, quando você parar, ele tem que se sentar — ela disse. — Mas como vou treinar? — Macon disse. — O que você quer dizer com isso? — Estou de muletas. — E daí? É um bom exercício para a sua perna — ela disse. Não perguntou como ele tinha quebrado a perna. Pensando bem, havia algo de inível nela, apesar de todo seu interesse na vida privada dele. Ela disse: — Treine em etapas, dez minutos cada sessão. — Dez minutos! — Vamos recomeçar. Ela foi na liderança, seu caminhar anguloso e afetado interrompido pelos trancos de seus saltos altos. Macon e Edward seguiram. Quando chegaram em casa, ela perguntou que horas eram. — São 8h50 — Macon respondeu, com severidade. Ele desconfiava de mulheres que não usavam relógio. — Tenho que ir. São 5 dólares, por favor, e os 4 centavos que você me deve de ontem. Ele lhe deu o dinheiro e ela o enfiou no bolso da capa de chuva. — Da próxima vez, vou ficar mais tempo e conversar — ela disse. — É uma promessa. Ela acenou para ele com os dedos, e saiu estalando os saltos na direção de um carro que estava parado mais abaixo na rua: um sedã idoso, cinzento, mais parecendo um barco, que recebera polimento e brilhava muito. Quando ela deslizou para dentro e bateu com força a porta, houve um som como o de latas de cerveja caindo. O motor fez um som metálico e chacoalhou antes de pegar. Macon sacudiu a cabeça, e ele e Edward voltaram para casa.

Entre quarta e quinta-feira, Macon ou o que pareceu ser uma vida inteira num esforço violento andando para cima e para baixo na Dempsey Road ao lado de Edward. Suas axilas desenvolveram uma dor permanente. Havia uma linha vertical de dor em sua coxa. Não fazia sentido; devia ser na canela. Ele se perguntava se algo teria dado errado — se a fratura tinha sido colocada no lugar de modo errado, por exemplo, e assim uma tensão incomum estava sendo colocada no fêmur. Talvez ele tivesse que voltar ao hospital e ter sua perna quebrada outra vez, provavelmente sob anestesia geral, com todas as suas terríveis complicações; e então ele aria meses fazendo tração e talvez ficasse manco para o resto da vida. Ele se imaginou atravessando encurvado um cruzamento, com um o grotesco e assimétrico. Sarah, ando por ele de carro, frearia, cantando pneu. “Macon?” Ela desceria o vidro da janela. “O que aconteceu?” Ele ergueria o braço e o deixaria cair e ia se afastar dela cambaleando. Ou então diria: “Fico surpreso que você se importe o suficiente para perguntar.” Não, simplesmente se afastar dela cambaleando. Provavelmente esses pequenos surtos de autopiedade (uma emoção que de hábito ele desprezava) eram causados por exaustão física absoluta. Como ele se metera naquilo? Dar um tapa no quadril era o primeiro problema; depois, conclamar seu equilíbrio para puxar a guia quando Edward entrava no ritmo errado, e ficar constantemente alerta a esquilos e pedestres. “Sss!”, ele repetia, e “Cluckcluck!”, e “Sss!” de novo. Supunha que os antes o consideravam maluco. Edward trotava ao seu lado, bocejando ocasionalmente, olhando para toda parte em busca de ciclistas. Ciclistas eram seu deleite especial. Sempre que via algum, os pelos de suas costas se arrepiavam e ele investia. Macon se sentia um homem numa corda bamba subitamente sacudida. Nesse o irregular e cambaleante, ele via muito mais coisas do que veria de outro modo. Tinha uma vista minuciosa de cada arbusto e canteiro de flores secas. Memorizou erupções na calçada que pudessem fazê-lo tropeçar. Era uma rua de gente idosa, e não estava no melhor estado de conservação. Os vizinhos avam os dias telefonando um para o outro, a fim de saber se ninguém tivera um ataque na escada ou uma parada cardíaca no banheiro, um quadril quebrado, traqueia bloqueada, tonteira em cima do fogão com todos os queimadores acesos. Alguns sairiam para andar e se encontrariam horas mais tarde no meio da rua, se perguntando para onde iam. Alguns começariam a preparar alguma coisa para comer ao meio-dia, um ovo quente ou uma xícara de chá, e ao pôr do sol

ainda estariam indolentemente ocupados com a cozinha, procurando atrapalhados o sal e esquecendo como a torradeira funcionava. Macon sabia de tudo isso através de sua irmã, que recebia telefonemas aflitos dos vizinhos. “Rose, querida! Rose, querida!”, eles diziam com a voz tremida, e entravam aos tropeços no jardim dela com uma conta vencida, uma carta alarmante, um frasco de pílulas com tampa à prova de crianças. À noite, levando Edward para sua última caminhada, Macon deu uma espiada pelas janelas e viu gente afundada em poltronas floridas, iluminadas de azul e trêmulas por causa da TV. Os Orioles estavam ganhando o segundo jogo da World Series, mas as pessoas pareciam, em vez disso, estar contemplando seus próprios pensamentos. Macon os imaginava de algum modo arrastando-o para baixo, fazendo com que caminhasse pesadamente, encurvado, com que ficasse sem fôlego. Até mesmo o cachorro parecia se arrastar, desanimado. E quando voltaram para casa, os outros estavam tendo um de seus ataques de indecisão. Seria melhor abaixar o termostato durante a noite ou não? A fornalha não teria que trabalhar mais se o termostato fosse abaixado? Porter não tinha lido isso em algum lugar? Debatiam sem parar, resolvendo o assunto e depois começando de novo. Ora! Macon pensou. Eles não eram tão diferentes de seus vizinhos. Também estavam envelhecendo. Ele daria seu palpite (abaixar o termostato, obviamente), mas sua voz se esvaiu e ele não disse nada. Naquela noite, ele sonhou que estava estacionado perto do Lake Roland no Buick 57 de seu avô. Estava sentado no escuro com uma garota qualquer sentada ao seu lado. Ele não a conhecia, mas o cheiro acre do seu perfume lhe parecia familiar, e o farfalhar de sua saia quando ela se aproximava. Ele se virou e olhou para ela. Era Muriel. Ele tomou fôlego para lhe perguntar o que ela estava fazendo ali, mas ela pôs o dedo sobre seu lábio e o interrompeu. Aproximou-se ainda mais. Pegou as chaves dele e colocou-as sobre o . Olhando fixamente para o rosto dele, desafivelou seu cinto e colocou a mão fresca e experiente dentro de sua calça. Ele acordou surpreso e embaraçado, e se sentou na cama, as costas muito retas. — Todo mundo sempre me pergunta: “Como é o seu cachorro?” — Muriel disse. — “Aposto que ele é um modelo de bom comportamento,” dizem. Mas quer ouvir uma coisa engraçada? Não tenho cachorro. Na verdade, a única vez que tive um, ele fugiu. Era o cachorro de Norman, Spook. Do meu ex-marido. Na primeira noite em que estávamos casados, Spook fugiu para a casa da mãe de

Norman. Acho que ele me detestava. — Oh, com certeza não — Macon disse. — Ele me detestava. Eu percebia. Estavam outra vez do lado de fora, preparando-se para treinar Edward em suas caminhadas. A essa altura, Macon já tinha se ajustado ao ritmo dessas aulas. Esperava, segurando a guia de Edward. Muriel disse: — Era como um daqueles filmes de Walt Disney. Você sabe: em que o cachorro vai andando até o Yukon ou coisa do tipo. Só que Spook andou apenas até Timonium. Eu e Norman estávamos com ele no centro da cidade, em nosso apartamento, e Spook saiu e caminhou por todos os sei lá quantos quilômetros de volta à casa da mãe de Norman em Timonium. A mãe dele telefona: “Quando foi que você mandou Spook embora?”; "‘Do que você está falando?” Ela mudava a voz para combinar com cada um dos personagens. Macon ouviu o gemido aguado da mãe de Norman, o balbuciar infantil do próprio Norman. Lembrou-se do sonho da noite ada e se sentiu embaraçado mais uma vez. Olhou para ela cara a cara, esperando encontrar defeitos, e os encontrou com abundância — um nariz comprido e estreito, e pele insípida, e dois nós sardentos nas clavículas que prometiam um corpo nada suntuoso. — Parece que a mãe dele acordou de manhã — ela dizia — e lá estava Spook, sentado na soleira da porta. Mas foi só então que nos demos conta de que ele tinha sumido. Norman diz: “não sei o que deu nele. Ele nunca fugiu antes.” E me lança aquele olhar meio desconfiado. Eu podia perceber que ele se perguntava se seria minha culpa. Talvez achasse que era algum tipo de augúrio ou coisa do gênero. Éramos tremendamente jovens para estar casados. Hoje vejo isso. Eu tinha 17. Ele tinha 18, era filho único. O queridinho da mamãe. Tinha esse rosto fresco e rosado como o de uma menina e o cabelo mais curto do que o de qualquer garoto da minha escola e abotoava a camisa até o pescoço. Tinha se mudado, vindo de Parkville, no final do penúltimo ano. Ele me viu no meu vestido tomara que caia e arregalava os olhos para mim durante todas as aulas; outros garotos implicavam com ele, mas ele não prestava nenhuma atenção. Ele era tão... inocente, sabe? Fazia com que eu me sentisse tendo poderes. Lá estava ele me seguindo pelos corredores com os braços carregados de livros e eu dizia: “Norman? Quer almoçar comigo?”, e ele corava e dizia: “Oh, bem, hm, você está falando sério?” Ele não sabia dirigir, mas eu disse a ele que se tirasse carteira eu sairia com ele. “Podíamos ir de carro a algum lugar tranquilo e conversar e ficar sozinhos”, eu dizia: “sabe o que quero dizer?.” Oh, eu era malvada. Não sei o que havia de errado comigo naquela época. Ele tirou a carteira num piscar de olhos e veio me pegar com o Chevy de sua mãe, que incidentalmente ela havia comprado do meu pai, que era vendedor na Ruggles

Chevrolet. Descobrimos isso no casamento. Nós nos casamos no outono do último ano de escola, ele estava louco para se casar comigo, então o que eu podia dizer?, e no meu casamento meu pai vai até a mãe de Norman e diz: “Ora, acho que te vendi um carro não faz muito tempo”, mas ela estava ocupada demais chorando para prestar atenção. Aquela mulher se comportava como se o casamento fosse um destino pior do que a morte. Então, quando Spook foge até a sua casa ela nos diz: “Acho que é melhor eu ficar com ele, está claro como o dia que ele não gosta de ficar aí com todos vocês.” Comigo, era o que ela queria dizer. Ela me culpava de ter levado seu filho embora. Alegava que eu tinha arruinado as chances dele; queria que ele tirasse seu diploma. Era ele quem dizia que possivelmente largaria os estudos; dizia: por que se dar ao trabalho de ficar estudando quando podia viver bem trabalhando com chão? — Com o quê? — Macon perguntou. — Chão. Polimento de pisos. Seu tio era da Pritchett Restaurações. Norman entrou para os negócios assim que nos casamos, e sua mãe vivia reclamando do desperdício. Dizia que ele podia ter sido contador ou coisa do tipo, mas eu não sei quem ela pensa que estava enganando. Ele nunca mencionou contabilidade para mim. Ela tirou um pelo de cachorro da manga do casaco, examinou-o e jogou-o para longe. — Então, vamos vê-lo — ela disse. — Perdão? — Vamos vê-lo acompanhar você. Macon deu um tapa no quadril e se pôs a andar, com Edward ficando um pouquinho para trás. Quando Macon parou, Edward parou também e se sentou. Macon ficou agradavelmente surpreso, mas Muriel disse: — Ele não está sentado. — O quê? De que você chama isso, então? — Ele está com a traseira uns cinco centímetros afastada do chão. Tentando ver se consegue se safar assim. — Oh, Edward — Macon disse, decepcionado. Ele se virou e voltou. — Bem, você vai ter que trabalhar isso — Muriel disse. — Mas enquanto isso, vamos seguir em frente para o deite-fique. Vamos tentar dentro de casa. Macon estava com medo de que encontrassem Rose, mas ela não estava em nenhum lugar à vista. O vestíbulo cheirava a poeira de radiador. O relógio na sala de estar batia a meia hora. — É aqui que começamos a lidar com o real problema de Edward — Muriel

disse. — Fazer com que ele se deite e fique, para que ele não pule na porta o tempo todo. Ela mostrou a ele o comando: bater o pé duas vezes. Sua bota fez um som firme. Como Edward não respondesse, ela se curvou e puxou suas patas da frente, tirando-as de baixo de seu corpo. Depois o deixou se levantar e repetiu tudo de novo, várias vezes. Edward não fazia progresso. Quando ela batia o pé, ele arfava e olhava noutra direção. — Teimoso — Muriel disse a ele. — Mais teimoso do que isso, impossível. — Ela se virou a Macon. — Vários cães se comportam desse jeito. Detestam se deitar; não sei por quê. Agora você. Macon bateu com o pé no chão. Edward parecia fascinado com algo à sua esquerda. — Agarre as patas dele — Muriel disse. — De muletas? — Claro. Macon suspirou e apoiou as muletas no canto. Abaixou até o chão com o gesso à sua frente, pegou as patas de Edward e o obrigou a se deitar. Edward resmungou ameaçadoramente, mas no fim se submeteu. Para se levantar outra vez, Macon teve que se segurar na mesa do abajur. — Isto é mesmo muito difícil — ele disse. Mas Muriel respondeu: — Escute, ensinei um homem que não tinha pernas. — Ensinou? — Macon disse. Ele imaginou um homem sem pernas se arrastando pela calçada com alguma raça feroz de cachorro, Muriel de pé ao seu lado sem se preocupar e conferindo as próprias unhas. — Imagino que você nunca tenha quebrado uma perna — ele a acusou. — Andar por aí é mais difícil do que parece. — Quebrei o braço uma vez — Muriel disse. — Um braço não se compara. — Aconteceu treinando cachorros, na verdade. Fui derrubada de uma varanda por um dobermann. — Um dobermann! — Quando me recobrei ele estava de pé em cima de mim, mostrando todos os dentes. Bem, pensei no que eles diziam no Doggie, Do: Só um de vocês pode ser o chefe. Então eu disse a ele: “De jeito nenhum.” Foram as primeiras palavras que saíram da minha boca, era o que minha mãe costumava dizer quando não ia deixar que eu escapulisse com alguma coisa. “De jeito nenhum”, eu digo a ele, e meu braço direito está quebrado então estendo o esquerdo, estendo a palma da

mão e olho bem nos olhos dele (eles não am quando você olha em seus olhos) e me ponho de pé bem devagar. Acredite ou não, mas o cachorro se senta sobre os quadris. — Meu Deus — Macon disse. — Um cocker spaniel já pulou bem no meu pescoço. A coisa mais cruel que você já viu. Um pastor alemão já cravou os dentes no meu tornozelo. Depois soltou. Ela ergueu o pé e girou-o. Seu tornozelo era fino como um lápis. — Você já se deparou com um fracasso? — Macon perguntou a ela. — Algum cachorro de que você simplesmente desistiu? — Nenhum — ela disse. — E Edward não vai ser o primeiro. Mas Edward parecia pensar de outro modo. Muriel trabalhou com ele por mais meia hora, e embora ele ficasse deitado, recusava-se abertamente a deitar por conta própria. Todas as vezes tinha que ser forçado. — Não se preocupe — Muriel disse. — É o que a maioria deles faz. Amanhã ele vai estar tão teimoso quanto hoje, então vou pular um dia. Você continue treinando, e volto neste mesmo horário no sábado. Então ela disse a Edward para ficar, aceitou o dinheiro e saiu rapidamente pela porta. Observando a postura ereta e resistente de Edward, Macon se sentiu desencorajado. Por que contratar uma treinadora, afinal, se ela deixava por sua conta todo o treinamento? — Ah, não sei, não sei — ele disse. Edward suspirou e foi embora, mesmo ainda não tendo sido liberado. Durante todo aquele final de tarde e noite, Edward se recusou a deitar. Macon tentava persuadi-lo, ameaçava-o, lisonjeava-o; Edward murmurava ameaçadoramente e continuava firme. Rose e os rapazes os circundavam, evitando de maneira polida seus olhos, como se tivessem topado com uma briga particular. Então, na manhã seguinte, Edward atacou o carteiro. Macon conseguiu segurar a guia, mas aquilo despertou algumas dúvidas em sua mente. O que todo aquele sentar-se e acompanhar nas caminhadas tinha a ver com o real problema de Edward? — Eu devia simplesmente te despachar para o depósito público de animais — ele disse a Edward. Bateu duas vezes com o pé. Edward não se deitou. À tarde, Macon ligou para o Miau-Au. — Posso falar com Muriel, por favor? — ele perguntou. Não conseguia se

lembrar do seu sobrenome. — Muriel não está trabalhando hoje — uma garota disse a ele. — Oh, entendo. — O menino dela está doente. Ele não sabia que ela era mãe de um menino. Sentiu uma espécie de estalo interno de ajuste; ela era uma pessoa ligeiramente diferente do que ele imaginara. — Bem — ele disse —, aqui é Macon Leary. Acho então que falo com ela amanhã. — Ah, Sr. Leary. Quer ligar para a casa dela? — Não, tudo bem. — Posso dar o telefone dela se o senhor quiser ligar para sua casa. — Eu falo com ela amanhã. Obrigado. Rose tinha um compromisso no centro da cidade, então concordou em deixálo na Editora dos Homens de Negócios. Ele queria entregar o resto do seu guia. Estendido no banco de trás com suas muletas, ele olhava para o cenário que ava: antigos edifícios comerciais, restaurantes de bom gosto, lojas de comida natural e floristas, o contorno dos prédios pronunciado e vívido sob a luz de uma brilhante tarde de outubro. Rose dirigia num ritmo regular e lento que era quase hipnótico. Ela usava um chapeuzinho redondo em forma de bacia com fitas atrás. Deixava-a com um aspecto afetado e parecida com uma colegial num domingo. Uma das características que todos os quatro Leary tinham era uma total inabilidade para se situar. Era uma espécie de dislexia, Macon acreditava uma dislexia geográfica. Nenhum deles punha os pés fora de casa sem registrar obsessivamente todos os pontos de referência disponíveis, atendo-se a um mapa fixo e desesperado da vizinhança. Em casa, Macon tinha uma pilha de fichas dando a direção detalhada da casa de seus amigos, até mesmo amigos que ele conhecia fazia décadas. E sempre que Ethan conhecia um novo garoto, a primeira e ansiosa pergunta que Macon fazia costumava ser: “Onde exatamente ele mora, você sabe?” Ethan tinha uma tendência a estabelecer alianças inconvenientes. Não podia simplesmente sair com o garoto da casa vizinha; ah, não, tinha que ser alguém que vivesse muito depois da Beltway. Por que Ethan haveria de se importar? Ele não tinha problemas para se localizar. Isso porque vivera a vida inteira numa única casa, era a teoria de Macon; enquanto uma pessoa que se mudara um bocado nunca adquiria um ponto fixo de referência, mas vagava eternamente em meio à neblina, à deriva sobre o planeta, desamparada, rezando para topar por acaso com seu lugar de destino.

Seja como for, Rose e Macon se perderam. Rose sabia aonde queria ir: uma loja que vendia um óleo lustra-móveis especial, e Macon tinha visitado o escritório de Julian uma centena de vezes; mas mesmo assim dirigiram em círculos até Macon notar um campanário familiar. — Pare! Vire à direita — ele disse. Rose parou onde ele dizia. Macon saiu do carro com esforço. — Você vai ficar bem? — ele perguntou a Rose. — Acha que consegue encontrar o caminho de volta para me buscar? — Espero que sim. — Procure o campanário, lembre-se. Ela fez que sim e foi embora. Macon subiu, o corpo oscilando, os três degraus de granito até a mansão de tijolos onde ficava a Editora dos Homens de Negócios. A porta era feita de madeira dourada e polida. O piso, no interior, era coberto com pequeninos hexágonos pretos e brancos, irregulares apenas o suficiente para fazer com que as muletas de Macon agarrassem. Não era um escritório comum. A secretária datilografava numa sala nos fundos enquanto Julian, que não ava ficar sozinho, estava sentado na frente. Falava num telefone vermelho, reclinado atrás de uma mesa onde se empilhava uma bagunça de anúncios, panfletos, contas a pagar, cartas a responder, embalagens vazias de comida chinesa entregue em domicílio e garrafas de Perrier. As paredes estavam cobertas de gráficos de vendas. As estantes tinham poucos livros, mas vários antigos instrumentos de navegação que provavelmente nem funcionavam mais. Qualquer um que tivesse olhos podia ver que o coração de Julian não estava na Editora dos Homens de Negócios, mas em algum lugar da Cheepsake Bay. Isso era uma vantagem para Macon, ele imaginava. Com certeza ninguém mais teria continuado a patrocinar sua série, com as despesas atordoantes e sua necessidade constante de atualização. — Rita vai trazer croissants — Julian disse ao telefone. — Joe vai fazer a quiche — então ele notou Macon. — Macon! — ele disse. — Stefanie, te ligo de volta — ele desligou. — Como vai a perna? Venha, sente-se. Ele derrubou uma pilha de revistas de iatismo que estava sobre uma cadeira. Macon se sentou e entregou a pasta. — Aqui está o resto do material sobre a Inglaterra — ele disse. — Bem, finalmente! — Esta edição eu estimo que vá ficar com 10 a 12 páginas a mais que a última — Macon disse. — Isso pelo fato de acrescentarmos as mulheres de negócios, listando que hotéis oferecem ascensoristas, quais servem drinques no

saguão... acho que eu deveria receber um pagamento maior. — Vou falar a respeito com Marvin — Julian disse, ando entre os dedos as páginas do manuscrito. Macon suspirou. Julian gastava dinheiro como se fosse água, mas Marvin era mais cauteloso. — Então agora você está de volta aos Estados Unidos — Julian disse. — Bem, se você diz. — Espero que não demore muito. — Não posso ser mais rápido — Macon disse. — Há muitas cidades nos Estados Unidos. — Sim, eu sei disso. Na verdade eu talvez imprima essa edição em seções: Nordeste, Atlântico Central e assim por diante; não sei... — mas então ele mudou de assunto. (Tinha uma mente bastante irrequieta.) — Contei a você sobre minha nova ideia? Um médico amigo meu está cuidando dela: O turista acidental com problemas de saúde. Uma lista de médicos e dentistas com treinamento americano em todas as capitais estrangeiras, mais talvez algumas sugestões para suprimentos médicos básicos: aspirinas, Manual Merck... — Ah, nada de Manuel Merck longe de casa! — Macon disse. — Qualquer pedaço de pele levantada no canto da unha pode ser câncer quando você lê o Manual Merck. — Bem, vou me lembrar disso — Julian disse (sem nem sequer erguer um lápis). — Você não vai me pedir para autografar seu gesso? Ele está tão branco. — Gosto dele branco — Macon disse. — Uso graxa de sapato nele. — Não sabia que era possível fazer isso. — Uso o tipo líquido. É da marca com o rosto da enfermeira no rótulo, se você um dia precisar saber. — O turista acidental de muletas — Julian disse, e se balançou alegremente para trás em sua cadeira. Macon sentia que ele estava prestes a começar seu ato Macon Leary. Ele ficou em pé às pressas e disse: — Bem, acho que vou indo. — Tão cedo? Por que não bebemos alguma coisa? — Não, obrigado, não posso. Minha irmã vem me buscar assim que terminar o que tinha que fazer. — Ah — Julian disse. — E o que tinha que fazer? Macon olhou para ele desconfiado. — Então? Lavanderia? Sapateiro? — Coisa comum, Julian. Nada de especial. — Loja de ferragens? Farmácia?

— Não. — Então o que é? — Hm... ela precisava comprar Furniture Food. A cadeira de Julian balançou tão para trás que Macon achou que ele fosse virar. Desejou que virasse, na verdade. — Macon, faça-me um favor — Julian disse. — Será que você não poderia me convidar uma vez só para um jantar em família? — Nós não somos muito sociáveis — Macon disse a ele. — Não precisaria ser nada chique. Só o que vocês comem normalmente. O que vocês comem normalmente? Ou então eu mesmo levo a comida. Você podia trancar o cachorro... como é mesmo o nome dele? — Edward. — Edward. Ha! E eu apareço à noite. — É, quem sabe — Macon disse, de modo vago. Ajeitou as muletas. — Por que eu não vou lá fora esperar com você? — Eu realmente preferiria que você não fosse — Macon disse. Ele não podia ar a ideia de Julian ver o chapeuzinho em forma de bacia de sua irmã. Ele chegou com esforço à curva e ficou parado ali, olhando na direção de onde Rose deveria vir. Imaginou que ela estivesse perdida outra vez. O frio já estava penetrando na meia esticada que usava sobre o gesso. O problema, ele concluiu, era que nada jamais acontecera a Julian. Seu rosto corado e alegre não tinha qualquer outra marca além das queimaduras de sol; seu único interesse era um meio de transporte ridiculamente ineficiente. Seu breve casamento terminara de maneira amigável. Ele não tinha filhos. Macon não queria parecer preconceituoso, mas não podia evitar a sensação de que pessoas que não tinham filhos nunca haviam crescido de verdade. Não eram inteiramente... reais, ele sentia. Inesperadamente, ele imaginou Muriel depois que o dobermann a derrubara da varanda. Seu braço pendia sem vida; ele sabia como um membro quebrado ficava parecendo ser de chumbo. Mas Muriel o ignorou; nem sequer olhou para ele. Suja e desgrenhada e machucada, ela ergueu a outra mão: “De jeito nenhum”, ela disse. Ela chegou na manhã seguinte com um lenço fino e bufante no cabelo, as mãos metidas nos bolsos do casaco. Edward dançava ao redor dela. Ela apontou para a traseira dele. Edward se sentou, e ela se inclinou para pegar a guia. — Como está o seu menino? — Macon perguntou. Ela olhou para ele. — O quê? — perguntou.

— Ele não estava doente? — Quem lhe disse isso? — Alguém no veterinário, quando telefonei. Ela continuou olhando para ele. — O que era? Gripe? — Ah, sim, provavelmente — ela disse, depois de um momento. — Alguma coisinha no estômago. — É a época do ano, acho. — Por que você telefonou? — ela perguntou a ele. — Eu queria saber por que Edward não se deitava. Ela voltou o olhar para Edward. ou a guia em volta da mão e observouo. — Bato o pé, mas ele nunca me obedece — Macon disse. — Alguma coisa está errada. — Eu disse a você que ele seria teimoso. — Sim, mas tenho treinado há dois dias e ele não está fazendo nenhum... — O que você esperava? Acha que eu sou mágica ou coisa do gênero? Por que coloca a culpa em mim? — Oh, eu não estou colocando a culpa... — É claro que está. Diz que algo está errado, me telefona... — Eu só queria... — Você acha esquisito eu não ter mencionado Alexander, não acha? — Alexander? — Acha que sou algum tipo de mãe desnaturada. — O quê? Não, espere um minuto... — Você não vai mais pensar em mim, agora que sabe que eu tenho um filho, não é? Vai pensar: “Ah, esqueça, não faz sentido eu me envolver nisso”, e então se pergunta por que eu não lhe falei dele logo de saída. Bem, não é óbvio? Você não percebe o que acontece quando falo? Macon não estava acompanhando muito bem sua lógica, talvez porque estivesse distraído com Edward. Quanto mais esganiçada a voz de Muriel ficava, mais eriçado se tornava o pelo de Edward no alto do pescoço. Um sinal ruim. Um sinal muito ruim. O lábio de Edward estava se curvando devagar. Gradualmente, no início de modo quase imperceptível, ele começou a rosnar baixinho. Muriel deu uma olhada para ele e parou de falar. Não parecia alarmada. Limitou-se a bater o pé duas vezes. Mas Edward não apenas não deitou, ele se levantou de sua posição sentada. Agora estava com uma corcova distinta e eletrificada entre os ombros. Parecia ter alterado sua forma básica. Suas orelhas

estavam achatadas sobre o crânio. — Deite — Muriel disse, sem exaltação.

Com um rosnado, Edward pulou diretamente na direção do seu rosto. Todos os dentes reluziam. Seus lábios estavam recuados numa careta horrível e pingos de espuma branca voavam de sua boca. Muriel levantou instantaneamente a guia. Puxou-a com os dois punhos e ergueu Edward por completo do chão. Ele parou de latir. Começou a fazer ruídos de gargarejo. — Ele está sufocando — Macon disse. A garganta de Edward deu uma espécie de estalo esquisito. — Pare. Já basta! Você o está sufocando! Mas ela ainda o mantinha pendurado. Agora Edward revirava os olhos nas órbitas. Macon agarrou o ombro de Muriel mas se viu com um punhado de tecido de casaco, ondulado e irregular como algo vivo. Ele o sacudiu, de todo modo. Muriel baixou Edward ao chão. Ele aterrissou como uma pilha disforme, as pernas encolhidas debaixo do corpo e a cabeça caindo pesadamente. Macon se agachou ao lado dele. — Edward? Edward? Oh, meu Deus, ele está morto! Edward ergueu a cabeça e lambeu sem forças os lábios. — Está vendo isso? Quando eles lambem os lábios é um sinal de que estão cedendo — Muriel disse, alegremente. — O Doggie Do me ensinou isso. Macon se levantou. Estava tremendo. — Quando eles lambem os lábios é bom, mas quando colocam uma pata sobre o seu pé é ruim — Muriel disse. — Parece uma espécie de linguagem secreta, não parece? — Nunca mais faça isso — Macon disse a ela. — Hã? — Na verdade, não se dê ao trabalho de voltar. Fez-se um silêncio sobressaltado. — Ora, muito bem — Muriel disse, apertando o lenço. — Se é assim que você se sente, por mim tudo ótimo — ela ou com cuidado em torno de Edward e abriu a porta da frente. — Quer um cachorro com o qual não consegue lidar? Por mim tudo bem. — Eu prefiro um cachorro que late a um cachorro machucado e tímido —

Macon disse. — Você quer um cachorro que morde todos os seus amigos? Deixa as crianças da vizinhança traumatizadas? Faz com que você seja processado? Você quer um cachorro que odeia o mundo inteiro? Um cachorro mau, perverso, raivoso? Que mata o mundo inteiro? Ela saiu pela porta de tela e fechou-a atrás de si. Então olhou através da tela dentro dos olhos de Macon. — Ora, bem, acho que quer — ela disse. Do chão, Edward deu um gemido e observou-a ir embora.

________________ 2 “Dog-do”, em inglês. (N. da T.)

8 Os dias agora eram mais curtos e mais frios, e as árvores despejavam mares de folhas no gramado, mas permaneciam, de algum modo, tão cheias quanto antes. Então, quando você acabava de varrer as folhas com o ancinho, levantava os olhos e via uma imensidão de laranja e amarelo apenas aguardando para cobrir a grama outra vez no instante em que virasse as costas. Charles e Porter foram de carro até a casa de Macon e varreram lá também, e acenderam o piloto da fornalha e consertaram a janela do porão. Relataram que tudo parecia estar bem. Macon escutou as notícias sem muito interesse. Na semana seguinte não estaria mais de gesso, mas ninguém lhe perguntava quando voltaria para casa. Todas as manhãs Edward praticava caminhar. Eles andavam penosamente por todo o quarteirão, Edward se equiparando ao ritmo de Macon com tanta perfeição que também ele parecia um aleijado. Quando cruzavam com algum ante, agora, ele rosnava baixinho, mas não atacava. “Está vendo?” Macon queria dizer a alguém. Ciclistas eram outra questão, mas Macon tinha certeza de que iam resolver aquele problema também, em algum momento. Ele fazia Edward se sentar e então recuava, a palma da mão aberta. Edward esperava. Ah, ele não era um cachorro tão mau assim! Macon gostaria de poder mudar os gestos de comando — a palma, o dedo estendido, todos os vestígios daquela treinadora desalmada — mas achava que já era tarde demais. Bateu o pé. Edward rosnou. — Meu querido — Macon disse, caindo pesadamente ao lado dele. — Você por gentileza consideraria a hipótese de se deitar? Edward desviou os olhos. Macon acariciou o amplo espaço vazio entre suas orelhas. — Ah, bem, talvez amanhã — ele disse. A família dele não era tão otimista. — E quando você voltar a viajar? — Rose perguntou. — Você não vai deixálo comigo. Eu não saberia como lidar com ele. Macon disse a ela que iam pensar naquela questão quando chegasse o momento. Era difícil para ele imaginar a retomada das viagens. Às vezes desejava que pudesse ficar com o gesso para sempre. Na verdade, gostaria que o cobrisse da cabeça aos pés. As pessoas dariam batidas suaves no seu peito. Espiariam nos buracos dos olhos. “Macon? Você está aí?” Talvez ele estivesse, talvez não.

Ninguém jamais saberia. Certa noite, logo após o jantar, Julian apareceu com uma pilha de papéis. Macon teve que fechar Edward dentro da copa antes de abrir a porta. — Aqui está você! — Julian disse, ando ao lado dele. Usava calças de veludo cotelê e seu aspecto era vigoroso e saudável. — Telefonei durante três dias seguidos. Pelo som, aquele cachorro parece estar assustadoramente perto, não acha? — Ele está na copa — Macon disse. — Bem, eu trouxe alguns materiais para você, Macon. Principalmente sobre Nova York. Temos um bocado de sugestões sobre Nova York. Macon gemeu. Julian colocou os papéis no sofá e olhou ao redor. — Onde estão os outros? — ele perguntou. — Ah, por aí — Macon disse, de modo vago, mas nesse exato momento Rose reapareceu, e Charles vinha logo atrás. — Espero não estar interferindo no jantar — Julian disse a eles. — Não, não — Rose disse. — Já terminamos — Macon completou, triunfante. A expressão no rosto de Julian desabou. — É mesmo? — ele perguntou. — A que horas vocês comem, afinal? Macon não respondeu. (Eles comiam às 17h30. Julian ia rir.) Rose disse: — Mas ainda não tomamos nosso café. Você não quer um café? — Eu adoraria. — Parece um pouco tolo — Macon disse —, já que você ainda não comeu. — Bem, sim — Julian respondeu —, acho que sim, Macon, mas para alguém como você. Mas para mim, café feito em casa é uma iguaria e tanto. Todas as pessoas do meu prédio comem fora, e não há nada nas cozinhas além de latas de amendoim e refrigerante diet. — Que espécie de lugar é esse? — Rose perguntou. — É o Calvert Arms, um edifício de solteiros. Todo mundo é solteiro. — Oh! Que ideia interessante. — Bem, na verdade, não — Julian disse, de modo desanimado. — Não depois de algum tempo. No começo eu gostava, mas agora acho que está me deprimindo. Às vezes eu gostaria de voltar ao velho modo de fazer as coisas, com filhos e famílias e pessoas de idade como os prédios normais têm. — Ora, é claro que sim — Rose disse a ele. — Vou trazer um bom café quente. Ela saiu, e os outros se sentaram. — Então. São só vocês três? — Julian perguntou. Macon se recusou a responder, mas Charles disse: — Ah, não, também tem

Porter. — Porter? Onde está Porter? — Hm, não sabemos ao certo. — Desaparecido? — Ele foi a uma loja de ferragens e achamos que se perdeu. — Minha nossa, quando isso aconteceu? — Um pouco antes do jantar. — Jantar. Você quer dizer hoje. — Ele tinha algo a fazer — Macon disse. — Não está perdido num sentido permanente. — Onde era a loja? — Em algum lugar na Howard Street — Charles respondeu. — Rose precisava de dobradiças. — Ele se perdeu na Howard Street? Macon se levantou. — Vou ajudar Rose — ele disse. Rose estava colocando as canecas de vidro da avó deles numa bandeja de prata. — Espero que ele não use açúcar — ela disse. — O açucareiro está vazio e Edward está na copa, onde eu guardo o saco. — Eu não me preocuparia com isso. — Talvez você possa entrar na copa e pegar para mim. — Ah, sirva o café para ele puro e diga-lhe que é isso ou nada. — Ora, Macon! É o seu patrão! — Ele só está aqui porque espera que façamos algo excêntrico — Macon disse a ela. — Ele tem essa noção unilateral a nosso respeito. Só peço que nenhum de nós diga nada fora do convencional perto dele, está me ouvindo? — O que nós diríamos? — Rose perguntou. — Somos as pessoas mais convencionais que conheço. Isso era verdade absoluta, e no entanto, de algum modo esquisito, não era. Macon não sabia explicar. Suspirou e acompanhou-a para fora da cozinha. Na sala de estar, Charles estava obstinadamente discutindo se deveriam atender o telefone caso tocasse, caso fosse Porter, caso ele precisasse que consultassem um mapa. — As chances, no entanto, são de que ele não se daria ao trabalho de ligar — ele concluiu — porque sabe que não atenderíamos. Ou, não sei, talvez ele imagine que mesmo assim atenderíamos, porque estamos preocupados. — Vocês sempre se preocupam tanto com seus telefonemas? — Julian perguntou.

Macon disse: — Venha tomar um café, Julian. Experimente sem açúcar. — Ora, obrigado — Julian disse. Ele aceitou uma caneca e estudou a inscrição que desenhava um arco ao redor dela. “século de progresso 1933”, ele leu. Abriu um sorriso e ergueu a caneca num brinde. — Ao progresso — ele disse. — Progresso — Rose e Charles ecoaram. Macon lançou um olhar mal-humorado. Julian disse: — Com o que você trabalha, Charles? — Faço tampas de garrafa. — Tampas de garrafa! Não me diga! — Ah, bem, não é nada de mais — Charles replicou. — Isto é, não é tão excitante quanto parece, na verdade. — E Rose? Você trabalha? — Sim, trabalho — Rose disse, no estilo bravo e direto de alguém que está sendo entrevistado. — Trabalho em casa; cuido da casa para os meninos. Também cuido de vários vizinhos. Eles são em sua maioria velhos e precisam que eu leia receitas médicas e conserte encanamento e coisas do tipo. — Você conserta o encanamento deles? — Julian perguntou. O telefone tocou. Os outros se enrijeceram. — O que você acha? — Rose perguntou a Macon. — Hm... — Mas ele sabe que nós não atenderíamos — Charles disse a eles. — Sim, ele poderia certamente ligar para um vizinho em vez disso. — Por outro lado... — Charles disse. — Por outro lado — Macon completou. Foi o rosto de Julian que fez com que ele tomasse a decisão — a expressão divertida e animada de Julian. Macon estendeu a mão até a mesinha e pegou o fone. — Leary — ele disse. — Macon? Era Sarah. Macon lançou um olhar para os outros e virou-lhes as costas. — Sim — ele disse. — Ora, até que enfim — ela disse. Sua voz parecia estranhamente uniforme e concreta. Subitamente ele a viu com clareza: ela usava uma daquelas suas camisetas velhas e se sentava

abraçando os joelhos nus. — Estava tentando entrar em contato com você em casa — ela disse. — Então me ocorreu que você pudesse estar jantando com a sua família. — Algo de errado? — ele perguntou. Estava quase sussurrando. Talvez Rose tivesse entendido quem era, pois subitamente começou uma conversa animada com os outros. Sarah disse: — O quê? Não consigo te escutar. — Está tudo bem? — Quem está falando aí atrás? — Julian está aqui. — Ah, Julian! Mande lembranças. Como está Sukie? — Sukie? — O barco dele, Macon. — Ele está bem — ele disse. Ou deveria ter disto “ela"? Até onde sabia, Sukie estava no fundo de Chesapeake. — Telefonei porque achei que devíamos conversar — Sarah disse. — Esperava que pudéssemos nos encontrar para jantar uma noite dessas. — Oh. Bem. Sim, podíamos fazer isso — Macon respondeu. — Amanhã estaria bem? — Claro. — Que restaurante? — Ora, por que não o Old Bay? — Macon disse. — O Old Bay. Claro — Sarah respondeu. Ela suspirou ou riu, ele não sabia com certeza qual das duas coisas. — É só porque você pode ir andando até lá — ele disse a ela. — Foi só por esse motivo que sugeri. — Sim, bem, vamos ver. Você gosta de comer cedo; digamos às 18 horas? — Às 18 horas está bem — ele disse. Quando desligou, descobriu Rose a bordo de uma discussão sobre a língua inglesa. Ela fingiu não notar que ele havia se reunido a eles. Era escandaloso, ela dizia, o quão desleixada a linguagem cotidiana tinha se tornado. Como o mundo parecia firmemente decidido a dizer “o hoi polloi”, uma redundância nítida diante do fato de que “hoi” era artigo3. Como “chauvinista” tinha se tornado um termo abreviado de “homem chauvinista”, seu significado original infelizmente perdido no conhecimento comum. Era incrível, Charles concordou, que uma estrela de cinema viajasse “incógnita” quando qualquer tolo deveria saber que ela estava, na verdade, “incógnita”. Julian parecia compartilhar da indignação deles. Era ainda mais incrível como todo mundo lançava a esmo a palavra “incrível” quando na verdade havia

tão poucas coisas na terra que realmente desafiassem a credibilidade. — A crença — Macon corrigiu-o, mas Rose se apressou a dizer, como se Macon não tivesse falado: — Ah, sei o que você quer dizer — ela disse a Julian. — As palavras estão ficando desvalorizadas, não é mesmo? Ela puxava a saia reta cinza sobre os joelhos num gesto infantil. A impressão era a de que ela nunca fora advertida sobre o fato de que gente de fora não merecia confiança.

Para entrar no restaurante Old Bay, Macon teve que subir alguns degraus. Antes de quebrar a perna ele nem sequer notara que os degraus existiam — para não mencionar o fato de serem feitos de um mármore liso e uniforme, de modo que suas muletas ameaçavam deslizar. Então ele teve que lidar com a pesada porta da frente, correndo um pouco porque Rose pegara uma rua errada ao leválo de carro e já eram 18h05. O foyer estava escuro como a noite. O salão de jantar adiante estava apenas um pouco mais claro, iluminado por velas nas mesas. Macon espiou dentro da penumbra. — Vou encontrar alguém — ele disse à recepcionista. — Ela já chegou? — Não que eu saiba, meu bem. Ela o conduziu, ando por um tanque cheio de lagostas apáticas, por duas senhoras de idade usando chapéus de igreja e bebendo drinques de um rosaclaro, por toda uma fileira de mesas vazias. Era cedo demais para que mais alguém estivesse comendo; todos os outros fregueses ainda estavam no bar. As mesas ficavam bem próximas umas das outras, as toalhas roçando o chão, e Macon imaginou uma das muletas se enganchando em uma toalha de mesa e derrubando tudo atrás dele, vela incluída. O carpete marrom florido ia pegar fogo. O restaurante favorito de seu avô — de seu bisavô também, era bem possível — seria reduzido a um monte de gaiolas de caranguejo de metal carbonizado. — Senhorita! Mais devagar! — ele exclamou, mas a recepcionista continuou andando a os largos, musculosa e atlética em seu vestido de dançar quadrilha, com ombros à mostra, e sapatos brancos robustos com sola de borracha. Ela o colocou num canto, por sorte, já que assim lhe dava um lugar onde apoiar as muletas. Mas no instante em que ele as estava juntando e preparando

para colocar de lado, ela disse: — Eu pego isso para você, querido. — Ah, não há problema em deixá-las aqui. — Preciso deixá-las na entrada, querido. É uma norma. — Vocês têm uma norma para muletas? — Elas podem fazer os outros clientes tropeçarem, meu bem. Isso era improvável, já que as outras clientes estavam do outro lado do salão, mas Macon entregou as muletas. Pensando bem, ficaria melhor sem elas. Assim Sarah não ficaria com a impressão (pelo menos à primeira vista) de que ele desmoronara em sua ausência. Assim que ele se viu só, puxou o punho de cada manga a fim de deixar ver cerca de meio centímetro de branco. Usava seu paletó de tweed cinzento e calças cinzentas de flanela — um par de calças velhas, então não importava ter cortado fora uma das pernas. Charles as buscara em casa e Rose fizera o ajuste, e também cortara seu cabelo. Porter lhe emprestara sua melhor gravata listrada. Eles tinham sido todos tão discretamente prestativos que Macon se sentira triste, por algum motivo. A recepcionista reapareceu na entrada, seguida por Sarah. Macon teve um instante de atordoado reconhecimento; era como ver seu próprio reflexo num espelho acidentalmente. Seu halo de cachos, o modo como o casaco caía ao seu redor com dobras suaves, seu o firme e saltitante em escarpins de salto fino — como ele havia se esquecido disso? Ele se levantou ligeiramente. Ela ia beijá-lo? Ou apenas, que Deus não permitisse, apertar sua mão? Mas não, ela não fez nenhuma das duas coisas; fez algo muito pior. Deu a volta na mesa e apertou a bochecha contra a dele rapidamente, como se eles fossem meros conhecidos se encontrando num coquetel. — Olá, Macon — ela disse. Ele fez um gesto, sem dizer nada, para que ela se sentasse na cadeira diante da sua. Sentou-se outra vez, com algum esforço. — O que aconteceu com a sua perna? — ela perguntou. — Tive uma espécie de... queda. — Está quebrada? Ele fez que sim. — O que você fez com sua mão? Ele a ergueu para examiná-la. — Bem, é uma espécie de mordida de cachorro. Mas já está quase curada. — Eu me referia à outra mão.

A outra mão tinha uma faixa de gaze em torno dos nós dos dedos. — Ah, isto — ele disse. — É só um arranhão. Eu estava ajudando Rose a construir uma porta para gatos. Ela o examinou. — Mas eu estou bem! — ele lhe disse. — Na verdade o gesso é quase confortável. Quase familiar! Fico me perguntando se quebrei a perna alguma vez em alguma encarnação prévia. A garçonete deles perguntou: — Posso lhes trazer alguma coisa do bar? Ela estava de pé ao lado da mesa, bloco e caneta posicionados. Sarah começou a folhear apressadamente o cardápio, de modo que Macon disse: — Xerez seco, por favor. Então ele e a garçonete se voltaram para Sarah. — Ah, meu Deus — Sarah disse. — Deixe-me ver. Bem, que tal um Rob Roy. Sim, um Rob Roy seria ótimo, com cerejas extras. Isso também era algo que ele havia esquecido: ela gostava de pedir drinques complicados em restaurantes. Sentiu os cantos da boca virando para cima. — Então — Sarah disse, depois que a garçonete foi embora. — Por que Rose estava construindo uma porta para gatos? Achei que eles não tinham bichos. — Não, esta é para a nossa gata. Helen. Helen e eu estamos hospedados lá. — Por quê? — Bem, por causa da minha perna. Sarah não disse nada. — Bem, você pode me ver dando conta daqueles degraus, lá em casa? — Macon perguntou a ela. — Levando Edward para ear? Colocando o lixo para fora? Mas ela estava ocupada tirando o casaco. Por baixo usava um vestido de lã de cor indeterminada. (A luz das velas deixava tudo em tons de sépia, como fotografias antigas.) Macon não teve tempo de se perguntar se tinha dado a ela a impressão errada. Parecia, talvez, estar reclamando, como se a estivesse censurando por tê-lo deixado sozinho. — Mas é verdade — ele disse —, eu tenho andado ótimo. — Que bom — Sarah, solícita, sorriu para ele e voltou ao cardápio. As bebidas foram colocadas diante deles em pequenos discos de papelão com caranguejos gravados. A garçonete perguntou: — Prontos para fazer o pedido, queridos? — Bem — Sarah disse —, acho que vou querer o antepasto quente e o filé Pierre. A garçonete, parecendo alarmada, olhou para o menu por cima do ombro de Sarah. (Sarah nunca parecera entender o que era o restaurante Old Bay.) — Aqui

— Sarah disse, apontando. — E aqui. — Se é o que deseja — a garçonete disse, tomando nota. — Eu só vou querer, sabe — Macon disse —, sopa de siri, salada de camarão... — ele devolveu o cardápio. — Sarah, você quer vinho? — Não, obrigada. Quando retomaram a conversa, ela perguntou: — Quanto tempo faz que você está na casa da sua família? — Desde setembro — Macon disse. — Setembro! Sua perna está quebrada esse tempo todo? Ele fez que sim e tomou um gole de seu drinque. — Amanhã eu tiro o gesso — ele disse. — E Edward está lá também? Ele fez que sim novamente. — Foi Edward quem mordeu sua mão? — Bem, foi. Ele se perguntou se ela agiria como os outros, insistindo para que ele chamasse a Sociedade Protetora dos Animais; mas em vez disso ela puxou uma cereja do espeto de plástico em seu drinque, com ar meditativo. — Acho que ele tem estado irritado — ela disse. — Sim, tem mesmo, na verdade — Macon concordou. — Ele não é em nada ele mesmo. — Pobre Edward. — Está ficando meio fora de controle, para dizer a verdade. — Ele sempre foi sensível às mudanças — Sarah disse. Macon tomou coragem. — Na verdade, ele tem atacado a torto e a direito — ele contou. — Tive que contratar uma treinadora especial. Mas ela era rude demais; vamos ser honestos, ela era brutal. Quase o estrangulou quando ele tentou mordê-la. — Ridículo — Sarah disse. — Ele só estava assustado. Quando Edward está assustado, ele ataca; é simplesmente seu jeito de ser. Não faz sentido assustá-lo ainda mais. Macon sentiu uma repentina onda de amor. Oh, ele sentira raiva dela e a odiara e a esquecera por completo, em momentos distintos. Tinha ado por ocasiões que imaginara que nunca havia gostado dela, para começo de conversa; só fora atrás dela porque todo mundo ia. Mas a verdade era que ela era sua amiga mais antiga. Os dois tinham ado por coisas de que ninguém mais no mundo sabia. Ela estava incrustada na vida dele. Era tarde demais para arrancá-la. — O que ele quer — ela dizia — é uma sensação de rotina. É tudo de que

precisa: segurança. — Sarah — ele disse —, tem sido terrível viver separado. Ela olhou para ele. Algum efeito da luz fez seus olhos parecerem de um azul mais escuro, quase pretos. — Não é? — ele perguntou. Ela abaixou o copo. Disse: — Eu te convidei para vir aqui por um motivo, Macon. Ele podia sentir que era algo que não queria ouvir. Ela disse: — Precisamos acertar os detalhes da nossa separação. — Estamos separados; o que há para acertar? — ele perguntou. — Quero dizer legalmente. — Legalmente. Entendo. — Bem, de acordo com o estado de Maryland... — Eu acho que você devia vir para casa. O primeiro prato deles chegou, e a mão que os colocou à sua frente, pelo que dizia respeito a Macon, não estava ligada a um corpo. Frascos de condimentos foram deslocados sem necessidade; um e de metal cheio de saquinhos de açúcar foi movido dois centímetros mais para perto. — Algo mais? — a garçonete perguntou. — Não! — Macon disse. — Obrigado. Ela se afastou. Ele disse: — Sarah? — Não é possível — ela respondeu. Ela deslizava uma única pérola para cima e para baixo na corrente em sua garganta. Ele lhe dera aquela pérola quando estava tentando conquistá-la. Havia algum significado em usá-la naquela noite? Ou talvez ela se importasse tão pouco agora que nem lhe ocorrera tirá-la. Sim, isso era mais provável. — Ouça — ele disse. — Não diga que não antes de me escutar. Você já considerou a hipótese de termos outro filho? Ele a tinha chocado, podia ver; ela inspirou. (Ele tinha chocado a si mesmo.) — Por que não? — ele perguntou a ela. — Não somos velhos demais. — Oh, Macon. — Desta vez seria fácil — ele disse. — Não levaria sete anos outra vez; aposto que você ficaria grávida num piscar de olhos! — Ele se inclinou na direção dela, esforçando-se para fazê-la enxergar a si mesma florescendo naquele exuberante macacão de grávida cor-de-rosa que costumava usar.

Estranhamente, porém, o que ou como um lampejo por sua mente em vez disso foi a memória daqueles primeiros sete anos — o desapontamento deles a cada mês. Parecia a Macon, naquela época (embora claro que era pura superstição), que os fracassos deles eram sinal de algo mais profundo, alguma incompatibilidade essencial. Perderam a conexão um com o outro no sentido mais básico e literal. Quando ela por fim engravidou, ele não se sentiu apenas aliviado, mas culpado, como se tivessem conseguido transferir a responsabilidade de alguma coisa a alguém. Ele reprimiu aqueles pensamentos. — Eu sei — disse — que não seria Ethan. Sei que não podemos substituí-lo. Mas... — Não — Sarah disse. Os olhos dela estavam fixos. Ele conhecia aquele olhar. Ela nunca mudaria de ideia. Macon fitou a sopa. Era a melhor sopa de siri em Baltimore, mas infelizmente os temperos tinham a tendência de fazer seu nariz escorrer. Ele esperava que Sarah não pensasse que estava chorando. — Sinto muito — ela disse, com mais suavidade. — Mas nunca funcionaria. Ele continuou: — Tudo bem, esqueça isso. Era loucura, certo? Uma ideia louca. Quando o bebê tivesse 20 anos, nós teríamos... Você não vai comer? Ela lançou um olhar para o prato. Depois pegou o garfo. — Suponhamos que eu fizesse isso — Macon disse. — Suponhamos que eu pegasse uma mala com as suas roupas e batesse na sua porta e dissesse: “Venha, vamos para Ocean City. Já perdemos tempo demais.” Sarah ficou olhando fixamente, uma alcachofra a meio caminho da boca. — Ocean City? — ela disse. — Você detesta Ocean City! — Sim, mas eu queria dizer... — Você sempre disse que era cheia demais. — Sim, mas... — E a que roupas você estaria se referindo? Elas estão todas no meu apartamento. — Era só modo de dizer — Macon falou. — Falando sério, Macon — ela disse a ele. — Você nem mesmo se comunica quando se comunica. — Ah, comunicar-se — ele retrucou. (Palavra que vinha em último lugar na lista de suas favoritas.) — Tudo o que estou querendo dizer é: acho que devíamos começar de novo. — Estou começando de novo — ela disse. Colocou a alcachofra de volta no prato. — Estou fazendo todo o possível para começar de novo — ela continuou

—, mas isso não significa que eu queira viver a mesma vida duas vezes. Estou tentando seguir por direções novas. Estou fazendo alguns cursos. Estou até saindo com alguém, de vez em quando. — Saindo com alguém? — Tenho saído com um profissional da saúde. Fez-se uma pausa. Macon disse: — Por que não chamá-lo simplesmente de médico? Sarah fechou os olhos por um breve momento. — Olhe — ela continuou. — Sei que isso é difícil para você. É difícil para nós dois. Mas na verdade não sobrou muita coisa entre nós, não percebe? Veja a quem você recorreu quando quebrou a perna: à sua irmã Rose! Você nem me contou, e tem o meu telefone. — Se eu recorresse a você em vez dela, você teria vindo? — Bem... você pelo menos podia ter pedido. Mas não, você chamou sua família. Você é mais próximo deles do que jamais foi de mim. — Isso não é verdade — Macon disse. — Ou melhor, é verdade, mas a questão não é essa. Isto é, num certo sentido é claro que somos mais próximos; temos relações sanguíneas. — Jogando aquele ridículo jogo de cartas que ninguém mais consegue entender — Sarah disse. — Planejando seus projetinhos caseiros, Rose com a chave-inglesa e a solda. Circulando por lojas de ferragens feito outras pessoas circulam por butiques. — Assim como outras pessoas circulam por butiques — Macon interveio. E depois se arrependeu. — Dissecando o inglês das pessoas para encontrar defeitos — Sarah disse. — Apanhando o dicionário a cada oportunidade. Sofismando sobre o método. O tipo de família que sempre usa o cinto de segurança. — Pelo amor de Deus, Sarah, o que há de errado em usar o cinto de segurança? — Eles sempre vão a um restaurante, aquele a que seus avós iam antes deles, e mesmo lá precisam rearrumar os talheres e ajeitar as coisas como se estivessem sentados à mesa do mesmo modo como se sentam em casa. Eles se agitam e deliberam, não conseguem nem sequer fechar uma cortina sem essa discussão em grupo sobre isso e aquilo, um lado e o outro, os prós e os contras. “Bem, se deixarmos aberta vai ficar muito quente, mas se fecharmos as coisas vão ficar mofadas...” Eles têm que beber seus seis copos d’água todos os dias. Comer suas preciosas batatas assadas todas as noites. Não acreditam em canetas esferográficas ou máquinas elétricas ou transmissão automática. Não acreditam

em “oi” e “tchau”. — Oi? Tchau? — Macon disse. — Olhe para você mesmo de vez em quando! As pessoas entram e você apenas, ah, registra o fato com os olhos; as pessoas saem e você apenas desvia o olhar rapidamente. Você não ite as idas e vindas. E a melhor casa do mundo pode aparecer no mercado, mas você não vai comprá-la porque encomendou essas etiquetas com o endereço da casa antiga, 1.500 adesivos autocolantes, e tem que usá-los antes de se mudar. — Não fui eu, foi Charles — Macon replicou. — Sim, mas poderia ter sido você. E a mulher dele se divorciou por isso, e eu não a culpo. — E agora você está prestes a fazer a mesma coisa — Macon disse. — Arruinar vinte anos de casamento por causa de cintos de segurança. — Eles foram arruinados anos atrás, acredite — Sarah disse. Macon largou a colher. Obrigou-se a respirar fundo. — Sarah — ele disse. — Estamos nos desviando do assunto. Depois de um instante de silêncio, Sarah concordou: — Sim, acho que estamos. — O que aconteceu com Ethan foi o que nos arruinou — Macon disse a ela. Ela pôs um cotovelo sobre a mesa e cobriu os olhos. — Mas não precisaria ser assim — ele continuou. — Ora, para algumas pessoas, uma coisa dessas as aproxima. Por que estamos deixando que nos separe? A garçonete os interrompeu: — Está tudo bem? Sarah se endireitou e começou a remexer dentro da bolsa. — Sim, claro — Macon respondeu. A garçonete trazia uma bandeja com seus pratos principais. Lançou um olhar incerto ao antepasto de Sarah. — Ela não vai comer isso ou o quê? — perguntou a Macon. — Não, acho, hm, talvez não. — Ela não gostou? — Gostou sim. Pode levar. A garçonete se ocupou da mesa num silêncio ofendido. Sarah colocou a bolsa de lado. Abaixou os olhos para sua refeição, que estava algo marrom e pegajosa. — Você pode ficar com metade da minha salada de camarão — Macon disse a ela depois que a garçonete se afastou. Ela sacudiu a cabeça. Seus olhos estavam pesados de lágrimas ainda não derramadas.

— Macon — ela disse — desde que Ethan morreu tive que itir que as pessoas são basicamente ruins. Más, Macon. Tão más a ponto de pegar um menino de 12 anos e atirar em seu crânio sem nenhum motivo. Agora eu leio o jornal e me desespero; desisti de ver o noticiário na TV. Há tanta crueldade, crianças colocando fogo em outras crianças e homens adultos jogando bebês de janelas no segundo andar, estupro, tortura e terrorismo, pessoas idosas levando surras e sendo assaltadas, homens em nosso próprio governo dispostos a explodir o mundo, indiferença, cobiça e raiva presentes em cada esquina. Olho para os meus alunos e eles são muito comuns, mas são exatamente iguais ao garoto que matou Ethan. Se não estivesse escrito abaixo da foto daquele garoto o motivo da sua prisão, você não imaginaria que ele era uma pessoa qualquer? Alguém que entrou para o time de basquete ou ganhou uma bolsa para a faculdade? Você não pode acreditar numa única alma. Na primavera ada, Macon, eu lhe disse isso, eu estava podando nossa cerca viva e vi que o bebedouro para pássaros tinha sido roubado da murta. Tem gente que rouba até mesmo de arinhos! E eu simplesmente, não sei, perdi a cabeça e ataquei a murta. Cortei-a toda, arranquei os galhos, fatiei-a com minha tesoura de poda... — As lágrimas escorriam pelo seu rosto, agora. Ela se inclinou por cima da mesa e disse: — Há momentos em que eu não tinha certeza de poder, não quero soar melodramática, mas, Macon, eu não tinha certeza de poder continuar vivendo neste tipo de mundo. Macon percebeu que tinha que ser extremamente cuidadoso. Tinha que escolher exatamente as palavras certas. Pigarreou e disse: — Sim, hm, entendo o que você quer dizer, mas... — ele pigarreou novamente. — É verdade — ele disse — o que você diz sobre os seres humanos. Não estou tentando discutir. Mas me diga uma coisa, Sarah: por que isso seria motivo para você me deixar? Ela amassou o guardanapo e limpou o nariz. Disse: — Porque eu sabia que você não ia tentar discutir. Você achava o tempo todo que eles eram maus. — Bem, então... — Durante todo o ano ado eu senti que me recolhia. Que me retirava. Podia me sentir encolhendo. Afastei-me das multidões. Não fui a festas, não convidei nossos amigos para irem a nossa casa. Quando você e eu fomos para a praia no verão eu me deitava na minha esteira com todas aquelas pessoas ao meu redor, seus rádios estridentes e suas fofocas e suas brigas, e pensava: “Ugh, eles são tão deprimentes. São tão detestáveis. Tão desprezíveis, na verdade.” Eu me sentia encolhendo e me afastando deles. Exatamente feito você faz, Macon. Exatamente como você faz; me desculpe. Exatamente como você sempre fez. Senti que estava me transformando numa Leary. Macon tentou usar um tom mais brando: — Bem, há desastres piores do que

isso, imagino. Ela não sorriu. Disse: — Não posso me permitir. — Permitir? — Tenho 42 anos. Não tenho mais tempo para me encolher dentro da minha concha. Então eu agi. Eu me soltei. Moro num apartamento que você detestaria, todo desordenado. Fiz um punhado de novos amigos, e você também não gostaria muito deles, acho. Estou estudando com um escultor. Sempre quis ser artista, só que dar aulas parecia mais sensato. É o que você pensaria: sensato. Você é tão rápido quando se trata de ser sensato, Macon, que praticamente abriu mão de todo o resto. — De que eu abri mão? Ela dobrou outra vez o guardanapo e secou os olhos. Um borrão comovente de rímel sombreava a pele debaixo deles. Ela disse: — Lembra-se de Bett Grand? — Não. — Betty Grand, que frequentava a minha escola. Você gostava dela antes de me conhecer. — Eu jamais gostei de alguém no mundo antes de conhecer você — Macon disse. — Você gostava de Betty Grand, Macon. Você me contou na primeira vez que saímos. Perguntou-me se eu a conhecia. Achava-a bonita e a convidara para ver um jogo, mas ela recusara. Você me disse que mudou de ideia sobre ela ser bonita. Suas gengivas apareciam todas as vezes que ela sorria, você disse. Macon ainda se lembrava, mas disse: — Bem, e daí? — Você desistiu de tudo o que pudesse lhe magoar, irritar ou atrapalhar e ou sem essas coisas, disse que de todo modo nunca as havia desejado, de qualquer forma. — Acho que teria feito melhor negócio se ficasse sofrendo por Betty Grand a vida inteira. — Bem, você pelo menos teria demonstrado algum sentimento. — Eu demonstro sentimentos, Sarah. Estou aqui sentado com você, não estou? Você não me vê desistindo de você. Ela preferiu não escutar isso. — E quando Ethan morreu — ela disse —, você arrancou cada um dos adesivos Wacky Pack da porta do quarto dele. Esvaziou seu closet e sua cômoda como se não visse a hora de se livrar dele. Ficava oferecendo às pessoas as coisas dele no porão, pernas de pau, trenós e skates, e não conseguia entender por que as pessoas não aceitavam. “Detesto ver as coisas jogadas lá, sem utilidade”, você dizia. Macon, sei que você o amava, mas não posso evitar

pensar que não o amava tanto quanto eu, que não ficou tão devastado quando ele se foi. Sei que você chorou sua morte, mas há algo tão, como é que se diz, tão amortecido na forma como você vive as coisas, refiro-me ao amor ou ao pesar ou a qualquer coisa; é como se você estivesse tentando ar pela vida sem se modificar. Não vê por que eu tinha que ir embora? — Sarah, eu não sou amortecido, eu... o. Estou tentando ar, estou segurando firme, estou aguentando a barra. — Se realmente acha isso — Sarah disse —, então está se iludindo. Não está aguentando a barra; está cristalizado. Está encaixotado. É como algo numa cápsula. É um caroço seco de homem em que nada penetra realmente. Oh, Macon, não é por acaso que você escreve esses livros bobos dizendo às pessoas como viajar sem surpresas. Aquela poltrona viajante não é apenas o seu logotipo; é você. — Não é, não! — Macon replicou. — Não é! Sarah vestiu o casaco, desajeitada. Uma ponta da gola ficou enfiada para dentro. — Seja como for — ela disse. — Isto é o que eu queria lhe dizer: John Albright vai lhe mandar uma carta. — Quem é John Albright? — É um procurador. — Oh — Macon disse. ou-se pelo menos um minuto inteiro antes que ele pensasse em dizer: — Acho que você deve estar querendo dizer um advogado. Sarah pegou a bolsa, se levantou e saiu. Macon dedicou-se conscientemente à sua salada de camarão. Comeu a salada de repolho cru por causa da vitamina C. Depois terminou todas as batatas fritas, mesmo sabendo que sua língua ia ficar parecendo atrofiada na manhã seguinte. Uma vez, quando Ethan era pequeno, com não mais do que 2 ou 3 anos de idade, ele saíra correndo pela rua atrás de uma bola. Macon estava longe demais para detê-lo. Tudo o que podia fazer era gritar: “Não!”, e depois observar, imobilizado de terror, enquanto uma picape dobrava a esquina à toda. Nesse instante, ele se desligou. Numa fração de segundo ajustou-se a um futuro em que não havia Ethan — um lugar incomensuravelmente mais árido, mas também, em compensação, mais direto e simples, livre dos problemas que uma criança pequena traz, as demandas intermináveis, a bagunça e as disputas pela atenção da mãe. Então a picape parou de repente e Ethan recuperou a bola e os joelhos de Macon ficaram bambos de alívio. Mas ele se lembraria para sempre da velocidade com que se

ajustara. Perguntava-se, às vezes, se o primeiro ajuste de algum modo ficara, tornando menos chocante o que mais tarde aconteceu com Ethan do que teria sido. Mas se as pessoas não se ajustassem, como ariam seguir adiante? Ele pediu a conta e pagou. — Havia algo de errado? — a garçonete perguntou. — Sua amiga não gostou da comida? Ela podia mandar de volta, meu bem. Sempre deixamos você mandar de volta. — Sei disso — Macon riu. — Talvez estivesse condimentada demais para ela. — Estava ótima — ele disse. — Pode me trazer minhas muletas, por favor? Ela foi buscá-las, sacudindo a cabeça. Ele teria que achar um táxi. Não tinha combinado com Rose de apanhá-lo. Secretamente, estava esperando voltar para casa com Sarah. Agora essa esperança parecia patética. Ele olhou ao redor para o salão e viu que a maioria das mesas estava ocupada, e que todas as pessoas jantavam em companhia de alguém. Só Macon estava sentado sozinho. Manteve-se muito ereto e digno, mas por dentro, sabia, estava desmoronando. E quando a garçonete lhe trouxe suas muletas e ele se levantou para sair, pareceu-lhe apropriado que tivesse que andar quase dobrado, o queixo afundado no pescoço e os ombros se projetando desajeitadamente, como as asas de um filhote de pássaro. As pessoas olhavam para ele quando ava. Algumas abafavam o riso. Sua tolice seria tão óbvia assim? Ele ou pelas duas senhoras com ar de igreja, e uma delas puxou sua manga. — Senhor? Senhor? Ele parou. — Acho que eles lhe deram as minhas muletas — ela disse. Ele baixou os olhos para as muletas. Não eram as suas, claro. Eram pequeninas — pouco maiores do que as de uma criança. Em qualquer outro momento ele teria percebido a situação de imediato, mas hoje de algum modo aquilo lhe escapara. Em qualquer outro momento ele teria tomado uma atitude na mesma hora, chamado a gerência, sublinhado a falta de cuidado do restaurante com as pessoas com problemas físicos. Naquele dia, ele apenas ficou parado com a cabeça baixa, esperando que alguém viesse ajudá-lo.

________________ 3 Hoi polloi é uma expressão grega usada em inglês para denotar “o povo” “as massas”. (N. da T.)

9 Quando a mente do avô Leary começou a devanear, ninguém adivinhou o que estava acontecendo. Ele era um homem muito correto e firme. Sempre arguto. Preciso. — Ouça — ele disse a Macon —, no dia 12 de junho vou precisar do meu aporte, que está no cofre. Vou velejar até Lassaque. — Lassaque, vô? — Se eu gostar, pode ser que fique por lá. — Mas onde é Lassaque? — É uma ilha na costa da Bolívia. — Ah — Macon disse. E então: — Ora, espere um minuto... — Ela me interessa porque os lassaquianos não têm língua escrita. Na verdade, se você levar qualquer coisa impressa eles confiscam. Acham que é magia negra. — Mas eu acho que a Bolívia não tem uma costa — Macon disse. — Eles nem permitem, digamos, um talão de cheques com o seu nome. Antes de desembarcar tem que tirar o rótulo do seu desodorante. Tem que trocar o dinheiro por pequenas hóstias coloridas. — Vô, isso é uma piada? — Uma piada! Vá pesquisar, se não acredita em mim — o avô Leary consultou seu relógio de algibeira de aço, depois enrolou-o de volta com um gesto seguro, para a frente e para trás. — Um efeito intrigante de seu analfabetismo — ele disse — é sua reverência pelos mais velhos. Isso porque o conhecimento dos lassaquianos não vem de livros, mas da vida; então eles se fiam em cada palavra daqueles que viveram por mais tempo. — Entendo — Macon disse, pois agora achava que entendia. — Nós também nos fiamos nas suas palavras — ele concluiu. — Pode ser — seu avô lhe disse —, mas eu ainda pretendo ver Lassaque antes que seja corrompida. Macon ficou em silêncio por um momento. Então foi até a estante de livros e pegou um volume do conjunto de enciclopédias do avô, de um marrom desbotado. — Dê-me aqui — o avô disse, estendendo as duas mãos. Pegou o livro com avidez e começou a folheá-lo. Um cheiro de mofo se elevou.

— Laski — ele murmurou — Lassalle, Lassaw... — ele abaixou o livro e franziu o cenho. — Eu não... — ele disse. Voltou ao livro. — Lassalle, Lassaw... Pareceu confuso, quase amedrontado. Seu rosto imediatamente desabou — um fenômeno que alarmara Macon em várias ocasiões, ultimamente. — Não entendo — ele sussurrou para Macon. — Não entendo. — Bem — Macon disse —, talvez tenha sido um sonho. Talvez fosse um daqueles sonhos que parecem reais. — Macon, isso não foi um sonho. Eu conheço esse lugar. Comprei minha agem. Embarco no dia 12 de junho. Macon sentiu um frio estranho subindo pelas costas. Depois seu avô se tornou um inventor, falava de vários projetos nos quais dizia que estava trabalhando em seu porão. Sentava-se em sua poltrona de couro vermelha, o terno e a camisa branca imaculados, os sapatos pretos sociais engraxados até ficarem brilhando, suas mãos bem cuidadas dobradas sobre o colo, e anunciava que tinha acabado de soldar uma motocicleta que puxaria um arado ou um limpa-neve. Discutia com seriedade eixos de manivela e contrapinos, enquanto Macon, embora terrivelmente angustiado, tinha que lutar contra um ataque de riso diante do pensamento de algum Hell’s Angel com botas de couro trabalhando numa plantação de trigo. — Se eu apenas pudesse resolver as dificuldades — seu avô dizia —, faria fortuna. Seríamos todos ricos. Pois ele parecia acreditar que era pobre de novo, lutando para ganhar a vida. Seu rádio motorizado que o acompanhava de um cômodo a outro, seu telefone flutuante, seu carro que vinha quando você chamava — não haveria algum uso para essas coisas? A pessoa certa não pagaria o preço que fosse? Depois de ficar sentado na varanda durante toda uma manhã de junho, beliscando meticulosamente os vincos de suas calças, ele anunciou que tinha aperfeiçoado um novo tipo de híbrido: flores que se fechavam na presença de lágrimas. — Os floristas vão me assediar — ele disse. — Pensem no efeito dramático nos funerais! Em seguida ele trabalhava num cruzamento de manjericão e tomate. Disse que as companhias fabricantes de molho para espaguete fariam dele um homem rico. A essa altura, todos os seus três netos tinham saído de casa e sua esposa tinha morrido; de modo que Rose cuidava dele sozinha. Seus irmãos começaram a se preocupar com ela. Começaram a aparecer com mais e mais frequência. Então Rose dizia: — Vocês sabem que não precisam fazer isso. Eles diziam: “O quê? Fazer o quê? Do que você está falando?” E coisas do

gênero. — Se estão vindo com tanta frequência por causa do nosso avô, não é necessário. Eu estou me virando bem, e ele também. Ele é muito feliz. — Feliz! — Eu acredito honestamente — Rose disse — que ele está vivendo a época mais rica e mais... colorida, de verdade, de sua vida. Aposto que mesmo quando ele era mais jovem não se divertia tanto assim. Eles entenderam o que ela queria dizer. Macon quase sentiu inveja, quando pensou a respeito. E mais tarde, quando tudo acabou, lamentou que tivesse durado tão pouco. Pois seu avô logo ou à fase de murmúrios sem sentido, incoerentes, e depois a um silêncio contemplativo, e por fim morreu. Cedo na manhã de quarta-feira Macon sonhou que o avô Leary o acordava e lhe perguntava onde estava a punção de centro. — Do que você está falando? — Macon disse. — Eu não peguei a sua punção de centro. — Oh, Macon — seu avô disse, triste —, você não percebe que não estou sendo literal? — O que você quer dizer, então? — Você perdeu o centro da sua vida, Macon. — Sim, eu sei disso — Macon concordou, e Ethan parecia estar um pouco à sua esquerda, sua cabeça inteligente quase da mesma altura da do velho. Mas seu avô disse: “Não, não”, e fez um gesto impaciente, agitando as mãos, e foi até a cômoda. (Em seu sonho, Macon não estava no solário, mas no andar de cima, em seu quarto de menino, com a cômoda cujos puxadores de cristal lapidado que Rose roubara fazia muito tempo para usar como pratos para suas bonecas.) — Estou me referindo a Sarah — seu avô insistiu, pegando uma escova de cabelo. — Onde está Sarah? — Ela me deixou, vô. — Ora, Sarah é a melhor de todos nós! — seu avô confirmou. — Você quer ficar sentado nesta casa apodrecendo, garoto? Está na hora de encontrar a saída. Por quanto tempo vamos ficar por aqui? Macon abriu os olhos. Ainda não era de manhã. O solário estava indistinto como um mata-borrão. Ainda havia uma impressão de seu avô no ar. Seu ligeiro gesto de agitar as mãos era algo que Macon esquecera por completo; reaparecera por conta própria. Mas o avô Leary jamais teria dito na vida real o que dissera no sonho. Gostava bastante de Sarah, mas parecia considerar as esposas como pessoas estranhas, e fora ao casamento de cada um de seus netos com uma expressão

resignada e tolerante. Não teria pensado em nenhuma mulher como “centro”. A exceção, talvez, Macon pensou de repente, de sua própria esposa, a avó Leary. Depois da morte dela — ora, sim, imediatamente depois — a mente dele começou a devanear pela primeira vez. Macon ficou acordado até o raiar do dia. Foi um alívio ouvir os primeiros movimentos no andar de cima. Então ele se levantou, se barbeou e vestiu, e mandou Edward lá fora para pegar o jornal. Quando Rose desceu, ele já tinha ligado a cafeteira elétrica. Isso pareceu deixá-la ansiosa. — Você usou os grãos da manhã ou os grãos da noite? — ela perguntou. — Os grãos da manhã — ele a tranquilizou. — Está tudo sob controle. Ela se movia pela cozinha abrindo persianas, arrumando a mesa, abrindo uma caixa de ovos. — Então hoje é o dia em que você tira o gesso — ela disse. — Parece que sim. — E hoje à tarde é a sua viagem para Nova York. — Oh, bem... — ele disse, de modo vago, e depois perguntou se ela queria um cupom de desconto para bacon que ele vira no jornal. Ela persistiu: — Não é hoje à tarde que você vai? — Bem, sim. O fato era que ele ia partir para Nova York sem ter feito qualquer tipo de planejamento com relação a Edward. O lugar antigo não ia aceitá-lo, o novo tinha aquela tal de Muriel... e, na opinião de Macon, Edward ficaria melhor em casa com sua família. Rose, sem dúvida, discordaria. Ele prendeu a respiração, mas Rose começou a cantarolar “Clementine” e a quebrar os ovos numa frigideira. Às 9 horas, num consultório na St. Paul Street, o médico removeu o gesso de Macon com uma pequenina serra elétrica que fazia um ruído baixo. A perna de Macon emergiu com uma palidez mortal, enrugada e feia. Quando ele se levantou, seu tornozelo oscilou. Ele ainda mancava. Também tinha se esquecido de levar outra calça e foi obrigado a desfilar em meio aos outros pacientes com suas calças cáqui de uma perna só, expondo sua canela de aspecto repulsivo. Ele se perguntou se algum dia voltaria ao seu eu antigo e inteiro. Ao levá-lo de carro para casa, Rose finalmente pensou em lhe perguntar onde ele planejava deixar Edward hospedado. — Ora, vou deixá-lo com você — Macon disse, fingindo surpresa. — Comigo? Ah, Macon, você sabe como ele fica fora de controle. — O que poderia acontecer em tão pouco tempo? Estarei de volta em casa amanhã à noite. Se o pior acontecer, você pode prendê-lo na copa; jogue um pouco de ração de vez em quando até eu voltar.

— Não estou gostando nem um pouco disso — Rose disse. — São as visitas que o irritam. E vocês não estão esperando nenhuma visita. — Ah, não — ela disse, e depois deixou o assunto morrer, graças aos céus. Ele temia algum tipo de batalha. Ele tomou um banho, e vestiu o terno de viagem. Então almoçou cedo. Pouco antes do meio-dia Rose levou-o até a estação de trem, já que ele ainda não confiava em sua capacidade de usar a embreagem. Quando desceu do carro, sua perna ameaçou vergar. — Espere! — ele disse a Rose, que lhe entregava a mala. — Você acha que eu sou capaz de fazer isso? — Tenho certeza de que sim — ela respondeu, sem chegar nem perto de pensar no assunto. Ela fechou a porta do ageiro, acenou para ele e partiu. No período desde a última viagem de trem de Macon, algo maravilhoso tinha acontecido com a estação. Uma claraboia em tons pálidos de azul se arqueava suavemente lá no alto. Lampiões pálidos em forma de globo pendiam de ganchos de ferro. Os tabiques de carpinteiro que por tanto tempo haviam dividido a sala de espera tinham desaparecido, revelando bancos de madeira polida. Macon ficou aturdido diante da janela nova e reluzente do guichê. Talvez, ele pensou, viajar não fosse assim tão ruim. Talvez ele tivesse entendido tudo errado. Sentiu um raminho de esperança começando a brotar. Mas imediatamente em seguida, coxeando até sua entrada, ele foi tomado pela sensação que sempre o atormentava nessas viagens. Ele se imaginava como um inflexível Número 1 numa aglomeração de Números 263. Olhe para aquele grupo no balcão de Informações, aquelas pessoas confiantes com suas mochilas e sacos de dormir. Olhe para aquela família ocupando um banco inteiro, suas quatro filhinhas tão bem-vestidas, tão empertigadas em seus novos casacos escoceses e chapéus com fitas, você sabe que vão ser recebidas pelos avós do outro lado da linha. Mesmo aqueles que estão sentados sozinhos — a mulher com o corpete, a loura com suas malas caras de couro — davam a impressão de pertencer a alguém. Ele se sentou num banco. Um trem rumando para o sul foi anunciado e metade da multidão foi embarcar nele, seguida pelas inevitáveis mulheres sem fôlego, desgrenhadas, apressando-se por ali um pouco mais tarde com malas e pacotes demais. ageiros de chegada começavam a se dispersar escada acima. Tinham as expressões aturdidas das pessoas que estavam em outro lugar até aquele exato instante. Uma mulher foi saudada por um homem segurando um bebê; ele a beijou e lhe entregou de imediato o bebê, como se fosse um embrulho que ele achasse extraordinariamente pesado. Uma garota jovem, de jeans,

chegando ao pé da escada, viu uma outra garota de jeans e jogou os braços em torno dela e começou a chorar. Macon observava, tentando fingir que não observava, inventando explicações. (Ela estaria em casa para o funeral de sua mãe? Sua fuga de casa para se casar não tinha dado certo?) Seu trem foi chamado e ele pegou sua mala e saiu mancando atrás da família com todas as filhas. No pé da escada uma rajada de ar frio e limpo o atingiu. O vento sempre parecia uivar naquelas plataformas, não importava que tempo fizesse lá fora. Precisaram abotoar o casaco da menor das filhas. O trem entrou no campo de visão, aos poucos tomando forma em torno de um ponto de luz amarela. Ocorreu que a maioria dos vagões estava cheia. Macon desistiu de tentar encontrar um assento totalmente vazio e se instalou ao lado de um homem jovem e roliço com uma pasta. Só por segurança ele pegou seu Miss Macintosh. O trem avançou com uma guinada, depois mudou de ideia, deu mais uma guinada e partiu. Macon imaginava poder sentir pequenas crostas de ferrugem nos trilhos; não era um deslizar muito suave. Ele observou a vista de casas correr em sua direção e desaparecer — uma confusão de casas geminadas, terrenos baldios, roupas secando que o frio deixava duras. — Chiclete? — seu companheiro de assento perguntou. Macon disse: — Não, obrigado — e rapidamente abriu o livro. Quando fazia uma hora ou coisa assim que estavam viajando, ele sentiu as pálpebras pesando. Deixou a cabeça cair para trás. Achou que só estava descansando os olhos, mas devia ter pegado no sono. Quando se deu conta, o condutor anunciava Filadélfia. Macon se endireitou num movimento brusco e pegou o livro bem antes que escorregasse do seu colo. Seu colega de assento mexia numa papelada, usando a pasta como mesa. Um homem de negócios, obviamente — uma das pessoas para as quais Macon escrevia seus guias. Curiosamente, Macon nunca imaginava seus leitores. O que exatamente os homens de negócios faziam? Este tomava notas em fichas de arquivo, consultando de quando em quando um livrinho cheio de gráficos. Um gráfico mostrava caminhõezinhos pretos marchando na página — quatro caminhões, seis caminhões, três caminhões e meio. Macon achou que o meio caminhão tinha um aspecto deformado e lamentável. Logo antes de chegarem, ele usou o banheiro na parte posterior do vagão — não era ideal, mas mais familiar do que qualquer coisa que ele fosse encontrar em Nova York. Voltou ao seu assento e guardou Miss Macintosh. — Vai estar frio lá fora — seu companheiro de assento lhe disse.

— Acho que sim — Macon respondeu. — A previsão do tempo diz frio e com vento. Macon não respondeu.

Ele acreditava em viajar sem um sobretudo — era só uma coisa a mais para carregar —, mas usava uma camiseta térmica e ceroulas por baixo da roupa. O frio era a última de suas preocupações. Em Nova York os ageiros se dispersaram instantaneamente. Macon pensou numa vagem arrebentando. Ele se recusava a se deixar apressar e abria caminho metodicamente por entre a multidão, subindo um lance de escadas negras que tilintavam, e atravessando outra multidão que parecia mais extrema do que a que havia deixado lá embaixo. Deus, onde aquelas mulheres arranjavam suas roupas? Uma usava uma capa de pele armada, fofa, e botas de pele de leopardo, outra usava um macacão verde-oliva meio acastanhado exatamente igual ao de um mecânico, exceto pelo fato de ser feito de couro. Macon segurou sua mala com mais força e empurrou a porta que dava para a rua, onde buzinas de automóveis soavam incessantemente e o ar tinha um cheiro indeterminado e pronunciado, como o interior de uma chaminé fora de uso. Em sua opinião, Nova York era uma cidade estrangeira. Ele sempre ficava intimidado por sua atmosfera predominante de internacionalidade: a pouca atenção de seus motoristas, a intensidade vivaz de seus pedestres abrindo caminho em meio a todos os obstáculos sem um olhar para os lados. Ele chamou um táxi, deslizou sobre o assento usado e escorregadio, e deu o endereço de seu hotel. O motorista começou imediatamente a falar de sua filha. — Ela tem 13 anos — ele disse, entrando no tráfego com o carro —, e tem três pares de buracos nas orelhas e um brinco em cada buraco, e agora quer colocar mais um par no alto. Treze anos! — Ele não demonstrava ter ouvido ou deixado de ouvir o endereço. De qualquer modo, continuava dirigindo. — Eu não era a favor nem mesmo do primeiro par de furos — ele falou. — Eu disse a ela: “E então, você não lê Ann Landers?” Ann Landers diz que furar as orelhas é mutilar seu corpo. Foi Ann Landers? Acho que foi Ann Landers. Você poderia também usar uma argola no nariz como os africanos, não é mesmo? Disse isso à minha filha. Ela disse: “E daí? O que há de errado com um anel no meu nariz? Talvez eu faça isso em seguida.” Eu não duvidaria. Não duvidaria. Agora, esse quarto par atravessa a cartilagem e na maioria desses

lugares onde se furam as orelhas não fazem isso; para você ver como é doideira. Cartilagem é uma história inteiramente diferente. Não é como o lóbulo da orelha, todo esponjoso. Macon tinha a sensação de que não era inteiramente visível. Ouvia um homem que falava consigo mesmo, que talvez estivesse falando antes de ele entrar e talvez continuasse falando depois de ele sair. Ou será que ele não estava no táxi? Pensamentos desse tipo sempre o atacavam quando ele estava viajando. Desesperado, ele disse: — Hm... O motorista parou de falar, para sua surpresa. Sua nuca assumiu um aspecto de alerta. Macon tinha que continuar. Ele disse: — Diga a ela algo assustador. — Como o quê? — Como... diga a ela que você conhece uma garota cujas orelhas caíram. — Ela nunca vai acreditar nisso. — Torne a coisa científica. Diga que se você perfurar cartilagem, ela vai murchar imediatamente. — Hmm — o motorista disse. Ele buzinou para um caminhão. — “Imagine como você se sentiria”, diga a ela, “tendo que usar o mesmo corte de cabelo para sempre. Cobrindo suas orelhas murchas.” — Acha que ela vai acreditar em mim? — Por que não? — Macon perguntou. E então, depois de uma pausa: — Na verdade, pode ser que isso esteja certo. Você acha que eu poderia ter lido isso em algum lugar? — Bem, ora, talvez tenha lido — o motorista disse. — Há algo de familiar nisso. — Eu talvez até tenha visto uma fotografia — Macon disse. — As orelhas de alguém murchas. Todas encolhidas. — Meio enrugadas — o motorista concordou. Macon continuou: — Feito dois damascos secos. — Cristo! Vou dizer a ela. O táxi parou em frente ao hotel de Macon. Ele pagou a corrida e disse, ao escorregar para fora do táxi: — Espero que funcione. — Claro que vai — o motorista respondeu —, até a próxima vez. Até ela querer um brinco no nariz ou coisa do tipo. — Nariz é cartilagem também, lembre-se! Narizes também podem murchar. O motorista acenou e entrou de novo no tráfego. Depois que Macon solicitou seu quarto, pegou o metrô até o Budford Hotel. Um vendedor de artigos eletrônicos tinha escrito sugerindo-o; o Budford alugava

pequenos apartamentos, por dia ou por semana, a homens de negócios. O gerente, certo Sr. Aggers, era um homem baixinho e redondo que andava mancando exatamente como Macon. Macon pensou que eles deviam parecer bem estranhos juntos, atravessando o saguão na direção dos elevadores. — A maioria de nossos apartamentos é de propriedade de corporações — Sr. Aggers disse. Ele apertou o botão que dizia “sobe”. — Companhias que mandam seus funcionários à cidade regularmente muitas vezes percebem que é mais barato comprar seus próprios apartamentos. Então, nas semanas em que estão vazios, recorrem a mim para encontrar outros inquilinos, ajuda a diminuir os custos. Macon fez uma anotação na margem de seu guia. Usando letra infinitesimal, ele também anotou a decoração do saguão, que lhe recordava algum antiquado clube masculino. Na mesa imponente com pés em forma de garras, entre os dois elevadores, havia uma mulher nua com quase um metro de altura, de metal, arrastando sua roupagem de metal, de pé sobre nuvens de metal, segurando uma pequena e empoeirada lâmpada com um fio elétrico puído pendente. O elevador, quando chegou, tinha carpete floral desbotado e paredes com almofadas. — Posso perguntar — Sr. Aggers disse — se o senhor escreve pessoalmente a série do Turista Acidental? — Sim, escrevo — Macon respondeu. — Ora! — Sr. Aggers disse. — Isto é uma verdadeira honra, então. Temos os seus livros no saguão para os hóspedes. Mas não sei, de algum modo imaginei-o diferente. — Como achou que eu seria? — Macon perguntou. — Bem, talvez não tão alto. Talvez um pouco, bem, mais pesado. Mais... estofado. — Entendo — Macon disse. O elevador tinha parado agora, mas demorava para abrir a porta. Então Sr. Aggers levou Macon por um corredor. Uma mulher com um carrinho de roupas sujas afastou-se para o lado a fim de deixá-los ar. — Aqui estamos — Sr. Aggers disse. Ele destrancou uma porta e acendeu a luz. Macon entrou num apartamento que poderia ter saído diretamente dos anos 1950. Havia um sofá retangular com fios metálicos no tecido, um conjunto de mesa e cadeiras com arremate cromado e, no quarto, uma cama de casal cuja cabeceira era de vinil cor de creme acolchoado. Ele testou o colchão. Tirou os sapatos, deitou-se, e refletiu por um momento. Sr. Aggers estava de pé diante

dele com os dedos entrelaçados. — Hmm — Macon disse. Sentou-se e calçou outra vez os sapatos. Depois entrou no banheiro, onde o vaso tinha uma faixa com a inscrição desinfetado. — Nunca entendi essas coisas — ele comentou. — Por que eu me sentiria confiante por colarem uma faixa de papel no assento do vaso? Sr. Aggers fez um gesto impotente com as mãos. Macon puxou para o lado uma cortina de chuveiro com estampa de peixes cor-de-rosa e azul, e inspecionou a banheira. Parecia bem limpa, embora houvesse uma mancha de ferrugem descendo da torneira. Na cozinha americana ele encontrou uma única caçarola, dois pares de pratos e canecas de plástico desbotados e uma prateleira inteira de copos de uísque. — Normalmente nossos hóspedes não cozinham muito — Sr. Aggers explicou — mas podem receber seus sócios para um drinque. Macon fez que sim. Ele se defrontava com um problema familiar ali: a linha estreita entre “confortável” e “descuidado”. Na verdade, às vezes confortável era descuidado. Ele abriu a geladeira, um pequeno objeto sob o balcão. As bandejas de gelo no congelador eram exatamente do mesmo tipo — aquele plástico leitoso, muito arranhado — que Rose usava em Baltimore. — Você tem que itir que é bem equipada — Sr. Aggers disse. — Está vendo? Um avental na gaveta da cozinha. Ideia da minha mulher. Protege os ternos deles. — Sim, isso é muito bom — Macon concordou. — É exatamente como estar em casa longe de casa; é como eu gosto de pensar nisto. — Oh, bem, casa — Macon disse. — Nada é como estar em casa, na verdade. — Por quê? O que está faltando? — Sr. Aggers perguntou. Sua pele era muito pálida, granulada, e ganhava um brilho quando ele estava ansioso. — O que mais você gostaria de ver aqui? — Para dizer a verdade — Macon disse —, sempre achei que um hotel devia oferecer pequenos animais opcionais. — Animais? — Quero dizer um gato para dormir na sua cama à noite, ou algum tipo de cachorro para ficar contente quando você chega. Já notou como os quartos de hotel parecem tão sem vida? — Sim, mas... bem, não vejo como eu poderia... há certamente regulamento

de saúde ou coisa do tipo... complicações, papelada, alimentação para todos esses diferentes... e alergias, é claro, muitos hóspedes têm... — Ah, eu entendo, eu entendo — Macon disse. Na margem de seu guia ele estava anotando o número de latas de lixo: quatro. Excelente. — Não — ele disse —, não parece que as pessoas algum dia vão concordar com isso. — Seja como for, você vai nos recomendar? — Certamente — Macon respondeu, fechou o guia e pediu uma lista das tarifas. O resto da tarde ele ou em hotéis sobre os quais já tinha escrito antes. Visitou gerentes em seus escritórios, fez breves visitas guiadas para verificar se nada teria se arruinado, e ouviu conversas sobre custos crescentes, planos de reforma, novas e melhores instalações para conferências. Depois voltou ao seu quarto e ligou o noticiário da noite. O mundo ia mal; mas assistindo àquela TV pouco familiar, levantando sua perna dolorida e esticado naquela poltrona que parecia desenhada para o corpo de outra pessoa, Macon tinha a sensação de que nada do que via sobre guerras e fome era real. Eram mais como se fossem, ah, encenações. Ele desligou a TV e desceu para chamar um táxi. Por sugestão de Julian, ia jantar bem no alto de um edifício inacreditavelmente alto. (Julian tinha uma queda por restaurantes com recursos publicitários, Macon notara. Não ficava feliz a menos que o lugar girasse, ou flutuasse, ou só pudesse ser alcançado por uma arela.) — Imagine — Julian havia dito — o efeito em seu cliente de fora da cidade. Sim, ele teria que ser de fora da cidade; não acho que um nova-iorquino nativo... — Macon rira com desdém. Agora o motorista do táxi também ria com desdém. — Um cafezinho ali deve custar 5 pratas — ele disse a Macon. — É o que parece. — Seria melhor ir para um daqueles ses. — Isso é para amanhã. Clientes da cidade. O táxi seguiu por ruas que ficavam cada vez mais escuras e silenciosas, afastando-se das multidões. Macon espiou pela janela. Viu um homem sozinho encolhido diante de uma porta, embrulhado num casaco longo. Espirais de vapor subiam das tampas dos poços de inspeção de esgoto. Todas as lojas estavam trancadas com grades de ferro. No fim da rua mais escura, o táxi parou. O motorista deu um outro riso de desdém, e Macon pagou a corrida e saiu do carro. Ele não estava preparado para o vento, que soprou sobre ele. Ele seguiu rápido pela calçada, ou foi empurrado, enquanto suas calças se retorciam e se agitavam em torno de suas pernas. Logo antes de entrar no edifício, ele pensou em olhar para cima. Olhou para cima e

para cima e por fim viu um indistinto pináculo branco minguando dentro de um céu profundo e negro, sem estrelas, lugubremente distante. Ele pensou numa ocasião muito tempo atrás em que Ethan, numa visita ao zoológico quando ainda estava começando a andar, parou diante de um elefante e levantou a cabeça com espanto e caiu para trás. Lá dentro, tudo era mármore cor-de-rosa rajado e quilômetros de carpete liso. Um elevador do tamanho de uma sala se abriu, cheio até a metade, e Macon entrou e foi ficar entre duas mulheres com roupas de seda e diamantes. O perfume delas era quase visível. Ele pensou que podia vê-lo ondulando pelo ar. Tenha chiclete à mão, ele escreveu em seu guia enquanto o elevador subia. Seus ouvidos estalavam. Havia uma quietude tensa e irracional que fazia com que a voz das mulheres soasse metálica. Ele meteu o guia no bolso e deu uma olhada nos números que brilhavam no alto. Eles avançavam às dezenas: quarenta, cinquenta, sessenta... Um dos homens disse que tinham que trazer Harold em algum momento — os outros se lembravam de quando Harold ficara com medo das cadeirinhas de esqui? — e todo mundo riu. O elevador deu uma espécie de salto suave e a porta se abriu sem fazer ruído. Uma garota de terno branco levou-os por um corredor até uma espaçosa escuridão que bruxuleava sob a luz de velas. Imensas janelas pretas envolviam o salão do chão ao teto, mas Macon foi levado a uma mesa sem vista. Pessoas desacompanhadas, ele supôs, eram algo inadequado ali. Talvez ele fosse o primeiro que jamais haviam recebido. A série de talheres que ladeava seu prato poderia facilmente servir a uma família de quatro pessoas. O garçom, muito mais bem-vestido que ele, entregou-lhe um cardápio e lhe perguntou o que gostaria de beber. — Xerez seco, por favor — Macon respondeu. No instante em que o garçom se afastou, Macon dobrou em dois seu cardápio e sentou-se em cima dele. Então olhou ao redor para seus vizinhos. Todo mundo parecia estar comemorando alguma coisa. Um homem e uma mulher grávida estavam de mãos dadas e sorriam sob o brilho etéreo de uma vela. Um grupo tumultuoso à sua esquerda brindava ao mesmo homem vezes seguidas. O garçom voltou, equilibrando um xerez com elegância na bandeja. — Ótimo — Macon disse. — E agora talvez o cardápio. — Cardápio? Eles não deram um ao senhor? — Talvez tenham se distraído — ele disse, sem estar exatamente mentindo. Um segundo cardápio foi trazido e aberto com um floreio diante dele. Macon deu um gole no xerez e examinou os preços. Astronômicos. Ele decidiu, como de hábito, comer aquilo que seus leitores talvez comessem — não quenelles ou

moleja de vitela, mas o filé, ao ponto. Depois que fez o pedido, levantou-se, colocou a cadeira de volta e levou seu xerez a uma janela. Subitamente, achou que tinha morrido. Viu a cidade se estender lá embaixo, muito distante, como um oceano dourado e reluzente, as ruas, pequeninos cordões de luz; o planeta se curvando nas bordas; o céu, um oco púrpura se estendendo ao infinito. Não era a altura; era a distância. Era a vasta e solitária distância que o separava de todos os que importavam. Ethan, com seu andar vivaz, como imaginaria que seu pai acabaria enjaulado naquela agulha de torre no meio do céu? Como Sarah imaginaria, bronzeando-se indolentemente ao sol? Pois ele acreditava que o sol poderia estar brilhando onde quer que ela estivesse no momento; ela estava afastada dele a esse ponto. A ideia de sua irmã e seus irmãos fazendo suas tarefas, jogando cartas à noite, sem saber o quão para trás ele os deixara. Tinha ido longe demais para voltar. Ele nunca, jamais regressaria. Tinha de algum modo viajado para um ponto completamente isolado de todas as outras pessoas do universo, e nada era real além de sua própria e angulosa mão segurando o copo de xerez. Ele largou o copo, provocando um pequeno e insignificante alvoroço de vozes, depois se virou e correu mancando pelo salão até a porta. Mas havia aquele corredor interminável, e ele não conseguia atravessá-lo. Virou, então, à direita. ou por uma cabine telefônica e entrou aos tropeços num banheiro — sim, um banheiro masculino, por sorte. Mais mármore, espelhos, esmalte branco. Ele achava que ia vomitar, mas quando entrou num dos cubículos o enjoo deixou seu estômago e subiu à sua cabeça. Ele notou o quão leve seu cérebro se sentia. Ficou parado sobre o vaso apertando as têmporas. Ocorreu-lhe pensar em quantos metros de cano um banheiro naquela altura deveria requerer. Ele ouviu alguém entrar, tossir. A porta de um cubículo se fechou com força. Ele abriu uma fresta em sua própria porta e olhou lá para fora. A opulência do lugar fez com que pensasse em filmes de ficção científica. Ora, aquela dificuldade provavelmente acontecia ali com frequência, não? Ou talvez não aquela dificuldade específica mas outras parecidas com ela — pessoas com medo de altura, digamos, entrando em pânico, tendo que chamar... quem? O garçom? A garota que os recebia no elevador? Ele se aventurou cuidadosamente para fora do cubículo, depois para fora do banheiro, e quase deu um encontrão numa mulher na cabine telefônica. Ela usava metros e metros de gaze de seda clara. Acabava de desligar o telefone, e segurava as camadas da saia e se movia lânguida e graciosa na direção do salão de jantar. Com licença, minha senhora, gostaria de saber se a senhora poderia

fazer a gentileza de, hm... Mas o único pedido que lhe veio à mente surgiu de sua primeira infância: Me pega no colo! A elegante bolsinha de lantejoulas foi a última parte a ar, carregada atrás dela enquanto desaparecia na escuridão do restaurante. Ele foi até o telefone e tirou o fone do gancho. Estava frio ao toque; ela não falara muito. Ele remexeu nos bolsos, encontrou moedas e colocou-as no telefone. Mas não havia ninguém que pudesse ar. Não conhecia ninguém em Nova York. Ligou, em vez disso, para casa, recordando-se miraculosamente do número de seu cartão de crédito. Ficou preocupado sem saber se sua família atenderia o toque do telefone — era um hábito, a essa altura — mas Charles atendeu. — Leary. — Charles? — Macon! — Charles disse, com uma animação incomum. — Charles, estou no alto desse prédio e uma espécie de... coisa boba aconteceu. Ouça: você tem que me tirar daqui. — Tirar você! Do que está falando? — Você tem que me tirar daqui! — Perdão? — Estou preso na copa; seu cachorro me encurralou. — Oh. Bem, sinto muito, mas... Charles, é algum tipo de doença. Acho que não consigo descer de elevador e duvido que também consiga descer de escada e... — Macon, você está ouvindo os latidos? É Edward. Edward me encurralou e você tem que vir para casa neste instante. — Mas estou em Nova York! Estou no topo desse prédio e não consigo descer! — Todas as vezes que abro a porta ele vem rugindo e eu bato a porta e ele a ataca, já deve ter destruído a metade dela com as garras a essa altura. Macon se obrigou a respirar fundo. Disse: — Charles, posso falar com Rose? — Ela saiu. — Ah. — Como você acha que eu me meti nesta situação? — Charles perguntou. — Julian veio buscá-la para jantar e... — Julian? — Não é esse o nome dele? — Julian meu chefe? — Sim, e Edward começou a dar um daqueles seus ataques; então Rose

disse, “Rápido, prenda-o na copa”. Então agarrei sua coleira e ele se virou para mim e quase arrancou minha mão. Então me fechei na copa em vez disso e Rose já devia ter saído a essa altura, então... — Porter não está? — É noite de visita. Macon imaginava a sensação de segurança da copa, com as geleias de Rose alinhadas em ordem alfabética e o telefone com o disco preto tão antigo que o número inscrito ali ainda era o da antiga loja de aluguel de smokings. O que ele não daria para estar ali! Agora tinha um novo sintoma. Seu peito desenvolvera uma palpitação sem nenhuma semelhança com batidas normais de coração. — Se você não me tirar daqui vou chamar a polícia para vir dar um tiro nele — Charles disse. — Não! Não faça isso! — Não posso simplesmente ficar sentado aqui esperando que ele invada. — Ele não vai invadir. Você pode abrir a porta e sair andando bem ao lado dele. Acredite em mim, Charles. Por favor: estou no topo deste prédio e... — Talvez você não saiba que sou propenso a ter claustrofobia — Charles disse. Uma possibilidade, Macon concluiu, era dizer às pessoas do restaurante que estava tendo um ataque cardíaco. Um ataque cardíaco era algo bastante respeitável. Mandariam uma ambulância e ele seria, sim, carregado — exatamente do que precisava. Ou não teria que ser carregado, mas apenas tocado, um mero toque humano em seu braço, a mão de alguém em seu ombro, algo que o colocasse de volta em conexão com o resto do mundo. Fazia tanto tempo que não sentia o toque de outra pessoa. — Vou falar a eles sobre a chave na caixa do correio para não terem que arrombar a porta — Charles disse. — O quê? Quem? — A polícia, e vou dizer a eles que... Macon, sinto muito mas você sabia que esse cachorro tinha que ter um fim, mais cedo ou mais tarde. — Não faça isso! — Macon gritou. Um homem que saía do banheiro lançou um olhar em sua direção. Macon abaixou a voz e disse: — Ele era de Ethan. — Isso significa que tem permissão para rasgar a minha garganta? — Ouça. Não sejamos precipitados. Vamos pensar no assunto. Olhe, eu vou... vou telefonar para Sarah. Vou pedir a ela para ar aí e dar um jeito em Edward. Você está ouvindo, Charles? — Mas e se ele atacá-la também? — Charles perguntou.

— Ele não vai fazer isso, acredite em mim. Olhe, não faça nada até ela chegar, entendeu? Não faça nada precipitado. — Bem... — Charles disse, de modo incerto. Macon desligou e tirou a carteira do bolso. Remexeu por entre os cartões de visita e pedacinhos de papel, alguns deles amarelados com o tempo, que guardava num compartimento secreto. Quando encontrou o telefone de Sarah ele o discou com o dedo trêmulo e prendeu a respiração. Sarah, ele diria, estou aqui no alto deste prédio e... Ela não atendeu. Aquela possibilidade não lhe ocorrera. Ele escutava o telefone tocando. E agora? Diabos, e agora? Por fim ele desligou. Remexeu com desespero nos outros telefones em sua carteira — dentista, farmacêutico, adestramento de animais... Adestramento de animais? Pensou inicialmente em alguém de algum circo — um homem musculoso com roupas justas de cetim. Depois viu o nome: Muriel Pritchett. O cartão era escrito a mão, era mesmo cortado a mão, em linhas tortas, de um pedaço maior de papel. Ligou para ela. Ela atendeu de imediato. “Alô,” num tom rude, como uma garçonete de bar cansada. — Muriel? É Macon Leary — ele lhe disse. — Oh! Como vai você? — Estou bem. Ou, pensando melhor... Veja, o problema é que Edward está mantendo meu irmão encurralado na copa, exagerando, Charles, quero dizer, ele sempre exagera, e eu estou aqui no topo deste edifício em Nova York e com essa espécie de, hm, distúrbio, sabe? Eu estava olhando para a cidade lá embaixo e ela estava a quilômetros de distância, quilômetros, não conseguiria descrever a você o quanto... — Deixe-me ver se entendi direito — Muriel disse. — Edward está na sua copa... Macon recuperou o equilíbrio: — Edward está do lado de fora da copa, latindo. Meu irmão está lá dentro. Ele diz que vai chamar a polícia e pedir que venham atirar em Edward. — Ora, que ideia idiota. — Pois é! — Macon disse. — Então eu pensei se você poderia ir até lá e pegar a chave na caixa do correio, está no fundo da caixa do correio... — Vou imediatamente. — Oh, perfeito. — Então até já, por ora, Macon.

— Bem, mas além disso... — ele disse. Ela esperou. — Veja, eu estou no topo deste edifício — ele disse —, e não sei o que é, mas alguma coisa me deixou apavorado. — Oh, Deus, eu também ficaria depois de ter visto Inferno na torre. — Não, não, não tem nada a ver com isso, com fogo ou altura... — Você viu Inferno na torre? Rapaz, depois daquilo você não conseguia mais me fazer subir além de um andar de que pudesse descer com um salto, em qualquer prédio. Acho que as pessoas que sobem em arranha-céus são simplesmente muito corajosas. Isto é, se você parar para pensar, Macon, você tem que ser corajoso para estar onde está neste momento. — Oh, bem, não tão corajoso assim — Macon disse. — Não, estou falando sério. — Você está dando importância demais a isso. Não é nada, na verdade. — Você só está dizendo isso porque não se dá conta do que atravessou antes de entrar no elevador. Veja, no seu interior você disse: “Certo. Vou confiar nisto.” É o que todo mundo faz; aposto que é o que fazem nos aviões também. “Isto é perigoso para caramba, mas e daí”, eles dizem, “vamos nos lançar no ar e acreditar nisto.” Ora, você deveria estar andando por esse prédio todo orgulhoso de si mesmo! Macon deu uma risada curta e seca, e agarrou o fone com mais força. — Ouça, eis o que eu vou fazer — ela disse. — Vou pegar Edward e trazêlo para o Miau-Au. Não me parece que o seu irmão sirva para alguma coisa junto dele. Então, quando você voltar da viagem, precisamos conversar sobre esse treinamento. Ora, as coisas simplesmente não podem continuar deste jeito, Macon. — Não, não podem. Você está certa. Não podem — Macon concordou. — Isso é ridículo. — Você está totalmente correta. — Até mais, então. Tchau. — Não, espere! — ele disse. Mas ela havia desligado. Depois de desligar, ele se virou e viu os recém-chegados vindo em sua direção, do elevador. Primeiro vieram três homens, depois três mulheres com vestidos longos. Atrás deles havia um casal que não podia ter ado da adolescência. Os ossos do punho do rapaz se projetavam por baixo das mangas de seu terno. O vestido da garota era desajeitado e comovente, seu pequeno queixo obscurecido por uma monstruosa orquídea. A meio caminho, no corredor, o rapaz e a moça pararam para olhar ao redor.

Olharam para o teto, e depois para o chão. Depois olharam um para o outro. O rapaz disse: “Uuh!” e agarrou as duas mãos da moça, e os dois ficaram parados ali por um momento, rindo, antes de ir para o restaurante. Macon seguiu-os. Sentia-se mais calmo, cansado e com uma fome terrível. Foi bom encontrar o garçom colocando sua comida na mesa no exato instante em que ele afundou de volta em seu assento.

10 — Vou ser honesta — Muriel disse. — Meu bebê não foi exatamente planejado. Isto é, nós ainda não estávamos nem casados, se você quer saber a verdade. Se você quer saber a verdade, foi por causa do bebê que eu me casei, para começo de conversa, mas disse a Norman que ele não tinha que seguir adiante com aquilo se não quisesse. Eu não o obriguei a nada. Ela olhou para Edward, que estava atrás de Macon, deitado de barriga para baixo no tapete do hall de entrada. Teve que ser obrigado a ficar naquela posição, mas pelo menos estava quieto. — Note que eu deixo ele se mover um pouco, contanto que fique deitado — ela disse. — Agora vou me virar de costas, e veja o que ele faz. Foi caminhando para a sala de estar. Levantou um vaso de uma mesa e examinou a parte inferior. — Então, seja como for — ela disse —, seguimos adiante e nos casamos, com todo mundo agindo como se fosse a maior tragédia do mundo. Minha família nunca superou. Minha mãe dizia: “Bem, eu sempre soube que isso aconteceria. Quando você andava com Dana Scully e os outros, um ou outro daqueles garotos que não valem nada sempre buzinando na frente de casa atrás de você, eu não te disse que isso ia acontecer?” Tivemos um casamentozinho de nada na igreja dos meus pais, e não fizemos uma viagem de lua de mel. Fomos direto para o nosso apartamento e no dia seguinte Norman começou a trabalhar com o tio. Ele simplesmente se estabeleceu naquela vida de casado, fazendo compras de supermercado comigo e escolhendo cortinas e coisas do tipo. Ah, sabe, às vezes fico pensando nas crianças que éramos. Era quase como brincar de casinha! Era um fingimento! As velas que eu acendia na hora do jantar, flores na mesa, Norman me chamando de “querida” e trazendo seu prato até a pia, para eu lavar. E então de repente tudo ficou sério. E agora eu tenho esse menino, esse menino grande de 7 anos com seus sapatos de couro pesados, e afinal não era uma brincadeira de casinha. Era para valer, o tempo todo, e nós apenas não sabíamos. Ela estava sentada no sofá e levantou um pé para a frente. Virou-o para um lado e para o outro, irando-o. Sua meia formava pregas no calcanhar. — O que Edward está fazendo? — ela perguntou. Macon disse: — Ainda está deitado.

— Muito em breve ele vai fazer isso por três horas seguidas. — Três horas? — Fácil. — Isso não é meio cruel? — Achei que você tinha prometido não falar desse jeito — ela disse a ele. — Certo. Desculpe — Macon respondeu. — Talvez amanhã ele deite por conta própria. — Você acha? — Se você treinar. Se não desistir. Se não ficar com o coração mole. Então ela se levantou e se aproximou de Macon. Deu um tapinha em seu ombro. — Mas não se preocupe — ela disse. — Eu acho os homens de coração mole um encanto. Macon recuou. Por pouco não pisou em Edward. O Dia de Ação de Graças se aproximava, e os Leary estavam, como sempre, num debate sobre o jantar de Ação de Graças. O fato era que nenhum deles gostava muito de peru. Mesmo assim, Rose disse, ela não achava correto servir outra coisa. Pareceria errado. Seus irmãos salientaram que ela teria que acordar às 5 horas da manhã para colocar o peru no forno. Mas seria ela quem faria isso, Rose disse. Não seria nenhum incômodo para eles. Então começou a parecer que havia um objetivo oculto, pois assim que eles se decidiram pelo peru ela anunciou que talvez convidasse Julian Edge. Pobre Julian, ela disse, não tinha membros próximos da família vivendo por ali, e ele e os vizinhos se reuniam tristemente nas festas, cada um levando sua especialidade. O jantar de Ação de Graças no ano anterior tinha sido uma caçarola de massa vegetariana, queijo de cabra em folhas de uva e torta de kiwi. O mínimo que ela podia fazer por ele era oferecer-lhe um jantar normal em família. — O quê? — Macon disse, fingindo surpresa e desaprovação, mas infelizmente aquela não era uma surpresa real. Oh, Julian estava querendo aprontar alguma, com certeza. Mas o que poderia ser? Todas as vezes que Rose descia a escada usando seu melhor vestido e duas manchas de rouge, todas as vezes que pedia a Macon para fechar Edward na copa porque Julian ia ar para levá-la aqui ou ali — bem, Macon sentia um impulso muito forte de deixar Edward acidentalmente escapar. Fazia questão de receber Julian na porta de entrada, olhando-o nos olhos por um longo e silencioso momento antes de chamar Rose. Mas Julian se comportava bem; nenhum lampejo de ironia o denunciava. Era respeitoso com Rose, quase tímido, e ficava desajeitadamente ao redor dela enquanto a acompanhava para fora de

casa. Ou aquilo era ironia? Seu número Rose Leary. Macon não gostava da cara daquilo. Mas ocorreu que os filhos de Porter também viriam para o jantar de Ação de Graças. Normalmente vinham no Natal, mas queriam trocar naquele ano por causa de alguma complicação com os avós pelo lado do padrasto. Então, na verdade, Rose disse, não era bom terem peru? As crianças eram tão tradicionalistas. Ela começou a preparar tortas de abóbora. — Nós nos reunimos — ela cantava — para pedir a bênção do Senhor... Macon ergueu os olhos da pilha de cardápios roubados que estava espalhando sobre a mesa da cozinha. Havia um tom de alegria na voz dela que o deixava desconfortável. Perguntava-se se ela teria ideias equivocadas sobre Julian — se, por exemplo, esperava algum tipo de romance. Mas Rose estava tão simples e sensata em seu avental branco. Recordava-lhe Emily Dickinson; Emily Dickinson também não assava tortas para suas sobrinhas e seus sobrinhos? Com certeza não havia motivo para preocupação. — O nome do meu filho é Alexander — Muriel disse. — Eu te contei isso? Dei a ele o nome de Alexander porque achei que parecia classudo. Ele nunca foi um bebê fácil. Para começar, algo deu errado enquanto ele estava na minha barriga e tiveram que fazer uma cesariana e tirá-lo mais cedo e eu tive todas essas complicações e não posso mais ter filhos. E então Alexander era tão pequeno que nem parecia humano, era mais como um gatinho recém-nascido de cabeça grande, e teve que ficar na incubadora por séculos, quase isso, e por pouco não morreu. Norman dizia: “Quando é que isso vai ficar parecido com os outros bebês?” Ele sempre chamava Alexander de “isso”. Eu me adaptei melhor; isto é, em pouco tempo me parecia que aquilo era como um bebê devia ser, e eu ficava no berçário do hospital, mas Norman não chegava perto dele, dizia que o deixava nervoso demais. Edward choramingou. Mal tinha se deitado, as patas de trás encolhidas, as garras afundando no carpete. Mas Muriel não deu sinais de ter percebido. — Talvez você e Alexander devessem se encontrar em algum momento — ela disse a Macon. — Oh, eu, ah... — Macon disse. — Ele não tem homens o suficiente em sua vida. — Bem, mas... — Ele deveria ver homens com frequência; isso em tese lhe mostra como se comportar. Talvez nós três pudéssemos ir ao cinema. Você não vai nunca ao cinema? — Não, não vou — Macon disse, com honestidade. — Faz meses que não

vou ao cinema. Não ligo muito para filmes. Fazem com que tudo pareça tão próximo. — Ou talvez só ao McDonald’s, talvez. — Acho que não — Macon disse. Os filhos de Porter chegaram na noite anterior ao Dia de Ação de Graças, de carro, porque Danny, o mais velho, acabara de tirar a carteira de motorista. Isso deixou Porter consideravelmente preocupado. Ficou andando de um lado para outro a partir do momento em que achava que poderiam chegar. — Não sei onde June está com a cabeça — ele disse. — Deixar um garoto de 16 anos vir dirigindo de Washington em sua primeira semana com carteira de motorista! Com as duas irmãs pequenas no carro! Não sei como a mente dela funciona. Para piorar, as crianças estavam quase uma hora atrasadas. Quando Porter finalmente viu os faróis do carro, saiu correndo pela porta e desceu os degraus bem na frente dos outros. — Por que demoraram? — ele gritou. Danny se desenrolou de dentro do carro com indiferença exagerada, bocejando e se espreguiçando, e apertou a mão de Porter como uma espécie de reflexão posterior enquanto se virava para examinar os pneus. Estava tão alto quanto Porter agora, mas muito magro, com o tom escuro de pele da mãe. Atrás dele vinha Susan, 14 anos, poucos meses mais velha do que Ethan seria. Por sorte ela era muito diferente dele, com seu capacete de cabelo preto e cacheado e suas bochechas rosadas. Naquela noite ela usava jeans e botas de caminhada e uma daquelas jaquetas grossas forradas com penas de ganso que deixavam os jovens com uma aparência tão corpulenta e desajeitada. Então por último veio Liberty. Que nome, Macon sempre pensava. Tinha sido invenção da mãe, uma mulher volúvel que fugira de Porter com um hippie vendedor de aparelhos de som oito anos e meio antes e descobrira imediatamente que estava com dois meses de gravidez. Ironicamente, Liberty era quem mais se parecia com Porter. Tinha cabelo louro e liso e um rosto bem-talhado e usava um casaquinho de linhas simples. — Danny se perdeu — ela disse, com severidade. — Que idiota. Ela beijou Porter e sua tia e seus tios, mas Susan ou por eles de um modo que deixava claro para todos que não estava mais na idade de fazer aquilo. — Oh, isso não é ótimo? — Rose disse. — Não vamos ter um Dia de Ação de Graças maravilhoso? Ela estava na calçada apertando o avental com as mãos, talvez para se impedir de estendê-las para Danny enquanto ele andava todo relaxado e encurvado na direção da casa. Escurecia, e Macon, olhando por acaso ao redor,

viu os adultos como espectros cinza-claros — quatro parentes de meia-idade, descasados, derramando-se atrás dos jovens. Para o jantar eles pediram pizza, com a intenção de agradar às crianças, mas Macon não parava de sentir cheiro de peru. Pensou a princípio que era sua imaginação. Depois notou Danny cheirando o ar. — Peru? Já? — Danny perguntou à tia. — Estou experimentando esse novo método — ela disse. — Parece que economiza energia. Você coloca o forno muito baixo e assa a carne durante a noite inteira. — Estranho. Depois do jantar eles assistiram à TV — as crianças nunca pareciam animadas para jogar cartas — e depois foram para a cama. Mas no meio da noite Macon acordou num sobressalto e pensou com seriedade naquele peru. Estava assando até o dia seguinte? Numa temperatura extremamente baixa? Que temperatura era aquela, exatamente? Estava dormindo em seu antigo quarto, agora que sua perna estava curada. Por fim fez a gata descer de cima do seu peito e se levantou. Foi para o andar de baixo no escuro, atravessou o linóleo gelado da cozinha e acendeu a luz sobre o forno. Sessenta graus, o botão do forno dizia. — Morte certa — ele disse a Edward, que o seguia de perto. Então Charles entrou, usando pijamas grandes e frouxos. Ele deu uma olhada no botão e suspirou. — Não apenas isso — ele disse —, mas este é um peru recheado. — Maravilha. — Dois quartos de recheio. Eu a ouvi dizer. — Dois quartos de bactérias abundantes e fervilhantes. — A menos que haja mais alguma coisa nesse método que nós não entendemos. — Vamos perguntar a ela de manhã — Macon disse, e voltaram para a cama. Pela manhã, Macon desceu e encontrou Rose servindo panquecas para as crianças. Disse: — Rose, o que exatamente você está fazendo com esse peru? — Já te disse: forno brando. Geleia, Danny, ou xarope? — Isso é tudo? — Macon perguntou. — Você está deixando pingar — Rose disse a Liberty. — O quê, Macon? Veja, eu li um artigo sobre cozimento em forno brando e pensei: bem, se funciona com carne deve funcionar com peru também, então... — Pode ser que funcione com carne, mas vai nos matar com peru — Macon disse a ela.

— Mas no fim eu vou aumentar a temperatura! — Você teria que aumentar muito. Teria que assar a coisa numa a de pressão. — Teria que expô-lo a uma descarga nuclear — Danny disse, alegremente. Rose disse: — Vocês dois estão completamente enganados. Quem é a cozinheira aqui, afinal de contas? Eu afirmo que vai ficar delicioso. Talvez fosse, mas certamente não parecia. Na hora do jantar, o peito tinha encolhido e a pele estava seca e fosca. Rose entrou na sala de jantar levando o peru no alto, triunfante, mas as únicas pessoas que pareceram impressionadas foram as que não conheciam sua história — Julian e a Sra. Barrett, uma das velhas de Rose. Julian disse “Ah!” e a Sra. Barrett ficou radiante. — Gostaria que meus vizinhos vissem isto — Julian comentou. Ele usava um paletó azul-marinho com botões de metal, e parecia ter polido o rosto. — Bem, talvez haja um probleminha aqui — Macon observou. Rose colocou o peru sobre a mesa e olhou ferozmente para ele. — Claro, o resto da comida está excelente — ele disse. — Ora, nós podíamos ficar satisfeitos somente com os legumes e verduras! Na verdade acho que vou fazer isso. Mas o peru... — É veneno puro — Danny terminou por ele. Julian disse: — Como é? Mas a Sra. Barrett apenas sorriu ainda mais. — Achamos que ele pode ter sido assado numa temperatura ligeiramente inadequada — Macon explicou. — Não foi! — Rose reagiu. — Está perfeitamente bom. — Talvez a senhora pudesse ficar só com os acompanhamentos — Macon disse a Sra. Barrett. Estava com medo de que ela fosse surda. Mas ela deve ter ouvido, pois respondeu: — Bem, talvez eu fique — sem perder o sorriso. — Não tenho mesmo muito apetite — ela disse. — E eu sou vegetariana — Susan interveio. — Eu também — Danny disse, subitamente. — Oh, Macon, como você pôde fazer uma coisa dessas? — Rose perguntou. — Meu peru delicioso! Todo aquele trabalho! — Eu acho que parece delicioso — Julian disse. — Sim — Porter disse —, mas você não sabe das outras vezes. — Outras vezes? — Aquilo foi só azar — Rose corrigiu.

— Ora, é claro! — Porter disse. — Ou economia. Você não gosta de jogar as coisas fora; isso eu entendo! Porco que foi guardado por muito tempo, ou salada de frango que ficou fora da geladeira a noite toda... Rose se sentou. Lágrimas deixavam seus olhos brilhantes. — Oh — ela disse. — Vocês são tão cruéis! Não me enganam nem por um instante; sei por que estão fazendo isso. Querem que eu fique mal na frente de Julian. — Julian? Julian pareceu aflito. Pegou um lenço no bolso do paletó mas depois ficou simplesmente segurando-o. — Vocês querem afastá-lo! Vocês três desperdiçaram suas chances e agora querem que eu desperdice a minha, mas não vou fazer isso. Consigo ver bem o que é o quê! É só ouvir qualquer música no rádio; assistir a qualquer novela. Trata-se sempre do amor. Nas novelas, tudo gira em torno do amor. Uma nova pessoa chega à cidade e de imediato a pergunta é, quem ela vai amar? Quem vai amá-la? Quem vai perder a cabeça de ciúmes? Quem vai arruinar a vida dela? E vocês querem me privar disso! — Ora, meu Deus — Macon disse, tentando entender a situação. — Vocês sabem muito bem que não há nada de errado com este peru. Vocês só não querem que eu pare de cuidar desta casa e cozinhar para vocês, não querem que Julian se apaixone por mim. — O quê? Mas ela empurrou a cadeira para trás e saiu correndo da sala. Julian ficou sentado ali, boquiaberto. — Não ouse rir — Macon disse a ele. Julian apenas continuou de boca aberta. — Nem pense no assunto. Julian engoliu em seco. Disse: — Acham que eu deveria ir atrás dela? — Não — Macon respondeu. — Mas ela parece tão... — Ela está bem! Está ótima. — Ah. — Bem, quem quer uma batata assada? Houve uma espécie de murmúrio em torno da mesa; todo mundo parecia infeliz. — Aquela pobre mocinha — Sra. Barrett disse. — Eu me sinto péssima. — Eu também — Susan disse. — Julian? — Macon perguntou, fazendo retinir uma colher. — Batata?

— Vou querer o peru — Julian disse com firmeza. Naquele momento, Macon quase gostou do sujeito. — Foi ter o bebê que acabou com nosso casamento — Muriel disse. — Quando você pensa a respeito, é engraçado. Nós nos casamos por causa do bebê, em primeiro lugar, e no meio do caminho, o bebê foi o motivo de nossas discussões. Norman não entendia por que eu estava o tempo todo no hospital com Alexander. “O bebê não sabe que você está lá, então por que ir?” ele dizia. Eu preferia ir pela manhã e ficar por ali, as enfermeiras eram muito simpáticas, e eu ficava até a noite. Norman dizia: “Muriel, nós não vamos ter nossa vida normal de volta?” Bem, você pode entendê-lo, imagino. É como se eu só tivesse espaço em minha mente para Alexander. E ele ficou no hospital durante meses, meses a fio; todas as coisas possíveis e imagináveis estavam erradas com ele. Você devia ver nossas contas médicas. Só tínhamos um plano de saúde parcial e aquelas contas que subiam, milhares e milhares de dólares. Por fim, arranjei um emprego no hospital. Perguntei se poderia trabalhar na enfermaria, mas eles disseram que não, então arranjei um tipo de trabalho mais como o de uma empregada doméstica, limpando os quartos dos pacientes e assim por diante. Esvaziando latas de lixo, lavando o chão... Ela e Macon caminhavam pela Dempsey Road com Edward, na esperança de encontrar um ciclista. Muriel levava a guia. Se um ciclista viesse, ela falou, e Edward atacasse ou até mesmo desse o menor latido ela ia puxá-lo com tanta força que ele não saberia o que o acertara. Advertiu Macon antes que eles saíssem. Disse que era melhor não objetar, porque aquilo era pelo bem de Edward. Macon esperava poder se lembrar daquilo quando o momento chegasse. Era a sexta-feira depois do Dia de Ação de Graças e tinha nevado um pouco mais cedo, mas o ar ainda não tinha aquele frio cortante e as calçadas só estavam molhadas. O céu parecia começar a menos de um metro de suas cabeças. — Essa paciente, Sra. Brimm, começou a gostar de mim — Muriel disse. — Ela falou que eu era a única pessoa que se dava ao trabalho de falar com ela. Eu lhe falava sobre Alexander. Contava o que os médicos diziam, que não lhe davam muita chance e que alguns até se perguntavam se nós queríamos uma chance, com tudo o que poderia estar errado com ele. Falava com ela sobre Norman e o modo como ele agia, e ela dizia que soava exatamente como uma história numa revista. Quando a deixaram ir para casa ela queria que eu fosse com ela, trabalhasse cuidando dela, mas eu não podia por causa de Alexander. Um ciclista apareceu no fim da rua, uma garota com um uniforme da sorveteria Baskin-Robbins se embolando sob sua jaqueta. Edward aprumou as

orelhas. — Olhe, aja como se não estivéssemos esperando nenhum problema — Muriel disse a Macon. — É só seguir em frente, nem mesmo olhe na direção de Edward. A garota vinha deslizando na direção deles, uma pessoinha miúda com um rosto pequeno e sério. Quando ou, deixou um cheiro nítido de sorvete de chocolate. Edward cheirou o ar mas seguiu em frente. — Oh, Edward, isso foi maravilhoso! — Macon disse a ele. Muriel apenas estalou a língua. Parecia contar com o bom comportamento dele. — Então, seja como for — ela disse —, finalmente deixaram Alexander ir para casa. Mas ele ainda era minúsculo. Todo enrugado, feito um velho. Chorava como um gatinho. Cada respiração era uma luta. E Norman não ajudava em nada. Acho que ele estava com ciúmes. Ficava com essa expressão rebelde todas as vezes que eu tinha que fazer alguma coisa, esquentar uma mamadeira ou algo do gênero. Dizia: “Aonde você vai? Não quer assistir ao final desse programa?” Eu ficava debruçada sobre o berço vendo Alexander lutar pelo ar que respirava, e Norman gritava: “Muriel? O comercial acabou!” A próxima coisa de que me lembro é da mãe dele parada na porta da minha casa dizendo que de todo modo não era filho dele. — O quê? Ora, imagine só! — Macon disse. — Dá para acreditar? Parada à minha porta, toda satisfeita consigo mesma. “Não é filho dele!”, eu disse. “É de quem, então?” “Bem, isso eu não saberia dizer”, ela falou, “e duvido que você saiba. Mas vou lhe dizer o seguinte: se você não der o divórcio ao meu filho e se fizer alguma exigência financeira, eu vou pessoalmente levar Dana Scully e todos os amigos dele até um tribunal e eles vão jurar que você é uma vagabunda e que o bebê poderia ser de qualquer um deles. Visivelmente não é de Norman; Norman era um bebê lindo.” Bem. Eu esperei Norman chegar do trabalho e disse: “Sabe o que a sua mãe me falou?” Então vi, pela expressão em seu rosto, que ele sabia. Vi que ela devia estar falando pelas minhas costas quem sabe por quanto tempo, colocando essas suspeitas na mente dele. Eu disse: “Norman?” Ele só ficou gaguejando. Eu disse: “Norman, ela está mentindo, não é verdade, eu não estava saindo com aqueles rapazes quando te conheci! Isso são coisas adas!” Ele disse: “Não sei o que pensar.” Eu insisti: “Por favor!” Ele disse: “Não sei.” Foi para a cozinha e começou a consertar aquela tela sobre a qual eu andava resmungando, a tela da janela, solta da moldura até a metade, mesmo o jantar já estando na mesa. Eu tinha preparado para ele um jantar especial. Fui atrás dele. Disse: “Norman, Dana e os outros são de muito, muito tempo atrás. O bebê não poderia ser deles.”

Ele puxou um dos cantos da tela para cima e a tela não queria ir, então ele puxou o outro canto e ela cortou sua mão, e no mesmo instante ele começou a chorar e arrancou tudo aquilo da janela e jogou o mais longe que conseguiu. E no dia seguinte sua mãe veio ajudá-lo e arrumar suas roupas e ele me deixou. — Meu Deus — Macon disse. Ele se sentia chocado, como se tivesse conhecido Norman pessoalmente. — Então eu pensei no que fazer. Sabia que não podia voltar para a casa dos meus pais. Por fim telefonei para Sra. Brimm e perguntei se ela ainda queria que eu fosse tomar conta dela, e ela respondeu que sim, queria; a mulher que estava com ela não servia para nada. Então eu disse que faria o trabalho em troca de casa e comida se pudesse levar o bebê e ela concordou, tudo bem. Tinha uma casinha geminada no centro da cidade e havia um quarto extra onde eu e Alexander poderíamos dormir. E foi assim que consegui tocar nossa vida adiante. Estavam a vários quarteirões de casa agora, mas ela não sugeriu que voltassem. Segurava a guia frouxa e Edward andava pomposo ao lado dela, casando seu ritmo ao dela. — Eu tive sorte, não tive? — ela perguntou. — Se não fosse pela Sra. Brimm, não sei o que eu teria feito. E não era tanto trabalho assim. Bastava manter a casa arrumada, preparar qualquer coisa para ela comer e ajudá-la a ir de um lado a outro. Ela estava aleijada por causa da artrite, mas era muito valente, eu não precisava realmente cuidar dela. Ela diminuiu o o e por fim parou. Edward, com um suspiro martirizado, sentou-se junto ao calcanhar esquerdo dela. — Quando você para e pensa, é engraçado — ela continuou. — Todo aquele tempo que Alexander ou no hospital pareceu tão terrível, dava a impressão de que não ia terminar nunca, mas agora que olho para trás quase sinto falta. Isto é, havia algo de confortável em tudo aquilo, agora que me recordo. Penso naquelas enfermeiras fazendo fofoca na sala das enfermeiras e aquelas fileiras de bebês adormecidos. Era inverno e às vezes eu ficava na janela olhando lá para fora e me sentia feliz por estar agasalhada e protegida. Olhava para a entrada da sala de emergências e via as ambulâncias chegando. Você já se perguntou o que um marciano haveria de pensar se aterrissasse perto de uma sala de emergências? Ele veria uma ambulância zumbindo e todo mundo correndo lá para fora a fim de recebê-la, abrindo as portas para trás, agarrando a maca e correndo com ela. “Ora”, ele diria, “que planeta prestativo, que povo gentil e prestativo.” Ele nunca imaginaria que nem sempre somos assim; que temos que, ah, colocar de lado nossa verdadeira natureza para fazer isso. “Que raça de seres prestativos”, o marciano diria. Você não acha?

Ela então ergueu os olhos para Macon. Macon sentiu um súbito puxão no peito. Sentiu que havia algo que devia fazer, algum tipo de conexão que precisava estabelecer, e quando ela levantou a cabeça ele se curvou e beijou seus lábios rachados e ásperos, mesmo não sendo aquela a conexão que tencionava. O punho dela, segurando a guia, ficou preso entre eles como uma pedra. Havia algo de insistente nela, de urgente. Macon recuou. — Bem... — ele disse. Ela continuou olhando para ele. — Desculpe-me — ele disse. Eles então se viraram e levaram Edward de volta para casa. Danny ou o feriado treinando como estacionar paralelamente, incansável, dirigindo o carro da mãe de um lado a outro na frente da casa. E Liberty fazia biscoitos com Rose. Mas Susan não tinha nada para fazer, Rose disse, e já que Macon planejava uma viagem à Filadélfia, será que ele não consideraria a hipótese de levá-la junto? — São só hotéis e restaurantes — Macon disse. — E eu vou fazer tudo num só dia, partindo ao amanhecer e voltando tarde da noite... — Ela vai te fazer companhia — Rose insistiu. Contudo, Susan pegou no sono mal o trem deixou Baltimore, e dormiu durante o trajeto inteiro, afundada em sua jaqueta como um arinho todo pomposo, empoleirado num galho. Macon ficou sentado ao seu lado com uma revista de rock que tinha encontrado enrolada num dos bolsos dela. Viu que o Police estava tendo conflitos de personalidade, que David Bowie estava preocupado com doença mental, que metade da camiseta preta de Billy Idol parecia ter sido arrancada de seu corpo. Evidentemente essas pessoas levavam vidas muito difíceis; ele não tinha a menor ideia de quem eram. Enrolou a revista outra vez e recolocou-a no bolso de Susan. Se Ethan estivesse vivo, estaria sentado ali onde Susan estava? Ele não viajava com Macon, era uma regra. As viagens para outros continentes eram muito caras, as domésticas, muito enfadonhas. Uma vez ele fora com Macon a Nova York, e ficara com dores de estômago que pareciam apendicite. Macon ainda se lembrava de sua busca frenética por um médico, seu próprio estômago apertado em solidariedade, e seu alívio quando lhe disseram que tudo não ava de cafés da manhã em demasia. Ele não levara Ethan mais a lugar algum depois disso. Só à praia em Bethany Beach todos os verões, e isso não era tanto uma viagem quanto uma espécie de transferência da base doméstica, com Sarah tomando sol, Ethan se juntando a outros garotos de Baltimore, também transferidos, e Macon alegremente apertando todas as maçanetas em sua cabana alugada ou desemperrando as janelas ou, certo ano abençoado, resolvendo um problema complicado que descobrira no encanamento.

Na Filadélfia, Susan acordou de mau humor e desceu atordoada do trem, na frente dele. Reclamou da estação: — É grande demais — ela disse. — Os altofalantes-fazem eco e você não consegue entender o que estão dizendo. A estação de Baltimore é melhor. — Sim, você está absolutamente certa — Macon disse. Foram tomar café da manhã num lugar que ele conhecia bem, mas que infelizmente parecia estar enfrentando momentos difíceis. Pedacinhos do reboco do teto não paravam de cair no café dele. Ele riscou o nome de seu guia. Em seguida foram a um lugar que um leitor sugerira, e Susan comeu waffles de nozes. Disse que estavam excelentes. — Você vai me citar? — ela perguntou. — Vai colocar meu nome no seu livro e dizer que eu recomendo os waffles? — Não é esse tipo de livro — ele explicou. — Diga que eu sou sua acompanhante. É o que os críticos de restaurante fazem. “Minha acompanhante, Susan Leary, considerou os waffles notáveis.” Macon riu e fez um sinal pedindo a conta. Depois do quarto café da manhã, começaram a visitar os hotéis. Susan achou menos divertido, embora Macon ficasse tentando envolvê-la. Disse a um gerente: — Minha acompanhante aqui é perita em banheiros. Mas Susan só abriu um armário, bocejou e disse: — Tudo o que eles têm é Camay. — O que há de errado com isso? — Quando a mamãe voltou da lua de mel ela trouxe sabonetes perfumados artesanais do hotel. Um para mim e um para Danny, em caixinhas de plástico que vinham com saboneteiras. — Eu acho que Camay está ótimo — Macon disse ao gerente, que parecia preocupado. No fim da tarde Susan começou a ficar com fome outra vez, então comeram mais dois cafés da manhã. Foram ao Independence Hall. (Macon achava que deviam fazer algo educativo.) — Você pode contar ao seu professor de estudos cívicos — ele disse. Ela revirou os olhos e corrigiu: — Estudos sociais. — Como quiser. O tempo estava frio, e o interior do salão, gelado e deserto. Macon notou Susan bocejando levemente diante do guia, que não tornava sua fala muito excitante; então ele se inclinou e sussurrou: — Imagine. George Washington se sentava naquela cadeira ali. — Eu não estou muito na dele, tio Macon. — Seres humanos só podem estar nas próprias casas, carros e caixões,

Susan. — Hã? — Deixe para lá. Acompanharam a multidão até o andar de cima, através de outras salas, mas Susan tinha visivelmente esgotado seu estoque de bom humor. — Se não fosse pelo que se decidiu neste prédio — Macon disse a ela —, você e eu poderíamos muito bem estar vivendo numa ditadura. — Estamos, de todo modo. — Perdão? — Acha que há algum poder entre eu e você? — Entre mim e você, querida. — Só temos liberdade de expressão, isso é tudo. Podemos dizer o que quisermos, e então o governo vai e faz exatamente o que quer. Você chama isso de democracia? É como estar num barco, em direção a algum lugar terrível, e outra pessoa está no leme e os ageiros não podem descer. — Por que não vamos jantar? — Macon perguntou. Sentia-se um pouco deprimido. Ele a levou a uma estalagem antiquada a algumas ruas dali. Ainda não tinha nem escurecido, e eles eram os primeiros fregueses. Uma mulher com um vestido colonial disse que teriam que esperar alguns minutos. Levou-os a uma salinha confortável com uma lareira, e uma garçonete lhes ofereceu as opções de drinques: rum amanteigado ou cidra quente com especiarias. — Vou querer rum amanteigado — Susan pediu, tirando a jaqueta. Macon disse: — Hm, Susan. Ela fitou-o. — Oh, bem, serão dois — ele disse à garçonete. Achava que uma bebida com um pouquinho de álcool não poderia fazer muito mal. Mas a dose de álcool devia ser excepcionalmente generosa — ou isso ou Susan tinha uma cabeça excepcionalmente fraca para álcool. Fosse como fosse, depois de dois goles pequenos ela se inclinou na direção dele, desequilibrada. — Isso até que é divertido! — ela disse. — Sabe, tio Macon, gosto muito mais de você do que achava que gostava. — Ora, obrigado. — Eu achava você meio meticuloso. Ethan nos fazia rir, apontando para o seu prato de alcachofras. — Meu prato de alcachofras. Ela tapou a boca com os dedos. — Desculpe — ela disse.

— Por quê? — Eu não pretendia falar dele. — Você pode falar dele. — Não quero — ela respondeu. Ela olhou para a salinha. Macon, acompanhando seus olhos, só encontrou uma harpa. Olhou de volta e viu o queixo dela tremendo. Nunca lhe ocorrera que os primos de Ethan também sentissem falta dele. Depois de um minuto, Susan pegou a caneca e deu vários goles grandes. Enxugou o nariz com as costas da mão. — Quente — ela explicou. Era verdade que parecia ter se recuperado. Macon disse: — O que era engraçado sobre o meu prato de alcachofras? — Ah, nada. — Não vou ficar magoado. O que era engraçado? — Bem, parecia uma aula de geometria. Cada folhinha arrumada num círculo perfeito depois que você terminava. — Entendo. — Ele estava rindo com você, não de você — Susan disse, espiando ansiosa o rosto dele. — Bem, já que eu não estava rindo, essa afirmação parece imprecisa. Mas se você está querendo dizer que ele não estava rindo de modo indelicado, acredito em você. Ela suspirou e bebeu um pouco mais do seu rum. — Ninguém fala dele — Macon disse. — Nenhum de vocês toca no nome dele. — Fazemos isso quando você não está por perto — Susan respondeu. — Fazem? — Falamos do que ele acharia, sabe. Como quando Danny tirou a carteira, ou quando eu tinha um par para o baile do Dia das Bruxas. Nós costumávamos debochar tanto dos adultos. E Ethan era o mais engraçado; ele sempre nos fazia rir. E agora aqui estamos, nós mesmos crescendo. Ficamos nos perguntando o que Ethan pensaria de nós, se ele pudesse voltar e nos ver. Nós nos perguntamos se ele riria de nós. Ou se ia se sentir... abandonado. Como se tivéssemos seguido adiante e o deixado para trás. A mulher de vestido colonial veio mostrar-lhes sua mesa. Macon levou seu drinque; Susan já tinha terminado o dela. Estava um pouco vacilante. Quando sua garçonete lhes perguntou se gostariam de ver a carta de vinhos, Susan lançou um olhar animado para Macon, mas ele disse “Não” com firmeza. — Acho que devíamos começar com a sopa — ele disse. Tinha uma ideia de

que sopa fazia as pessoas ficarem mais sóbrias. Mas Susan falou de um modo afoito e impetuoso enquanto tomavam a sopa, enquanto comiam o prato principal, as duas sobremesas entre as quais não conseguira se decidir e enquanto tomava o café forte que ele lhe impôs em seguida. Falou de um garoto de quem gostava e que ou gostava dela ou preferia alguém chamada Sissy Pace. Falou do baile do Dia das Bruxas onde esse garoto da oitava série realmente imaturo tinha vomitado em cima do aparelho de som. Disse que quando Danny tivesse 18 anos os três iam se mudar para seu próprio apartamento porque agora que sua mãe estava grávida (o que Macon não sabia) ela nem ia se dar conta de que tinham ido embora. — Isso não é verdade — Macon disse a ela. — Sua mãe ia se sentir péssima se vocês fossem embora. Susan apoiou o queixo no punho de um jeito meio desleixado e respondeu que não tinha nascido ontem. Seu cabelo tinha ficado mais rebelde ao longo da noite, conferindo-lhe uma aparência eletrizada. Macon teve dificuldade em metêla dentro da jaqueta, e teve mais ou menos que segurá-la pela parte de trás da gola enquanto esperavam o táxi. Na estação de trem, ela assumiu uma expressão confusa, os olhos apertados, e uma vez no trem adormeceu com a cabeça apoiada na janela. Em Baltimore, quando ele a acordou, ela disse: — Você não acha que ele está uma fera conosco, tio Macon? — Ele quem? — O Acha que ele está uma fera porque estamos começando a esquecê-lo? — Oh, não, querida. Tenho certeza de que não está. Ela dormiu no carro durante todo o trajeto desde a estação e ele dirigiu com muito cuidado para não acordá-la. Quando chegaram em casa, Rose disse que ele parecia ter esgotado a pobrezinha. — O seu cachorro tem que estar atento a você em todas as situações — Muriel disse. — Mesmo em público. Quando você deixá-lo do lado de fora num local público, ele tem que estar esperando quando você voltar. É nisso que vamos trabalhar esta manhã. Vamos começar com ele esperando bem diante da sua varanda. Depois, na próxima aula, vamos a lojas e coisas do tipo. Ela pegou a guia e eles saíram pela porta. Chovia, mas o telhado da varanda os mantinha secos. Macon disse: — Espere um minuto. Quero te mostrar algo. — O que é? Ele bateu o pé duas vezes. Edward pareceu desconfortável; olhou na direção da rua e deu uma espécie de tossida. Então devagar, bem devagar, uma pata se dobrou. Depois a outra. Ele foi se abaixando grau após grau até ficar deitado. — Ora! Bom menino! — Muriel disse. Estalou a língua.

Edward abaixou as orelhas para ganhar carinho. — Treinei com ele ontem quase o dia todo — Macon disse. Estava sol e eu não tinha nada para fazer. E então os filhos do meu irmão estavam se preparando para ir embora e Edward rosnava daquele jeito como faz normalmente; então bati o pé e ele se deitou. — Estou orgulhosa de vocês dois. Ela disse a Edward: “Fique”, estendendo a mão. Voltou para dentro de casa. — Agora, Macon, você também entra. Fecharam a porta da frente. Muriel puxou de leve a cortina e espiou lá fora. — Bem, até aqui ele está ficando — ela anunciou. Virou as costas para a porta. Verificou as unhas e disse: — Tsk! Pequeninas contas de chuva escorreram pela sua capa, e seu cabelo que, reagindo à umidade, formava anéis. — Algum dia vou arranjar uma manicure profissional — ela disse. Macon tentou ver atrás dela; não tinha certeza de que Edward fosse ficar quieto. — Você já foi a uma manicure? — Eu? Meu Deus, não. — Bem, alguns homens vão. — Não eu. — Eu gostaria apenas uma vez de ter tudo feito profissionalmente. Unhas, pele... Minha amiga vai a esse lugar onde eles aspiram a sua pele. Simplesmente aspiram todos os seus poros, ela disse. E eu gostaria que me pintassem. Que cores ficam bem em mim? Que cores não ficam? O que destaca o que há de melhor em mim? Ela levantou os olhos para ele. Subitamente, Macon teve a sensação de que ela não estava falando de cores em absoluto, mas de outra coisa. Parecia que usava as palavras como uma espécie de música de fundo. Ele recuou um o, afastando-se dela. Ela disse: — Você não precisava pedir desculpas, no outro dia. — Pedir desculpas? Embora ele soubesse exatamente ao que ela se referia. Ela pareceu adivinhar isso. Não se explicou. — Hm, não me lembro se deixei claro — Macon disse —, mas ainda nem me divorciei legalmente. — E daí? — Só estou, como vocês dizem, separado. — E daí? Ele queria dizer: Muriel, me desculpe, mas desde que meu filho morreu, o sexo... azedou. (Como o leite azeda; era assim que ele pensava no assunto. Como

o leite altera sua natureza básica e se torna azedo.) Eu realmente não penso mais nisso. Honestamente, não. Não posso imaginar mais por que tanto alvoroço em torno do assunto. Agora parece patético. Mas o que ele disse foi: — Estou preocupado que o carteiro venha. Ela olhou para ele por um instante mais, e depois abriu a porta para Edward. Rose estava tricotando para Julian um pulôver, para o Natal. — Já? — Macon perguntou. — Nós mal amos o Dia de Ação de Graças. — Sim, mas este padrão é muito difícil e eu quero fazer direito. Macon ficou observando as agulhas dela reluzindo. — Na verdade — ele disse —, você já reparou que Julian usa cardigãs? — Sim, acho que usa — ela respondeu. Mas continuou tricotando o pulôver. Era uma lã cinzenta, o que ele achava que chamavam de lã mesclada. Macon e seus dois irmãos tinham suéteres daquela cor. Mas Julian usava tons pastel ou azul-marinho. Julian se vestia como um jogador de golfe. — Ele tem uma tendência ao estilo gola em V — Macon observou. — Isso não quer dizer que não fosse usar gola redonda se tivesse. — Olhe — Macon disse. — Acho que o que estou querendo dizer... As agulhas de Rose davam estalos, tranquilamente. — Ele tem certo estilo playboy, na verdade — ele disse. — Não sei se você se dá conta. E além disso, é mais novo. — Dois anos — ela disse. — Mas ele tem um estilo mais jovem, não sei, de vida. Apartamentos para solteiros e assim por diante. — Ele diz que está cansado disso tudo. — Oh, Deus. — Diz que gosta do conforto doméstico. Aprecia minha comida. Não acredita que eu esteja tricotando um suéter para ele. — Não, acho que não — Macon disse, inflexível. — Não tente estragar isto, Macon. — Querida, só estou tentando protegê-la. Está errado, sabe, aquilo que você disse no Dia de Ação de Graças. Não se trata sempre do amor. Há outras coisas a considerar também, todo tipo de questões. — Ele comeu do meu peru e não ou mal. Duas porções grandes — Rose disse. Macon deu um gemido e puxou um punhado do cabelo. — Primeiro testamos ele numa rua bem tranquila — Muriel disse. — Algum

lugar público, mas não muito movimentado. Alguma lojinha fora do caminho ou coisa do tipo. Ela dirigia a banheira cinza que chamava de carro. Macon se sentava na frente, ao lado dela, e Edward no banco de trás, as orelhas achatadas na cabeça de tanta satisfação. Edward sempre ficava feliz quando era convidado para dar uma volta de carro, mesmo que em pouco tempo ficasse irritado. (“Quanto tempo ainda falta?”, você quase podia ouvi-lo choramingar.) Por sorte, não iam longe. — Comprei este carro por causa da mala grande — Muriel disse. Jogou-o de modo arrojado numa curva. — Precisava para o meu trabalho. Adivinhe quanto custou? — Hm... — Só 200 dólares. Isso porque precisava de conserto, mas eu o levei para esse rapaz da minha rua. Disse: “O negócio é o seguinte. Se você consertar o meu carro, deixo você usá-lo três noites por semana e o domingo inteiro.” Não foi uma boa ideia? — Bastante criativa — Macon respondeu. — Eu tinha que ser criativa. Tudo tem sido só dar duro e correr atrás desde que Norman me deixou — ela disse. Tinha parado num espaço em frente a um pequeno centro comercial, mas não fez nenhum gesto para sair do carro. — Fiquei deitada sem dormir, ah, muitas noites, pensando em formas de ganhar dinheiro. Já era difícil o suficiente quando a casa e a comida vinham de graça, mas depois que Sra. Brimm morreu ficou pior; sua casa ou para o filho e eu tinha que pagar aluguel a ele. O filho dela é um velho sovina. Sempre querendo aumentar o preço. Eu disse: “Que tal isto? Você deixa o aluguel no valor que está e eu não o importuno com manutenção. Cuido de tudo sozinha”, falei. “Pense nas dores de cabeça que você vai evitar.” Então ele concordou e agora você devia ver com o que tenho de lidar, coisas que param de funcionar e eu não consigo consertar, então nós simplesmente convivemos com elas. Teto vazando, pia entupida, torneira vazando água quente, então minha conta de gás é estratosférica, mas pelo menos mantive o aluguel barato. E tive uns cinquenta empregos, você pode contar. Pode dizer que tive sorte; sou boa para identificar oportunidades. Como aquelas aulas no Doggie, Do, ou noutra ocasião um curso de massagem no Y. A massagem acabou sendo uma coisa inútil, parece que você precisa ter uma licença e tudo mais, mas posso dizer que o Doggie, Do compensou. E também estou tentando começar esse trabalho de pesquisa; isso devido a tudo o que aprendi ajudando a bibliotecária da escola. Escrevia aqueles cartõezinhos cor-de-rosa que distribuía

em Towson State: Pesquisa Precisa. Tirei xerox desses folhetos e enviei pelo correio a todos os nomes de Maryland que consegui encontrar no Catálogo de escritores. Homens e mulheres das letras!, eu dizia. Querem uma doença lenta que vai matar de forma efetiva um personagem sem desfigurá-lo? Até o momento ninguém respondeu, mas ainda estou aguardando. Já foram duas as vezes em que eu paguei por férias completas em Ocean City simplesmente indo de um lado a outro da praia oferecendo às pessoas aquelas refeições que eu e Alexander preparávamos em nosso quarto, no motel, a cada manhã. Nós as levamos no carrinho de puxar vermelho de Alexander; eu grito: “Bebidas geladas! Sanduíches! Venham logo!” E isso sem nem mesmo contar os empregos regulares, como o Miau-Au ou, antes, o RapidEz. O velho e cansativo RapidEz; eles me deixavam levar Alexander mas tudo não ava de copiar documentos e coisas enfadonhas como cheques cancelados e recibos, coisinhas sem importância. Nunca me senti tão desinteressante. Macon se espreguiçou e disse: — Você não quer dizer desinteressada? — Exatamente. Você não ficaria? Cópias de cartas, cópias de exames, cópias de artigos sobre como procurar financiamento para casa. Instruções de tricô, instruções de crochê, tudo rolando para fora da máquina muito devagar e imponentemente, como se fossem grande coisa. Por fim me demiti. Quando consegui o treinamento no Doggie, Do, disse: “Peço demissão. Já chega!” Por que não tentamos o mercado. Macon sentiu-se confuso por um segundo. Depois disse: — Ah. Tudo bem. — Você entra no mercado, manda Edward se deitar e ficar do lado de fora. Vou esperar aqui no carro e ver se ele se comporta. — Tudo bem. Ele saiu do carro e abriu a porta traseira para Edward. Levou-o ao mercado. Bateu o pé duas vezes. Edward parecia angustiado, mas se deitou. Será que aquilo era humano, quando a calçada ainda estava tão molhada? Com relutância, Macon entrou na loja. Tinha o cheiro antiquado de saquinhos de papel pardo. Quando olhou lá para fora, a expressão de Edward era de cortar o coração. Estava com um ar desconcertado e ansioso, e observava a porta intensamente. Macon atravessou um corredor cheio de frutas e legumes. Pegou uma maçã, a examinou e colocou de volta. Depois saiu de novo. Edward ainda estava no lugar. Muriel tinha saído de seu carro e estava apoiada no para-choque, fazendo caras e bocas para um pó compacto marrom de plástico. — Faça muitos elogios a ele! — ela gritou, fechando o pó compacto com um estalo. Macon estalou a língua e fez festa na cabeça de Edward. Foram em seguida à drogaria.

— Desta vez vamos entrar os dois — Muriel disse. — Isso é seguro? — Vamos ter que tentar, mais cedo ou mais tarde. Percorreram todo o corredor de artigos para cabelo e voltaram até a seção de cosméticos, onde Muriel parou para experimentar um batom. Macon imaginou Edward bocejando e se levantando e indo embora. Muriel disse: — Rosa demais. Pegou um lenço de papel dentro da bolsa e removeu o rosa. Seu próprio batom permaneceu, como se fosse não apenas uma cor dos anos 1940 mas uma fórmula dos anos 1940 — aquela pasta sem brilho que ficava presa em fronhas, guardanapos e na borda de xícaras de café. Ela disse: — O que você vai fazer amanhã à noite no jantar? — Para o jantar...? — Venha comer na minha casa. Ele piscou os olhos. — Vamos lá. Nós vamos nos divertir. — Hm... — Só jantar, você e eu e Alexander. Digamos às 18 horas. Número 16 da Singleton Street. Sabe onde fica? — Ah, bem, acho que não vou estar livre — Macon respondeu. — Pense um pouco no assunto — ela disse. Foram lá para fora. Edward ainda estava lá mas estava de pé, eriçando-se na direção de um Chesapeake Bay retriever a quase um quarteirão dali. — Droga — Muriel disse. — Bem quando eu achava que estávamos avançando. Fez com que ele se deitasse outra vez. Então liberou-o e os três continuaram caminhando. Macon se perguntava quando poderia dizer decentemente que já tinha pensado no assunto e se lembrara que com certeza tinha um convite para ir a um outro lugar. Eles dobraram uma esquina. — Oh, olhe, um brechó! — Muriel disse. — Minha pior fraqueza — ela bateu o pé para Edward. — Desta vez, eu entro — ela falou. — Quero ver o que eles têm. Você recua um pouco e fica observando se ele não se levanta como antes. Ela entrou no brechó enquanto Macon esperava, escondendo-se entre os parquímetros. Mas Edward sabia que ele estava lá. A toda hora virava a cabeça e lançava olhares de súplica a Macon. Macon viu Muriel na frente da loja, pegando e colocando de volta pequenas xícaras douradas sem pires, vasos de vidro lascados de floristas, broches de estanho, feios, grandes como cinzeiros. Depois a viu indistintamente lá no fundo, onde estavam as roupas. Ela entrava em seu campo de visão e saía dele, como

um peixe em águas escuras. Apareceu subitamente na entrada, segurando um chapéu. — Macon? O que você acha? — ela chamou. Era um turbante bege empoeirado com uma joia espetada no meio, um enorme topázio falso igual a um olho. — Muito interessante — Macon disse. Ele começava a sentir frio. Muriel desapareceu de novo, e Edward suspirou e deitou o queixo sobre as patas. Uma adolescente ou por eles — uma garota meio cigana com camadas de saias de babados e uma mochila roxa de cetim coberta de emblemas do Grateful Dead. Edward ficou tenso. Observou cada o que ela dava; se endireitou para poder ficar olhando para ela depois que ou. Mas não fez nada, e Macon, também tenso, se sentiu aliviado, mas também um pouco decepcionado. Estava preparado para entrar em ação. De imediato o silêncio pareceu extraordinariamente intenso; ninguém mais ava. Ele teve uma daquelas alucinações sonoras que às vezes tinha em aviões ou trens. Ouviu a voz de Muriel, áspera e fina, falando rapidamente. “Depois do sinal a hora certa será...”, ela disse, e depois cantou: “Você vai encontrar seu amor em...” e depois gritou: “Bebidas geladas! Sanduíches! Venham logo!” Parecia que ela havia enredado a mente dele com suas histórias, envolvido-o com os delgados fios de aço da sua vida — sua infância de Shirley Temple, sua meninice insípida, Norman atirando a tela da janela para longe, Alexander miando como um gatinho recém-nascido, Muriel controlando dobermanns e distribuindo seus cartões de visita rosa-salmão e andando apressada pela praia, toda pernas e braços finos e cabelo esvoaçante, arrastando um carrinho vermelho carregado de almoços. Então ela saiu do brechó. — Era caro demais — ela disse a Macon. — Bom menino — disse, e estalou os dedos para liberar Edward. — Agora, mais um teste — ela caminhava na direção do carro. — Vamos tentar entrar os dois, novamente. Vamos fazer isso no médico. — Que médico? — O dr. Snell. Tenho que pegar Alexander; quero levá-lo de volta à escola antes de deixar você. — Vai demorar? — Oh, não. Seguiram de carro na direção sul, com o motor batendo pino de um jeito que Macon não notara da primeira vez. Diante de um prédio na Cold Spring Lane, Muriel estacionou e saiu. Macon e Edward a acompanharam.

— Bem, não sei se ele está pronto ou não — ela disse. — Mas é melhor se não estiver; vai dar a ele prática. — Achei que você tinha dito que não ia demorar. Ela não pareceu escutá-lo. Deixaram Edward na entrada e foram para a sala de espera. A recepcionista era uma mulher de cabelos grisalhos com óculos de pedrinhas brilhantes pendendo de uma corrente de escaravelhos falsos. Muriel perguntou a ela: — Alexander já terminou? — A qualquer momento, querida. Muriel pegou uma revista e se sentou, mas Macon continuou de pé. Ele ergueu uma das lâminas da persiana para ver como Edward estava. Um homem numa cadeira próxima lançou-lhe um olhar desconfiado. Macon sentiu-se como alguém de um filme de gangsteres — um daqueles personagens que afastam um pouco uma cortina para ter certeza de que não há perigo à vista. Abaixou a persiana. Muriel lia um artigo chamado “Use o novo olhar sensual e fatal”. Havia fotos de várias modelos com olhar malévolo. — Quantos anos você disse que Alexander tinha? — Macon perguntou. Ela levantou o rosto. Seus próprios olhos, intocados por cosméticos, eram perturbadoramente nus comparados aos da revista. — Tem 7 — ela respondeu. Sete. Sete era a idade com que Ethan aprendera a andar de bicicleta. Macon foi visitado por uma daquelas lembranças que marcam a pele, que retesam os músculos. Sentiu a pressão do selim da bicicleta de Ethan em sua mão — a beirada curva atrás, onde você segura quando está tentando manter a bicicleta de pé. Sentiu a calçada de encontro às solas de seus sapatos enquanto corria. Sentiu-se largando, diminuindo o o, parando com as mãos na cintura e gritando: — Agora você conseguiu! Você conseguiu! E Ethan pedalando para longe dele, forte e orgulhoso e com as costas retas, o cabelo refletindo a luz até ele ar atrás de um carvalho. Macon se sentou ao lado de Muriel. Ela olhou para ele e disse: — Você já pensou? — Hmm? — Você já chegou a pensar sobre vir jantar? — Ah — ele disse. E então continuou — Bem, eu poderia ir. Se é só para jantar. — Para o que mais poderia ser? — ela perguntou. Sorriu para ele e jogou o cabelo para trás. A recepcionista disse: — Aqui está ele.

Falava de um menino pequeno, branco e doentio com uma cabeça que parecia ter sido raspada. Ele não parecia ter pele suficiente para o rosto; sua pele era esticada, sua boca era esticada de um jeito pouco atraente, cada osso e cartilagem se faziam perceptíveis. Seus olhos eram de um azul-claro e sem cílios, um pouco esbugalhados, com a beirada cor-de-rosa e ampliados por trás de óculos cuja armação clara tinham elas próprias um infeliz tom de rosa. Ele usava um conjunto de camisa e calças combinando do tipo que só uma mãe teria escolhido. — Como foi? — Muriel lhe perguntou. — Tudo bem. — Querido, este é Macon. Você pode dizer oi? Eu tenho treinado o cachorro dele. Macon se levantou e estendeu a mão. Depois de um momento, Alexander respondeu. Seus dedos pareciam um conjunto de vagens murchas. Ele puxou a mão de volta e disse à sua mãe: — Você tem que marcar outra consulta. — Claro. Ela foi até a recepcionista, deixando Macon e Alexander de pé ali. Macon tinha a sensação de que não havia nenhum assunto na terra sobre o qual ele pudesse falar com aquela criança. Ele tirou uma folha que estava grudada em sua manga. Puxou os punhos para baixo. Disse: — Você é bem novo para estar no médico sem a sua mãe. Alexander não respondeu, mas Muriel, esperando enquanto a recepcionista folheava o calendário, virou-se e respondeu por ele. — Ele está acostumado porque tem que vir muitas vezes. Tem essas alergias. — Entendo — Macon disse. Sim, ele era o tipo certo para as alergias. — Ele é alérgico a mariscos, leite, todo tipo de fruta, trigo, ovos e à maioria das verduras — Muriel disse. Recebeu um cartão da recepcionista e colocou-o dentro da bolsa. Disse, enquanto saíam: — Ele é alérgico a poeira, pólen e tinta, e há uma crença de que seja alérgico ao ar. Sempre que fica fora de casa por muito tempo aparecem esses inchaços em todas as partes descobertas de seu corpo. Ela estalou a língua para Edward e estalou os dedos. Edward deu um salto, latindo. — Não faça festa nele — ela disse a Alexander. — Você não sabe o que pelo de cachorro pode causar em você. Entraram em seu carro. Macon se sentou no banco de trás para que Alexander pudesse se sentar na frente, o mais longe possível de Edward.

Tiveram que seguir com todas as janelas abaixadas para que Alexander não começasse a respirar com dificuldade. Por cima do barulho do vento, Muriel exclamou: — Ele está sujeito a asma, eczema e sangramentos do nariz. Tem que tomar injeções o tempo todo. Se uma abelha em algum momento o picasse e ele não tivesse tomado suas injeções, poderia estar morto em meia hora. Alexander virou a cabeça devagar e fitou Macon. Sua expressão era afetada e crítica. Quando eles pararam em frente à casa, Muriel disse: — Bem, agora vamos ver. Amanhã estou o dia inteiro na Miau-Au... — ela ou a mão pelo cabelo, que estava desalinhado, áspero, desorganizado. — Então acho que não o vejo antes do jantar — ela falou. Macon não conseguia pensar em nenhum modo de dizer-lhe isso, mas a verdade era que ele nunca conseguiria ir àquele jantar. Sentia falta de sua mulher. Sentia falta de seu filho. Eles eram as únicas pessoas que lhe pareciam reais. Não fazia sentido procurar substitutos.

11 Muriel Pritchett, era como ela estava na lista. Valente e atrevida: nada de iniciais temerosas para Muriel. Macon circundou o número. Achava que agora era o momento de telefonar. Eram 21 horas. Alexander já teria ido dormir. Pegou o fone. Mas o que diria? Melhor ser direto, claro, é muito menos doloroso; não era o que a avó Leary sempre dissera? Muriel, ano ado meu filho morreu e eu não acho que... Muriel, isto não tem nada a ver com você pessoalmente mas eu realmente não tenho qualquer... Muriel, não posso. Simplesmente não posso. Parecia que a voz dele estava enferrujada. Ele segurou o fone junto à orelha mas grandes e afiados grumos de ferrugem estavam presos em sua garganta. Ele nunca dissera em voz alta que Ethan estava morto. Nunca precisara; estava nos jornais (página 3, página 5), e depois os amigos contaram a outros amigos, e Sarah ia para o telefone... Então, de algum modo ele nunca dissera as palavras. Como faria isso agora? Ou talvez ele pudesse levar Muriel a fazê-lo. Termine esta frase, por favor: Eu tinha um filho mas ele... “Ele o quê?”, ela perguntaria. “Ele foi morar com a sua mulher? Fugiu de casa? Morreu?” Macon faria que sim. “Mas como ele morreu? Foi câncer? Foi desastre de carro? Foi um garoto de 19 anos com um revólver num restaurante Burger Bonanza?” Ele desligou. Foi pedir papel de carta a Rose e ela lhe deu algumas folhas que estavam em sua mesa. Ele as levou para a mesa da sala de jantar, sentou-se e destampou a caneta-tinteiro. Cara Muriel, escreveu. E ficou olhando para a folha durante algum tempo. Nome engraçado. Quem pensaria em chamar um bebê recém-nascido de Muriel? Ele examinou sua caneta. Era uma Parker, de laca estilo casco de tartaruga com desenhos sinuosos e uma pena intrincada de ouro cujo aspecto ele apreciava. Examinou o papel de carta de Rose. A cor era creme. Tinha rebarbas. Rebarbas! Que palavra esquisita. Bem. Cara Muriel.

Sinto muito, ele escreveu, mas não poderei ir jantar com você, afinal. Surgiu algo. Ele assinou: Com minhas desculpas, Macon A avó Leary não teria aprovado. Ele fechou o envelope e enfiou-o no bolso da camisa. Então foi até a cozinha, onde Rose tinha um mapa gigante da cidade preso com percevejos na parede. Dirigindo pelo labirinto de ruas imundas, rachadas e escuras ao sul da cidade, Macon se perguntava como Muriel podia se sentir segura morando lá. Havia becos sujos, escadarias cheias de lixo e portas ladeadas por pedaços esfarrapados de pôsteres em demasia. As lojas fechadas com grades e seus letreiros mal escritos oferecendo serviços que tinham um tom algo desonesto: DESCONTAMOS CHEQUES SEM FAZER PERGUNTAS. IMPOSTO DE RENDA DO PEQUENO BUBBA. TROCAMOS A COR DO SEU CARRO NO MESMO DIA.

Mesmo tão tarde numa noite fria de novembro, grupos de pessoas se moviam furtivamente nas sombras — homens jovens bebendo coisas guardadas em sacos de papel pardo, mulheres de meia-idade discutindo sob o toldo de um cinema que dizia fechado. Ele virou na Singleton e se deparou com um quarteirão de casas geminadas que davam a impressão de ter sido construídas de qualquer maneira. Os telhados eram retos, as janelas eram regulares e lhes faltava profundidade. Não havia nada sobrando, nenhum material em excesso para balanços ou molduras decorativas, nenhuma generosidade. A maioria era coberta de pedras falsas, mas os tijolos do número 16 tinham sido pintados num tom de marrom emborrachado. Uma lâmpada cor de laranja à prova de insetos brilhava fraca sobre os degraus da entrada. Ele desceu do carro e subiu os degraus. Abriu a porta de tela, feita de alumínio todo marcado. A porta fez um estrépito de material barato e as dobradiças rangeram. Ele se sobressaltou. Tirou a carta de dentro do bolso e se abaixou. — Tenho uma espingarda de cano duplo — Muriel disse, de dentro da casa —, e estou apontando exatamente para onde sua cabeça está. Ele se levantou de imediato. Seu coração disparou. (A voz dela parecia equilibrada e certeira — como a espingarda, ele imaginava.) Ele disse: — É Macon.

— Macon? O trinco estalou e a porta de dentro se abriu vários centímetros. Ele viu um pedaço de Muriel usando um roupão de cor escura. Ela disse: — Macon! O que você está fazendo aqui? Ele lhe entregou a carta. Ela a apanhou e abriu, usando as duas mãos. (Não havia nem traço de espingarda.) Leu e olhou para ele. Ele viu que cometera um erro. — Ano ado — ele disse — eu perdi... eu sofri uma... perda, sim, eu perdi meu... Ela continuou olhando para o seu rosto. — Perdi meu filho — Macon disse. — Ele só estava... ele tinha ido a uma lanchonete qualquer e então... alguém surgiu, um assaltante, e atirou nele. Não posso ir jantar com as pessoas! Não posso conversar com seus filhinhos! Você tem que parar de me convidar. Não quero ferir seus sentimentos mas simplesmente não consigo, você está me ouvindo? Ela pegou o punho dele com muita delicadeza e o puxou para dentro de casa, ainda sem abrir por completo a porta, de modo que ele teve a sensação de deslizar através de alguma coisa, de escapar de alguma coisa por uma agem estreita. Ela fechou a porta atrás dele. Colocou os braços ao seu redor e o abraçou. — Todos os dias eu me digo que é hora de superar isso — ele disse para o espaço acima da cabeça de Muriel. — Sei que as pessoas esperam isso de mim. Costumavam me oferecer solidariedade mas agora não mais; nem mesmo mencionam o nome dele. Acham que é hora de eu seguir em frente com a minha vida. Mas tudo só faz piorar. O primeiro ano foi como um sonho ruim, eu estava na porta do quarto dele de manhã antes de me lembrar que ele não estava ali para ser acordado. Mas este segundo ano é real. Parei de ir à porta dele. Algumas vezes deixei um dia inteiro se ar sem pensar nele. Essa ausência é mais terrível do que a primeira, num certo sentido. E você haveria de imaginar que eu recorreria a Sarah, mas não, só fazemos mal um ao outro. Acredito que Sarah pense que eu poderia ter de algum modo evitado o que aconteceu — ela está tão acostumada comigo resolvendo tudo na sua vida. Pergunto-me se tudo isso apenas trouxe à superfície a verdade a nosso respeito, o quão distantes nós somos um do outro. Temo que tenhamos nos casado porque éramos muito distantes. E agora estou distante de todo mundo; não tenho mais nenhum amigo e todo mundo parece insignificante e tolo e sem nenhuma ligação comigo. Ela o conduziu por uma sala de estar onde sombras avultavam sobre um

único abajur com contas, e uma revista jazia com a capa voltada para baixo num sofá de superfície irregular. Ela o levou escada acima e através de um corredor e para dentro de um quarto onde havia uma cama com armação de ferro e uma cômoda de verniz laranja. — Não — ele disse. — Não é isso que eu quero. — Só durma — ela disse a ele. — Só se deite e durma. Aquilo parecia razoável. Ela tirou o casaco de lã que ele usava e pendurou-o num gancho no closet coberto por um pedaço de lençol florido. Ajoelhou-se e desfez os laços dos sapatos dele. Macon tirou os pés, obediente. Ela se levantou para desabotoar a camisa dele, que ficou ivo, com as mãos do lado do corpo. Pendurou as calças dele nas costas de uma cadeira. Ele se deitou na cama usando a roupa de baixo e ela o cobriu com uma colcha fina e desbotada que cheirava a gordura de bacon. Em seguida ele a ouviu andando pela casa, apagando luzes, abrindo a água, murmurando alguma coisa em outro quarto. Ela voltou para o quarto e ficou parada diante da cômoda. Brincos caíram com um estalo dentro de um pratinho. Seu roupão era de uma seda velha e puída, cor de cereja. Ficava amarrado na cintura com um cordão retorcido e os cotovelos estavam cerzidos de um modo desajeitado. Apagou o abajur. Então veio para a cama, levantou a colcha e deslizou para baixo dela. Ele não se surpreendeu quando ela pressionou o corpo contra o seu. — Eu só quero dormir — ele disse. Mas havia aquelas dobras da seda. Ele sentia como a seda era fresca e fluida. Colocou a mão no quadril dela e sentiu suas duas camadas, o fresco sobre o quente. Disse: — Você pode tirar isso? Ela sacudiu a cabeça. — Sou tímida — ela sussurrou, mas imediatamente em seguida, como que para negar isso, colocou a boca na dele e envolveu o corpo dele com o seu. À noite, ele ouviu uma criança tossir, e atravessou a contragosto camadas de sonhos para responder. Mas estava num quarto com uma única e alta janela azul, e a criança não era Ethan. Virou-se de lado e se deparou com Muriel. Ela suspirou no sono, levantou a mão dele e a colocou sobre seu estômago. O robe tinha se aberto; ele sentiu a pele lisa, e depois uma crista enrugada de pele projetando-se de seu abdome. A cesariana, ele pensou. E lhe pareceu, enquanto afundava outra vez nos sonhos, que ela havia praticamente falado em voz alta. Quanto ao seu filho, parecia estar dizendo: Coloque a mão aqui. Também tenho

cicatrizes. Todos temos cicatrizes. Você não é o único.

12 — Não entendo você — Rose disse a Macon. — Primeiro você diz que sim, que vai estar aqui a tarde toda, e depois diz que não vai. Como posso me planejar se você é tão desorganizado? Ela dobrava guardanapos de linho e os empilhava sobre a mesa, preparando seu chá anual para os velhos. Macon disse: — Desculpe-me, Rose, não sabia que teria essa importância toda. — Ontem à noite você disse que ia jantar e depois não estava aqui para comer. Foram três manhãs nas últimas duas semanas que eu o chamo para tomar café da manhã e você nem sequer dormiu em sua cama. Não acha que eu me preocupo? Qualquer coisa podia ter acontecido. — Bem, eu disse que sinto muito. — Rose alisou a pilha de guardanapos. — O tempo vai ando devagar — ele disse. — Você sabe como é. Veja, a princípio, não tenho nenhuma intenção de sair, então eu penso: “Ah, talvez só um pouquinho”, e em seguida tudo o que sei é que está muito tarde, tarde demais para dirigir, e penso com meus botões: “Bem...” Rose se virou rapidamente e foi até o aparador. Começou a contar as colheres. — Não estou fazendo perguntas sobre sua vida privada — ela disse. — Achei que de certa forma, você estava. — Eu só precisava saber quanta comida devia preparar, só isso. — Eu não a culpo por ser curiosa — ele disse. — Só preciso saber quantos cafés da manhã preparar. — Acha que não percebi que você estava lá? Sempre que ela está aqui dando aula para Edward todo mundo começa a sair da toca. am pela sala de estar dizendo: “Só estava procurando o alicate! Não se incomodem comigo!” Varrendo toda a varanda da frente no instante em que levamos Edward para caminhar. — É culpa minha se a varanda estava suja? — Olhe, vou lhe dizer uma coisa. Amanhã à noite eu com certeza vou estar aqui para o jantar. É uma promessa. Pode contar com isso. — Não estou pedindo para você ficar se não quiser — ela disse. — É claro que eu quero! Só vou estar fora hoje à noite, mas não até tarde, tenho certeza. Ora, aposto que volto para casa antes das 22 horas!

Mas mesmo ao falar ele percebia o quão falsas e superficiais suas palavras soavam, e viu como Rose abaixou os olhos. Ele comprou uma pizza grande com uma porção de coisas na cobertura e foi com ela de carro para o centro da cidade. O cheiro o deixava com tanta fome que ele ficava tirando pedacinhos de cima em todo sinal fechado, fatias de linguiça, crescentes de cogumelo. Em pouco tempo o volante também estava pegajoso. Cantarolando para si mesmo, ele ou por borracharias, lojas de bebidas, lojas que vendiam sapatos baratos, a Hot-Tonight Novelty Company. Tomou um atalho por uma agem e ou aos solavancos entre duas fileiras de quintais, retângulos minúsculos entulhados com balanços e peças de carro enferrujadas e arbustos mirrados e congelados. Entrou na Singleton e parou atrás de uma picape cheia de rolos mofados de carpete. As filhas gêmeas do vizinho estavam sentadas no alto dos degraus de sua entrada, garotas vistosas de 16 anos em jeans tão apertados quanto peles de salsicha. Estava frio demais para se sentarem lá fora, mas isso não as impedia. — Oi, Macon — elas cantarolaram. — Como vão, meninas. — Está indo ver Muriel? — Pensei nessa possibilidade. Ele subiu os degraus de Muriel, equilibrando a pizza, e bateu na porta. Debbie e Dorrie continuaram a observá-lo. Ele abriu para elas um sorriso amplo. Elas às vezes cuidavam de Alexander para Muriel sair; tinha que ser simpático. Metade da vizinhança cuidava de Alexander para Muriel sair, ao que parecia. Ele ainda se sentia confuso com a rede de arranjos de Muriel. Foi Alexander quem abriu a porta. — O entregador de pizza! — Macon disse a ele. — Mamãe está no telefone — Alexander disse, de modo insípido. Virou-se e voltou para o sofá, ajustando os óculos no nariz. Evidentemente, estava assistindo à TV. — Completa, extragrande, sem anchovas — Macon disse. — Sou alérgico a pizza. — A que parte dela? — Hã? — A que parte dela você é alérgico? Linguiça? Salsicha? Cogumelos? Podíamos tirá-los. — Ela toda — Alexander disse. — Você não pode ser alérgico a ela toda. — Mas sou. Macon entrou na cozinha. Muriel estava de pé, de costas para ele, falando

com a mãe ao telefone. Ele sabia que era a mãe pelo tom agudo, triste e queixoso de Muriel. — Você não vai perguntar como está Alexander? Não quer saber das brotoejas dele? Eu pergunto como vai a sua saúde, por que você não pergunta como vai a nossa? Ele parou atrás dela sem fazer ruído. — Você nem mesmo perguntou o que aconteceu no oftalmologista dele — ela disse —, e eu estava aqui toda preocupada. Juro que às vezes parece que ele não é seu neto! Aquela vez em que torci o joelho caindo de cima dos meus sapatos e liguei para ver se você podia cuidar dele, o que você disse? “Ora, deixa eu ver se entendi direito. Você quer que eu vá até a sua casa, longe do jeito que é.” Acha que Alexander não tem nada a ver com você! Macon se apresentou na frente dela, estendendo-lhe a pizza. — Ta-da! — ele sussurrou. Ela olhou para ele e abriu seu sorriso alegre, um V ornamentado, vitoriano. — Mãe — ela disse —, vou desligar agora! Macon está aqui! Fazia muito, muito tempo que alguém não reagia como se sua chegada fosse tão importante. Ele foi ao escritório de Julian na tarde de segunda e lhe entregou o que tinha feito com o guia dos Estados Unidos. — Isso cobre o Nordeste — ele disse. — Acho que em seguida vou começar com o Sul. — Ora, ótimo — Julian disse a ele. Estava curvado atrás de sua mesa, remexendo numa gaveta. — Excelente. Queria lhe mostrar uma coisa, Macon. Puxa, onde diabos... ah. Ele se endireitou, e sua face enrubesceu. Ele deu a Macon uma pequenina caixinha de veludo azul. — O presente de Natal de sua irmã — ele disse. Macon abriu a tampa. Lá dentro, num fundo de cetim branco, estava um anel de diamante. Ele olhou para Julian. — O que é isto? — O que é isto? — Quer dizer, isto é um... como as pessoas chamam, um anel de mão direita? Ou na verdade é para ser... — É um anel de noivado, Macon. — Noivado? — Eu quero me casar com ela. — Você quer se casar com Rose? — O que há de tão estranho nisso?

— Bem, eu... — Macon disse. — Se ela concordar, é claro. — Espere, você ainda nem pediu? — Vou pedir no Natal, quando lhe der o anel. Quero fazer isso direito. À moda antiga. Você acha que ela vai aceitar? — Bem, eu realmente não saberia dizer — Macon disse. Infelizmente, ele tinha certeza de que sim, mas de jeito nenhum diria isso a Julian. — Ela tem que aceitar — Julian disse. — Tenho 36 anos, Macon, mas vou lhe dizer, sinto-me como um colegial no que diz respeito a essa mulher. Ela é tudo o que aquelas garotas no meu prédio não são. Ela é tão... verdadeira. Quer saber de uma coisa? Nunca sequer dormi com ela. — Bem, eu não faço questão de ouvir isso — Macon disse, apressadamente. — Quero que tenhamos uma verdadeira noite de núpcias — Julian disse a ele. — Quero fazer tudo certo. Quero integrar uma família de verdade. Deus, Macon, não é incrível como duas vidas distintas podem se unir? Isto é, duas diferencidades? O que você acha do anel? Macon respondeu: — É legal — ele abaixou os olhos para ele. Depois completou. — É muito bonito, Julian — fechou a caixa e devolveu-a. — Olhe, isto não é um avião comum — Macon disse a Muriel. — Não quero que você fique com a ideia errada. Isto é o que chamam de ponte aérea. É algo que um homem de negócios tomaria para, digamos, dar um pulo na cidade mais próxima por um dia, fazer algumas vendas e voltar. O avião ao qual ele se referia, um pequeno avião de 15 lugares que parecia algum tipo de mosquito, estava bem junto à porta da sala da ponte aérea. Uma garota com uma parca colocava a bagagem lá dentro. Um rapaz verificava alguma coisa nas asas. Parecia ser uma companhia aérea dirigida por adolescentes. Até mesmo o piloto era um adolescente, pareceu a Macon. Ele entrou na sala de espera carregando uma prancheta. Leu em voz alta uma lista de nomes. — Marshall? Noble? Albright? Um a um os ageiros se adiantaram, só oito ou dez deles. A cada um o piloto dizia: — Oi, tudo bem? Deixou os olhos se deterem mais tempo em Muriel. Ou ele a considerava a mais atraente ou então ficou surpreso com sua roupa. Ela usava seus saltos mais altos, meias pretas salpicadas com rosas pretas e um vestidinho fúcsia solto sob um casacão curto ao qual ela se referia como seu casaco de pele “de mentirinha”. Seu cabelo estava preso todo de um lado só numa enorme flor encrespada, e havia um pó prateado de alguma coisa em suas pálpebras. Macon sabia que ela

exagerara, mas ao mesmo tempo gostava que ela considerasse aquela ocasião algo tão importante. O piloto abriu a porta e eles o seguiram lá para fora, através de uma faixa de concreto, e subindo dois pequenos degraus até o avião. Macon quase teve que se dobrar ao meio enquanto seguia pelo corredor. Eles atravessaram com dificuldade duas fileiras de assentos únicos, cada assento tão fino quanto uma cadeira dobrável. Encontraram assentos um ao lado do outro e se instalaram. Outros ageiros seguiam com dificuldade, bufando e dando encontrões nas coisas. Por último veio o copiloto, que tinha bochechas macias e redondas de bebê e levava uma lata de Diet Pepsi. Bateu a porta com força depois de entrar e foi para os controles, lá na frente. Uma mera cortina escondia a cabine. Macon podia se inclinar sobre o corredor e ver os montes de botões e mostradores, o piloto posicionando seus fones de ouvido, o copiloto dando um último gole e colocando sua lata vazia no chão. — Veja, num avião maior — Macon disse a Muriel enquanto as turbinas rugiam — você mal sentiria a decolagem. Mas aqui é melhor se segurar. Muriel fez que sim, de olhos arregalados, agarrando o assento à sua frente. — O que é aquela luz piscando diante do piloto? — ela perguntou. — Não sei. — O que é aquela agulhinha que fica girando o tempo todo? — Não sei. Sentiu que a desapontara. — Estou acostumado com jatos, não com estes brinquedinhos — ele disse. Ela anuiu outra vez, aceitando aquilo. Ocorreu a Macon que ele na verdade era um homem bastante experiente e viajado. O avião começou a taxiar. Cada pedrinha na pista o fazia sacolejar; cada sacolejo causava uma série de rangidos em sua estrutura. Ganharam velocidade. A tripulação, subitamente circunspecta e profissional, fez ajustes complicados em seus instrumentos. As rodas deixaram o chão. — Oh! — Muriel disse, e se virou para Macon, o rosto iluminado. — Decolamos — ele disse. — Estou voando! Eles se elevaram, com algum esforço, Macon sentia, sobre os campos em torno do aeroporto, sobre uma fileira de árvores e uma série de casas. Piscinas desenhavam pontinhos nos quintais, aqui e ali, como percevejos azul-claros. Muriel se aproximou tanto de sua janela que deixou um círculo de névoa no vidro. — Oh, veja! — ela disse a Macon, e depois disse alguma outra coisa que ele não conseguiu ouvir.

As turbinas daquele avião eram altas e estridentes, e a lata de Pepsi retinia ao rolar pelo chão, e além disso o piloto gritava com o copiloto, dizendo alguma coisa sobre a sua geladeira. — Então eu acordo no meio da noite — ele berrou —, e a porcaria está fazendo uma barulhada... Muriel disse: — Como Alexander ia gostar disto! Macon ainda não tinha visto Alexander gostar de nada, mas disse, com um tom de incerteza: — Vamos ter que trazê-lo, qualquer hora dessas. — Vamos ter que fazer um monte de viagens! França e Espanha e Suíça... — Bem — Macon disse —, há o pequeno detalhe do dinheiro. — Só os Estados Unidos, então. Califórnia, Flórida... A Califórnia e a Flórida também custavam dinheiro, Macon devia ter dito (e a Flórida nem sequer tinha espaço em seu guia), mas por ora ele se deixava levar pela visão dela das coisas. — Olhe! — ela disse, e apontou para alguma coisa. Macon se inclinou sobre o corredor para ver ao que ela se referia. Aquele avião voava tão baixo que poderia estar seguindo a sinalização da estrada; ele tinha uma visão bem próxima de fazendas, bosques, telhados das casas. Ocorreu-lhe subitamente que cada pequenino telhado ocultava vidas reais. Bem, é claro que sabia disso, mas de repente aquilo o deixou sem fôlego. Ele agora via o quão reais aquelas vidas eram para as pessoas que as viviam, o quão intensas e privadas e absorventes. Ele olhou para a paisagem atrás de Muriel boquiaberto. O que quer que ela quisesse lhe mostrar já devia ter ficado lá para trás a essa altura, mas ainda assim ele continuou olhando por sua janela. Porter e os outros falavam de dinheiro. Ou Porter falava de dinheiro e os outros escutavam parcialmente. Porter fazia planos antecipados para o imposto de renda. Estava interessado em algo chamado investimento em galinheiro. — Funciona assim — ele disse. — Você investe em pintinhos agora, antes do fim do ano. Deduz os custos com alimentação e coisas do tipo. Depois vende as galinhas adultas em janeiro e recolhe os lucros. Rose franziu a testa. Ela disse: — Mas galinhas são tão propensas a resfriados. Ou deveríamos dizer gripe aviária. E dezembro e janeiro não são habitualmente tão quentes assim, por aqui. — Elas não ficariam em Baltimore, Rose. Sabe Deus onde ficariam. Quer dizer, não são galinhas que você efetivamente vê; são um modo de lidar com nossos impostos. — Bem, eu não sei — Charles disse. — Detesto me envolver em coisas com as quais outras pessoas vão lidar. Temos que confiar no que os outros dizem até

sobre a própria existência dessas galinhas. — Vocês não têm imaginação — Porter disse. Os quatro estavam sentados ao redor da mesa de jogos no solário, ajudando Rose com seu presente de Natal para Liberty. Ela construíra um anexo à casa de bonecas de Liberty, uma garagem com um quarto de hóspedes em cima. A garagem era convincentemente bagunçada. Lascas de madeira em miniatura sujavam o chão em torno de uma pilha de lenha miúda, e um pedaço de fio de arame verde fazia uma mangueira de jardim perfeita. Agora eles trabalhavam no andar de cima. Rose enchia a almofada de uma poltrona, que não era maior do que uma aspirina. Charles cortava uma folha de papel de parede de um livro de amostras. Porter fazia buracos para o pau da cortina. Mal havia espaço para trabalhar ali; então, Macon, que acabava de entrar com Edward, estava lá atrás e apenas observava. — Além disso — Charles disse —, galinhas não são, sei lá, animais de muita classe. Eu detestaria sair por aí dizendo que sou um magnata das galinhas. — Você nem precisa mencionar o fato — Porter respondeu. — Magnata do gado, isso eu não me importaria. Gado soa melhor. — Eles não estão oferecendo um investimento em gado, Charles. Macon pegou algumas fotos coloridas que estavam junto ao livro de papel de parede. A foto de cima mostrava uma janela num quarto que ele não reconhecia, uma janela de moldura branca com venezianas na parte de baixo. A seguinte era um retrato de grupo. Quatro pessoas, indistintas, fora de foco, estavam alinhadas diante de um sofá. A mulher usava um avental, os homens usavam ternos pretos. Havia algo de artificial na postura deles. Estavam alinhados com demasiada precisão; nenhum deles tocava o outro. — Quem são estas pessoas? — Macon perguntou. Rose deu uma rápida olhada. — É a família da casa de bonecas de Liberty — ela disse. — Ah. — A mãe dela me mandou essas fotos. — É uma família só de adultos? — Um é um menino; só não dá para perceber. E um é um avô ou um mordomo; June diz que Liberty muda o tempo todo. Macon colocou as fotos de lado sem ver o resto. Ajoelhou-se para fazer festa em Edward. — Um investimento em gado — Charles dizia, pensativo. Macon subitamente desejou estar na casa de Muriel. ou os braços em torno de Edward e imaginou que sentia o cheiro do perfume intenso dela em seu pelo. Oh, acima de tudo ele era um homem organizado. Ficava feliz com um

esquema regular. Tinha tendência a comer as mesmas coisas sempre, e a usar as mesmas roupas; a levar a roupa para lavar num certo dia e pagar todas as suas contas num outro. A caixa que o ajudou da primeira vez que foi ao banco foi aquela a quem ele ou a recorrer sempre depois desse dia, mesmo que ela se revelasse não tão eficiente assim, mesmo que a fila no outro caixa fosse mais curta. Não havia espaço em sua vida para alguém tão imprevisível quanto Muriel. Ou tão excessiva. Ou tão... bem, tão difícil de se gostar, às vezes. A juventude dela era mais inquietante do que atraente. Ela mal se lembrava do Vietnã e não tinha ideia de onde estava quando Kennedy foi assassinado. Deixava-o ansioso quanto à sua própria idade, o que antes não o perturbava. Ele se dava conta do quão rígido andava depois de ficar sentado na mesma posição por tempo demais; de como protegia suas costas, sempre esperando que fossem falhar outra vez; de como uma vez era suficiente todas as vezes que faziam amor. E ela falava tanto — quase incessantemente, enquanto Macon era o tipo de homem para quem o silêncio era melhor do que música. (“Ouça! Estão tocando a minha canção”, ele costumava dizer quando Sarah desligava o rádio.) Ela falava de blush, corretivo, celulite, bainha de saias, a pele no inverno. Interessava-se pela aparência das coisas, só pela aparência: tons de batom e fortalecedor de unhas e máscaras faciais e pontas duplas. Uma vez, num de seus dias mais atraentes, ele lhe disse que ela estava bonita, e ela ficou tão perturbada que tropeçou no meio-fio. Perguntou se era porque tinha prendido o cabelo atrás; e se era o cabelo em si ou a fita; ou ainda a cor da fita, que ela temia ser um pouco viva demais e destacar de maneira errada o tom de sua pele. E ele não achava que o cabelo dela não tinha jeito, se alvoroçando todo com o menor sinal de umidade? Até ele lamentar ter tocado no assunto. Bem, não exatamente lamentar, mas se sentir cansado. Exausto. Ainda assim ela podia levantar o queixo, às vezes, e penetrar na mente dele como uma lâmina. Certas imagens suas em certos momentos fortuitos e insignificantes reluziam diante dele: Muriel à mesa de sua cozinha, os tornozelos ao redor das travessas que ligavam as pernas da cadeira, preenchendo o formulário de um concurso para ir a Hollywood com tudo pago. Muriel dizendo ao seu espelho: “Pareço a ira divina”, espécie de despedida ritual. Muriel lavando os pratos com suas enormes luvas de borracha cor-de-rosa e as unhas carmim, levantando um prato ensaboado, ando-o alegremente à água de enxágue e cantarolando uma de suas canções favoritas: “War Is Hell on the Home Front Too” ou “I Wonder If God Likes Country Music”. (Com certeza ela gostava de música country, baladas longas e queixosas sobre a estrada pedregosa da vida, as paredes cinzentas da prisão, o coração inconsistente e escorregadio de

um homem de duas caras.) E Muriel na janela do hospital, embora ele nunca a tivesse visto de fato, segurando um esfregão e olhando para os feridos que chegavam. Então ele sabia que o que importava era o padrão da vida dela; que embora ele não a amasse, amava a surpresa que ela representava, e também a surpresa que ele próprio representava quando estava com ela. No país estrangeiro que era Singleton Street, ele era uma pessoa completamente diferente. Essa pessoa nunca tinha levantado suspeitas de intolerância, nunca tinha sido acusada de frieza; na verdade, seu coração mole era alvo de troça. E era tudo, menos organizado. — Por que você não vem à casa dos meus pais para a ceia de Natal? — ela lhe perguntou. Macon estava em sua cozinha naquele momento. Estava agachado debaixo da pia, fechando uma válvula. Por um momento ele não respondeu; depois apareceu e disse: — Seus pais? — Para a ceia de Natal. — Ah, bem, não sei — ele respondeu. — Vamos lá, Macon, por favor diga que sim! Quero que você os conheça. Mamãe acha que eu estou inventando você. “É invenção sua”, ela me diz. Sabe como ela é. Sim, Macon sabia, pelo menos de segunda mão, e podia imaginar bastante bem como seria a ceia. Preso numa armadilha. Cheio de observações mordazes e mágoas. O fato era que ele simplesmente não queria se envolver. Então, em vez de responder ele voltou sua atenção a Alexander. Estava tentando ensinar a Alexander como consertar uma torneira. — Agora — ele disse — você está vendo que eu fechei a válvula. Por que eu fiz isso? Tudo o que obteve foi um olhar fixo e pálido. Era ideia de Macon, não de Alexander. Alexander fora arrancado da frente da TV como um saco de pedras, colocado sobre uma cadeira da cozinha e recebido a instrução de prestar muita atenção. — Ah — Muriel disse —, não estou tão certa quanto a isso. Ele não é muito forte. — Você não precisa ser o Tarzan para consertar a torneira da cozinha, Muriel. — Bem, não, mas não sei... Às vezes Macon se perguntava se os problemas de Alexander não estavam todos na cabeça de Muriel. — Por que eu preciso fechar a válvula, Alexander? — ele perguntou. Alexander disse: — Por quê.

— Diga-me você. — Diga-me você. — Não, você — Macon falou, com firmeza. Houve um ou dois instantes ruins, em que Alexander pareceu capaz de levar aquela conversa adiante para sempre. Estava sentado na cadeira com a forma de um C, o queixo numa das mãos, os olhos inexpressivos. As canelas surgindo de suas calças eram finas como peças de brinquedo Tinkertoys, e seus sapatos marrons de escola pareciam muito grandes e pesados. Por fim ele disse: — Para que a água não vaze para todo lado. — Certo. Macon tomou cuidado de não alardear por demais aquela vitória. — Veja, este vazamento não é da torneira, mas do registro — ele disse. — Então você precisa abrir o registro e substituir a vedação. Primeiro você tira o parafuso de cima. Vamos ver como você faz. — Eu? Macon fez que sim e ofereceu a ele a chave de parafuso. — Não quero — Alexander disse. — Deixe ele ficar só olhando — Muriel sugeriu. — Se ele ficar só olhando não vai saber como consertar o da banheira, e vou pedir que ele resolva isso sem a minha ajuda. Alexander pegou a chave de parafuso com um daqueles seus gestos pequeninos e limitados que ocupavam um espaço mínimo. Ele se afastou devagar da cadeira e foi até a pia. Macon puxou outra cadeira para perto e Alexander subiu nela. Então surgiu o problema de encaixar a chave de parafuso na ranhura do parafuso. Levou séculos. Ele tinha dedos pequeninos, cada um deles arrematado por uma parte carnuda cor-de-rosa sobre unhas dolorosamente roídas. Ele se concentrou, os óculos escorregando nariz abaixo. Respirando sempre pela boca, ele agora mordia a língua e arquejava de leve. — Maravilhoso — Macon disse, quando a chave de parafuso por fim encaixou. A cada ínfima volta, porém, ela escorregava e tinha que ser reposicionada. Macon sentia os músculos do estômago retesados. Muriel dessa vez estava quieta, e seu silêncio era tenso e ansioso. Então Macon disse: “Ah!” O parafuso se soltara o suficiente para que Alexander pudesse girá-lo com a mão. Deu conta dessa parte com facilidade. Chegou mesmo a retirar a torneira sem que lhe dissessem. — Muito bem — Macon elogiou. — Acho que você tem um talento natural. Muriel relaxou. Apoiando as costas no balcão, ela disse: — Meus pais fazem a ceia de Natal à luz do dia. Isto é, não é ao meio-dia, mas também não é à noite,

é mais como no meio da tarde, ou neste ano vai ser no fim da tarde porque eu tenho que ficar no Miau-Au no turno da manhã e... — Olhe para isto — Macon disse a Alexander. — Está vendo essa gosma? É vedação velha, apodrecida. Então tire-a daí. Certo. E aqui está a nova vedação. Você a ao redor, um pouco mais do que precisa. Vamos ver você ando a vedação ao redor. Alexander enrolou o fio. Seus dedos ficaram brancos com o esforço. Muriel disse: — Normalmente comemos ganso. Meu pai traz um ganso da costa leste. Ou você não gosta de ganso. Prefere apenas um peru? Um pato? O que você costuma comer, Macon? Macon ia responder: — Ah, bem... — e foi salvo por Alexander. Alexander se virou, depois de montar a torneira sem ajuda alguma, e disse: — E agora? — Agora certifique-se de que o parafuso está bem preso. Alexander retomou sua luta com a chave de parafuso. Muriel disse: — Talvez você prefira um bom pedaço de carne. Sei que alguns homens são assim. Acham que aves são meio afeminadas. É isso o que você acha? Pode me dizer! Não vou ligar! Meus pais não vão ligar! — Ah, hm, Muriel... — E agora — Alexander solicitou. — Bem, agora ligamos outra vez a água para ver que tal o trabalho que você fez. Macon se agachou debaixo da pia e mostrou a ele onde estava a válvula. Alexander estendeu o braço e girou-a, gemendo. Não era estranho, Macon pensou, como garotos pequenos tinham aquele mesmo cheiro de algo verde, como um armário de cedro. Ele se levantou e ligou a torneira. Nenhum vazamento. — Olhe só para isso! — ele disse a Alexander. — Você resolveu o problema. Alexander lutou para conter um sorriso. — Vai saber como fazer, da próxima vez? Ele fez que sim. — Agora, quando você crescer — Macon disse — pode consertar as torneiras para a sua esposa. O rosto de Alexander se contraiu com a graça que ele achou da ideia. — “Chegue para trás, querida”, você pode dizer. “Deixe que eu faço isso.” Alexander disse: “Tssh!”, seu rosto como uma bolsinha franzida. — “Deixe um homem de verdade cuidar disso”, você pode dizer a ela. — Tssh! Tssh! — Macon? Você vem à casa dos meus pais ou não? — Muriel perguntou.

Não parecia razoável dizer que não ia. De um jeito ou de outro, ele já se envolvera.

13 Os pais de Muriel moravam em Timonium, num conjunto residencial chamado Foxhunt Acres. Muriel teve que explicar a Macon o caminho. Era o dia de Natal mais frio de que os dois se lembravam, mas o carro tinha as janelas ligeiramente abertas para que os pelos de cachorro não incomodassem Alexander, sentado no banco de trás. O rádio estava sintonizado na estação favorita de Muriel. Connie Francis cantava Baby’s First Christmas. — Está agasalhado o bastante? — Muriel perguntou a Alexander. — Está tudo bem? Alexander provavelmente assentiu. — Está respirando com alguma dificuldade? — Não. — Não, senhora — ela o corrigiu. Sarah costumava fazer isso, também, Macon se lembrou, dar ao filho deles um intensivo de boas maneiras a cada vez que iam visitar a mãe dela. Muriel disse: — Uma vez eu estava levando Alexander de carro para fazer uma coisa qualquer para George. A minha empresa. E na véspera tinha levado dois gatos no carro. E nem pensei no assunto, me esqueci completamente de aspirar o carro como normalmente faço, e de repente eu me viro e Alexander está estendido no assento, inconsciente. — Eu não estava inconsciente — Alexander disse. — Era o que parecia. — Eu só estava deitado para não precisar de tanto ar. — Está vendo? — Muriel disse a Macon. Eles seguiam pela York Road agora, ando por oficinas de lanternagem e distribuidores de fast food, todos fechados e desertos. Macon nunca vira aquela estrada tão deserta. Ultraou uma van e depois um táxi; nada mais. Guirlandas de Natal pendiam do alto de uma loja que vendia carros usados. — Mas ele pode tomar vacinas — Muriel disse. — Vacinas? — Pode tomar vacinas para impedir que fique sem ar. — Então por que não toma? — Bem, se Edward viesse morar conosco acho que é o que teríamos que fazer.

— Edward? — Quer dizer, você sabe. Se você viesse morar conosco permanentemente e Edward também viesse. — Oh — Macon disse. Brenda Lee cantava Tm Gonna Lasso Santa Claus”. Muriel cantarolava junto, balançando a cabeça animadamente de um lado a outro para manter o ritmo. — Você pensaria em fazer isso? — ela perguntou, por fim. — Fazer o quê? — ele perguntou, fingindo não saber. — Pensaria em vir morar conosco? — Ah, hm... — Ou nós podíamos ir morar com você — ela disse. — Como você preferisse. — Comigo? Mas minha irmã e meus... — Estou falando da sua casa. — Ah. Minha casa. Sua casa veio à tona diante dele, pequena e escura e abandonada, encolhida sob os carvalhos como a cabana de um lenhador num conto de fadas. Muriel olhou para o rosto dele e disse, rapidamente: — Eu poderia entender se você não quisesse voltar para lá. — Não é isso — ele disse. Pigarreou. — É só que não pensei muito no assunto. — Ah, compreendo! — Ainda não, pelo menos. — Você não precisa explicar! Ela apontou para onde deveriam virar, e começaram a seguir por uma estrada sinuosa. As lanchonetes ficavam mais esparsas e miseráveis. Havia arvorezinhas tortas, campos congelados, uma cidade inteira de caixas de correio em diferentes tamanhos se eriçando no final de uma entrada de automóveis. Todas as vezes que o carro dava um solavanco, algo chacoalhava no assento traseiro. Era o presente de Macon para Alexander — um conjunto de ferramentas menores do que o padrão, mas de verdade, com cabos sólidos de madeira. Macon fora atrás daquelas ferramentas uma por uma. Reorganizara-as em seus compartimentos uma dezena de vezes pelo menos, como um sovina contando seu dinheiro. aram por um segmento de cerca que estava se desfazendo no chão. Muriel disse: — O que a sua família vai fazer hoje? — Ah, nada de mais. — Vão fazer uma grande ceia de Natal?

— Não, Rose foi para a casa de Julian. Charles e Porter estão, não sei, acho que disseram alguma coisa sobre calafetar a banheira do segundo andar. — Ah, pobrezinhos! Deviam ter vindo conosco para a casa dos meus pais. Macon sorriu, imaginando aquilo. Ele se virou para onde ela apontava, um prado salpicado de casas. Todas eram construídas de acordo com a mesma planta geral — tijolos até a metade do andar, alumínio dali para cima. As ruas tinham nomes de árvores que não estavam ali: Bétula, Olmo e Flor de Macieira. Muriel mandou-o entrar na Flor de Macieira. Ele parou atrás de uma caminhonete. Uma garota saiu correndo da casa, uma adolescente atarracada de jeans e um comprido rabo de cavalo amarelo. — Claire! — Alexander gritou, pulando no assento. — É a minha irmã — Muriel disse a Macon. — Ah. — Você acha ela bonita? — Sim, ela é muito bonita. Claire já tinha aberto a porta do carro a essa altura e estava levantando Alexander nos braços. — Como está o meu rapaz? — ela perguntou. — O que foi que o Papai Noel trouxe para você? Ela era tão diferente de Muriel que seria impossível adivinhar que eram irmãs. Seu rosto era quase quadrado, e sua pele, dourada, e pelos padrões atuais estava provavelmente com uns 5 quilos acima do peso. Depois que largou Alexander, ela enfiou as mãos desajeitadamente nos bolsos de trás dos seus jeans. — Então — ela disse a Macon e Muriel. — Feliz Natal e tudo mais. — Olhe — Muriel disse, exibindo um relógio. — Veja o que Macon me deu. — O que você deu a ele? — Um chaveiro de um brechó. Antiguidade. — Ah. Com a chave da casa dela junto, Muriel não se lembrara de dizer. Macon tirou as coisas da mala — os presentes de Muriel para a família, junto com os presentes de seu convidado — e Alexander pegou a caixa de ferramentas no banco de trás. Seguiram Claire pelo jardim. Muriel tocava o próprio cabelo com ansiedade enquanto andava. — Você devia ver o que o papai deu para a mamãe — Claire disse a ela. — Um forno de micro-ondas. A mamãe disse que está morta de medo. “Sei que vou me expor a radiação”, ela diz. Estamos com medo de que ela não use. Quem segurava a porta aberta era uma mulher baixa, magrela e grisalha num

conjunto verde-água. — Mãe, este é Macon — Muriel disse. — Macon, esta é minha mãe. A Sra. Dugan examinou-o, franzindo os lábios. Linhas se projetavam dos cantos de sua boca como bigodes de gato. — Prazer em conhecê-lo — ela disse, finalmente. — Feliz Natal, Sra. Dugan — Macon disse. Entregou a ela seu presente, uma garrafa de licor com uma fita amarrada em torno. Ela a examinou, também. — É só colocar o resto das coisas debaixo da árvore — Muriel disse a Macon. — Mãe, você não vai dizer oi ao seu neto? A Sra. Dugan lançou um rápido olhar a Alexander. Ele não devia esperar mais do que isso; já estava entrando em casa e se encaminhando à árvore de Natal. Objetos díspares estavam ali — um detector de fumaça, uma furadeira elétrica, um espelho de maquiagem circundado por lâmpadas. Macon pôs os embrulhos de Muriel ao lado, depois tirou o casaco e colocou-o no braço de um sofá de cetim branco. Um terço do sofá estava ocupado pelo forno de microondas, ainda vistosamente decorado com uma larga fita vermelha. — Veja o meu novo micro-ondas — A Sra. Dugan disse. — Se não é a coisa mais esquisita em que eu já pus os olhos. Ela tirou um pedaço de papel de presente amassado de cima de uma poltrona e fez um gesto para Macon se sentar. — Algo está realmente cheirando bem — ele comentou. — Ganso — ela disse. — Boyd caçou um ganso para mim. Ela se sentou ao lado do forno. Claire estava no chão com Alexander, ajudando-o a abrir um embrulho. Muriel, ainda de casaco, examinou uma fileira de livros numa estante. — Mãe... — ela disse. — Não, deixe para lá, já encontrei. Ela foi até Macon com um álbum de fotos, do tipo moderno, com páginas de plástico. — Olhe aqui — ela disse, empoleirando-se no braço da poltrona dele. — Fotos minhas de quando eu era pequena. — Por que não tira o casaco e espera um pouco — a Sra. Dugan disse a ela. — Eu com 6 meses. Eu no carrinho. Eu e meu primeiro bolo de aniversário. Eram fotos a cores, brilhantes, os vermelhos um pouco azulados demais. (As fotos de Macon quando era bebê eram todas em preto e branco, era o que estava à disposição naquela época.) Cada uma revelava-a como uma loura rechonchuda e risonha, normalmente com o cabelo preso de algum jeito coquete, no alto da cabeça ou em marias-chiquinhas amarradas tão alto que ficavam parecendo orelhas de cachorro. De início os estágios da sua vida avam devagar — ela

levou três páginas inteiras para aprender a andar — mas depois aceleraram. — Eu com 2 anos. Eu com 5. Eu quando estava com 7 e meio. A loura rechonchuda se tornou morena e séria e depois desapareceu por completo, substituída pela pequena Claire. Muriel disse: — Ah, bem — e fechou o álbum na metade. — Espere — Macon disse. Ele sentia um impulso de vê-la em sua pior fase, em sua época mais esquisita, saindo com gangues de motoqueiros. Mas quando tirou o álbum de suas mãos e foi ver as últimas páginas, estavam vazias. O Sr. Dugan entrou, um homem louro e sardento numa camisa de flanela, deu a Macon a mão calejada em cumprimento e depois saiu, resmungando qualquer coisa sobre o porão. — Ele está aborrecido com o encanamento — a Sra. Dugan explicou. — Noite ada a temperatura chegou perto de —20°, sabia disso? Ele está com medo de que os canos congelem. — Oh, será que eu posso ajudar? — Macon perguntou, se empertigando. — Fique sentado bem aí onde está, Sr. Leary. — Macon — ele disse. — Macon. E você pode me chamar de Mãe Dugan. — Hm... — Muriel me disse que você é separado, Macon. — Bem, sim, eu sou. — Acha que vai dar certo? — Perdão? — Quer dizer, você não está só ando tempo com esta garota, está? — Mãe, pare com isso — Muriel advertiu. — Bem, eu não teria que perguntar, Muriel, se você tivesse alguma vez demonstrado uma ponta de juízo. Vamos encarar os fatos: você não tem uma reputação lá muito boa. — Ela só está preocupada comigo — Muriel disse a Macon. — Sim, é claro — ele respondeu. — A menina só tinha 13 anos de idade — Sra. Dugan disse — quando de repente parecia que garotos do pior tipo entravam pelas frestas. Desde então não tenho uma noite de sono tranquilo. — Ora, não sei por que não — Muriel lhe disse. — Isso foi anos e anos atrás. — Parecia que a cada vez que virávamos as costas ela havia ido para o Surf’n’Turf ou o Torch Club ou o Hi-Times Lounge na autoestrada 40. — Mãe, quer por favor abrir o presente de Natal seu e do papai? — Oh, você trouxe um presente para nós?

Muriel se levantou e foi pegá-lo junto à árvore, onde Claire estava sentada com Alexander. Ela o ajudava a montar figuras de papelão. — Este vai no verde. Este vai no azul — ela disse. Alexander se inquietava ao lado dela, impaciente para assumir. — Foi Claire quem escolheu esse jogo para ele — a Sra. Dugan disse, recebendo o embrulho que Muriel lhe dava. — Eu achei adiantado demais. — Não é — Muriel disse (embora ela nem tivesse olhado para o jogo). Voltou à poltrona de Macon. — Alexander é muito esperto. Vai aprender num piscar de olhos. — Ninguém disse que ele não era esperto, Muriel. Você não precisa ouvir ofensas em cada coisa que dizem a você. — Será que você pode abrir o presente? Mas a Sra. Dugan seguiu em seu próprio ritmo. Tirou a fita e colocou-a numa caixa, na mesinha de centro. — Seu pai tem um dinheiro para lhe dar de Natal — ela disse a Muriel. — Lembre isso a ele antes de ir embora — ela examinou o papel de presente. — Olhe só para isso! Pequeninas renas do nariz vermelho em toda parte. Lâminas de alumínio de verdade para fazer o nariz. Não sei por que você não podia usar simplesmente papel de seda, como eu faço. — Queria que fosse especial — Muriel disse a ela. A Sra. Dugan tirou o papel, dobrou-o e colocou-o de lado. Seu presente era algo numa moldura. — Ora, se não é bonitinho — ela disse, por fim. Virou-o para Macon. Era uma foto de Muriel e Alexander, uma foto tirada em estúdio, em tons pastel, a luz tão homogênea que parecia não estar vindo de lugar algum em particular. Muriel estava sentada com Alexander ao seu lado, uma das mãos descansando delicadamente sobre seu ombro. Nenhum dos dois sorria. Pareciam desconfiados e incertos, e muito sós. Macon disse: — É bonita. A Sra. Dugan apenas deu um grunhido e se inclinou para a frente, colocando a foto ao lado da caixa de fitas. O jantar foi feito diligentemente, com todo mundo se dedicando à comida — ganso, geleia de mirtilo, dois tipos de batata e três tipos de legume. O Sr. Dugan permaneceu fantasmagoricamente calado, embora Macon puxasse várias vezes assunto falando do encanamento no porão. Muriel se dedicava a Alexander. — Tem pão nesse recheio, Alexander. Coloque de volta neste instante. Quer que uma crise de alergia comece? Eu também não confiaria nessa pasta. — Oh, pelo amor de Deus, deixe-o em paz — a Sra. Dugan disse.

— Você não diria isso se fosse você que ele obrigasse a ficar acordada de noite com erupções e coceiras. — Na metade das vezes acho que você é quem causa essas erupções, com essa conversa — a Sra. Dugan disse. — Isso mostra o quanto você entende do assunto. Macon teve uma súbita sensação de deslocamento. O que Sarah diria se pudesse vê-lo ali? Imaginou sua expressão divertida e irônica. Rose e seus irmãos ficariam apenas desconcertados. Julian diria: “Ha! O turista acidental em Timonium.” A Sra. Dugan trouxe três tortas diferentes, e Claire veio correndo com o bule de café. Por cima dos jeans ela agora usava uma saia bordada estilo tirolesa, presente de Muriel, comprado na semana anterior na Value Village. Suas camadas de roupa faziam Macon pensar em algum traje nativo. — E o licor? — ela perguntou à mãe. — Posso servir o licor de Macon? — Talvez ele queira que você o chame de Sr. Leary, querida. — Não, por favor, Macon está ótimo — ele disse. Imaginava que tinham acontecido muitas discussões sobre a sua idade. Ah, sem dúvida: ele era velho demais, era alto demais, estava arrumadinho demais com seu paletó e sua gravata. A Sra. Dugan disse que o licor era provavelmente a melhor coisa que ela já bebera. Macon pessoalmente achou-o parecido com a mistura de flúor com que o dentista cobria seus dentes; imaginara algo diferente. O Sr. Dugan disse: — Bem, esses drinques doces e coloridos são adequados para as senhoras, mas eu pessoalmente sou a favor de um gole de uísque, você não, Macon? — e ele se levantou e pegou uma garrafa de Jack Daniel’s e dois copos. O simples peso da garrafa em sua mão pareceu soltar sua língua. — Então! — ele disse, se sentando. — O que você anda dirigindo atualmente, Macon? — Dirigindo? Ah, hm, um Toyota. O Sr. Dugan franziu a testa. Claire deu uma risadinha. — O papai detesta e despreza carros estrangeiros — ela disse a Macon. — O que é, você não acredita em produtos americanos? — O Sr. Dugan perguntou a Macon. — Bem, na verdade... Na verdade a mulher dele tinha um Ford, ele ia dizer, mas mudou de ideia. Pegou o copo que o Sr. Dugan lhe entregava. — Uma vez tive um Rambler — ele disse. — Devia tentar um Chevy, Macon. Venha ao showroom uma hora dessas e deixe eu lhe mostrar um Chevy. Qual é a sua preferência? Tamanho família? Compacto?

— Bem, compacto, eu acho, mas... — Vou lhe dizer uma coisa: não há modo de você me convencer a vender um subcompacto. Não, senhor, pode me pedir, choramingar e cair de joelhos, não vou lhe vender uma dessas armadilhas que as pessoas querem comprar hoje em dia. Eu digo aos meus clientes: “Você acha que não tenho princípios? Está olhando para um homem de princípios”, eu digo a eles, eu falo: “Se quiser um subcompacto é melhor ir falar com o Ed Mackenzie. Ele vai lhe vender um sem pensar duas vezes. Por que ele haveria de se importar? Mas eu sou um homem de princípios.” Ora, Muriel aqui quase perdeu a vida numa dessas coisas. — Ah, papai, nada disso — Muriel falou. — Chegou bem mais perto do que eu gostaria que chegasse. — Eu saí sem nenhum arranhão. — O carro parecia uma lata de sardinha amassada. — A pior coisa que me aconteceu foi ter um fio da meia puxado. — Muriel estava pegando uma carona com o Dr. Kane da Miau-Au — Sr. Dugan disse a Macon —, um dia quando seu carro estava quebrado, e alguma mulher idiota colocou o carro bem no caminho. Veja, ela estava fazendo uma curva para a esquerda quando... — Deixe que eu conto — a Sra. Dugan disse. Ela se inclinou na direção de Macon, segurando sua taça com o licor. — Eu acabava de chegar do supermercado, carregando as coisas que precisava para preparar o almoço de Claire para a escola. Essa menina come mais do que alguns homens adultos que eu conheço. O telefone toca. Largo tudo e vou atender. Um homem diz: “Sra. Dugan?” Eu digo: “Sim.” O homem diz: “Sra. Dugan, aqui é da Polícia Municipal de Baltimore, e estou telefonando a respeito de sua filha Muriel.” Eu penso: “Oh, meu Deus.” Meu coração dispara imediatamente e tenho que encontrar um lugar onde me sentar. Ainda estou de casaco, o cachecol em volta da cabeça para me proteger da chuva, então não escuto muito bem, mas nem penso em tirá-lo, tamanha a minha confusão. Era um daqueles dias de chuva em que parece que alguém está jogando de propósito baldes d’água em cima de você. Eu penso: “Oh, meu Deus, o que foi que Muriel...” — Lilian, você está se desviando do assunto — Sr. Dugan disse. — Como você pode dizer isso? Estou contando a ele o acidente de Muriel. — Ele não quer ouvir cada Oh-meu-Deus, quer saber por que não pode comprar um subcompacto. A dona entra pela esquerda na frente do carrinho do Dr. Kane — o Sr. Dugan disse a Macon — e ele não tem outra escolha senão cravar o carro no dela. Estava na preferencial. Quer saber o que aconteceu? Perda total no carro dele. Um Pinto, esse carrinho de nada. O velho Chrysler da dona mal arranha o

para-lama. Agora me diga que você ainda quer um subcompacto. — Mas eu não... — E a outra coisa é que o Dr. Kane nunca mais ofereceu carona a ela, mesmo depois que comprou um carro novo — a Sra. Dugan disse. — Bem, eu não moro exatamente nos arredores, mãe. — Ele é solteiro — a Sra. Dugan disse a Macon. — Vocês se conheceram? Boa-pinta, Muriel disse. No primeiro dia de trabalho ela diz: “Adivinhe, mãe.” Ela me liga. “Adivinhe, meu chefe é solteiro e boa-pinta, um profissional, as outras garotas me disseram que ele não é nem comprometido.” Então ele vai e oferece aquela carona a ela e eles sofrem esse acidente e ele nunca mais oferece. Mesmo quando ela lhe conta que não está de carro em certos dias, ele nunca mais oferece. — Ele mora mesmo bem longe, em Towson — Muriel disse. — Acho que ele pensa que você dá azar. — Ele mora em Towson e eu moro lá embaixo na Singleton Street! O que você queria? — Em seguida ele compra uma Mercedes esporte — Claire acrescenta. — Bem, carros esporte — o Sr. Dugan disse. — Desses nós nem falamos. Alexander disse: — Podem me dar licença, agora? — Eu tinha tantas esperanças com relação ao Dr. Kane — a Sra. Dugan lamentou. — Oh, pare com isso, mãe. — Você também tinha! Você disse que tinha! — Por que você não para de falar e toma o seu drinque. A Sra. Dugan sacudiu a cabeça, mas bebeu mais um gole de seu licor. Foram embora no fim da tarde, quando o resto de luz tinha morrido e o ar parecia cristalizado com o frio. Claire estava parada na porta cantando: — Voltem logo! Obrigada pela saia! Feliz Natal! A Sra. Dugan tremia ao lado dela, um suéter jogado por cima dos ombros. O Sr. Dugan simplesmente levantou o braço e desapareceu, presumivelmente para ver mais uma vez como estava o porão. O tráfego estava mais pesado, agora. Faróis brilhavam como pequenos borrões brancos. O rádio, que desistira do Natal por mais um ano, tocava “I Cut My Fingers on the Pieces of Your Broken Heart”, e a caixa de ferramentas chacoalhava solidariamente no banco de trás. — Macon? Você está zangado? — Muriel perguntou. — Zangado? — Está zangado comigo?

— Ora, não. Ela olhou para Alexander lá atrás e não disse mais nada. Era noite quando chegaram na Singleton Street. As gêmeas Butler, agasalhadas com jaquetas idênticas cor de lavanda, conversavam com dois garotos na esquina. Macon estacionou e abriu a porta de trás para Alexander, que tinha adormecido com o queixo no peito. Ele o pegou no colo e o levou para dentro de casa. Na sala, Muriel colocou seus pacotes — a caixa de ferramentas, o jogo novo de Alexander e uma torta que a Sra. Dugan lhes havia impingido — e seguiu Macon escada acima. Macon ia de lado para evitar que os pés de Alexander batessem na parede. Entraram no menor dos quartos e deitaram Alexander na cama. — Sei o que você deve estar pensando — Muriel disse. Ela tirou os sapatos de Alexander. — Está pensando: “Ah, agora eu vejo, essa Muriel só estava atrás de um par de calças”, não está? — Macon não respondeu. (Ele estava preocupado que fossem acordar Alexander.) — Sei o que você está pensando! Ela colocou Alexander debaixo das cobertas. Apagou a luz. Começaram a descer a escada. — Mas não era isso; eu juro — ela disse. — Ah, é claro, como ele era solteiro a possibilidade me ou pela cabeça. A quem eu estaria enganando se dissesse que não ou? Sou sozinha, criando um filho. Dando duro para ganhar dinheiro. É claro que me ou pela cabeça. — Bem, é claro — Macon respondeu, em tom conciliador. — Mas não era como ela fez parecer — Muriel disse a ele. Ela não parava de falar atrás dele na sala de estar. Quando ele se sentou no sofá, ela se sentou ao seu lado, ainda de casaco. — Você vai ficar? — ela perguntou. — Se você não estiver com muito sono. Em vez de responder, ela apoiou a nuca no sofá. — Isto é, será que você vai desistir de mim. Será que você quer parar de me ver. — Por que eu quereria parar de ver você? — Depois do retrato que ela pintou de mim. — Não foi tão ruim assim. — Ah, não? Quando ela ficava cansada, sua pele parecia se esticar sobre seus ossos. Ela pressionou os dedos sobre as pálpebras. — O Natal ado — Macon disse — foi o primeiro que tivemos sem Ethan. Foi bastante difícil.

Ele se surpreendia com frequência falando de Ethan para ela. Era bom dizer seu nome em voz alta. — Não sabíamos mais como ter um Natal sem crianças — ele disse. — Pensei: “Bem, afinal de contas nós conseguíamos antes de tê-lo, não conseguíamos?” Mas na verdade não me lembrava como. Parecia-me que sempre o tivéramos; é tão impensável, uma vez você tendo filhos, que em algum momento eles não existiram. Eu notei: olho para trás quando era menino, e me parece que Ethan de algum modo estava até mesmo lá; apenas ainda não estava visível, ou coisa do tipo. Seja como for. Decidi que o que devia fazer era cobrir Sarah de presentes, e fui até a Hutzler’s na véspera do Natal e comprei toda aquela tralha, organizadores para o closet e coisas do tipo. E Sarah: ela foi para o outro extremo. Não comprou nada. Então lá estávamos, cada um com a impressão de ter feito tudo errado, agido de modo inapropriado, mas também de que o outro tinha feito tudo errado; eu não sei. Foi um Natal terrível. Ele tirou o cabelo de Muriel de cima de sua testa. — Este foi melhor — ele disse. Ela abriu os olhos e estudou-o por um momento. Então ela colocou a mão dentro do bolso, tirou algo de lá e estendeu a mão a ele, o punho fechado, como um segredo. — Para você — ela disse. — Para mim? — Queria que você ficasse com isto. Era um retrato instantâneo roubado de seu álbum de família: Muriel começando a andar, saindo com dificuldade de uma piscina rasa. Ela queria, ele supunha, dar a ele o melhor de si. Então fez isso. Mas o melhor dela não era seu penteado de Shirley Temple dos tempos de menina. Era sua impetuosidade, sua aguçada e obstinada impetuosidade enquanto lutava para chegar à câmera com o queixo virado para o lado e os olhos como duas fendas de determinação. Ele agradeceu. Disse que guardaria para sempre.

14 Seria preciso dizer que ele estava vivendo com ela, agora. Começou a ar todo seu tempo na casa dela, a ajudá-la com o aluguel e as compras. Guardava as coisas que usava para se barbear no banheiro dela e espremia suas roupas entre os vestidos do closet. Mas não houve um ponto específico em que fez a mudança. Não, era uma questão de dia após dia. Primeiro houve aquele longo feriado de Natal em que Alexander estava em casa sozinho; então, por que Macon não podia ficar com ele uma vez que havia ado a noite lá? E por que não pegar sua máquina de escrever e trabalhar na mesa da cozinha? E então, por que não ficar para jantar, e depois disso para dormir? Embora, se você precisasse estabelecer uma data, pudesse dizer que ele se mudou de verdade na tarde em que levou Edward para lá. Tinha acabado de voltar de uma viagem de negócios — uma exaustiva supervisão de cinco cidades ao sul, nenhuma delas mais quente do que Baltimore — e ou na casa de Rose para ver como iam os animais. A gata estava bem, Rose disse. (Teve que falar mais alto do que os latidos de Edward; ele estava excitado de alegria e alívio.) A gata provavelmente não notara que Macon não estivera em casa. Mas Edward, bem... — Ele a um bom tempo sentado no vestíbulo — ela disse — olhando fixamente para a porta. Fica com a cabeça em pé esperando você voltar. Isso foi o suficiente. Ele levou Edward consigo quando voltou para a Singleton Street. — O que você acha? — perguntou a Muriel. — Podíamos ficar com ele só um dia ou dois? Ver se Alexander consegue aguentar, sem tomar vacinas? — Eu consigo aguentar! — Alexander disse. — O problema é com os gatos, não com os cachorros. Muriel pareceu em dúvida, mas disse que podiam tentar. Enquanto isso, Edward corria feito louco pela casa toda, cheirando os cantos e debaixo dos móveis. Então se sentou diante de Muriel e abriu um sorriso para ela. Recordava a Macon um colegial com uma queda pela professora; todas as suas fantasias tinham sido realizadas, ele estava ali, por fim. Pelas primeiras horas, tentaram mantê-lo numa parte separada da casa, o que, é claro, foi inútil. Ele tinha que seguir Macon aonde quer que ele fosse, e também desenvolveu um interesse imediato por Alexander. Na falta de uma

bola, ficava colocando pequenos objetos aos pés de Alexander e depois recuando e olhando ansioso para o rosto dele. — Ele quer brincar de pega — Macon explicou. Alexander pegou uma caixa de fósforos e jogou, virando o braço para trás de um modo meticuloso. Enquanto Edward disparava atrás dela, Macon tomou uma nota mental para comprar uma bola de manhã cedo e ensinar Alexander como jogar. Alexander via TV e Edward cochilava no sofá ao seu lado, enroscado como uma castanha de caju loura com uma expressão meio vesga e de puro deleite no rosto. Alexander o abraçava e enterrava o rosto no pelo em torno de seu pescoço. — Cuidado — Macon disse a ele. Não tinha ideia do que fazer se Alexander começasse a ter falta de ar. Mas ele não começou. Na hora de dormir só o que tinha era o nariz entupido, mas isso ele tinha normalmente, de qualquer modo. Macon gostava de acreditar que Alexander não sabia que ele e Muriel dormiam juntos. — Ora, isso é completamente ridículo — Muriel disse. — Onde ele imagina que você a a noite, no sofá da sala? — Talvez — ele disse. — Tenho certeza de que ele tem alguma explicação. Ou talvez não tenha. Tudo o que estou dizendo é que não devíamos dizer isso assim abertamente a ele. Deixe-o pensar o que ele quiser pensar. Então, todas as manhãs Macon se levantava e se vestia antes que Alexander acordasse. Começava a preparar o café da manhã e depois o acordava. — Sete horas! Hora de se levantar! Vá chamar sua mãe, está bem? No ado, ele descobriu, Muriel frequentemente ficara na cama enquanto Alexander acordava sozinho e se preparava para a escola. Às vezes saía de casa enquanto ela ainda dormia. Macon achou isso escandaloso. Agora ele preparava o café completo, e insistia que Muriel se sentasse à mesa com eles. Muriel alegava que o café da manhã a deixava enjoada. Alexander disse que o deixava enjoado também, mas Macon respondeu que era uma pena. — Noventa por cento de todos os alunos que tiram A comem ovos pela manhã — ele disse (inventando a história enquanto falava). — Noventa e nove por cento tomam leite — ele desamarrou o avental e se sentou. — Está ouvindo, Alexander? — Se eu tomar leite eu vomito. — Isso está só na sua cabeça. — Diga a ele, mamãe! — Ele vomita — Muriel respondeu, desanimada. Estava sentada à mesa com as costas encurvadas, em seu comprido robe de

seda, o queixo descansando numa das mãos. — Tem alguma coisa a ver com enzimas — ela disse. Bocejou. Seu cabelo, crescendo liso depois do permanente, por fim, caía em suas costas em ondas regulares como os frisos de um grampo de cabelo. Alexander ia andando para a escola com Buddy e Sissy Ebbetts, duas crianças mais velhas e de aspecto durão que moravam do outro lado da rua. Muriel ou voltava a dormir ou se vestia e saía de casa para um de seus empregos, dependendo do dia. Então Macon lavava os pratos do café da manhã e saía com Edward. Não iam longe; estava frio demais. As poucas pessoas que encontravam andavam rapidamente, com os saltados, como personagens de um filme mudo. Conheciam Macon de vista a essa altura, e deixavam o olhar ar pelo rosto dele quando se cruzavam — um gesto como um aceno de cabeça — mas não falavam. Edward os ignorava. Outros cães podiam vir cheirá-lo e ele nem sequer mudava o ritmo de seus os. O Sr. Marcusi, descarregando caixotes fora do mercado Marcusi’s, parava e dizia: — Ora, olá, toco de árvore. Ei, tubo de banha — Edward, distraído de modo altivo, continuava marchando. — O bicho mais estranho que eu já vi — O Sr. Marcusi dizia para Macon. — Parece uma coisa mal desenhada — Macon sempre ria. Começava a se sentir mais à vontade ali. A Singleton Street ainda o abatia com sua pobreza e sua feiura, mas já não lhe parecia tão perigosa. Viu que os rapazes desordeiros diante do Cheery Moments Carry-Out eram pateticamente jovens e maltrapilhos — os lábios rachados, os bigodes ralos mal raspados e uma expressão incerta e informe nos olhos. Viu que depois que os homens iam para o trabalho, as mulheres emergiam, cheias de boas intenções, e varriam suas calçadas da frente, catavam as latas de cerveja e pacotes de batata frita, chegavam até mesmo a enrolar a manga do casaco e esfregavam seus alpendres nos dias mais frios do ano. Crianças avam correndo como pedaços de papel ao vento — luvas descasadas, narizes escorrendo — e alguma mulher abraçava a vassoura para gritar: — Você aí! Estou te vendo! Não pense que eu não sei que você está matando aula! Pois aquela rua estava sempre reincidindo, Macon via, sempre ficando para trás, mas era pega a tempo por aquelas mulheres com suas vozes preocupadas e seus queixos erguidos. De volta à casa de Muriel, ele se esquentava com uma xícara de café. Colocava a máquina de escrever na mesa da cozinha e se sentava com suas anotações e folhetos. A janela ao lado da mesa tinha vidraças grandes e sombreadas que chacoalhavam sempre que ventava. Algo nesse chacoalhar recordava a ele as viagens de trem. O aeroporto de Atlanta deve ter uns 15 quilômetros de

corredores, ele escreveu, e então uma rajada de vento sacudiu as vidraças e ele teve uma sensação sobrenatural de movimento, como se o piso rachado de linóleo estivesse patinando debaixo dele. Telefonava para hotéis, motéis, Departamentos de Comércio e sua agente de viagens, programando viagens futuras. Anotava esses preparativos na agenda que Julian lhe dava todo Natal — um produto da Editora dos Homens de Negócios, preso com espiral. Na parte final havia vários diagramas de referência que ele gostava de folhear. A pedra de quem nascia em janeiro era a granada; em fevereiro, a ametista. Uma milha quadrada equivalia a 2.59 quilômetros quadrados. O presente certo para o primeiro aniversário de casamento era papel. Ele ponderava esses fatos de modo vago. Parecia-lhe que o mundo era cheio de equações; que devia existir uma resposta para tudo, se você soubesse como fazer as perguntas. Então chegava a hora do almoço, e ele colocava de lado o trabalho para preparar um sanduíche ou esquentar uma lata de sopa, e deixar Edward dar uma rápida corrida no pequenino quintal. Depois disso ele gostava de ficar um pouco à toa pela casa. Havia tanta coisa precisando de conserto! E tudo pertencia a outra pessoa, não lhe dizia respeito, então podia se aproximar das coisas despreocupadamente. Assobiava enquanto verificava a profundidade de uma rachadura. Cantarolava enquanto percorria o porão, sacudindo a cabeça diante da desordem. No andar de cima, encontrou uma cômoda de três pernas apoiada numa lata de tomates, e disse a Edward: “Escandaloso!” num tom de satisfação. Ocorria-lhe — enquanto colocava óleo numa dobradiça, enquanto apertava uma maçaneta — que a casa refletia surpreendentemente pouco de Muriel. Já devia fazer seis ou sete anos que ela vivia ali, àquela altura, mas o lugar ainda tinha um ar de transitoriedade. Os pertences dela pareciam dispostos de modo apressado, sobrepostos, sem ter na verdade muito a ver com ela. Era um desapontamento, pois Macon estava consciente, enquanto trabalhava, de sua intensa curiosidade sobre os detalhes da vida dela. Lixando uma gaveta, lançou um olhar culpado ao seu conteúdo, mas só achou xales com franjas e luvas amareladas do final dos anos 1940 — pistas da vida de outras pessoas, não da dela. Mas o que ele queria saber? Ela era um livro aberto, dizia a ele qualquer coisa, mais do que ele se sentia confortável em ouvir. Também não tentava negar sua própria natureza, que com certeza estava longe de ser perfeita. Veio à tona seu temperamento ruim, sua língua venenosa e uma tendência a ter os de autodepreciação de que ninguém conseguia tirá-la por horas. Era inconsistente com Alexander às raias da loucura. Num instante superprotetora, no outro, dura

e precipitada. Era obviamente inteligente, mas contrapunha a isso o caso mais complexo de superstição que Macon jamais testemunhara. Praticamente nenhum dia se ava sem que ela lhe contasse um sonho em detalhes exaustivos e depois o dissecasse em busca de premonições. (Um sonho com barcos brancos num mar púrpura se tornou realidade no dia seguinte, ela alegou, quando um vendedor de porta a porta apareceu com um suéter púrpura salpicado de barquinhos brancos. “O mesmo tom de púrpura! O mesmo formato dos barcos!” Macon só se perguntava que tipo de vendedor usaria uma roupa daquelas.) Acreditava em horóscopos e tarô e sessões de comunicação mediúnica. Seu número mágico era o 17. Numa encarnação anterior ela fora uma estilista, e jurava que conseguia se lembrar de pelo menos uma de suas mortes. (“Achamos que ela faleceu”, disseram ao médico quando ele entrou, e o médico tirou a máscara.) Ela era religiosa de um modo confuso, não denominacional, e não tinha qualquer dúvida de que Deus olhava pessoalmente por ela — irônico, parecia a Macon, diante do modo como ela precisava lutar por cada coisinha que queria. Ele sabia de tudo isso, e ainda assim, encontrando uma folha dobrada de papel sobre o balcão, abriu-a e devorou sua caligrafia vacilante como se fosse uma estranha. Pretzels. Meia-calça. Dentista, ele leu. Pegar a roupa limpa da Sra. Arnold. Não, não era isso. Não era isso. Então eram 15 horas e Alexander estava de volta da escola, entrando com uma chave que levava amarrada com um cadarço em volta do pescoço. — Macon? — ele chamava, incerto. — É você que está aí? Ele tinha medo de ladrões. Macon disse: — Sou eu. Edward pulou e saiu correndo para pegar a bola. — Como foi o seu dia? — Macon sempre perguntava. — Ah, tudo bem. Mas Macon tinha a impressão de que a escola nunca ia muito bem para Alexander. Ele saía com o rosto mais atormentado do que nunca, os óculos grossos com impressões digitais. Lembrava a Macon uma folha de dever de casa que tivesse sido apagada e reescrita vezes demais. Suas roupas, por outro lado, estavam tão arrumadas quanto na hora de sair de casa, pela manhã. Ah, aquelas roupas! Camisas polo imaculadas com listras marrons fininhas, combinando com as calças marrons franzidas na cintura com um cinto de couro. Sapatos marrons reluzentes. Meias de um branco ofuscante. Será que ele nunca brincava? Será que as crianças não tinham mais recreio? Macon deu a ele um lanche: leite e biscoitos. (Alexander tomava leite à tarde sem reclamar.) Depois o ajudou com o dever de casa. Era do tipo mais simples

— somas aritméticas e interpretação de texto. — Por que Joe precisava da moeda de 10 centavos? Onde estava o pai de Joe? — Hmm... — Alexander disse. Veias azuis pulsavam em suas têmporas. Ele não era uma criança idiota, mas era limitado, Macon sentia. Limitado. Seu modo de andar era constrito. Até mesmo seu sorriso nunca ousava se aventurar para além de duas fronteiras invisíveis no centro de seu rosto. Não que ele estivesse sorrindo, agora. Franzia a testa, erguendo olhos medrosos para Macon. — Pense com calma — Macon disse a ele. — Não temos pressa. — Mas não consigo! Não sei! Não sei! — Você se lembra de Joe — Macon disse, pacientemente. — Acho que não. Às vezes Macon insistia, às vezes simplesmente deixava para lá. Afinal, Alexander se virara sem ele até o momento, não? Havia um tipo peculiar de luxo ali: Alexander não era seu filho. Macon se sentia ligado a ele de mil formas complicadas, mas não daquele modo inseparável, inevitável que o ligava a Ethan. Podia se afastar de Alexander; podia desistir dele. — Oh, bem — ele diria — converse sobre isso com sua professora amanhã. A diferença, ele se dava conta, era que ele não tinha responsabilidades, nesse caso. Era um alívio imenso saber disso. Quando Muriel chegava em casa, trazia ar fresco, alvoroço e excitação. — Esse frio não a! Esse vento não a! O rádio diz que vai fazer 10° hoje à noite. Edward, deitado, agora mesmo. Quem quer torta de limão de sobremesa? Olhem o que aconteceu: tive que fazer compras para a Sra. Quick. Primeiro tive que comprar lençóis para a filha dela, que vai se casar, depois tive que leválos de volta porque eram todos da cor errada, a filha dela não queria tons pastel, mas branco e disse isso claramente à mãe, foi o que ela falou... e depois tive que pegar os doces para a festa das damas de honra e quando a Sra. Quick viu a torta de limão ela disse: “Ah, não, limão não! Não esse limão sem graça que sempre tem gosto de refresco de saquinho!” E eu disse: “Sra. Quick, a senhora não precisa ficar falando de limão sem graça. Esta é uma torta de merengue que acabou de ser assada sem nada de artificial...” Então, seja como for, para encurtar a história, ela disse que eu trouxesse para o meu menino. “Bem, para sua informação tenho certeza de que ele não pode comê-la”, eu disse. “Provavelmente é alérgico.” Mas trouxe. Ela andava pela cozinha preparando o jantar — sanduíches de bacon, alface

e tomate, normalmente, e legumes enlatados. Às vezes as coisas não estavam como ela esperava (culpa de Macon, ele não conseguia resistir a rearrumar), mas se adaptava alegremente. Enquanto o bacon crepitava na frigideira, ela normalmente telefonava para a mãe e repetia tudo o que havia dito a Macon e Alexander. “Mas a filha queria branco e... ‘Oh, não essa torta de limão sem graça!’ ela disse...” Se Sra. Dugan não podia atender o telefone (o que era frequentemente o caso), Muriel falava em vez disso com Claire. Era evidente que Claire estava tendo problemas em casa. — Diga a eles! — Muriel aconselhava. — Diga a eles, só isso! Diga que não vai tolerar isso — apoiando o gancho do telefone no ombro, ela abria uma gaveta e tirava facas e garfos. — Por que eles precisam saber cada coisinha que você faz? Não importa que você não esteja fazendo nada de mais, Claire. Diga a eles: “Tenho 17 anos e não é mais da sua conta se estou fazendo alguma coisa ou não. Sou uma mulher adulta”, diga a eles. Mais tarde, porém, se Sra. Dugan finalmente viesse ao telefone, a própria Muriel parecia uma criança. — Mãe? Por que você estava demorando? Não podia dizer umas palavras à sua filha só porque sua canção favorita está tocando no rádio? O “Tema de Lara” é mais importante do que carne e osso? Mesmo depois que Muriel desligava, ela raramente concentrava suas atenções no jantar. Sua amiga talvez asse enquanto eles jantavam, uma mulher gorda e jovem chamada Bernice, que trabalhava para a Companhia de Gás e Eletricidade. Ou os vizinhos batiam à porta da cozinha e entravam. — Muriel, você por acaso teria um cupom para meias contra varizes? Jovem e magra como você é, sei que não precisaria dele. — Muriel, sábado de manhã tenho que ir à clínica ver os dentes, você por acaso não poderia me dar uma carona? Muriel era uma singularidade naquela rua — uma mulher com um carro próprio — e eles sabiam de cor seus acordos elaborados com o rapaz que fazia seus consertos. Domingo, quando Dominick ficava com o carro o dia inteiro, ninguém a incomodava; mas assim que a segunda-feira chegava eles faziam fila com seus pedidos. — O doutor quer que eu e lá para mostrar o meu... — Prometi às crianças que ia levá-las a... Se Muriel não podia ajudar, eles nunca pensavam em pedir a Macon em vez disso. Macon ainda era um forasteiro; eles lhe lançavam olhares rápidos, mas fingiam não perceber que ele estava ouvindo. Mesmo Bernice ficava tímida

diante dele, e evitava dizer seu nome. Quando o número da loteria era anunciado na TV, todo mundo já tinha ido embora. Era o que importava ali, Macon descobrira: os horários da TV. O noticiário podia ar sem ser visto, mas o sorteio da loteria não; nem a “Evening Magazine” ou algum dos programas de ação. Alexander assistia a esses programas, mas Muriel não, embora alegasse que sim. Sentava-se no sofá diante da TV e falava, pintava as unhas, ou lia um artigo ou outro. — Olhe aqui! “Como aumentar seu busto.” — Você não precisa aumentar seu busto — Macon disse a ela. — “Cílios mais espessos e mais suntuosos em apenas sessenta dias.” — Você não precisa de cílios mais espessos. Ele estava satisfeito com as coisas exatamente do jeito como estavam. Parecia estar em suspenso, sua vida interrompida. E mais tarde, levando Edward para o seu último eio, ele gostava da sensação da vizinhança à noite. Tão longe do centro da cidade o céu era pálido demais para ter estrelas; era perolado e opaco. Os edifícios eram sombras escuras ocultas. Sons fracos escoavam deles — músicas, tiros de rifle, cavalos relinchando. Macon olhou para a janela de Alexander lá em cima e viu Muriel dobrando uma coberta, delicada e distinta como uma silhueta recortada de papel preto. Na quarta-feira houve uma forte nevasca, começando de manhã e continuou pelo dia adentro. A neve caía em grumos, feito luvas de lã brancas daquelas que só têm o polegar separado. Removia os restos sujos de neve de outras tempestades; suavizava os ângulos duros da rua e escondia latas de lixo sob cúpulas algodoadas. Nem mesmo as mulheres que varriam seus alpendres de hora em hora conseguiam dar conta, e no início da noite desistiram e foram para dentro. Durante toda a noite a cidade reluziu com a cor lilás. Estava absolutamente silenciosa. Na manhã seguinte, Macon acordou tarde. O lado da cama de Muriel estava vazio, mas seu rádio ainda estava tocando. Um anunciante de voz cansada lia os fechamentos. As escolas estavam fechadas, as fábricas estavam fechadas, o Meals on Wheels4 não funcionava. Macon ficou impressionado com o número de atividades que as pessoas estavam planejando para aquele único dia — os almoços e palestras e encontros de protesto. Quanta energia, quanto ânimo! Ele se sentia quase orgulhoso, embora não estivesse planejando comparecer a nenhum daqueles eventos. Então se deu conta de que ouvia vozes no andar de baixo. Alexander devia estar acordado, e ali estava ele, preso no quarto de Muriel.

Vestiu-se furtivamente, certificando-se de que o caminho estava livre antes de atravessar o corredor até o banheiro. Tentou não fazer as tábuas rangerem enquanto descia a escada. A sala de estar tinha uma claridade pouco natural, refletindo a neve lá fora. O sofá estava aberto, uma confusão de lençóis e cobertores; Claire estava dormindo ali nas últimas noites. Macon acompanhou as vozes até a cozinha. Encontrou Alexander comendo panquecas, Claire no fogão preparando mais, Muriel enroscada em seu desânimo matinal habitual sobre uma xícara de café. Na entrada da porta dos fundos estava Bernice, pingando neve, enfaixada com várias mantas imensas. — Então, seja como for — Claire contava a Bernice —, a mamãe diz: “Claire, quem era aquele garoto com quem você estava, no carro?” Eu respondo: “Não era nenhum garoto, era Josie Tapp com seu novo corte de cabelo punk”, e mamãe diz: “E você acha que eu vou acreditar num conto da carochinha desses!” Então eu digo: “Para mim chega! Interrogatórios! Toque de recolher! Desconfiança!” E saio de casa e pego um ônibus para cá. — Eles só estão preocupados que aconteça com você o mesmo que aconteceu com Muriel — Bernice disse a ela. — Mas Josie Tapp! Pelo amor de Deus! Todos viraram o rosto na direção de Macon. Claire disse: — Oi, Macon. Quer umas panquecas? — Só um copo de leite, obrigado. — Estão gostosas e quentinhas. — Macon acha que açúcar no estômago vazio causa úlcera — Muriel disse. Ela envolveu a xícara com as duas mãos. Bernice disse: — Bem, eu não vou recuar — e ela atravessou a cozinha para pegar uma cadeira. Suas botas deixavam pegadas de neve a cada o. Edward andava hesitante atrás dela, lambendo-as. — Você e eu tínhamos que fazer um boneco de neve — Bernice disse a Alexander. — Deve haver mais de um metro de neve, lá fora. — As ruas já foram limpas? — Macon perguntou. — Está brincando? — Não conseguiram nem ar com o jornal — Alexander disse a ele. — Edward está quase louco sem saber onde é que ele foi parar. — E há carros abandonados por toda a cidade. O rádio diz que ninguém vai conseguir ir a lugar nenhum. Mas Bernice mal tinha falado quando Edward fez um desvio até a porta dos fundos e começou a latir. Um vulto apareceu lá fora. — Quem é? — Bernice perguntou.

Muriel bateu o pé para Edward. Ele se deitou mas continuou latindo, e Macon abriu a porta. Viu-se cara a cara com seu irmão Charles — com uma aparência extraordinariamente descuidada, usando um boné com protetores para as orelhas. — Charles? — Macon perguntou. — O que você está fazendo aqui? Charles entrou, trazendo consigo o cheiro fresco e promissor de neve fresca. Os latidos de Edward se transformaram em ganidos de boas-vindas. — Vim te buscar — Charles disse. — Não conseguia falar contigo por telefone. — Me buscar para quê? — Seu vizinho Garner Bolt telefonou para dizer que os canos ou coisa do gênero estouraram em sua casa, está tudo alagado. Estou tentando te ligar desde cedo, mas a linha está sempre ocupada. — Fui eu — Claire disse, colocando na mesa um prato de panquecas. — Tirei o fone do gancho para os meus pais não telefonarem e me encherem o saco. — Esta é a irmã de Muriel, Claire — Macon disse, — e este é Alexander e esta é Bernice Tilghman. Meu irmão Charles. Charles parecia confuso. Pensando bem, não era um grupo muito fácil de classificar. Claire estava daquele seu jeito habitual, misturado: um roupão com botões de rosas por cima de um jeans desbotado, botas de couro com franjas que lhe chegavam aos joelhos. Bernice podia ser um lenhador. Alexander estava arrumado e lustroso, enquanto Muriel em seu robe de seda escorregadio mal podia ser considerada decente. Além disso, a cozinha era tão pequena que parecia haver ali mais pessoas do que havia de fato. E Claire estava brandindo a espátula, espargindo no ar gotas de gordura. — Panquecas? — ela perguntou a Charles. — Suco de laranja? Café? — Não, obrigado — Charles disse. — Eu realmente tenho que... — Aposto que você quer leite — Muriel interveio. Ela se pôs de pé, lembrando-se felizmente de segurar a abertura do robe. — Aposto que você não gosta de açúcar em seu estômago vazio. — Não, realmente, eu... — Não vai dar trabalho! — ela pegava a embalagem longa-vida da geladeira. — E aliás, como foi que você chegou aqui? — Vim dirigindo. — Achei que as ruas estavam bloqueadas. — Não estavam tão ruins assim — Charles disse, aceitando um copo de leite. — Encontrar este lugar foi a parte difícil — ele disse a Macon. — Procurei no mapa, mas é claro que foi uma perdição.

— Uma perdição? — Muriel perguntou. — Ele se perdeu — Macon explicou. — O que exatamente Garner disse, Charles? — Disse que viu água escorrendo pela janela da sua sala de estar. Olhou lá para dentro e viu seu teto pingando. Podia fazer semanas que estava assim, ele disse; você sabe a frente fria que tivemos no Natal. — Não parece bom — Macon disse. Foi ao closet pegar o casaco. Quando voltou, Muriel dizia: — Agora que você não está mais de estômago vazio, Charles, não quer experimentar uma das panquecas de Claire? — Comi meia dúzia — Bernice disse a ele. — Não é à toa que me chamam de Bernice Bundão. Charles respondeu: — Ah, bem... — e lançou um olhar desamparado a Macon. — Temos que ir andando — Macon disse aos outros. — Charles, você estacionou nos fundos? — Não, na frente. Depois dei a volta porque a campainha não funcionava. Havia um tom reservado de desaprovação na voz de Charles quando ele disse isso, mas Macon apenas respondeu, despreocupadamente: — Ah, sim! Este lugar é um caos. Ele seguiu o caminho até a frente da casa. Sentia-se como alguém demonstrando como conseguia conviver bem com os nativos. Abriram a porta com alguma dificuldade e desceram aos tropeços degraus enterrados tão fundo que os dois meio que saltaram lá de cima, certos de que seriam amparados. Avançaram com dificuldade até a rua, os sapatos de Macon se enchendo rapidamente de neve, uma pontada refrescante que quase instantaneamente se tornou dolorosa. — Acho que é melhor levarmos os dois carros — ele disse a Charles. — Por quê? — Bem, você não vai querer ter de voltar até aqui dirigindo, outra vez. — Mas se levarmos um só, então um de nós pode dirigir e o outro pode empurrar se ficarmos presos. — Vamos levar o meu, então. — Mas o meu já está limpo e fora da neve. — Mas com o meu eu podia te deixar em casa e te poupar o trajeto de volta. — Mas isso deixa o meu carro encalhado na Singleton Street. — Podíamos levá-lo para você depois que limparem a rua. — E o meu carro está com o motor quente — Charles disse.

Será que as conversas deles eram sempre assim, durante todos aqueles anos? Macon deu uma curta risada, mas Charles esperava atentamente pela sua resposta. — Está bem, vamos no seu — Macon disse. Entraram no Volkswagen de Charles. Era verdade que havia um monte de carros abandonados. Estavam parados sem nenhum padrão particular, montes brancos indistintos virados para um lado e para o outro, de modo que a rua parecia um rio de barcos à deriva. Charles foi guiando entre eles com competência. Mantinha uma velocidade baixa e constante e falava do casamento de Rose. — Dissemos a ela que abril era muito incerto. Melhor esperar, se está tão decidida a uma cerimônia ao ar livre. Ela tem certeza de que o tempo estará perfeito. Um jipe coberto de neve na frente deles, o único veículo em movimento que tinham encontrado até ali, subitamente deslizou para um lado. Charles o ultraou com calma. Macon disse: — Onde é que eles vão morar, afinal? — Ora, no apartamento de Julian, eu imagino. — Num prédio de solteiros? — Não, ele tem um outro apartamento agora, perto do Belvedere. — Entendo — Macon disse. Mas ele tinha dificuldade de imaginar Rose num apartamento, ou em qualquer lugar, para ser honesto, que não fosse a casa de seus avós com seus ornamentos ovais e cortinas pesadas. Por toda parte, na cidade, as pessoas cavavam, abrindo túneis até seus carros estacionados, tirando o gelo dos para-brisas, tirando a neve das calçadas. Havia um certo clima de feriado entre elas; acenavam umas às outras e trocavam exclamações. Um homem, que limpara não só sua calçada mas um pedaço da rua também, executava uma espécie de sapateado no concreto úmido, e quando Charles e Macon aram ele parou e gritou. — Vocês são o quê, malucos? Dirigindo por aí nessas condições? — Devo dizer que você está notavelmente calmo diante da situação — Charles disse a Macon. — Que situação? — Falo da sua casa. Água escorrendo do teto sabe-se lá por quanto tempo. — Ah, isso — Macon falou. Sim, em outra época ele ficaria muito chateado com aquilo. Agora estavam na North Charles Street, que os removedores de neve já tinham limpado. Macon ficou surpreso com o espaço livre, ali. As construções eram bastante afastadas, gramados amplos se inclinavam entre elas. Nunca tinha

notado isso antes. Inclinou-se para a frente, a fim de ver as ruas laterais. Ainda estavam completamente brancas. E uns poucos quarteirões depois, quando Charles entrou no quarteirão de Macon, viram uma menina usando esquis. Sua casa parecia a mesma de sempre, embora um pouco encardida se comparada à neve. Ficaram sentados no carro por um momento estudando-a, e então Macon disse: — Bem, então vamos lá, eu acho — e saíram do carro. Podiam ver onde Garner Bolt tinha ado, pelo jardim; viram as pegadas em forma de concha no lugar onde ele se aproximara para espiar pela janela. Mas a calçada não tinha nenhuma marca, e Macon encontrou dificuldades de andar com seus sapatos de sola lisa. No instante em que destrancou a porta, ouviram a água. A sala de estar estava tomada por um som frio e constante de gotejamento, como uma estufa depois que as plantas foram borrifadas com água. Charles, o primeiro a entrar, disse: — Oh, meu Deus. Macon ficou parado, imóvel, no corredor atrás dele. Aparentemente, um cano no andar de cima (naquele banheirinho frio do antigo quarto de Ethan, Macon podia apostar) tinha congelado e estourado, sabia Deus quanto tempo atrás, e a água tinha corrido e corrido até saturar o teto e começar a atravessar o gesso. Chovia na sala toda. Pedaços de gesso tinham caído sobre os móveis, deixando-os brancos e manchados. As tábuas do chão estavam malhadas. O tapete, quando Macon pisou nele, guinchou sob seus pés. Ele ficou maravilhado com a amplitude da destruição; nem um único detalhe tinha sido deixado de fora. Cada cinzeiro estava cheio de flocos molhados e cada revista estava ensopada. Havia um cheiro indefinido sendo emanado pelo estofamento. — O que você vai fazer? — Charles disse, em voz baixa. Macon se recompôs. — Ora, fechar o registro, é claro — ele respondeu. — Mas a sua sala de estar! Macon não respondeu. Sua sala estava... apropriada, era o que ele queria dizer. E estaria ainda mais apropriada se tivesse sido levada por completo pela água. (Imaginou a casa debaixo de 4 metros d’água, misteriosamente limpa, como um castelo no fundo do aquário de um peixinho dourado.) Desceu ao porão e fechou a válvula, depois checou a pia da lavanderia. Estava seca. Normalmente ele deixava a torneira ligada durante todo o inverno, um fiozinho d’água para impedir que os canos congelassem, mas naquele ano não pensara nisso, nem seus irmãos, evidentemente, quando vieram acender a fornalha. — Oh, isso é terrível, simplesmente terrível — Charles dizia quando Macon

voltou à sala. Mas ele estava na cozinha agora, onde não havia problema algum. Estava abrindo e fechando portas dos armários. — Terrível. Terrível. Macon não tinha ideia do que ele estava falando. Disse: — Deixe-me só encontrar minhas botas e podemos ir. — Ir? Ele achava que as botas talvez estivessem no closet. Foi até seu quarto, no andar de cima. Tudo ali estava tão lúgubre — o colchão nu com sua bolsa corporal, o espelho empoeirado, o jornal quebradiço e amarelado dobrado sobre a mesa de cabeceira. Ele se curvou para vasculhar entre os objetos no chão do closet. Suas botas estavam ali, sim, junto com alguns cabides de ferro e um livrinho qualquer. Diário de uma jardineira, 1976. Ele leu-folheou-o. A primeira poda de grama da primavera, Sarah tinha escrito em sua caligrafia compacta. Forsítia ainda florida. Macon fechou o diário, alisou a capa e colocou-o de lado. Com as botas na mão, voltou ao andar de baixo. Charles regressava à sala de estar; estava espremendo almofadas. — Não se incomode com elas — Macon disse. — Vão ficar molhadas outra vez. — O seu seguro vai cobrir isso? — Imagino que sim. — Que nome eles vão dar? Danos por alagamento? Danos causados pelo clima? — Não sei. Vamos indo. — Você devia ligar para o nosso empreiteiro, Macon. Lembra-se daquele homem que consertou a nossa varanda? — Ninguém mora aqui, seja como for — Macon disse. Charles se levantou, ainda segurando uma almofada. — O que isso quer dizer? — ele perguntou. — O quê? — Está dizendo que vai deixar tudo isto do jeito que está? — Provavelmente — Macon respondeu. — Tudo alagado e arruinado? Não vai fazer nada? — Ah, bem — Macon disse, fazendo um gesto com a mão. — Vamos embora, Charles. Mas Charles ficou, ainda olhando fixamente para a sala de estar. — Terrível. Até as cortinas estão pingando. Sarah vai ficar arrasada. — Duvido que ela chegue a pensar nisso — Macon disse. Ele parou na entrada para calçar as botas. Eram velhas e duras, do tipo com

fivelas de metal. Ele enfiou as barras molhadas da calça lá dentro e saiu na frente para a rua. Uma vez instalados dentro do carro, Charles não ligou o motor. Ficou sentado ali, a chave na mão, e olhou de um modo sério para Macon. — Acho que é hora de termos uma conversa — ele disse. — Sobre o quê? — Gostaria de saber o que você pensa que está fazendo com essa tal Muriel. — É assim que vocês a chamam? “Essa tal Muriel”? — Ninguém mais quer lhe dizer — Charles falou. — Eles falam que não nos diz respeito. Mas não posso simplesmente ficar sem fazer nada, Macon. Tenho que dizer o que penso. Quantos anos você tem? Quarenta e dois? Quarenta e três, agora? E ela tem... mas mais do que isso, ela não é o seu tipo de mulher. — Você nem a conhece! — Conheço o tipo. — Tenho que ir para casa agora, Charles. Charles abaixou os olhos para a chave. Ligou o carro e foi para a rua, mas não encerrou o assunto. — Ela é algum tipo de sintoma, Macon! Você não tem sido você mesmo ultimamente e essa tal Muriel é um sintoma. Todo mundo diz isso. — Sou mais eu mesmo do que jamais fui na vida toda — Macon disse a ele. — Que tipo de observação é essa? Nem sequer faz sentido! — E aliás quem é “todo mundo”? — Ora, Porter, Rose, eu... — Todos uns especialistas. — Só estamos preocupados com você, Macon. — Será que podemos mudar de assunto? — Eu tinha que te dizer o que penso — Charles falou. — Ora, muito bem. Já me disse. Mas Charles não parecia satisfeito. O carro chafurdava na neve suja e meio derretida, com fios de água limpa escorrendo do capô pelo para-brisa. Então, na rua principal, ganhou velocidade. — Detesto pensar o que todo esse sal está fazendo com a parte de baixo do seu corpo — Macon disse. Charles disse: — Nunca te falei isso antes, mas na minha opinião as pessoas dão importância demais ao sexo. Macon olhou para ele. — Ah, quando eu era adolescente estava tão interessado quanto todo mundo — Charles disse. — Isto é, o assunto ocupava minha mente durante todos os minutos em que eu estava acordado, e tudo mais. Mas era só a ideia do sexo,

você entende? De algum modo, a coisa em si era menos... não quer dizer que eu me oponha, mas só não era o que eu esperava. Para começo de conversa, é uma coisa bem emporcalhada. E o clima é um problemão. — O clima — Macon disse. — Quando está frio, você detesta tirar as roupas. Quando está quente, vocês dois ficam tão pegajosos. E em Baltimore sempre parece ser frio demais ou quente demais. — Talvez você devesse considerar uma mudança climática — Macon disse. Estava começando a se divertir. — Você acha que alguém fez uma pesquisa? Cidade a cidade? Talvez a Editora dos Homens de Negócios pudesse imprimir alguma espécie de livrinho. — E além disso com frequência leva a filhos — Charles continuou. — Nunca liguei muito para crianças. Elas me parecem causar muita confusão. — Bom, se é por isso que você tocou no assunto, esqueça — Macon disse. — Muriel não pode ter mais filhos. Charles deu uma tossidinha. — Bom ouvir isso — ele respondeu, — mas não foi por isso que toquei no assunto. Acho que o que eu estava querendo dizer era: simplesmente não acho que o sexo seja importante o suficiente para que você arruíne sua vida por causa dele. — E daí? Quem está arruinando a vida? — Macon, encare os fatos. Ela não vale a pena. — Como é que você pode saber? — Pode me dizer uma única coisa rara nela? — Charles perguntou. — Isto é, uma qualidade realmente especial, Macon, não algo piegas como “Ela gosta de mim” ou “Ela me escuta...” Ela olha pelas janelas de um hospital e imagina como os marcianos nos veriam, Macon queria dizer. Mas Charles não ia entender, então, em vez disso, ele falou: — Eu também não sou um bom partido, caso você não tenha notado. Sou, você poderia dizer, como uma mercadoria com defeito. Alguém devia prevenir a ela sobre mim, se você pensar bem no assunto. — Isso não é verdade. Isso não é verdade em absoluto. Na verdade, eu imagino que os parentes dela estejam lhe dando os parabéns pelo que ela arrumou. — Pelo que ela arrumou! — Alguém para sustentá-la. Qualquer um — Charles disse. — Ela tem sorte de encontrar qualquer um. Ora, ela nem fala inglês direito!

Mora naquela casa miserável, se veste como uma sem-teto, tem aquele filho que parece ter ancilóstomo ou algum outro verme... — Charles, faça o favor de ficar quieto — Macon disse. Charles fechou a boca. Tinham chegado aos arredores da casa de Muriel, a essa altura. Estavam ando pela fábrica de artigos de papelaria com sua cerca emaranhada como um estrado de molas velho. Charles fez uma curva no lugar errado. — Vamos ver — ele disse, — onde é que eu... Macon não ofereceu ajuda. — Estou indo na direção certa? Ou não. De algum modo parece que eu não... Estavam a dois curtos quarteirões da Singleton Street, mas Macon esperava que Charles andasse em círculos para sempre. — Boa sorte — ele disse, e abriu a porta e saiu. — Macon? Macon acenou e entrou numa ruela. Liberdade! O sol reluzindo em montes brancos ofuscantes, e crianças descendo de trenó e de mesinhas dobráveis. Vagas limpas guardadas com cadeiras. Multidões de garotos prestativos com pás. E então a casa de Muriel com a calçada ainda afundada na neve, seus pequeninos cômodos com cheiro de panquecas, sua mistura aconchegante de mulheres batendo papo na cozinha. Estavam tomando chocolate quente, agora. Bernice trançava o cabelo de Claire. Alexander pintava. Muriel deu um beijo de oi em Macon e reclamou de suas bochechas frias. — Entre e se esquente! Tome um pouco de chocolate! Olhe a pintura de Alexander — ela disse. — Não acha linda? Ele não é demais? É um verdadeiro Da Vinci. — Leonardo — Macon disse. — O quê? — Não Da Vinci. Pelo amor de Deus. É Leonardo — ele disse a ela. Então subiu a escada pisando duro para trocar suas calças úmidas.

________________ 4 Programa que entrega refeições gratuitas em casa a pessoas impossibilitadas de comprá-las ou prepará-las (idosos, na maioria das vezes). (N. da T.)

15 — Desculpe-me por ser tão gordo — o companheiro de assento de Macon disse. Ele disse: — Oh, hm, ah... — Sei que estou usando mais do que a minha cota de espaço — o homem continuou a ele. — Acha que não percebo? Em todas as viagens que faço tenho que pedir à aeromoça um extensor de cinto de segurança. Tenho que equilibrar o almoço sobre os joelhos porque a mesinha não abre na minha frente. Eu na verdade devia comprar dois assentos, mas não sou um homem rico. Devia comprar duas agens e não ficar me espalhando por cima dos meus companheiros de voo. — Ah, você não está se espalhando por cima de mim — Macon disse. Isso porque ele estava praticamente sentado no corredor, com os joelhos se projetando para o lado de modo que cada aeromoça que ava roçava nas folhas de Miss Macintosh. Mas ele não podia evitar se sentir comovido pelo rosto imenso, brilhante e desesperançado, redondo como o de um bebê. — Meu nome é Lucas Loomis — o homem disse, estendendo a mão. Quando Macon a apertou, lembrou-se de uma massa de pão fermentada. — Macon Leary — Macon respondeu. — A coisa mais idiota — ele disse — é que eu ganho a vida viajando. — É mesmo? — Demonstro software a lojas de computadores. Fico sentado num avião seis dias a cada sete, às vezes. — Bem, nenhum de nós os acha assim tão espaçosos — Macon disse. — O que você faz, Sr. Leary? — Escrevo guias — Macon respondeu. — É mesmo? De que tipo? — Ah, guias para homens de negócios. Gente como você, eu acho. — O turista acidental — Sr. Loomis disse, de imediato. — Ora, sim. — É mesmo? Estou certo? Bem, que surpresa — Sr. Loomis disse. — Olhe para isto — ele segurou as próprias lapelas, tão longe dele que seus braços pareciam curtos demais para alcançá-las. — Terno cinza — ele mostrou a Macon. — Exatamente o que você recomenda. Apropriado para todas as

ocasiões — ele apontou para a mala aos seus pés. — Está vendo minha bagagem? De bordo. Uma muda de roupa de baixo, uma camisa branca, um pacote de sabão em pó. — Ora, ótimo — Macon disse. Isso nunca tinha lhe acontecido antes. — Você é o meu herói! — Sr. Loomis disse. — Melhorou minhas viagens em cem por cento. Foi você quem me falou dessas coisas elásticas que viram cordas de secar roupa. — Ah, bem, você podia ter esbarrado com isso em qualquer loja — Macon observou. — Parei de confiar em lavanderias de hotel; praticamente não tenho mais que me aventurar pelas ruas. Digo à minha mulher, costumo falar, pode perguntar a ela, eu digo: “Ir com o Turista acidental é como ir numa cápsula, num casulo. Não se esqueça de colocar na mala meu Turista acidental!, eu digo a ela. — Ora, é muito bom ouvir isso — Macon disse. — Houve ocasiões em que voei até o Oregon e mal me dei conta de que havia saído de Baltimore. — Excelente. — Houve uma pausa. — Porém — Macon disse — ultimamente eu tenho pensado. — Sr. Loomis teve que virar o corpo inteiro para olhar para ele, como alguém encaixotado numa parca com capuz. — Isto é — Macon continuou, — estive na costa oeste. Atualizando minha edição dos Estados Unidos. É claro que eu já tinha coberto a costa oeste antes, Los Angeles e tudo mais; meu Deus, sim, eu conheci aquele lugar quando era criança; mas foi a primeira vez que estive em São Francisco. Meu editor queria que eu acrescentasse. Você já esteve em São Francisco? — É para ir até lá que acabamos de entrar neste avião — Sr. Loomis recordou-lhe. — São Francisco é com certeza, hm, bonito — Macon disse. Sr. Loomis pensou no assunto. — Bem, Baltimore também é, claro — Macon completou, apressadamente. — Oh, não existe nenhum lugar no mundo como Baltimore. Mas São Francisco, bem, quer dizer, foi um lugar que me pareceu, não sei... — Eu próprio nasci e fui criado em Baltimore — o Sr. Loomis disse. — Não moraria em outro lugar por nada neste mundo. — Não, é claro que não — Macon concordou. — Eu só queria dizer que... — Nem pago eu sairia de lá. — Não, nem eu. — Você é de Baltimore? — Sim, com certeza. — Não há lugar como este.

— Certamente que não — Macon disse. Mas uma imagem lhe veio à mente, de São Francisco flutuando na neblina como a Cidade de Esmeralda, vista de uma daquelas ruas tão altas e íngremes que você realmente podia se debruçar e ouvir o vento soprar. Ele saíra de Baltimore num dia de neve com chuva e gelo cobrindo a pista de decolagem, e não fazia tanto tempo assim que havia saído; mas quando voltou era primavera. O sol brilhava e as árvores tinham brotos verdes. Ainda estava bastante frio, mas ele dirigia com os vidros abaixados. A brisa tinha o mesmo exato cheiro de um vinho Vouvray: floral, com um toque de naftalina por baixo. Na Singleton Street, crocos brotavam em quadrados de terra dura diante das janelas dos porões. Tapetes e colchas adejavam nos quintais. Uma quantidade de bebês até então escondidos viera à tona. Circulavam imperiosamente em seus carrinhos, empurrados por suas mães ou por pares de avós. Velhos estavam sentados na calçada em cadeiras de praia e cadeiras de rodas, e grupos de homens estavam de pé aqui e ali nas esquinas, as mãos nos bolsos e sua postura elaboradamente informal — os desempregados, Macon imaginava, emergindo das salas escuras onde haviam ado o inverno assistindo à TV. Ouviu fragmentos de suas conversas: — E aí, cara? — Nada demais. — O que você anda fazendo? — Não muita coisa. Estacionou na frente da casa de Muriel, onde Dominick Saddler trabalhava no carro dela. O capô estava aberto e Dominick estava afundado em seu interior; tudo o que Macon conseguia ver eram seus jeans e seus tênis gigantescos e esfarrapados, uma faixa de pele nua aparecendo acima de seu cinto de couro de vaca. Dos seus dois lados estavam as gêmeas Butler, falando sem parar. — Então ela disse que estávamos de castigo... — Não podemos sair com ninguém até sexta-feira... — Pegou nossas carteiras de identidade falsas... — Não nos deixa atender o telefone... — Marchamos para o andar de cima e batemos a porta do quarto, uma porta batendo com força para ela saber o que pensamos dela... — E ela vem com uma chave de fenda e tira nossa porta das dobradiças! — Hmm — Dominick disse. Macon apoiou a mala no capô e espiou dentro do motor. — O carro anda aprontando de novo? — ele perguntou. As gêmeas Butler disseram: “Olá, Macon”, e Dominick se endireitou e enxugou a testa com as costas da mão. Era um rapaz de pele morena e bem-

apessoado, cujos músculos protuberantes faziam com que Macon se sentisse inadequado. — A porcaria não para de afogar — ele disse. — Como é que Muriel foi para o trabalho? — Teve que pegar o ônibus. Macon esperava ouvir que ela ficara em casa. Subiu os degraus e destrancou a porta da frente. Assim que entrou, Edward veio saudá-lo, dando ganidos e saltos para trás e tentando ficar imóvel tempo suficiente para receber carinho. Macon andou pelo resto da casa. Estava claro que todo mundo tinha saído às pressas. O sofá estava aberto. (Claire devia ter tido outra briga com seus pais.) A mesa da cozinha estava lotada de pratos sujos e ninguém tinha guardado o leite. Macon guardou. Depois levou a mala para cima. A cama de Muriel estava desfeita e seu robe estava jogado sobre uma cadeira. Havia um emaranhado de cabelos na pequenina bandeja sobre sua cômoda. Ele o apanhou entre o polegar e o indicador, e o jogou na lata de lixo. Ocorreu-lhe (não pela primeira vez) que o mundo era dividido nitidamente ao meio: alguns levavam vidas cuidadosas e outros levavam vidas descuidadas, e tudo o que acontecia só podia ser explicado pelas diferenças entre eles. Mas ele não teria podido dizer, nem em um milhão de anos, por que ficou tão comovido com a visão da colcha fina de Muriel caída no chão, para onde ela devia tê-la arrastado ao se levantar, pela manhã. Não era ainda a hora de Alexander chegar da escola, então ele pensou em ear com o cachorro. Colocou a coleira em Edward e saiu pela porta da frente. Quando ou outra vez pelas gêmeas Butler, elas disseram: “Olá, Macon”, daquele jeito habitual de cantilena, enquanto Dominick dizia um palavrão e pegava uma chave inglesa. Os homens parados na esquina discutiam um boato sobre empregos no Texas. O cunhado de alguém tinha achado trabalho por lá. Macon ou com a cabeça baixa, sentindo-se desconfortavelmente privilegiado. Desviou-se de um capacho de boas-vindas que tinha sido esfregado e deixado para secar na calçada. As mulheres ali levavam a sério a limpeza de primavera, ele podia ver. Sacudiam os esfregões secos nas janelas do andar de cima; sentavam-se no peitoril para limpar as vidraças com jornal amassado. Andavam em zigue-zague de uma casa a outra com aspiradores de pó emprestados, máquinas de limpar tapete e frascos de quase quatro litros de sabão para limpar estofados. Macon deu a volta no quarteirão e se pôs a caminho de casa, depois de parar para deixar Edward fazer xixi num bordo jovem. Quando se aproximava da Singleton Street, quem ele viu se não Alexander, andando apressado lá adiante. Não havia como confundir aquele pequeno vulto

rígido com a mochila desajeitada. — Esperem! — Alexander gritava. — Esperem por mim! As crianças Ebbett, a alguma distância mais adiante, se viraram e gritaram alguma coisa de volta. Macon não conseguiu ouvir o que diziam, mas conhecia bastante bem o tom — aquele canto agudo e zombeteiro. — Nã-nã-nã-nã-NA-nã! Alexander começou a correr, tropeçando nos próprios sapatos. Atrás dele vinha um outro grupo, dois garotos mais velhos e uma garota de cabelo ruivo, e começaram a zombar também. Alexander se virou e olhou para eles. Seu rosto de algum modo estava menor do que o habitual. — Vá — Macon disse a Edward, e largou a coleira. Edward não precisava que o estimulassem. Suas orelhas ficaram em pé ao som da voz de Alexander, e agora ele disparava na direção dele. As três crianças mais velhas se dispersaram quando ele ou correndo por eles, latindo. Parou de repente diante de Alexander, e Alexander se ajoelhou para abraçá-lo no pescoço. Quando Macon chegou, perguntou: — Você está bem? Alexander fez que sim e se pôs de pé. — O que era aquilo tudo? — Macon perguntou a ele. Alexander disse: — Nada. Mas quando voltaram a andar ele deslizou a mão para dentro da de Macon. Aqueles dedinhos frios eram tão distintos, tão particulares, tão cheios de personalidade. Macon segurou com mais força e sentiu uma espécie de agradável pesar arrebatando-o. Oh, sua vida tinha recuperado todos os perigos de outrora. Ele era obrigado mais uma vez a se preocupar com a guerra nuclear e o futuro do planeta. Frequentemente tinha o mesmo pensamento secreto e culpado que lhe ocorria depois que Ethan nasceu: Daqui para a frente, nunca mais vou poder ser completamente feliz. Não que ele fosse antes, é claro. A edição dos Estados Unidos de Macon seria agora composta de cinco livrinhos separados, divididos geograficamente e embalados juntos para que você fosse obrigado a comprar todos mesmo que só precisasse de um. Macon achava aquilo imoral. Disse isso quando Julian ou para pegar o material da Costa Oeste. — O que há de imoral nisso? — Julian perguntou. Ele não estava realmente prestando atenção; Macon podia ver. Fazia anotações mentais sobre a casa de Muriel, sem dúvida o real propósito de sua visita não anunciada e desnecessária. Embora ele já tivesse coletado seu

material, perambulava pela sala de estar de um modo distraído, primeiro examinando uma fotografia de escola de Alexander e depois um mocassim decorado com contas que Claire tinha deixado no sofá. Era sábado e os outros estavam na cozinha, mas Macon não tinha qualquer intenção de deixar Julian encontrá-los. — É sempre imoral obrigar uma pessoa a comprar algo que ela não quer — Macon disse. — Se ele só quer o Meio-Oeste, não devia ter que comprar Nova Inglaterra também, pelo amor de Deus. Julian disse: — É a sua amiga que eu estou escutando? É Muriel? — Sim, imagino que seja — Macon respondeu. — Você não vai nos apresentar? — Ela está ocupada. — Eu realmente gostaria de conhecê-la. — Por quê? Rose já não fez o relatório completo? — Macon — Julian disse —, em breve eu vou ser seu parente. — Ah, meu Deus. — É natural que eu queira conhecê-la. Macon não disse nada. — Além disso — Julian continuou, — quero convidá-la para o casamento. — Quer? — Então posso falar com ela? — Oh. Bem. Acho que sim. Macon foi na frente até a cozinha. Sentiu que cometera um erro — que tendo agido de modo tão duro ele só fazia aquele encontro parecer mais importante do que realmente era. Mas Julian, por acaso, estava animado e agitado. — Olá, senhoras — ele disse. Elas levantaram os olhos, Muriel, Claire e Bernice, sentadas ao redor de um maço de folhas de papel. Macon desenrolou seus nomes rapidamente mas tropeçou no de Julian. — Julian, ah, Edge, meu... — Futuro cunhado — Julian disse. — Meu chefe. — Vim convidá-la para o casamento, Muriel. E também o seu filho, se... onde está o seu filho? — Saiu para ear com o cachorro — Muriel respondeu. — Mas ele não é muito bom em igrejas. — Vai ser um casamento ao ar livre. — Bem, talvez, então, não sei...

Muriel estava usando o que chamou de seu “visual paraquedista” — um macacão da Sunnys Surplus — e seu cabelo estava escondido debaixo de um turbante de seda com padrão silvestre. — Vamos participar de um concurso — ela disse a Julian. — Escreva uma canção de música country e ganhe uma viagem a Nashville. Estamos trabalhando nisso juntas. Vamos chamá-la de “Dias mais felizes”. — Isso já não foi escrito? — Oh, espero que não. Você sabe como eles sempre têm essas fotografias de casais nas revistas? “Mick Jagger e Bianca, em seus dias mais felizes.” “Richard Burton e Liz Taylor, em...” — Sim, entendi. — Então este homem está falando sobre sua ex-mulher. “Eu a conheci em outra época e em outro lugar...” Ela cantou, em sua voz fina e áspera que dava uma ideia de distância, como um disco de vitrola muito usado. Quando nos beijávamos com ardor / Quando dividíamos cada dor / Quando nós dois vivíamos dias mais felizes. — Muito interessante — Julian disse — mas não sei sobre “dividíamos cada dor”. — O que há de errado com isso? — Bem, é... em dias mais felizes eles sofriam? — Ele está certo — Bernice disse a Muriel. — Candor, enlouquecedor, resplendor — Julian refletiu. — “Quando nossas vidas eram um esplendor”, “Quando nos amávamos até o sol se pôr”... — Deixe para lá, por favor — Macon disse a ele. — “Quando eu não conhecia a Leonor”, “Quando ela não encontrara aquele ator...” — Espere! — Bernice falou, tomando nota furiosamente. — Vai ver que eu encontrei um talento oculto aqui — Julian disse a Macon. — Vou levar você até a porta — Macon disse. — “Quando não havia mancha em nosso amor”, “Quando ela me achava acolhedor” — Julian continuou, seguindo Macon pela sala de estar. — Não esqueça o casamento! — ele gritou, lá para trás. Disse a Macon: — Se ela ganhasse, você poderia cobrir Nashville de graça durante a próxima edição dos Estados Unidos. — Acho que ela está planejando levar Bernice — Macon disse a ele. — “Quando nossa vida tinha cor...” — Julian refletiu. — Vou entrar em contato — Macon disse — assim que começar o guia do

Canadá. — Canadá! Você não vem ao casamento? — Bem, isso também, é claro — Macon respondeu, abrindo a porta. — Espere um minuto, Macon. Qual é a sua pressa? Espere, quero te mostrar uma coisa. Julian largou o material da Costa Oeste para procurar em seus bolsos. Ele puxou um anúncio brilhante e colorido. — Havaí — ele disse. — Bem, certamente não vejo nenhum sentido em cobrir... — Não para você; para mim! Para nossa lua de mel. Vou levar Rose. — Oh, entendo. — Olhe — Julian disse. Ele abriu o anúncio. Revelou-se um mapa, um daqueles mapas inúteis que Macon detestava, com desenhos desproporcionalmente grandes de abacaxis, palmeiras e dançarinas de hula abarrotando ilhas verde-maçã. — Recebi isto da The Travei People Incorporated. Já ouviu falar neles? São confiáveis? Sugeriram um hotel aqui em... — ele correu o indicador pela página, procurando o hotel. — Eu não sei absolutamente nada sobre o Havaí — Macon disse. — Em algum lugar aqui... — Julian então talvez só nesse momento ouvindo o que Macon lhe havia dito, dobrou de novo o mapa. — Ela talvez seja exatamente do que você precisa — ele disse. — Perdão? — Essa tal Muriel. — Por que é que todo mundo a chama... — Ela não é tão má! Não acho que a sua família entenda o que você está sentindo. — Não, não entendem. De fato não entendem — Macon disse. Ficou surpreso com o fato de ser Julian, entre todas as pessoas, quem via aquilo. Embora as palavras de despedida de Julian fossem: — “Quando tudo era de um tal dulçor.” Macon fechou a porta com firmeza depois que ele saiu.

Ele decidiu comprar umas roupas diferentes para Alexander.

— Que tal jeans? — ele perguntou. — Que tal umas camisas? Que tal um cinto de caubói com um o símbolo da cerveja Budweiser na fivela? — Está falando sério? — Você usaria esse tipo de coisa? — Sim! Usaria! Eu juro! — Então vamos fazer compras. — A mamãe vem? — Vamos fazer uma surpresa para ela. Alex vestiu sua jaqueta de primavera, um blazer de poliéster azul-marinho pelo qual Muriel acabava de pagar uma pequena fortuna. Macon não sabia se ela aprovaria jeans, e por esse motivo esperara até ela ter saído para comprar cortinas para alguma mulher em Guilford. A loja à qual ele foi vendia roupas em estilo Western, onde ele costumava levar Ethan. Não tinha mudado nem um pouco. As tábuas de madeira do chão estalavam, o ar cheirava a couro e a tecido de algodão novo. Ele conduziu Alexander ao departamento dos meninos, onde girou uma arara de camisas. Quantas vezes fizera isso antes? Não era nem mesmo doloroso. Só desorientador, num certo sentido, ver como tudo continuava, independentemente do resto. Os jeans de estudantes ainda estavam empilhados de acordo com a cintura e largura da perna. Os alfinetes de gravata em formato de cavalo ainda estavam dispostos atrás do vidro. Ethan estava morto, mas Macon ainda segurava camisas e perguntava: — Esta aqui? Esta aqui? Esta aqui? — O que eu queria mesmo era camiseta — Alexander disse. — Camiseta. Ah. — Do tipo com a gola alargada. E jeans esfarrapados no bumbum. — Bem, você tem que fazer isso você mesmo — Macon respondeu. — Tem que amansá-los. — Não quero que pareça que estou de roupa nova. — Vou te dizer o que fazer. Tudo o que comprarmos nós lavamos umas vinte vezes antes de você usar. — Mas nada pré-lavado — Alexander disse. — Não, não. — Só os nerds usam roupa pré-lavada. — Certo. Alexander escolheu várias camisetas, propositalmente grandes demais, junto com uma coleção de jeans, porque não tinha certeza do seu tamanho. Queria experimentar tudo. — Quer que eu vá com você? — Macon perguntou.

— Posso fazer isso sozinho. — Ah. Tudo bem. Isso também era familiar. Alexander desapareceu numa das cabines e Macon foi fazer um tour pelo departamento masculino. Experimentou um chapéu de caubói, de couro, mas tirou-o imediatamente. Depois voltou à cabine. — Alexander? — Hã? — Como você está indo? — Tudo bem. No espaço sob a porta, Macon viu os sapatos de Alexander e a barra da calça. Evidentemente, ele ainda não tinha começado a experimentar os jeans. Alguém disse: — Macon? Ele se virou e viu uma mulher loura, de cabelo estilo Chanel e saia envelope estampada com pequeninas baleias azuis. — Sim? — ele disse. — Lauren Canfield. A mãe de Scott. Lembra-se? — É claro — Macon respondeu, apertando a mão dela. Ele viu Scott, que estava na turma de Ethan na escola, um garoto surpreendentemente alto e aparvalhado, escondendo-se atrás do ombro da mãe com uma braçada de meias esportivas. — Ora, Scott, prazer em vê-lo. Scott corou e permaneceu calado. Lauren Canfield disse: — Prazer em ver você. Está fazendo suas compras de primavera? — Oh, bem, ah... Ele olhou na direção da cabine. Agora as calças de Alexander estavam caídas em volta dos tornozelos. — Estou ajudando o filho de uma amiga — ele explicou. — Nós estávamos comprando o departamento de meias inteiro. — É, estou vendo que estavam. — Parece que a cada duas semanas descubro que Scott já acabou de novo com as meias; você sabe como eles são nesta idade... — Ela se interrompeu. Pareceu horrorizada. Disse: — Ou melhor... — Sim, com certeza! — Macon disse. — Incrível, não é? Ele se sentia tão embaraçado por ela que ficou satisfeito, num primeiro momento, em ver um outro rosto familiar lá atrás. Então se deu conta de quem era. Ali estava sua sogra.

— Ora! — ele disse. Ela ainda seria a Mãe Sidey? Sra. Sidey? Quem, por Deus? Por sorte, Lauren Canfield por acaso também a conhecia. — Paula Sidey — ela exclamou. — Não a vejo desde a corrida de cavalos do ano ado. — Sim, eu estive fora — a Sra. Sidey respondeu a ela, e depois baixou as pálpebras um pouco, como se puxasse uma cortina, antes de dizer: — Macon. — Como vai você? — Macon disse. Ela estava impecavelmente penteada, diligentemente bem cuidada, uma mulher de cabelo azul, calça esporte feita por alfaiate e gola alta. Ele antes se preocupava que Sarah fosse envelhecer do mesmo modo, desenvolver a mesma carapaça quebradiça, mas agora se via irando a determinação de Sidey. — Você está bem — ele lhe disse. — Obrigada — ela respondeu, tocando o penteado. — Imagino que você esteja aqui comprando seu guarda-roupa de primavera. — Oh! Macon está ajudando uma amiga! — Laurel Canfield cantarolou. Ela falava tão alegremente agora, de repente, que Macon suspeitou que acabava de se lembrar da relação da Sra. Sidey com ele. Olhou na direção da cabine de Alexander. Ele estava de meias, agora. Uma das meias se ergueu e sumiu, entrando numa onda de brim azul. — Não é mesmo difícil fazer compras para garotos? — ela perguntou. — Não sei dizer — a Sra. Sidey disse. — Nunca tive um. Estou aqui por causa das saias de brim. — Oh, as saias, bem, notei que estão oferecendo um... — Que amiga você está ajudando com as compras? — a Sra. Sidey perguntou a Macon. Macon não sabia o que dizer a ela. Olhou na direção da cabine. Se pelo menos Alexander pudesse ficar escondido ali para sempre, ele pensou. Como explicar aquele menor abandonado magricela, aquele pobre arremedo de criança que nunca chegaria aos pés de uma criança de verdade? Para contrariar, como sempre, Alexander escolheu aquele momento para sair. Usava uma camiseta acima do seu tamanho que escorregava um pouco num dos ombros, como se ele acabasse de sair de algum jogo violento. Seus jeans eram desconfortavelmente largos. Seu rosto, Macon viu, tinha de algum modo se enchido nas últimas semanas sem que ninguém notasse; e seu cabelo — que Macon começara a cortar em casa — tinha perdido aquele aspecto espinhento e crescera grosso e macio. — Eu estou maravilhoso! — Alexander exclamou.

Macon se virou para as mulheres e disse: — Na verdade, eu acho fazer compras para meninos um grande prazer.

16 Não há som mais tranquilo do que chuva no telhado, se você está dormindo a salvo na casa de outra pessoa. Macon ouviu o tamborilar suave; ouviu Muriel se levantar para fechar uma janela. Ela atravessou seu campo de visão como o brilho de faróis atravessando o teto, branca e esguia e pálida numa combinação grande e simples da Goodwill Industries. Ela fechou a janela, a quietude caiu sobre o quarto e ele voltou a dormir. Mas pela manhã seu primeiro pensamento foi: Oh, não! Chuva! No dia do casamento de Rose! Ele se levantou, tomando cuidado para não acordar Muriel, e olhou lá para fora. O céu estava claro mas uniforme, da cor de conchas de ostra — não era um bom sinal. O pequeno corniso esquelético nos fundos gotejava de cada broto e cada botão. Na casa vizinha, a velha pilha de sobras de madeira do Sr. Butler estava vários tons mais escura. Macon foi para o andar de baixo, andando na ponta dos pés pela sala, onde Claire roncava num emaranhado de cobertas. Ele preparou um bule de café e depois ligou para Rose pelo telefone da cozinha. Ela atendeu de imediato, bem acordada. — Você vai transferir o casamento para dentro de casa? — ele perguntou a ela. — Temos convidados demais para transferir para dentro de casa. — Por quê? Quantas pessoas vão? — Todo mundo que conhecemos. — Meu Deus, Rose. — Não se preocupe, o tempo vai melhorar. — Mas a grama está toda molhada! — Use galochas — ela lhe disse. E desligou. Desde que conhecera Julian ela se tornara tão aérea, Macon pensou. Tão petulante. Sem profundidade. Mas tinha razão quanto ao tempo. À tarde, havia um sol fraco e pálido. Muriel decidiu usar o vestido de mangas curtas que planejara, mas talvez com um xale jogado sobre os ombros. Queria que Alexander vestisse um terno — ele tinha um, completo, com colete e tudo. Mas ele protestou, bem como Macon. — Jeans e uma boa camisa branca. Isso é suficiente — Macon disse a ela.

— Bem, se você tem certeza. Ultimamente, ela andava acatando sua opinião sobre Alexander. Finalmente tinha cedido na questão dos tênis e tinha parado de policiar a dieta dele. Ao contrário de suas previsões, Alexander não ficou com os pés chatos no mesmo minuto e não foi acometido de um eczema galopante. O que acontecia de pior eram leves brotoejas de quando em quando. O casamento estava marcado para as 15 horas. Por volta das 14.h30 eles se pam a caminho, andando inibidos até o carro de Macon. Era sábado, e mais ninguém na vizinhança estava tão arrumado. O Sr. Butler estava trepado numa escada com um martelo e um saco de pregos. Rafe Daggett estava desconstruindo sua van. A indiana estava molhando com uma mangueira um tapete puído que estendera sobre a calçada, e depois desligou a água e levantou a bainha do sari e pisoteou o tapete, que assim irradiava pequenas explosões de gotas d’água. Cada carro que ava, aparentemente labutava sob uma carga pesada de colchões e móveis de jardim, lembrando a Macon aquelas formigas que voltam para o formigueiro com cargas quatro vezes maiores do que elas próprias. — Acho que teoricamente eu sou o padrinho — Macon disse a Muriel depois que começou a dirigir. — Você não mencionou isso! — E Charles vai entrar com ela. — É um casamento de verdade, então — Muriel disse. — Não só duas pessoas paradas lá, juntas. — É o que Rose disse que queria. — Eu não faria isso em absoluto. Ela olhou para o banco de trás e disse: — Alexander, pare de chutar o meu banco. Você está quase me deixando louca. Não — ela continuou, olhando para a frente —, se eu fosse me casar, sabe o que faria? Não diria a ninguém. Agiria como se houvesse anos que era casada. Daria um pulo num juiz de paz e voltaria como se nada tivesse acontecido e fingiria que tinha sido casada o tempo todo. — Mas esta é a primeira vez de Rose — Macon disse a ela. — Sim, mas mesmo assim as pessoas podem dizer: “Com certeza demorou bastante para você.” Posso ouvir minha mãe, agora; é o que ela diria, sem dúvida. “Com certeza demorou bastante para você. Achei que nunca fosse conseguir.” Se algum dia eu fosse me casar. — Macon freou num sinal. — Se eu algum dia decidisse me casar. Ele olhou para ela e ficou surpreso ao ver como estava bonita, com a maquiagem no rosto e o xale vistoso jogado em torno dos ombros. Seus sapatos de salto agulha tinham faixas estreitas e brilhantes nos tornozelos. Ele nunca

entendera por que faixas nos tornozelos eram tão sedutoras. A primeira pessoa que viram quando chegaram foi a mãe de Macon. Por alguma razão, não ocorrera a ele que Alicia seria convidada ao casamento da filha, e quando ela abriu a porta da frente ele levou um segundo para situá-la. Ela estava muito diferente, para começo de conversa. Tinha pintado o cabelo num tom de vermelho-tomate escuro. Usava uma longa túnica branca adornada com faixas vibrantes de cetim, e quando estendeu os braços para abraçá-lo, todo um aqueduto de braceletes de metal chacoalhou e deslizou pelo seu braço esquerdo. — Macon, querido! — ela disse. Tinha cheiro de gardênias murchando. — E quem seria esta aqui? — ela perguntou, espiando atrás dele. — Oh, hm, gostaria de te apresentar Muriel Pritchett. E Alexander, seu filho. — É mesmo? Um olhar educadamente curioso permaneceu em seu rosto. Era evidente que ninguém a informara. (Ou então ela não se dera ao trabalho de ouvir.) — Bem, já que eu pareço ser a chefe dos garçons — ela disse —, vou levá-los até os fundos, onde a noiva e o noivo estão. — Rose não está escondida? — Não, ela disse que não vê lógica em perder seu próprio casamento — Alicia respondeu, levando-os na direção dos fundos da casa. — Muriel, você conhece Macon há muito tempo? — Oh, mais ou menos. — Ele é bem formalista — Alicia comentou, em tom de confidência. — Todos os meus filhos são. Herdaram isso do lado Leary. — Eu acho que ele é bacana — Muriel disse. — Oh, bacana, sim. Muito bem — Alicia disse, lançando a Macon um olhar que ele não conseguiu decifrar. Ela havia dado o braço a Muriel; era sempre tão afeita ao contato físico. Os adornos de sua túnica quase casavam com o xale de Muriel. Macon teve um súbito pensamento aterrorizante: talvez na meia-idade ele estivesse começando a escolher pessoas do estilo de sua mãe, como se concluísse que Alicia — mulher tola, fútil, maçante — talvez tivesse as respostas, afinal. Mas não. Ele afastou o pensamento. E Muriel se desvencilhou do braço de Alicia. — Alexander? Você vem? Eles aram pelas portas duplas do solário. O quintal estava coberto de tons pastel — as velhinhas de Rose em vestidos claros, narcisos em buquês por toda parte, forsítia em plena floração ao longo do caminho. Dr. Grauer, o pastor de Rose, se adiantou e apertou a mão de Macon. — Aha! O padrinho — ele disse, e por trás dele se aproximava Julian, de preto. Não era a cor dele.

Seu nariz descascava. Devia ser a temporada de vela, novamente. Ele colocou um anel de ouro na palma da mão de Macon e disse: — Gostaria que você ficasse com isto. Por um momento Macon imaginou que ele realmente deveria ficar com aquilo. Então disse: — Ah, sim, o anel — e colocou-o dentro do bolso. — Não consigo acreditar que finalmente tenho um genro — Alicia disse a Julian. — Eu que sempre só tive nora. — Noras, mãe. — E também não consegui ficar com elas por muito tempo — Alicia disse. Quando Macon era pequeno, ele tinha medo que sua mãe estivesse lhe ensinando os nomes errados das coisas. — Chamam isto de veludo cotelê — ela dissera, abotoando o casaco novo dele, e ele pensara: Será que chamam mesmo? Palavra engraçada, na verdade, cotelê. Muito suspeita. Como ele podia ter certeza de que as outras pessoas não falavam uma outra língua inteiramente diferente lá fora? Ele examinara sua mãe desconfiado — a tola felpa de cachos dela e seus olhos vacilantes, instáveis. Agora chegavam os filhos de Porter, os três juntos; e atrás deles June, a mãe. Não era incomum convidar a ex-mulher de seu irmão ao seu casamento? Particularmente quando ela estava grande como um navio carregando o bebê de outro homem. Mas ela parecia estar se divertindo. Deu um beijinho no rosto de Macon e esticou a cabeça para Muriel, como se a avaliasse. — Crianças, este é Alexander — Macon disse. Esperava, contra todas as probabilidades, que eles de algum modo se entendessem e se tornassem amigos, o que evidentemente não aconteceu. Os filhos de Porter lançaram um olhar mal-humorado para Alexander e não disseram nada. Alexander meteu as mãos nos bolsos. June disse a Julian: “Sua noiva está tão radiante”, e Julian respondeu: “Está, não é mesmo?”, mas então Macon localizou Rose e achou que ela parecia tensa e desgastada, como a maioria das noivas parece, se as pessoas quisessem itir. Usava um vestido branco, no meio da canela, mas muito simples, e uma pequena massa de renda ou rede ou coisa do tipo na cabeça. Conversava com o ferragista deles. E sim, lá estava a moça que descontava os cheques deles no Mercantile Bank, e mais adiante, ao lado de Charles, estava a família de dentistas. Macon pensou em Mary Poppins — aquelas aventuras noturnas que ele costumava ler para Ethan, em que todos os comerciantes apareciam sem se comportar em nada como se comportavam durante o dia. — Não tenho certeza de que pesquisas tenham sido feitas sobre isso — Charles dizia ao dentista —, mas você já tentou polir os dentes com uma

camiseta antes de ar o fio dental? — Ahn... — Uma camiseta de algodão comum. Cem por cento algodão. Acho que você vai ficar impressionado quando eu tiver o meu próximo check-up. Veja, minha teoria é que... Muriel e June estavam discutindo cesariana. Julian perguntava a Alicia se ela já velejara na Intracoastal Waterway5. A Sra. Barrett dizia ao carteiro que a Leary Metals costumava fazer os mais bonitos telhados de zinco de Baltimore. E Sarah falava com Macon sobre o tempo. — Sim, eu fiquei com medo quando choveu, ontem à noite — Macon disse. Ou ele disse outra coisa; uma coisa ou outra... Ele olhava para Sarah. Na verdade, a estava consumindo: seus cachos lustrosos e seu rosto redondo e doce, e o pó sobre a penugem na linha de seu queixo. — Como anda você, Macon? — ela lhe perguntou. — Estou bem. — Está contente com o casamento? — Bem — ele disse —, estou se Rose estiver, eu acho. Mas não posso evitar me sentir... bem, Julian. Você sabe. — Sim, eu sei. Mas há mais coisas nele do que você pensa. Talvez ele seja uma ótima escolha. Quando ela estava sob esse tipo de luz, seus olhos ficavam tão claros que você parecia poder ver o fundo deles. Ele já sabia disso fazia muito tempo. Podiam ser seus próprios olhos; eram tão familiares. Ele disse: — E como anda você? — Estou bem. — Ora. Ótimo. — Sei que você está vivendo com alguém — ela disse, com uma voz equilibrada. — Ah! Sim, na verdade eu... sim. Estou. Ela sabia quem era, também, porque olhou então para Muriel e Alexander, que estavam atrás dele. Mas tudo o que disse foi: — Rose me contou quando me convidou. Ele perguntou: — E quanto a você? — Eu? — Está vivendo com alguém? — Na verdade, não. Rose se aproximou e tocou os braços deles, o que era atípico, vindo dela. — Estamos prontos, agora — ela falou. Disse a Macon: — Sarah é minha

dama de honra, cheguei a comentar com você? — Não, não comentou — Macon respondeu. Então ele e Sarah a acompanharam até um local sob um tulipeiro, onde Julian e o dr. Grauer estavam esperando. Havia uma espécie de altar improvisado ali, uma mesinha ou algo coberto com um pano; Macon não prestou muita atenção. Ficou parado ao lado do pastor, remexendo o anel em seu bolso. Sarah estava diante dele, olhando de modo sério para o seu rosto. Tudo parecia tão natural.

________________ 5 Canal navegável com 4.800 km de extensão que percorre a costa atlântica e a do golfo do México, nos Estados Unidos. (N. da T.)

17 Muriel disse: — Nunca lhe falei isso, mas antes de conhecer você eu estava saindo com outra pessoa. — Ah, é? Quem era? — Macon perguntou. — Era um cliente da Copiadora RapidEz. Levou os papéis do divórcio para fazer cópias, começamos a conversar e acabamos saindo juntos. O divórcio dele foi terrível. Uma confusão. A mulher dele o estava traindo. Ele disse que achava que nunca mais poderia confiar numa mulher. aram-se meses antes que ele sequer ficasse para ar a noite; ele não gostava de dormir no mesmo quarto com uma mulher. Mas pouco a pouco eu mudei tudo isso. Ele relaxou. ou a ser um homem inteiramente diferente. Mudou-se para a minha casa e começou a pagar as contas, pagou tudo o que eu ainda devia ao médico de Alexander. Começamos a falar em casamento. Então ele conheceu uma aeromoça e foi embora para se casar com ela em uma semana. — Entendo — Macon disse. — Era como se eu o tivesse, você sabe, curado, para que ele pudesse se mandar com outra mulher. — Ora — ele disse. — Você não faria nada desse tipo, faria, Macon? — Quem, eu? — Você se mandaria com outra pessoa? Você veria outra pessoa às minhas costas? — Oh, Muriel, é claro que não. — Você me deixaria e iria para casa ficar com a sua mulher? — Do que você está falando? — Você faria isso? — Não seja tola — ele respondeu. Ela espichou a cabeça e o avaliou. Seus olhos estavam alertas, brilhantes e sábios, como os olhos de algum animalzinho. Era uma manhã chuvosa de terça-feira e Edward, que ficava ressabiado com a chuva, insistia que não precisava sair, mas Macon o levou assim mesmo. Enquanto ele esperava no quintal debaixo do guarda-chuva, viu um casal jovem descendo a viela. Chamaram sua atenção porque caminhavam tão devagar, como se não se dessem conta de que estavam se molhando. O rapaz era magro e frágil,

usava jeans surrados e uma camisa branca macia. A moça usava um chapéu de palha reto com fitas e um vestido de algodão um tanto longo e mole. Eles balançavam as mãos, olhando apenas um para o outro. Toparam com um triciclo e se separaram para contorná-lo; só que em vez de simplesmente andar, a moça fez uma espécie de sapateado, girando a saia, e o rapaz girou também, riu e segurou outra vez a mão dela. Edward finalmente, finalmente urinou, e Macon o seguiu de volta para casa. Colocou seu guarda-chuva na pia da cozinha e se agachou para secar Edward com uma velha toalha de praia. Esfregou energicamente no começo, depois mais devagar. Então parou, mas continuou no chão, a toalha embolada na mão, o cheiro de cachorro molhado em toda parte ao seu redor. Quando perguntou a Sarah se estava vivendo com alguém, e Sarah respondera: “Na verdade não”, o que exatamente ela queria dizer? A chuva parou, eles colocaram a coleira em Edward e foram fazer compras. Muriel precisava de chinelos para usar em casa, com penas. — Vermelhos. De saltos altos. Bico fino — ela disse. — Meu Deus. Para quê? — Macon lhe perguntara. — Quero sair pela casa batendo os saltos, nas manhãs de domingo. Você não consegue visualizar? Gostaria de ser fumante. Gostaria que Alexander não fosse alérgico a fumaça. Sim, na verdade, ele conseguia visualizar. — Em seu quimono preto e dourado — ele disse. — Exato. — Mas acho que eles não vendem mais daqueles chinelos com penas. — Em brechós, vendem. — Ah. Certo. Ultimamente, o próprio Macon começara a gostar de brechós. No costumeiro mar de plástico, ele encontrara, até o momento, uma régua de carpinteiro dobrável, feita de buxo; um engenhoso cortador de biscoitos com uma roda, que evitava os espaços desperdiçados entre um e outro; e um nível de metal em miniatura para a caixa de ferramentas de Alexander. O ar lá fora estava quente e úmido. A Sra. Butler estava levantando os gerânios amontoados que cresciam no pneu caiado em seu jardim. A Sra. Patel, dessa vez sem o seu luminoso sari, desajeitada e pouco romântica em jeans Calvin Klein apertados e inchados, varria as poças nos degraus da frente de sua casa. E a Sra. Saddler estava parada diante da loja de ferragens, esperando que abrisse. — Imagino que você não tenha visto Dominick — ela disse a Muriel. — Recentemente, não.

— Noite ada ele não voltou para casa — a Sra. Saddler disse. — Aquele garoto quase me mata de preocupação. Não é o que vocês chamariam de um mau garoto — ela disse a Macon — mas me preocupa, sabe o que quero dizer? Quando está em casa ele fica presente demais, com aquelas botas barulhentas por toda parte, mas quando não está, fica muito distante. Vocês não acreditariam em como a casa fica: vazia. Cheia de ecos. — Ele vai voltar — Muriel disse. — Hoje à noite é a sua vez de ficar com o carro. — Oh, e quando ele está com o carro é pior ainda — a Sra. Saddler disse. — Então, cada sirene que eu escuto me pergunto se é Dommie. Sei como ele faz curvas cantando pneus! Conheço essas garotas com quem ele sai, que gostam de velocidade! Eles a deixaram ainda parada lá, remexendo distraída em sua bolsa de moedas, embora o dono da loja de ferragens tivesse destrancando a porta a esta altura e estivesse abaixando o toldo. Do lado de fora de uma loja chamada Re-Runs, mandaram Edward ficar. Ele obedeceu, com a aparência de quem estava em desvantagem, enquanto entravam. Muriel remexeu em pilhas de sapatos curvos e quebradiços que tinham endurecido com o formato dos pés de outras pessoas. Ela tirou seus próprios sapatos e colocou os pés num par de sandálias prateadas para a noite. — O que você acha? — ela perguntou a Macon. — Achei que você estava procurando chinelos. — Mas o que você acha destes? — Posso viver sem — ele disse. Estava entediado porque nas Re-Runs não havia nada além de roupas. Muriel abandonou os sapatos e foi para a loja vizinha, a Garage Sale Incorporated. Macon tentou inventar uma necessidade para o arquivo Rolodex de metal que encontrou num monte de correntes para pneus. Será que podia usálo para seus guias, de algum modo? E deduzir a despesa dos impostos. Muriel pegou uma mala de vinil castanho-amarelada com beiradas arredondadas; fez com que Macon se lembrasse de caramelos parcialmente chupados. — Será que eu devia comprar isto? — ela perguntou. — Pensei que você quisesse chinelos. — Mas para viajar. — Desde quando você viaja? — Sei para onde você vai em seguida — ela disse. Aproximou-se dele, as duas mãos segurando a alça da mala. Parecia uma garota muito jovem num ponto de ônibus, por exemplo, ou pedindo carona numa estrada.

— Queria perguntar se posso ir com você. — Para o Canadá? — Eu quis dizer o lugar seguinte. França. Ele colocou o Rolodex no chão. (Menções à França sempre o deprimiam.) — Julian disse! — ela recordou-lhe. — Disse que está chegando a hora de ir à França de novo. — Você sabe que não posso pagar pela sua ida. Muriel colocou a mala de volta no lugar e eles saíram da loja. — Mas só dessa vez — ela disse, andando rapidamente, ao lado dele. — Não custaria muito! Macon pegou a coleira de Edward e fez um gesto para ele se levantar. — Custaria uma nota — ele continuou —, para não mencionar o fato de que você teria que faltar ao trabalho. — Não, não teria. Eu pedi demissão. Ele olhou para ela. — Demissão? — Bem, no Miau-Au. E coisas como George e o treinamento de cães é só eu remarcar; se eu fosse viajar, poderia simplesmente... — Você pediu demissão do Miau-Au? — E daí? Ele não podia explicar o súbito peso que caiu sobre ele. — Eles não pagavam muito — Muriel disse. — E você faz a maior parte das compras de casa agora e me ajuda com o aluguel e tudo mais; eu não precisava do dinheiro. Além disso, me tomava tanto tempo! Tempo que eu podia ar com você e Alexander! Ora, eu estava voltando para casa à noite literalmente morta de cansaço, Macon. aram pelo Salão de Beleza Methylene’s, por uma agência de seguros, por uma loja de solventes. Edward lançou um olhar interessado a um gato grande, com a papada pendurada, aquecendo-se no capô de uma picape. — Figurativamente — Macon disse. — Hã? — Você estava figurativamente morta de cansaço. Jesus, Muriel, você é tão imprecisa. Tão desleixada. E como pôde pedir demissão do seu emprego desse jeito? Como pôde simplesmente pressupor tudo isso? Você nem sequer me avisou! — Ah, não faça tempestade em copo d’água — Muriel protestou. Chegaram a sua loja favorita, um buraco na parede, sem nome, com uns chapéus empoeirados amontoando-se na vitrine. Muriel ia entrar, mas Macon ficou onde estava.

— Você não vem? — ela lhe perguntou. — Vou esperar aqui. — Mas esta é a loja com todas aquelas engenhocas! Ele não disse nada. Ela suspirou e desapareceu. Vê-la ir foi como se livrar de um peso enorme. Ele se agachou para coçar Edward atrás das orelhas, e depois se levantou e estudou um cartaz eleitoral amarelado de sol, como se contivesse alguma fascinante mensagem codificada. Duas negras aram por ele, empurrando carrinhos cheios de roupa suja. — Estava tão quente quanto hoje, neste momento em que estou falando com você, mas ela usava um casaco de pele muito grosso... — Maa-con. Ele se virou na direção da porta da loja. — Oh, Maaa-con! Ele viu uma luva com separação só para o polegar, uma daquelas luvas de criança feitas para parecerem fantoches. A palma era uma boca vermelha de feltro que se abria para dizer, com voz esganiçada: — Macon, por favor não fique zangado com Muriel. Macon gemeu. — Entre nesta loja bacana com ela — o fantoche insistiu. — Muriel, acho que Edward está ficando inquieto agora. — Há uma porção de coisas para comprar aqui! Alicates e chaves inglesas e réguas em T... há um martelo silencioso. — O quê? — Um martelo que não faz barulho. Você pode martelar pregos na calada da noite. — Ouça... — Macon disse. — Há uma lente de aumento toda rachada e quebrada, e quando você olhar para coisas quebradas vai jurar que estão inteiras outra vez. — Falando sério, Muriel. — Não sou Muriel! Sou a Luvinha Lucinha! Macon, você não sabe que Muriel sempre se vira? — o fantoche lhe perguntou. — Você não sabe que ela poderia arranjar um outro emprego amanhã, se quisesse? Então entre! Vamos! Há um canivete aqui com sua própria pedra de amolar. — Oh, pelo amor de Deus — Macon disse. Mas deu uma risadinha meio ressentida. E entrou na loja. Ao longo dos dias seguintes ela continuou falando da França a toda hora. Mandou a ele uma carta anônima com letras recortadas de revistas: Não

EsQUeça dE comPRAr agens aéREas para MuRiel. (E a revista denunciadora, com pequenos blocos recortados das páginas, ainda estava sobre a mesa da cozinha.) Ela lhe pediu que pegasse as chaves em sua bolsa e quando ele abriu a bolsa encontrou fotografias, dois quadrados brilhantes de papel fino, mostrando os olhos de Muriel recortados. Fotos de aporte, evidentemente. Ela devia querer que ele visse; estava observando com muita atenção. Mas tudo o que ele fez foi colocar as chaves em sua mão sem comentários. Ele tinha que irá-la. Alguma vez conhecera uma lutadora assim? Estava indo fazer compras de supermercado com ela mais tarde do que o habitual, certa noite, e quando atravessavam uma área mais escura um garoto saiu do vão de uma porta. — e tudo o que você tem na bolsa — ele disse a Muriel. Macon foi pego de surpresa; o garoto mal ava de uma criança. Ele congelou, agarrando o saco de compras. Mas Muriel disse: — Uma ova que eu o! — e girou a bolsa pela alça e acertou o garoto no queixo. Ele levou a mão ao rosto. — Você vá para casa neste instante, ou vai se arrepender de ter nascido — Muriel lhe disse. Ele escapuliu, olhando para ela lá atrás com uma expressão desconcertada. Quando Macon recuperou o fôlego, disse a Muriel que ela era uma tola. — Ele talvez tivesse uma arma, até onde você podia saber? — ele disse. — Qualquer coisa podia ter acontecido! Os garotos têm menos pena do que os adultos; você vê isso todos os dias nos jornais. — Ora, tudo acabou bem, não acabou? — Muriel perguntou. — Por que você está tão zangado? Ele não tinha certeza. Supunha que devia estar zangado consigo mesmo. Não tinha feito nada para protegê-la, nada forte ou cavalheiresco. Não tinha pensado tão rápido quanto ela, não tinha pensado em absoluto, na verdade. Enquanto Muriel... bem, Muriel nem sequer parecera surpresa. Talvez caminhasse por aquela rua esperando encontrar um vizinho aqui, um cachorro de rua ali, um assaltante logo adiante — tudo igualmente parte da sua vida. Ele sentiu um respeito imenso por ela, e se sentiu diminuído. Muriel só seguiu em frente, cantarolando “Great Speckled Bird” como se nada de mais tivesse acontecido. — Não acho que Alexander esteja recebendo uma educação apropriada — ele disse a ela, certa noite. — Oh, ele está bem. — Pedi a ele que calculasse que troco dariam de volta quando compramos leite hoje, e ele não tinha a menor ideia. Não sabia nem mesmo que tinha que

fazer uma subtração. — Bem, ele só está na segunda série — Muriel disse. — Acho que ele devia mudar para uma escola particular. — Escolas particulares custam dinheiro. — E daí? Eu pago. Ela parou de virar o bacon e olhou para ele. — O que você está dizendo? — ela perguntou. — Como? — O que você está dizendo, Macon? Está dizendo que vai assumir um compromisso? Macon pigarreou e disse: — Compromisso. — Alexander ainda tem mais dez anos de escola pela frente. Está dizendo que estará por aqui durante todos os dez anos? — Hm... — Não posso simplesmente colocá-lo numa escola e tirá-lo de novo a cada capricho seu. — Ele ficou em silêncio. — Diga-me apenas o seguinte — ela falou: — Você nos vê casados, em algum momento? Isto é, depois que o seu divórcio sair? Ele respondeu: — Ah, bem, casamento, Muriel... — Não vê, não é mesmo? Você não sabe o que é que você quer. Num minuto você gosta de mim e no seguinte não gosta mais. Num minuto tem vergonha de ser visto comigo e no seguinte acha que sou a melhor coisa que já aconteceu com você. — Ele olhou para ela. Nunca imaginara que ela o lesse com tanta clareza. — Você acha que pode ficar simplesmente à deriva, dia após dia, sem planos — ela continuou: — Talvez amanhã você esteja aqui, talvez, não. Talvez apenas volte para Sarah. Oh, sim! Eu vi vocês dois no casamento de Rose. Pensa que não vi como você e Sarah olhavam um para o outro? Macon disse: — Tudo o que estou dizendo é... — Tudo o que eu estou dizendo — Muriel o interrompeu — é que você tome cuidado com o que promete ao meu filho. Não fique fazendo promessas que não pretende cumprir. — Mas só quero que ele aprenda a subtrair! — ele disse. Ela não respondeu, e assim a última palavra ecoou no ar durante alguns instantes. Subtrair. Um som plano, agudo e vazio que deprimiu Macon. No jantar ela estava calada demais; até mesmo Alexander estava quieto, e pediu licença para se levantar no minuto em que terminou seu sanduíche de bacon, alface e tomate. Macon, porém, ficou na cozinha. Muriel estava com a pia cheia d’água. Ele foi solícito: — Quer que eu seque?

Sem qualquer tipo de aviso, ela atirou com toda força a esponja molhada no rosto dele. Macon disse: — Muriel? — Saia daqui! — ela gritou, lágrimas cobrindo seus cílios, e se virou e afundou as mãos na água, tão quente que fumegava. Macon se retirou. Foi para a sala de estar, onde Alexander assistia à TV, e ele chegou para o canto do sofá a fim de abrir espaço. O garoto não disse nada, mas Macon podia notar que ele tinha ouvido, pelo modo como ficava tenso a cada retinir que vinha da cozinha. Depois de um momento o barulho acabou. Macon e Alexander se entreolharam. Fez-se silêncio; uma única voz murmurava. Macon se levantou e voltou para a cozinha, andando mais silenciosamente do que o habitual e muito alerta, do modo como um gato se arrasta de volta depois que foi escorraçado do colo de alguém. Muriel estava falando no telefone com sua mãe. Sua voz estava alegre e animada mas um tom mais grave do que o habitual, como se ela se recuperasse de uma gripe. — Então, seja como for — ela disse —, perguntei-lhe que tipo de trabalho o cachorro dela estava lhe dando e a senhora respondeu: “Oh, nenhum trabalho”, então perguntei a ela: “Bem, qual o problema dele, então?”, e a senhora disse: “Nenhum problema de verdade.” Eu insisti: “Minha senhora, a senhora deve ter ligado para mim por algum motivo.” Ela disse: “Oh. Sim. Isso.” “Na verdade”, falou, “eu estava pensando em quando ele faz.” Eu perguntei: “Faz?” Ela continuou: “Sim, quando ele faz o número 1. Ele faz como as cachorrinhas fazem, não levanta a perna.” Eu disse a ela: “Bem, deixe-me ver se entendi direito. A senhora me telefonou para eu ensinar seu cachorro a levantar a perna quando faz xixi.” — Sua mão livre não parava de gesticular enquanto ela falava, como se imaginasse que sua mãe podia vê-la. Macon se aproximou por trás e ou os braços ao redor dela, e ela inclinou o corpo para trás, contra o seu. — Oh, eu não sei o que é tédio, vou te dizer — falou para o telefone.

Naquela noite, ele sonhou que viajava num país estrangeiro, só que parecia ser uma mistura de todos os países onde já tinha estado e alguns que não conhecia. Os vastos espaços estéreis do aeroporto Charles de Gaulle chilreavam com aqueles arinhos que ele vira no terminal em Bruxelas; e quando pôs os pés do lado de fora, estava no mapa verde do Havaí de Julian, com dançarinas

nativas, maiores do que o normal, se balançando ao lado dos pontos que marcavam várias atrações turísticas. Enquanto isso sua voz, neutra e monótona, murmurava de modo constante: Na Alemanha o viajante comercial deve ser pontual em todos os seus compromissos, na Suíça deve chegar cinco minutos mais cedo, na Itália atrasos de várias horas não são incomuns... Ele acordou. Estava escuro como breu, mas através da janela aberta ouviu uma risada distante, um resto de música, vivas distantes como se algum tipo de jogo estivesse ocorrendo. Apertou os olhos na direção do radiorrelógio: 15h30. Quem estaria jogando a essa hora? E naquela rua, aquela rua surrada e triste onde nada dava certo para ninguém, onde os homens tinham empregos que não lhes permitiam avançar, ou nenhum emprego em absoluto, as mulheres engordavam e as crianças cresciam de maneira ruim. Mas um outro viva se ouviu, e alguém cantou um verso de uma música. Macon se surpreendeu sorrindo. Virou-se para Muriel e fechou os olhos; dormiu sem ter sonhos pelo resto da noite. O carteiro tocou a campainha e entregou um pacote comprido, em formato de tubo, endereçado a Macon. — O que é isto? — Macon perguntou. Voltou para a sala de estar, franzindo a testa para a etiqueta. Muriel lia um livro chamado Dicas de beleza das estrelas. Levantou os olhos e disse: — Por que não abre e descobre. — Ah? Isso é coisa sua? Ela apenas virou uma página. Mais um apelo à viagem à França, ele supôs. Tirou a fita adesiva de uma das extremidades e sacudiu o pacote até um cilindro de papel brilhoso escorregar de lá. Quando ele desenrolou, viu uma foto em cores de dois filhotes de cachorro num cesto, com o nome VITAMINAS PARA ANIMAIS DO DR. MACK em cima e um calendário de janeiro embaixo. — Não estou entendendo — ele disse a Muriel. Ela virou outra página. — Por que você haveria de me mandar um calendário para um ano que já vai pela metade? — Talvez haja algo escrito nele — ela lhe disse. Ele folheou os meses de fevereiro, março, abril. Nada ali. Maio. Depois junho: alguma coisa rabiscada a tinta num sábado. — Casamento — ele leu em voz alta. — Casamento de quem? — Nosso? — ela lhe perguntou. — Oh, Muriel...

— Vai fazer um ano que você está separado, Macon. Você já vai poder pedir o divórcio. — Mas Muriel... — Sempre quis me casar em junho. — Muriel, por favor, não estou preparado para isto! Não acho que um dia vou estar. Veja, não acho que o casamento devia ser comum do jeito que é; realmente acho que devia ser a exceção à regra; ah, casais perfeitos poderiam se casar, talvez, mas quem é um casal perfeito? — Você e Sarah, imagino — Muriel respondeu. O nome trouxe o rosto calmo de Sarah, redondo como uma margarida. — Não, não... — ele disse, sem energia. — Você é tão egoísta! — Muriel gritou. — Você é tão egocêntrico! Tem todas essas razões extravagantes para nunca fazer uma única coisa que eu queira! Então ela atirou o livro no chão e correu para o andar de cima. Macon ouviu os ruídos cuidadosos, como os de um rato, que Alexander fazia ao andar nas pontas dos pés pela cozinha, preparando um lanche. A irmã de Muriel, Claire, chegou na soleira da porta com uma mala transbordando de roupas, e os olhos vermelhos de tanto chorar. — Nunca mais falo com a mamãe — ela disse. ou por eles e entrou em casa. — Querem saber o que aconteceu? Bem, eu estava saindo com um cara, sabem, Claude McEwen. Só que não contei para a mamãe, vocês sabem como ela tem medo que eu fique igual a Muriel. Então na noite ada, quando ele veio me buscar, eu pulei no seu carro e ela por acaso me viu da janela, reparou que ele tinha um adesivo no carro onde se lia: edgewood. Isso porque ele ia a uma escola chamada Preparatória Edgewood, em Delaware, mas a mamãe achou que era o Arsenal Edgewood e portanto ele devia ser do exército. Então, seja como for, hoje de manhã acordei e lá estava ela, furiosa, dizendo: “Eu sei o que você andou fazendo! Fora de casa tarde da noite com o General!”, e eu disse: “Quem? O quê?” Mas ninguém consegue fazê-la parar depois que começa. Ela me disse que eu estava de castigo para o resto da vida e não ia poder ver o General nunca mais, ou ela ia levá-lo à corte marcial e arrancar todas as estrelas de seu uniforme, então num piscar de olhos eu arrumei minhas roupas... Macon, ouvindo com ar ausente enquanto Edward suspirava aos seus pés, teve uma súbita visão de sua vida como sendo rica e plena e surpreendente. Ele gostaria de mostrar isso a alguém. Queria fazer um gesto com o braço e dizer: “Está vendo?” Mas a pessoa a quem ele queria mostrar era Sarah. Rose e Julian tinham voltado da lua de mel; estavam dando um jantar de

família, e Macon e Muriel foram convidados. Macon comprou uma garrafa de ótimo vinho como presente para a dona da casa. Colocou a garrafa no balcão. Muriel se aproximou e disse: — O que é isso? — Vinho para Rose e Julian. — Custou U$ 36,99! — ela disse, examinando a etiqueta. — Sim, bem, é francês. — Eu não sabia que um vinho podia custar U$ 36,99. — Imaginei que como, você sabe, é a nossa primeira visita ao apartamento deles... — Você com certeza tem a sua família em grande consideração — Muriel disse. — Sim, é claro. — Você nunca comprou vinho para mim. — Não sabia que você queria; você me disse que deixa seus dentes com uma sensação áspera. Ela não discutiu. Mais tarde naquele dia ele por acaso notou que a garrafa tinha mudado de lugar. E que estava aberta. E que estava pela metade. A rolha estava ao lado, ainda empalada no saca-rolhas. De um copinho fosco de suco saía o cheiro de uvas. Macon chamou: — Muriel? — O quê? — ela respondeu, da sala de estar. Ele foi até a porta da sala de estar. Ela assistia a um jogo de beisebol com Alexander. Ele disse: — Muriel, você andou bebendo o vinho que eu comprei? — Sim. Ele disse: — Por que, Muriel? — Oh, eu só tive um impulso irresistível de experimentar — ela respondeu. Então ela o fitou com olhos que eram duas fendas, levantando o queixo. Ele sentia que ela o desafiava a tomar alguma atitude, mas ele não disse nada. Pegou as chaves do carro e saiu para comprar outra garrafa. Macon sentia-se tímido ao ir àquele jantar, como se Rose tivesse se transformado numa estranha. Levou mais tempo do que o habitual para se vestir, sem conseguir se decidir entre duas camisas, e Muriel parecia estar tendo algum trabalho também. Ficava colocando e tirando roupas; tecidos de cores vivas começaram a se amontoar na cama e no chão ao redor dela. — Oh, Deus, eu gostaria de ser uma outra pessoa inteiramente diferente — ela suspirou. Macon, concentrado no nó de sua gravata, nada disse. A foto dela quando

bebê abria um sorriso na direção dele da moldura do espelho. Por acaso ele notou a data na margem: ago 6º. Mil novecentos e sessenta. Quando Muriel tinha 2 anos de idade, Macon e Sarah já estavam noivos. No andar de baixo, Dominick Saddler estava sentado no sofá com Alexander. — Agora, esta aqui é a sua cera — ele dizia. Ergueu uma lata. — Você nunca vai querer polir seu carro com outra coisa que não seja cera. E aqui temos uma fralda. Fraldas dão bons trapos porque quase não soltam fios. Eu em geral compro uma dúzia de cada vez na Sears. E camurça: bem, você conhece camurça. O que você faz é o seguinte, você arranja esses apetrechos e uma boa cerveja e uma garota, e vai para Loch Raven. Então estaciona ao sol e tira a camisa, e você e a garota começam a polir o carro. Não conheço nenhum jeito mais agradável de ar uma tarde de primavera. A versão de Dominick de uma história para a hora de dormir, Macon supunha. Ele estava tomando conta de Alexander naquela noite. (As gêmeas Butler tinham encontros, e Claire saíra com o General. Como todo mundo se referia a ele, agora.) Como pagamento, Dominick poderia usar o carro de Muriel por uma semana; o mero dinheiro nunca o teria persuadido. Ele se sentava, encurvado, ao lado de Alexander, com a fralda estendida sobre um joelho, os músculos salientes sob uma camiseta onde se lia guerreiro de fim de semana. Um boné de marinheiro grego estava virado para trás na sua cabeça, com um button do Judas Priest preso na viseira. Alexander parecia encantado. Muriel desceu a escada com os saltos batendo nos degraus; chegou esticando o pescoço para ver se sua combinação estava aparecendo. — Esta roupa está boa? — ela perguntou a Macon. — Está muito bonita — ele disse, o que era verdade, embora também parecesse totalmente improvável nela. Era claro que decidira tomar Rose como modelo. Tinha prendido o cabelo atrás, num coque baixo, e usava um vestido delgado cinza, com ombreiras. Só as sandálias de salto agulha pareciam suas; provavelmente ela não tinha sapatos tão bem-comportados quanto os rasteiros de Rose, iguais aos de escolares. — Quero que você me diga se alguma coisa não está bem — ela disse a Macon. — Alguma coisa que você ache que não seja de bom gosto. — Absolutamente nada — Macon lhe assegurou. Ela beijou Alexander, deixando uma marca vermelho-escura em sua bochecha. Conferiu-se uma última vez no espelho ao lado da porta de entrada, enquanto gritava: — Não deixe ele ficar acordado até muito tarde, Dommie; não deixe ele assistir a nada assustador na TV... Macon disse: — Muriel.

— Eu pareço a ira divina. As crianças Leary tinham sido criadas para acreditar que, quando um convite envolvesse uma refeição, os convidados deviam chegar exatamente na hora. Não importava que com frequência surpreendessem sua anfitriã ainda de bobs; continuavam fazendo aquilo que lhes fora ensinado. Então Macon apertou a campainha elétrica no saguão exatamente às 18h27, e Porter e Charles se juntaram a ele diante do elevador. Os dois disseram a Muriel que era bom vê-la. Então subiram num silêncio lúgubre, os olhos fixos nos números em cima da porta. Charles levava uma planta de jade num vaso, e Porter, uma outra garrafa de vinho. — Não é emocionante? — Muriel disse. — Somos as primeiras pessoas que eles convidam. — Em casa nós agora estaríamos assistindo ao noticiário noturno da CBS — Charles disse a ela. Muriel não conseguia pensar em nenhuma forma de responder àquilo. Às 18h30 em ponto eles tocavam a campainha, parados num corredor silencioso acarpetado de branco amarelado. Rose abriu a porta e exclamou: “Eles chegaram!” e tocou de leve o rosto no rosto de cada um. Usava o avental debruado de renda da avó Leary e cheirava a sabão de lavanda, o mesmo de sempre. Mas havia uma faixa de queimadura de sol descascando no alto de seu nariz. Julian, elegante e informal usando gola alta azul-marinho e calças brancas (quando ainda nem era o Memorial Day), preparou as bebidas enquanto Rose se retirou para a cozinha. Era um daqueles apartamentos ultramodernos em que os cômodos todos se comunicavam uns com os outros, então eles podiam vê-la esvoaçando para lá e para cá. Julian mostrou fotos do Havaí. Ou ele usara um filme de qualidade inferior ou o Havaí era um lugar diferente de Baltimore, porque algumas das cores estavam distorcidas. As árvores pareciam azuis. Na maioria das fotos Rose estava diante de canteiros de flores ou arbustos floridos, usando um vestido sem mangas branco que Macon nunca tinha visto anteriormente, segurando os próprios braços e sorrindo um sorriso largo demais, de modo que parecia mais velha do que era. — Eu disse a Rose que vocês vão pensar que ela foi sozinha para a lua de mel — Julian falou. — Fui eu que tirei as fotos porque Rose nunca aprendeu como usar minha câmera. — Não aprendeu? — Macon perguntou. — Era um daqueles modelos alemães com todos aqueles botões. — Ela não conseguia saber para que serviam os botões? — Eu disse a ela: “As pessoas vão achar que eu nem estava lá.”

— Ora, Rose podia ter desmontado a câmera e remontado duas vezes — Macon disse. — Não, esse era um daqueles modelos alemães com... — Não era construída de forma muito lógica — Rose exclamou, da cozinha. — Ah — Macon disse, recostando-se. Ela entrou na sala com uma bandeja e colocou-a na mesa de centro de vidro. Então se ajoelhou e começou a espalhar patê em biscoitinhos salgados. Havia alguma mudança no modo como ela se movia, Macon notou. Ela estava mais graciosa, mas também mais consciente de si mesma. Ofereceu o patê primeiro a Muriel, depois a cada um de seus irmãos, e por fim, a Julian. — No Havaí eu comecei a aprender a velejar — ela contou. Pronunciou os dois is (de Hawaii), separadamente; Macon achou que soava afetado. — Agora vou praticar na Baía. — Ela está tentando encontrar seu equilíbrio no mar — Julian disse. — Tem tendência a ficar nauseada. Macon mordeu o biscoito. O patê estava algo familiar. A textura era áspera, mas o gosto era delicado; havia uma espécie de fluidez no sabor, que ele acreditava vir de uma grande quantidade de manteiga. A receita era de Sarah. Ele ficou sentado imóvel, sem mastigar. Foi inundado por uma súbita mistura de estragão, creme e casa. — Ah, eu sei exatamente pelo que você está ando — Muriel disse a Rose. — Só preciso olhar para um barco para me sentir marejada. Macon engoliu e olhou para o carpete entre seus pés. Esperou que a corrigissem, mas ninguém corrigiu. Isso era ainda pior. Na cama, ela disse: — Você nunca me deixaria, não é mesmo? Você pensaria em me deixar? Não vai ser como os outros, vai? Você promete que não vai me deixar? — Sim, sim — ele disse, flutuando para dentro e para fora dos sonhos. — Você me leva a sério, não leva? Não leva? — Oh, Muriel, pelo amor de Deus... — ele disse. Mas mais tarde, quando ela se virou no sono e se afastou dele, seus pés seguiram os dela por conta própria, até o outro lado da cama.

18 Macon estava sentado num quarto de hotel em Winnipeg, Manitoba, quando o telefone tocou. Na verdade ele precisou de um segundo para se dar conta de que era o telefone. Aparentemente estava se divertindo muito com um objeto misterioso que acabara de descobrir: um cilindro de metal pintado de marfim, preso à parede acima da cama. Nunca tinha notado uma coisa daquelas antes, embora tivesse estado naquele hotel em duas viagens anteriores. Quando tocou o cilindro para ver o que era, ele rodou, desaparecendo na parede, de onde uma lâmpada surgiu, acesa. No mesmo instante, o telefone tocou. Macon teve um instante de confusão durante o qual achou que a lâmpada estava tocando. Então viu o telefone na mesa de cabeceira. Mas ainda estava confuso. Ninguém tinha o seu número, até onde se lembrava. Ele pegou o fone do gancho e disse: — Sim? — Macon. Seu coração deu um solavanco. Ele disse: — Sarah? — Estou te ligando num momento ruim? — Não, não... como você sabia onde eu estava? — Bem, Julian achou que você devia estar ou em Toronto ou em Winnipeg a esta altura — ela disse —, então olhei no seu último guia, e sabia que os hotéis onde você comentava haver barulhos noturnos eram aqueles em que se hospedava, então... — Algo errado? — ele perguntou. — Não, só precisava de um favor. Estaria tudo bem com você se eu me mudasse de volta para nossa casa? — Hm... — Só um lugar para ficar — ela disse, apressadamente. — Só por um tempinho. Meu contrato de aluguel termina no fim do mês e não consigo encontrar um novo apartamento. — Mas a casa está uma bagunça — ele lhe disse. — Ah, eu cuido disso. — Não, quero dizer que uma coisa aconteceu no inverno, os canos estouraram ou algo do gênero, o teto caiu... — Sim, eu sei. — Você sabe?

— Seus irmãos me disseram. — Meus irmãos? — Fui perguntar a eles onde você estava, já que eles não atendia o telefone. E Rose disse que ela própria esteve na casa e... — Você foi à casa de Rose, também? — Não, Rose estava na casa dos seus irmãos. — Oh. — Ela está morando lá por algum tempo. — Entendo — ele disse. Depois... — Ela está o quê? — Bem, June teve um bebê — Sarah disse —, então pediu a Porter que ficasse com as crianças por um tempo. — Mas o que isso tem a ver com Rose? — ele disse. — Será que Rose imagina que Porter não pode abrir uma lata de sopa para eles? E por que June os mandou embora? — Ah, você conhece June, ela sempre foi meio cabeça de vento. Ela parecia a antiga Sarah ao dizer aquilo. Até agora havia algo de cuidadoso em sua voz, algo cauteloso e pronto para se retirar, mas agora havia um certo tom risonho e confiante. Macon se recostou no travesseiro. — Ela disse às crianças que precisa de tempo para criar os elos — Sarah contou. — Tempo para quê? — Ela e o marido precisam criar elos com o bebê. — Meu Deus! — Macon exclamou. — Quando Rose ouviu isso, disse a Porter que ia para casa. Seja como for, ela não estava achando que os rapazes estavam comendo direito, Porter e Charles; e também há uma rachadura na lateral da casa, e ela queria consertá-la antes que aumentasse. — Que tipo de rachadura? — Macon perguntou. — Uma pequena rachadura na alvenaria; não sei. Quando a chuva vem de uma certa direção, a água vaza no teto da cozinha, diz Rose, e Porter e Charles estavam planejando consertar, mas não conseguiam entrar num acordo quanto à melhor forma. Macon tirou os sapatos e colocou os pés em cima da cama. Disse: — Então Julian está vivendo sozinho agora ou o quê? — Sim, mas ela leva comida para ele — Sarah continuou. Depois disse: — Você pensou no assunto, Macon? O coração dele deu um outro solavanco: — Se eu pensei em que assunto? — Em eu ficar na casa. — Ah. Bem. Está tudo bem por mim, mas não sei se você se dá conta do

tamanho do estrago. — Mas vamos ter que consertar de todo modo, se tivermos que vendê-la. Então, eis o que eu estava pensando: eu mesma poderia pagar pelo conserto se o seguro não cobrir tudo, usando o dinheiro que serviria para o aluguel. Parece justo? — Sim, é claro — Macon respondeu. — E talvez eu arranje alguém para limpar os estofados — ela disse. — Sim. — E os tapetes. — Sim. Depois de todos aqueles anos, ele sabia quando ela estava se encaminhando para alguma coisa. Reconheceu aquele tom distraído que significava que ela estava se preparando para o que realmente queria dizer. — Aliás — ela falou —, o advogado mandou os papéis. — Ah. — Os acertos finais. Você sabe. Coisas que eu tenho que . — Sim. — Eu fiquei um pouco abalada. — Ele não disse nada. — Isto é, é claro que eles iam chegar; já faz quase um ano; na verdade ele me ligou antes e disse que iam chegar, mas quando os vi em preto e branco, me pareceram tão frios. Não levaram em conta os sentimentos envolvidos e acho que eu não esperava por isso. Macon teve a sensação de que algum perigo se aproximava, algo com que ele não poderia lidar. Disse: — Ahs sim! Certamente! Isso parece uma reação natural. Então, seja como for, boa sorte com a casa, Sarah. E desligou rapidamente.

Sua colega de assento no voo para Edmonton era uma mulher que tinha medo de avião. Ele soube disso antes da decolagem, antes que olhasse na direção dela. Ele olhava pela janela, quieto como de costume, e a ouviu engolindo em seco repetidas vezes. Ela não parava de apertar e relaxar as mãos sobre os braços da poltrona e ele também podia sentir isso. Por fim, virou-se para ver quem era. Um par de olhos envoltos por bolsas. Uma mulher muito velha e bojuda, num vestido florido, olhava intensamente para ele, esperava talvez que ele se virasse. — Você acha que este avião é seguro — ela disse num tom uniforme, não

necessariamente fazendo uma pergunta. — É perfeitamente seguro — ele respondeu. — Então por que todos esses avisos por aí? Oxigênio. Coletes salva-vida. Saídas de emergência. Estão visivelmente esperando o pior. — São só normas federais — Macon disse. Então começou a pensar na palavra “federal”. No Canadá, será que isso se aplicava? Ele franziu a testa para o assento diante dele, refletindo sobre o assunto. Por fim, disse: — Normas governamentais. Quando conferiu a expressão da mulher, para ver se aquilo fazia mais sentido para ela, viu que ela devia estar encarando-o o tempo todo. Seu rosto investia na direção dele, cinzento e desesperado. Ele começou a se preocupar com ela. — Gostaria de uma taça de xerez? — ele perguntou. — Eles não nos dão xerez até termos decolado. A essa altura já vai ser tarde demais. — Só um minuto — ele disse. Curvou-se e abriu o zíper de sua bolsa, e do kit de barbear tirou um frasco plástico de viagem. Era algo que ele sempre levava, para o caso de noites insones. Mas nunca tinha usado —t não porque nunca tinha tido uma noite insone, mas porque ficava guardando-o para alguma ocasião ainda pior do que o que quer que fosse a situação atual, algo que na verdade nunca chegava. Como seus outros suprimentos de emergência (o kit de costura do tamanho de uma caixa de fósforos, o pequeno tablete branco de Lomotil, contra diarreia), aquele frasco estava sendo guardado para a real emergência. Na verdade, sua tampa de metal estava enferrujada por dentro, como ele descobriu quando a removeu. — Temo que isto aqui tenha... azedado um pouco, ou o que quer que aconteça com o xerez — ele disse à velha. Ela não respondeu, mas continuou olhando fixamente em seus olhos. Ele despejou o xerez na tampa, que funcionava também como taça. Enquanto isso, o avião deu um estalo e começou a se mover pela pista. A velha bebeu o xerez e lhe devolveu a taça. Ele compreendeu que ela não a devolvia definitivamente. Encheu-a outra vez. Bebeu mais devagar, e depois deixou a cabeça encostar no assento. — Melhor? — ele lhe perguntou. — Meu nome é Sra. Daniel Bunn — ela lhe disse. Ele pensou que era seu modo de dizer que ela era ela mesma novamente, seu eu formal e digno. — Como vai — ele disse. — Sou Macon Leary. — Sei que é uma tolice, Sr. Leary — ela disse —, mas a bebida dá a

impressão de que se está tomando alguma atitude, não é mesmo? — Certamente — Macon respondeu. Mas ele não estava convencido de que ela estivesse se saindo bem. Conforme o avião ganhava velocidade, sua mão livre apertou o braço da poltrona. Sua outra mão, a que estava mais perto dele, agarrando a taça, ficou branca em torno das unhas. Imediatamente a taça pulou no ar, espremida com o aperto dela. Macon apanhou-a, agilmente, e disse: “Opa!” e atarraxou-a de volta no frasco. Então recolocou o frasco na bolsa. — Assim que tivermos saído do chão... — ele disse. Mas um olhar para o rosto dela o deteve. Ela engolia em seco outra vez. O avião estava começando a levantar voo, agora, o nariz se levantava, e ela se comprimia no encosto do assento. Parecia achatada. — Sra. Bunn? — Macon disse. Ele temia que ela estivesse tendo um ataque cardíaco. Em vez de responder, ela se virou na direção dele e se encolheu junto ao seu ombro. Ele ou o braço em torno dela. — Não se preocupe — ele disse. — Meu Deus. Vai ficar tudo bem. Não se preocupe. O avião continuou a se inclinar para trás. Quando o trem de pouso foi recolhido (gemendo), Macon sentiu um estremecimento no corpo da Sra. Bunn. Seu cabelo tinha cheiro de toalha de mesa ada recentemente a ferro. Suas costas eram largas e sem ossos, um monte como as costas de uma baleia. Ele ficou surpreso que alguém tão velha ainda quisesse tão ardentemente viver. Então o avião se estabilizou e ela se recompôs, endireitando-se e se afastando dele, enxugando as lágrimas que estavam nas dobras sob seus olhos. Ela era cheia de dobras, grande, sem graça e curvada por causa do peso, mas usava com valentia dois botões de pérola em seus lóbulos longos e esponjosos, e mantinha uma capa de batom vermelho numa boca tão enrugada que não tinha nem mesmo um contorno nítido. Ele perguntou: — A senhora está bem? — Sim, e peço um milhão de desculpas — ela disse. E deu tapinhas no broche em seu pescoço. Quando o carrinho com as bebidas ou, ela pediu outro xerez, pelo qual ele insistiu em pagar, e pediu um para si próprio também, muito embora não planejasse beber. Pensou que talvez fosse necessário para a Sra. Bunn. Ele estava certo no fim das contas, porque o voo estava particularmente turbulento. O sinal de manter atados os cintos de segurança permaneceu aceso o tempo todo, e o avião pulava

e rangia como se rolasse sobre cascalho. De quando em quando, caía abruptamente, e a Sra. Bunn choramingava, mas continuava dando golinhos de xerez. — Não é nada. Já ei por coisa muito pior — ele lhe disse como lidar com os solavancos. — É como viajar de barco — falou. — Ou como andar sobre rodas, com patins. Deixe os joelhos soltos. Curve-se. Está entendendo o que estou dizendo? É só acompanhar. Se movimentar junto. A Sra. Bunn disse que certamente tentaria. Não apenas o ar estava instável, mas também pequenas coisas ficavam dando errado dentro do avião. O carrinho de bebidas corria para longe da aeromoça todas as vezes que ela o soltava. A mesinha da Sra. Bunn caiu em seu colo duas vezes sem aviso. A cada percalço Macon ria e dizia: — Ah, meu Deus — e sacudia a cabeça. — De novo não. Os olhos da Sra. Bunn permaneciam fixos no rosto dele, como se Macon fosse sua única esperança. Numa ocasião houve um solavanco e ela deu um pulo; a porta da cabine de comando tinha se aberto sem motivo aparente. “O que foi? O que foi?”, ela disse, mas Macon apontou, para que ela pudesse ver com os próprios olhos o quão despreocupado o piloto estava. Eles estavam suficientemente perto da frente, de modo que ela podia até ouvir do que o piloto falava; ele gritava alguma pergunta ao copiloto, indagando por que uma garota de 10 anos com um pingo de bom-senso usaria um aparelho ortodôntico noturno de metal numa sauna. — A senhora acha que aquele é um homem preocupado? — Macon perguntou a Sra. Bunn. — Acha que um homem prestes a saltar de paraquedas do seu avião estaria discutindo ortodontia? — Saltar de paraquedas! — a Sra. Bunn disse. — Oh, meu Deus, eu nunca tinha pensado nisso! Macon riu outra vez. Lembrou-se de uma viagem que tinha feito sozinho quando era garoto, visitando faculdades. Impetuoso com sua nova independência, tinha mentido para o homem sentado ao seu lado e dito que vinha do Quênia, onde seu pai comandava safáris. Do mesmo modo como mentia agora, apresentando-se à Sra. Bunn como uma pessoa alegre e tolerante. Mas depois que aterrissaram (com a Sra. Bunn, animada por todas aquelas doses de xerez), e ela foi embora com sua filha adulta, uma criança bem pequena veio correndo e deu um encontrão em cheio nos joelhos de Macon. Essa criança foi seguida por mais uma, e mais uma, todas mais ou menos do mesmo tamanho, algum tipo de creche, Macon supôs, visitando o aeroporto numa excursão, e cada uma das crianças, como que incapazes de se desviar da rota estabelecida pela

primeira, colidiam com os joelhos de Macon e diziam: “Oops!” O grito percorreu a fila como pios de arinho — “Oops!”, “Oops!”, “Oops!” — enquanto atrás das crianças uma mulher com expressão atormentada bateu com a mão na própria face. “Desculpe!”, ela disse a Macon, e ele respondeu, “Sem problemas”. Só mais tarde, quando ou diante de um espelho e notou o sorriso em seu rosto, ele se deu conta de que, na verdade, talvez não estivesse mentindo para a Sra. Bunn, afinal. — O bombeiro disse que não vai ser difícil consertar — Sarah lhe falou. — Disse que parece ruim, mas na verdade só um cano está rachado. — Ora, que bom — Macon respondeu. Ele não ficou surpreso com o telefonema dela dessa vez, claro, mas sentiu que havia algo de desconcertante nele — estar parado diante do Edmonton Hotel numa tarde, durante a semana, ouvindo a voz de Sarah do outro lado da linha. — Estive lá hoje de manhã e arrumei um pouco — ela disse. — Tudo está tão desorganizado... — Desorganizado? — Por que alguns dos lençóis estão costurados no meio? E por que a pipoqueira está no quarto. Você estava comendo pipoca no quarto? — Imagino que sim — ele disse. Ele estava perto de uma janela aberta, e podia olhar lá para fora, para uma paisagem estranhamente bonita: uma vastidão de lisura matemática, com prédios de ângulos retos se erguendo na distância como blocos de brinquedo de uma criança num tapete. Era difícil, num lugar como aquele, lembrar-se do motivo pelo qual tinha levado a pipoqueira para o quarto. — Então, como está o tempo aí? — Sarah perguntou. — Meio cinzento. — Aqui está ensolarado. Ensolarado e úmido. — Bem, com certeza não está úmido aqui — ele lhe disse. — O ar está tão seco que a chuva desaparece antes de tocar o chão. — É mesmo? Então como você sabe que está chovendo? — Você consegue ver sobre as planícies — ele falou. — Parecem faixas que simplesmente desaparecem a meio caminho, no céu. — Gostaria de estar aí para ver isso com você — Sarah disse. Macon engoliu em seco. Olhando pela janela, ele se lembrou imediatamente de Ethan quando bebê. Ethan costumava chorar, a menos que estivesse bem apertado dentro de um cobertor; o pediatra explicou que bebês recém-nascidos têm medo de se

desmanchar. Macon não conseguira imaginar isso na época, mas agora não encontrava dificuldade. Conseguia imaginar a si mesmo se desintegrando, se desfazendo em pedaços, sua cabeça flutuando para longe com uma velocidade aterrorizante no ar de um verde sinistro que havia sobre Alberta. Em Vancouver ela perguntou se a chuva também desaparecia ali. — Não — ele disse. — Não? — Não. Em Vancouver chove. Estava chovendo naquele minuto, uma suave chuva noturna. Ele podia ouvila, mas não vê-la, exceto pelo cone de gotas iluminadas caindo sob um poste de rua bem diante de seu quarto de hotel. Você quase seria levado a pensar que era do poste que a chuva caía. — Bem, eu me mudei de volta para a casa — ela disse. — Na maior parte do tempo fico no andar de cima. A gata e eu: acampamos no quarto. Dou umas fugidas ao andar de baixo para as refeições. — Que gata é essa? — Helen. — Oh, sim. — Fui buscá-la na casa de Rose. Precisava de companhia. Você não acreditaria em como é solitário. Sim, ele acreditaria, era o que podia ter dito. Mas não disse. Então ali estavam, nas mesmas velhas posições, ele podia ter dito: ele só conquistara sua atenção retirando-se. Não ficou surpreso quando ela falou: — Macon? Você... como é mesmo o nome dela? A pessoa com quem você vive? — Muriel — ele disse. O que ela sabia antes de perguntar, ele suspeitava. — Você pretende ficar com Muriel para sempre? — Eu realmente não saberia dizer — ele falou. Notava o quão estranho o nome soava naquele quarto de hotel formal e antiquado. Muriel. Um som tão peculiar. Tão pouco familiar, de repente. No voo de volta, sua companheira de assento era uma mulher jovem e atraente, num terno feito à mão. Espalhou o conteúdo de sua pasta na mesinha, e folheou listagens de computador com mãos perfeitamente manicuradas. Então perguntou a Macon se ele tinha uma caneta para lhe emprestar. Isso o divertiu, as cores verdadeiras dela aparecendo por trás de seu exterior de mulher de negócios. Mas sua única caneta era uma caneta-tinteiro que ele não gostava de emprestar, então disse que não. Ela pareceu aliviada; guardou outra vez tudo o que tinha tirado da pasta. — Podia jurar que roubei uma caneta do meu último hotel — ela disse —,

mas talvez fosse o anterior a esse; você sabe como eles todos se confundem na sua cabeça. — Você deve viajar um bocado — Macon comentou, educadamente. — Se viajo! Certas manhãs quando acordo tenho que conferir o papel de carta do hotel só para descobrir em que cidade estou. — Isso é terrível. — Oh, eu gosto — ela disse, abaixando-se para guardar a pasta debaixo da poltrona. — É o único momento em que consigo relaxar. Quando chego em casa estou tão nervosa que não consigo parar quieta. Prefiro ser um... alvo móvel, você poderia dizer. Macon pensou em algo que certa vez lera sobre a heroína: como é um verdadeiro prazer, mas como altera tão completamente a química do corpo dos usuários que eles são obrigados a continuar, uma vez tendo começado. Ele recusou bebidas e jantar, e sua companheira de assento também; ela enrolou o blazer de seu terno com competência, transformando-o num travesseiro, e foi dormir. Macon pegou a Miss Macintosh e ficou olhando fixamente para uma única página, durante certo tempo. A linha do topo dizia sobrancelhas se eriçando, seu cabelo miado de branco. Ele estudou as palavras por tanto tempo que quase se perguntou se eram palavras; toda a língua inglesa parecia atarracada e frágil. “Senhoras e senhores”, o alto-falante disse, “vamos iniciar os procedimentos de pouso...” e a palavra “pouso” lhe soou como uma invenção, algum novo eufemismo criado pelas companhias aéreas. Depois que aterrissaram em Baltimore, ele pegou um transporte até o estacionamento para buscar o carro. Era tarde da noite ali, e o céu estava pálido e radiante sobre a cidade. Enquanto ele dirigia, continuou vendo as palavras de Miss Macintosh. Continuou ouvindo a voz fluida da aeromoça: bebidas de cortesia e o comandante nos pede que e mesinhas na posição vertical. Considerou ligar o rádio, mas não sabia em que estação estava sintonizado. Talvez fosse a estação de música country de Muriel. A possibilidade fez com que ele se sentisse muito cansado; sentia que não teria forças para apertar os botões, e então dirigiu em silêncio. Chegou à Singleton Street e ligou a seta, mas não virou. Depois de um tempo a seta foi desativada por conta própria. Ele continuou dirigindo pela cidade, subindo a Charles Street, até sua antiga vizinhança. Parou e desligou o motor e ficou sentado olhando para a casa. As janelas do andar de baixo estavam escuras. As janelas do andar de cima tinham um brilho suave. Evidentemente, ele estava em casa.

19 Macon e Sarah precisavam comprar um sofá novo. Tiraram o sábado para isso — na verdade, só metade do sábado, porque Sarah tinha uma aula à tarde. No café da manhã, ela folheava livros de decoração de interiores para que eles não precisassem começar do zero na decisão. — Estou começando a pensar em algo no estilo florido — ela disse a Macon. — Nunca tivemos um sofá florido antes. Ou isso seria afetado demais? — Bem, não sei. Fico pensando no inverno — Macon respondeu. — Inverno? — Isto é, agora em meados de junho um sofá florido parece uma boa escolha, mas talvez fique meio deslocado em dezembro. — Você prefere algo numa cor sólida — Sarah disse. — Bem, não sei. — Ou talvez listras. — Não tenho certeza. — Sei que você não gosta de xadrez. — Não. — Que tal tweed? — Tweed — Macon disse, pensando no assunto. Sarah entregou-lhe o livro e começou a colocar a louça na lava-louça. Macon estudou fotos de sofás modernos, angulosos, de sofás confortáveis cobertos com chintz, e sofás que eram reproduções de modelos antigos, em tecidos complexos. Levou o livro para a sala de estar e apertou os olhos na direção do local onde o sofá ficaria. O velho, que afinal estava encharcado demais para ser salvo, fora levado embora, junto com as duas poltronas. Agora tudo o que havia era uma comprida parede branca, com a camada nova de gesso do teto no alto. Macon observou que um cômodo sem mobília trazia uma sensação de utilitarismo, como se fosse apenas um contêiner. Ou um veículo. Sim, um veículo: parado ali, ele teve a sensação de estar correndo pelo universo. Enquanto Sarah se vestia, Macon levou o cachorro lá fora. Era uma manhã quente e dourada. Os vizinhos podavam a grama e molhavam os canteiros. Acenaram com a cabeça quando Macon ou. Não fazia tempo suficiente que ele voltara para que se sentissem à vontade de novo; havia algo um tanto formal em suas saudações. Ou talvez ele estivesse imaginando isso. Esforçava-se em

lhes recordar por quantos anos ele vivera ali: “Sempre gostei dessas suas tulipas!” e “Ainda tem esse ótimo cortador de grama manual, estou vendo!” Edward marchava ao seu lado com um balançar enxerido do traseiro. Em filmes e coisas do tipo, as pessoas que fazem mudanças importantes em suas vidas as concretizam e ponto final. Foram embora e nunca voltaram; ou se casaram e viveram felizes para sempre. Na vida real, as coisas não eram assim tão claramente definidas. Macon, por exemplo, teve que ir até a casa de Muriel buscar Edward, depois que resolveu voltar para sua casa. Teve que juntar suas roupas e guardar a máquina de escrever, enquanto Muriel observava em silêncio com seus olhos acusadores e reprovadores. Então havia todo tipo de coisas que ele descobrira tarde demais ter esquecido: roupas que estavam lavando na ocasião, e seu dicionário favorito, e a caneca de cerâmica extragrande onde ele gostava de tomar seu café. Mas é claro que não podia voltar para buscá-las. Teve que abandoná-las, fios confusos e rastejantes de si mesmo, tumultuando sua despedida. Quando ele e Edward voltaram da caminhada, Sarah estava esperando no jardim. Usava um vestido amarelo que realçava seu bronzeado; estava muito bonita. — Eu estava pensando nas azaleias — ela disse a Macon. — Não devíamos colocar adubo na primavera? — Bem, provavelmente — Macon respondeu —, mas elas me parecem bem. — Em abril, eu acho — ela disse. — Ou talvez maio. Não havia ninguém aqui para fazer isso. Macon desviou-se do assunto. Preferia fingir que suas vidas tinham seguido como de costume. — Não se preocupe, Rose tem sacos de fertilizante — ele disse. — Vamos pegar um pouco do dela quando sairmos. — Também não havia ninguém aqui para semear o gramado. — O gramado está ótimo — ele disse, de modo mais convincente do que pretendia. Deixaram Edward fechado em casa e entraram no carro de Macon. Sarah tinha trazido um jornal porque havia vários anúncios de móveis. — Modern Homewares — ela leu. — Mas isso fica lá no final da Pratt Street. — Podíamos tentar — Macon disse. A Pratt era uma das poucas ruas que ele sabia como encontrar. Depois que saíram de sua vizinhança, com as árvores formando arcos lá no alto, o carro foi ficando cada vez mais quente, e Macon abriu a janela. Sarah ergueu o rosto para o sol.

— Um bom dia para ir à piscina — ela disse. — Bem, se tivermos tempo. Eu estava pensando em te convidar para almoçar. — Ah, onde? — Onde você quiser. A escolha é sua. — Que gentil — ela respondeu. Macon ou por dois homens de barba por fazer conversando numa esquina. Sarah trancou a porta. Macon pensou no que os homens estariam dizendo: — E aí, cara? — Nada de mais. As calçadas foram ficando mais movimentadas. Mulheres carregavam sacolas de compras pela alça, um velho puxava um carrinho, e uma garota num vestido desbotado apoiava a cabeça num ponto de ônibus. Na Modern Housewares, imensas flâmulas cobriam as janelas de vidro laminado. ESPECIAL PARA O DIA DOS PAIS! Diziam. Sarah não tinha mencionado que era uma promoção de Dia dos Pais. Macon fez questão de mencioná-lo ele mesmo, para mostrar que não o incomodava. Pegando o braço dela quando entraram, ele disse: — Não é típico? Dia dos pais! Eles capitalizam em cima de qualquer coisa. Sarah desviou os olhos dele e respondeu: — Tudo o que parecem ter são camas. — Suponho que comece com cadeiras reclináveis — Macon disse. — Uma poltrona Barcalounger para o papai, e quando você vê é um conjunto inteiro de jantar. — Será que poderíamos ver os sofás? — Sarah pediu com firmeza a um vendedor. Os sofás eram todos do estilo costas retas, dinamarquês, o que para Macon estava bem. Ele não se importava, na verdade. Sarah disse: — O que você acha? Pés? Ou rentes ao chão. — Para mim tanto faz — ele respondeu. Sentou-se pesadamente em alguma coisa coberta de couro. Sarah escolheu um sofá comprido e baixo que virava uma cama queen-size. — Macon? O que você acha? — ela disse. — Gosta mais desse em que está sentado? — Não, não — ele respondeu. — Bem, o que você acha deste aqui? — Está ótimo. — Você não tem uma opinião? — Acabei de dar minha opinião, Sarah.

Sarah suspirou e perguntou ao vendedor se ele oferecia entrega para o mesmo dia. Tinham sido tão eficientes ao escolher o sofá que sobrava tempo para outros afazeres também. Primeiro foram até a Hutzler’s e compraram lençóis queensize. Então deram uma olhada no setor de móveis em busca de poltronas; havia uma promoção de Dia dos Pais ali também. — Talvez estejamos numa maré de sorte — Sarah disse a Macon. Mas eles não foram tão bem-sucedidos com as poltronas; nada parecia direito. Não para Macon, pelo menos. Ele desistiu de experimentá-los e ficou observando um programa infantil numa fila de televisões. Depois da Hutzler’s foram pegar fertilizante com Rose, mas Macon freou no caminho e disse: — Espere! É o meu banco. Ocorrera-lhe inesperadamente, a filial onde ele alugava um cofre. — Preciso do meu aporte para a viagem à França — ele disse a Sarah. — Podia apanhá-lo, já que estou aqui. Sarah falou que ia ficar esperando no carro. Ele teve que ficar na fila; duas senhoras de idade estavam na sua frente. Iam pegar as joias para a noite de sábado, ele gostou de fantasiar. Ou conferir seus títulos de investimento, fossem eles quais fossem. Enquanto estava parado ali, ele não deixava de sentir a presença de alguém atrás dele. Por algum motivo, não queria se virar e ver quem era. Continuava olhando para a frente, consultando o relógio de tempos em tempos de um modo profissional. Essa pessoa respirava suavemente e tinha cheiro de flores, flores pungentes, da vida real, não do tipo que vêm em frascos de perfume. Mas quando ele por fim endireitou os ombros e olhou ao redor, só encontrou outra estranha esperando para pegar suas joias. Não era verdade que Muriel ficara olhando em silêncio enquanto ele guardava suas coisas. Na realidade, ela falara. Dissera: — Macon? Você vai mesmo fazer isso? Está querendo me dizer que pode simplesmente usar uma pessoa e depois seguir em frente? Acha que eu sou algum tipo de... garrafa ou alguma coisa de que você não precisa mais? É assim que você me vê, Macon? Sua vez de ir ao cofre tinha chegado, e ele seguiu uma garota de minissaia por uma área acarpetada até o cubículo sem janelas, coberto de gavetas. — Não preciso levar minha caixa à outra sala — ele disse à garota. — Só quero uma coisa. Ela lhe deu seu cartão para e pegou a chave. Depois de destrancar a caixa ela recuou, examinando as unhas, enquanto ele remexia em vários papéis, em busca de seu aporte. Então se virou para lhe dizer que tinha terminado, mas no mesmo instante ficou tão comovido por seu tato em olhar noutra direção, pela delicadeza de que as pessoas eram capazes por conta própria (pois

certamente aquilo não devia estar escrito nas instruções do banco)... Bem, ele devia estar ficando meio manteiga-derretida. Era o clima, ou algo do gênero; era a estação, ou algo do gênero; ele não andava dormindo bem. Disse: “Muito obrigado”, pegou a chave de volta e foi embora. Na casa de seu avô, Rose estava do lado de fora podando a cerca viva. Sua roupa de jardinagem era uma imensa camisa cinza herdada de Charles. Quando ela viu o carro deles parar, endireitou-se e acenou. Depois continuou podando enquanto eles a consultavam sobre o fertilizante. — Para azaleias, e o que mais vocês têm, lírio-do-vale, plantas que adoram ácido... — ela refletiu... Sarah perguntou: — Onde as crianças estão hoje? — Crianças? — Seus sobrinhos e sobrinhas. — Oh, foram para casa ficar com a mãe. Sarah disse: — Eu só presumi, já que você não voltou para sua casa com Julian... — Bem, ainda não, é claro — Rose respondeu. Macon, ansioso para guardar a privacidade dela, murmurou “Não, é claro que não” praticamente no mesmo instante, mas Sarah continuou: — Por quê? O que está te impedindo? — Oh, Sarah, você não ia acreditar no estado em que encontrei os meninos quando voltei — Rose disse. — Estavam usando pijamas em casa, para não ter muita roupa para lavar. Estavam comendo gororoba no jantar. — Não vou nem perguntar o que é gororoba — Sarah disse. — É uma mistura de germe de trigo, nozes e frutas sec... — Mas e quanto ao seu apartamento, Rose? E quanto a Julian? — Ah, sabe, eu ficava sempre me perdendo daquele apartamento todas as vezes que virava as costas — Rose disse, de modo vago. — Eu ia um quarteirão a leste para o supermercado e depois virava a oeste para voltar e sempre me perdia; sempre. O prédio se desloca para o leste de algum modo; eu não sei como. Fez-se silêncio. Por fim Macon disse: — Bem, se você pudesse arranjar um pouco desse fertilizante, Rose... — Certamente — ela respondeu. E foi até o barracão. Eles comeram no restaurante Old Bay, ideia de Sarah. Macon disse: — Tem certeza? E Sarah:

— Por que não? — Mas você sempre me disse que é chato — Macon comentou. — Cheguei à conclusão de que há coisas piores do que ser chato. Ele não achou que isso fosse grande coisa como recomendação, mas seguiu adiante. O restaurante estava cheio, mesmo ainda mal tendo dado meio-dia, e tiveram que esperar alguns minutos para se sentar. Macon ficou ao lado do balcão da recepcionista tentando se ajustar à penumbra. Ficou observando os outros clientes e descobriu algo de estranho neles. Não eram os clientes costumeiros do Old Bay — de meia-idade, os rostos parecidos uns com os outros. Ele viu um padre brindando com uma mulher com roupa de tenista, e uma mulher elegantemente vestida com um homem jovem numa túnica de gaze cor de laranja, e duas escolares alegres colocando todas as suas batatas fritas no prato de um menininho. De onde estava, Macon não podia ouvir o que qualquer uma das pessoas dizia; tinha que adivinhar. — Talvez a mulher queira entrar para um convento — ele disse a Sarah —, e o padre a esteja desencorajando. — O quê? — Ele está salientando que casar as meias do marido dela pode ser igualmente, seja lá como ele chama, igualmente sagrado. E o jovem de gaze, bem... — O jovem de gaze é Ashley Demming — Sarah disse. — Você conhece Ashley. O filho de Peter e Lindy Demming. Meu Deus, ele fez a pobre Lindy envelhecer vinte anos, não fez? Acho que eles nunca vão conseguir superar isso. — Ah, bem — Macon disse. Então eles foram levados a uma mesa. Sarah pediu algo chamado White Lady e Macon, um xerez. Com a refeição eles pediram uma garrafa de vinho. Macon não estava acostumado a beber à luz do dia; ficou um pouco aéreo. E Sarah também, evidentemente, pois largou no meio uma frase sobre tecidos para estofamento. Tocou a mão dele, que estava sobre a toalha de mesa. — Devíamos fazer isso com mais frequência — ela disse. — Sim, devíamos. — Você sabe do que eu mais sentia falta quando estávamos separados? As coisinhas de sempre. Os afazeres de sábado. Ir ao Eddies para comprar café em grãos. Mesmo as coisas que pareciam cansativas, como o modo como você demorava a vida inteira na loja de ferragens.

Quando ele fechou a mão dela num punho, ele ficou redondo, como um pássaro. Não tinha ângulos agudos. — Não sei se você sabe disso — ela disse —, mas por algum tempo saí com outro homem. — Bem, ótimo; deixe para lá; coma a sua salada — ele disse. — Não, eu quero falar, Macon. Ele estava superando a morte da esposa, e eu também estava superando algumas coisas, então, é claro... Bem, nós começamos muito devagar, começamos como amigos, mas então ele começou a falar sobre se casar um dia. Depois que déssemos um tempo um ao outro, ele queria dizer. Na verdade acho que ele me amava de verdade. Foi um golpe para ele quando eu disse que você estava de volta em casa. Ela olhou diretamente para Macon quando disse isso, seus olhos, um súbito clarão azul. Ele fez que sim. — Mas havia essas coisas com as quais eu tinha problemas — ela disse. — Isto é, coisas boas; qualidades que eu sempre desejei. Ele era um motorista muito ousado, por exemplo. Não era descuidado, apenas ousado. No começo eu gostei. Depois, pouco a pouco, ou a me parecer estranho. “Olhe outra vez pelo retrovisor!”, eu queria dizer a ele. “Coloque o cinto de segurança! Avance devagarzinho depois dos sinais de Pare, como meu marido faz!” Ele nunca examinava uma conta de restaurante antes de pagá-la. Ora, ele nem pegava o recibo do cartão de crédito quando saía da mesa, e eu pensava em todas as ocasiões em que fiquei sentada furiosa enquanto você somava cada item. Pensei: “Por que eu sinto falta disso? É perverso!” Como “eck cetera”, Macon pensou. Como Muriel dizendo “eck cetera”. E Macon tendo um sobressalto. E o vazio agora, o modo como soava ralo, quando ele ouviu a expressão pronunciada corretamente. Ele afagou os montes com covinhas que eram os nós dos dedos de Sarah. — Macon, acho que depois de uma certa idade as pessoas simplesmente não têm escolha — Sarah disse. — É com você que eu estou. É tarde demais para mudar. Já usei uma parte grande demais da minha vida agora. Está querendo me dizer que pode simplesmente usar uma pessoa e depois seguir em frente? Muriel perguntara. Claro que sim, era a resposta. Pois mesmo que tivesse ficado com Muriel, então não teria Sarah sido deixada para trás? — Depois de uma certa idade — ele disse a Sarah — me parece que você só pode escolher o que vai perder. — O quê? — ela falou. — Isto é, você vai ter que desistir de alguma coisa, seja qual for a sua

escolha. — Bem, é claro — ela respondeu. Ele achava que ela sempre soubera disso. Terminaram a comida mas não pediram café porque estava ficando tarde. Sarah tinha aula; estava estudando com um escultor aos sábados. Macon pediu a conta e pagou, somando-a com certo constrangimento antes. Depois saíram para o sol. — Que dia bonito — Sarah disse. — Dá vontade de faltar a aula. — Por que você não falta? — Macon perguntou. Se ela não fosse à aula, ele não teria que trabalhar no guia. Mas ela disse: — Não posso desapontar o Sr. Armistead. Foram para casa, e ela trocou de roupa, vestindo um conjunto de moletom, e saiu de novo. Macon trouxe o fertilizante, que Rose tinha despejado num balde. Era uma coisa em fiapos, que não tinha cheiro — só um odor áspero e químico, em nada parecido aos caminhões de adubo que os homens costumavam trazer para as camélias de sua avó. Ele o colocou no chão da copa e depois levou o cachorro para fora. Preparou uma xícara de café para clarear as ideias. Bebeu-o diante da pia da cozinha, fitando o quintal. A gata se esfregou em seus tornozelos e ronronou. O relógio em cima do fogão marcava os segundos resolutamente. Não havia nenhum outro som. Quando o telefone tocou, ele ficou feliz. Deixou tocar duas vezes antes de atender, para não parecer ansioso demais. Então pegou o fone e disse: - Alô? — O Sr. Leary? — Sim! — Aqui é a Sra. Morton, da Loja Merkle. O senhor está ciente de que a garantia de manutenção de seu aquecedor de água expira no fim do mês? — Não, eu não tinha me dado conta — Macon disse. — O senhor tinha dois anos de seguro pelo custo de 39,89 dólares. Agora, para renová-lo por mais dois anos, o custo seria um pouco maior, já que o seu aquecedor de água está mais velho. — Bem, isso faz sentido — Macon disse. — Meu Deus! Qual a idade desse negócio, a esta altura? — Vejamos. Vai fazer três anos que o senhor comprou em junho. — Bem, eu certamente vou querer manter o seguro. — Excelente. Vou lhe enviar um novo contrato, então, Sr. Leary, e obrigada por... — E isso ainda incluiria a substituição do tanque? — Macon perguntou. — Oh, sim. Todas as partes estão cobertas. — E eles ainda fazem aquelas revisões anuais.

— Ora, sim. — Sempre gostei disso. Várias lojas não oferecem; lembro-me de quando estava fazendo compras. — Então vou lhe enviar o contrato, Sr... — Mas eu tenho que marcar a revisão eu mesmo, pelo que me lembro. — Sim, o cliente marca a revisão. — Talvez eu marque agora. Posso fazer isso? — É um departamento inteiramente diferente, Sr. Leary. Vou lhe enviar por correio o contrato e o senhor pode ler sobre tudo isso. Até logo. Ela desligou. Macon também desligou. Refletiu por um instante. Sentia uma necessidade de continuar falando; qualquer pessoa serviria. Mas não conseguia pensar num número para ligar. Por fim ligou para a radiorrelógio. A moça atendeu antes que o primeiro toque terminasse. (Ela não tinha problema em parecer ansiosa demais.) “No sinal”, ela disse, “a hora certa será 1... e 49. E 10 segundos.” Que voz. Tão melodiosa, tão bem modulada. “No sinal a hora certa será 1... e 49. E 20 segundos.” Ele ouviu por mais de um minuto, e depois a ligação foi cortada. A linha estalou e o tom de discar começou a soar. Isso fez com que ele se sentisse repelido, embora soubesse que estava sendo tolo. Curvou-se para acariciar a gata. A gata permitiu que ele o fizesse brevemente, antes de ir embora. Não havia nada a fazer além de se sentar diante de sua máquina de escrever. Ele estava atrasado com aquele guia. Na semana seguinte devia começar com a França, e ainda não tinha terminado a conclusão do guia do Canadá. Colocou a culpa na estação. Quem conseguia ficar sentado dentro de casa quando tudo lá fora florescia? Os viajantes devem ser advertidos, ele datilografou, mas depois ficou irando uma pequena ramagem de azaleias brancas que tremiam no vão de sua janela aberta. Uma abelha trepava nas flores, zumbindo. Ele não sabia que as abelhas já estavam saindo. Será que Muriel sabia? Será que ela ia se lembrar do que uma única abelha podia fazer a Alexander? ...devem ser advertidos, ele releu, mas sua concentração tinha acabado. Ela era tão negligente, tão imprudente; como ele podia tê-la tolerado? Aquele hábito anti-higiênico que tinha de lamber o dedo antes de virar a página de uma revista; sua tendência de usar a palavra “enormidade” como se ela se referisse a tamanho. Não havia a menor chance de ela se lembrar das picadas de abelha. Ele pegou o telefone em sua mesa e discou seu número. — Muriel?

— O quê — ela disse, inexpressivamente. — Aqui é Macon. — Sim, eu sei. Ele fez uma pausa. Disse: — Hm, é a estação das abelhas, Muriel. — E daí? — Eu não tinha certeza de que você sabia. Isto é, o verão está chegando, eu sei que o verão está chegando, e estava me perguntando se você teria pensado nas vacinas de Alexander. — Você acha que não dou conta disso sozinha? — ela guinchou. — Oh. Bem. — O que você acha que eu sou, alguma boba? Pensa que eu não sei a coisa mais simples que há? — Bem, eu não tinha certeza, sabe, que... — Você é demais! Dá um pontapé nessa criança sem uma palavra de despedida e depois me liga para saber se eu o estou criando direito! — Eu só queria... — Criticar, criticar! Dizer que a comida do Oodles and Noodles não é uma refeição balanceada e depois se mandar, abandoná-lo e ter a coragem de me ligar e me dizer que não sou uma boa mãe! — Não, espere, Muriel... — Dominick morreu — ela disse. — O quê? — Não que você fosse se importar. Ele morreu. Macon notou que os ruídos na sala tinham cessado. — Dominick Saddler? — ele perguntou. — Era sua noite de ficar com o meu carro e ele foi a uma festa em Cockeyesville, e quando estava voltando para casa bateu num muro de proteção. — Oh, não. — A garota que estava com ele não sofreu nem um arranhão. — Mas Dominick... — Macon disse, porque ainda não acreditava. — Mas Dominick morreu na hora. — Oh, meu Deus. Ele viu Dominick no sofá com Alexander, segurando no alto uma lata de cera. Macon descansou a cabeça na mão. — Tenho que ir agora e me sentar com a Sra. Saddler na casa funerária — ela disse. — Há algo que eu possa fazer? — Não — ela disse, e então, rancorosamente: — Como você poderia ser de

alguma ajuda? — Podia ficar com Alexander, talvez. — Há uma porção de gente para ficar com Alexander — ela respondeu. A campainha da porta soou, e Edward começou a latir. Macon o ouviu no vestíbulo de entrada. — Bem, vou me despedir agora — Muriel disse. — Parece que você tem companhia. — Deixe isso para lá. — Vou deixar você voltar para a sua vida — ela se despediu. — Até mais. Ele ficou com o fone no ouvido por um momento, mas ela desligara. Ele foi até o vestíbulo e bateu o pé para Edward: — Deitado! — ele disse. Edward se deitou, o pelo das costas ainda eriçado. Macon abriu a porta e viu um rapaz com uma prancheta. — Modem Homewares — o rapaz lhe disse. — Ah. O sofá. Enquanto traziam o sofá, Macon fechou Edward na cozinha. Depois voltou para o vestíbulo e observou o sofá se movendo pesadamente em sua direção, carregado pelo primeiro rapaz e um outro, só um pouco mais velho, que tinha uma águia tatuada no antebraço. Macon pensou nos braços musculosos e de veias salientes de Dominick Saddler remexendo debaixo do capô do carro de Muriel. O primeiro rapaz cuspiu ao se aproximar da casa, mas Macon viu que seu rosto era jovem e afável. — Ah, cara — o segundo disse, tropeçando no degrau da porta. Macon disse: “Está tudo bem”, e deu a cada um uma nota de 5 dólares depois que colocaram o sofá conforme as instruções. Depois que foram embora ele se sentou no sofá, que ainda tinha alguma espécie de cobertura de celofane. Ele esfregou as mãos nos joelhos. Edward latiu na cozinha. Helen entrou, caminhando com suavidade, parou, olhou para o sofá e seguiu através da sala com um ar ofendido. Macon permaneceu sentado. Quando Ethan morreu, a polícia pediu a Macon para identificar o corpo. Mas Sarah, eles sugeriram, talvez preferisse esperar do lado de fora. Sim, Sarah disse; ela esperaria. Sentou-se numa cadeira bege de plástico no corredor. Então ela olhou para Macon e disse: — Você pode fazer isso? — Sim — ele respondeu, num tom uniforme. Ele sentia que mal respirava; mantinha-se quase imóvel, os pulmões com um mínimo de ar. Acompanhou um homem até uma sala. Não era tão ruim quanto podia ser porque alguém dobrara um rolo de toalha atrás da cabeça de Ethan para ocultar o

estrago. Também não era Ethan. Não o Ethan real. Estranho como se tornava subitamente tão claro, depois que uma pessoa morria, que o corpo era a menor parte sua. Era simplesmente uma casca desocupada, embora tivesse uma semelhança distante com Ethan — o mesmo sulco no lábio superior, o mesmo topete sobre a testa. Macon teve uma sensação como a de estar pressionando uma parede vazia, desejando com todo seu ser algo que nunca poderia acontecer: Por favor, por favor volte aqui para dentro. Mas por fim ele disse: — Sim. É o meu filho. Ele voltou para junto de Sarah e fez que sim com a cabeça. Sarah tinha se levantado e ado os braços em torno dele. Mais tarde, quando estavam sozinhos no motel, ela lhe perguntou o que ele tinha visto. — Não muita coisa, querida — ele respondeu. Ela chorou. Ethan estava... bem, parecendo ferido? Assustado? — Não, ele não estava nada — ele disse. — Deixe-me pegar um chá para você. — Não quero chá, quero ouvir! — ela exclamou. — O que você está escondendo? Ele tinha a impressão de que ela o culpava por alguma coisa. Ao longo das semanas seguintes ela pareceu começar a considerá-lo responsável, como um mensageiro de coisas ruins, o único que podia dizer com certeza que Ethan tinha morrido. Fazia várias referências à frieza de Macon, à sua calma estarrecedora aquela noite no necrotério do hospital. Duas vezes ela expressou alguma dúvida sobre se ele seria realmente capaz de distinguir Ethan de algum garoto parecido. Na verdade, talvez aquele não fosse Ethan em absoluto. Podia ser alguma outra pessoa que tivesse morrido. Ela devia ter verificado por conta própria. Era a mãe, afinal de contas; conhecia bem melhor seu filho; o que Macon sabia? Macon disse: — Sarah, escute. Vou lhe dizer tudo o que puder. Ele estava muito pálido e imóvel. Você não pode imaginar o quão imóvel. Não tinha expressão alguma. Seus olhos estavam fechados. Não havia nada de sangrento ou horripilante, só uma sensação de... futilidade. Sabe, eu me perguntei qual o propósito daquilo. Seus braços estavam retos, ao lado do corpo, e eu pensei na última primavera, quando ele começou a levantar pesos. Pensei: “É este o resultado? Levante pesos e tome vitaminas e desenvolva seus músculos e depois... nada?” Ele não estava preparado para a resposta de Sarah. — Então, o que é que você está dizendo? — ela perguntou a ele. — Morremos, no fim, então por que nos darmos ao trabalho de viver, para começo de conversa? É isto que você está dizendo?

— Não... — ele disse. — Tudo se reduz a uma questão de economia? — ela perguntou. — Não, Sarah. Espere — ele disse. Lembrando-se dessa conversa agora, ele começou a acreditar que as pessoas podiam, de fato, ser usadas — podiam usar umas às outras, podiam não ser mais de nenhuma ajuda uma à outra e talvez até mesmo fazer mal uma à outra. Ele começou a pensar que a pessoa que você é quando está com alguém talvez importasse mais do que se você a ama. Deus sabe por quanto tempo ele ficou sentado ali. Edward ficara latindo na cozinha todo aquele tempo, mas agora estava histérico. Alguém devia ter batido à porta. Macon se levantou e foi até a frente da casa, onde encontrou Julian de pé diante da porta com uma pasta. — Oh. É você — Macon disse. — O que são todos esses latidos que estou ouvindo? — Não se preocupe, ele está trancado na cozinha. Entre. Ele segurou aberta a porta de tela e Julian entrou. — Pensei em trazer o material para Paris — Julian disse. — Entendo — Macon respondeu. Mas suspeitava que ele estivesse ali por outro motivo. Provavelmente pensando em apressar o livro sobre o Canadá. — Bem, eu estava neste exato minuto trabalhando na conclusão — ele disse, indo na frente até a sala de estar. E depois, apressadamente: — Uns poucos detalhes aqui e ali com os quais não estou cem por cento satisfeito; talvez ainda demore um pouco... Julian não parecia estar ouvindo. Sentou-se no celofane que cobria o sofá. Jogou a pasta para o lado e disse: — Você tem visto Rose ultimamente? — Sim, estivemos por lá hoje de manhã. — Você acha que ela não vai voltar? Macon não esperava que ele fosse tão direto. Na verdade, a situação de Rose tinha começado a parecer uma daquelas irregularidades permanentes às quais os casais nunca se referem. — Oh, bem — ele disse a Julian —, você sabe como ela é. Está preocupada com os meninos. Eles estão comendo uma gororoba qualquer. — Eles não são meninos, Macon. São homens na casa dos 40 anos. Macon coçou o queixo. — Estou com medo de que ela tenha me deixado — Julian disse. — Oh, você não pode ter certeza disso. — E nem sequer é por um motivo decente! — Julian disse. — Ou por algum motivo. Veja, nosso casamento estava indo bem; isso eu posso jurar. Mas ela

criou uma rotina ou coisa do tipo naquela sua casa, e não pôde evitar voltar a ela. Pelo menos não consigo pensar em qualquer outra explicação. — Bem, isso faz sentido — Macon disse a ele. — Fui vê-la faz dois dias — Julian confirmou —, mas ela havia saído. Eu estava em pé no jardim me perguntando aonde ela teria ido quando quem a senão a própria Rose, com o carro lotado de velhinhas? Todas as janelas ocupadas por esses rostinhos velhos e chapéus de plumas. Eu gritei depois que ela ou, chamei: “Rose! Espere!”, mas ela não me ouviu e seguiu em frente. Então, no último minuto, ela me viu, acho, e se virou e ficou me olhando, como se o carro estivesse levando a ela, como se ela apenas estivesse ando, impotente, e não pudesse fazer nada além de me lançar um último e longo olhar antes de desaparecer. Macon disse: — Por que você não arranja um emprego para ela, Julian? — Emprego? — Por que você não mostra a ela aquele seu escritório? Aquele sistema de arquivamento que você nunca pôs em ordem, aquela secretária mascando chiclete e se esquecendo de que compromisso é quando. Você não acha que Rose poderia lidar com tudo isso? — Ora, com certeza, mas... — Ligue para ela e diga que o seu negócio está desmoronando. Pergunte se ela poderia ir até lá e organizar as coisas, colocar as coisas sob controle. Diga desse modo. Use essas palavras. Colocar as coisas sob controle, diga a ela. Depois se sente e espere. Julian pensou no assunto. — Mas é claro, quem sou eu para falar — Macon disse. — Não, você está certo. — Agora vamos ver essa pasta. — Você está absolutamente certo — Julian disse. — Olhe para isto! — Macon exclamou. Leu a carta que estava em cima. — Por que me incomodar com isto? Gostaria apenas de estimar-lhes um hotelzinho maravilhoso em... Um homem que diz querer “estimar-nos”, você realmente acha que ele vai reconhecer um bom hotel quando vir um? — Macon — Julian disse. — A droga da língua foi toda massacrada — Macon insistiu. — Macon, sei que você sente que eu sou grosseiro e insolente. Macon levou um instante para responder, só em parte porque primeiro ouviu as palavras como “grotesco e impotente”. — Oh — ele disse. — Ora, não, Julian, de jeito nenh...

— Mas eu só queria dizer isto, Macon. Gosto daquela sua irmã mais do que de qualquer coisa no mundo. Não é só Rose, é todo o modo como ela vive, a casa e aqueles perus no jantar e aqueles jogos de cartas à noite. E também gosto de você, Macon. Ora, você é o meu melhor amigo! Pelo menos espero que seja. — Oh, ora, ah... — Macon respondeu. Julian se levantou e apertou sua mão, esmagando todos os ossos lá dentro, e lhe deu uns tapinhas no ombro e foi embora.

Sarah veio para casa às 17h30. Encontrou Macon em pé na cozinha com mais uma xícara de café. — O sofá chegou? — ela perguntou. — São e salvo. — Ah, ótimo! Vamos vê-lo. Ela foi para a sala de estar, deixando rastros de um pó cinzento que Macon imaginava ser argila ou granito. Havia pó até mesmo em seu cabelo. Ela apertou os olhos para o sofá e disse: — O que você acha? — Acho bonito — ele disse. — Honestamente, Macon. Não sei o que deu em você; você costumava ser a exigência em pessoa. — Está bonito, Sarah. Ficou muito bem aqui. Ela tirou o celofane e recuou, os braços cobertos por uma luz quebradiça. — Temos que ver como ele abre — ela disse. Enquanto ela enfiava o celofane na lata de lixo, Macon puxou a faixa de lona e transformou o sofá numa cama. Fez com que ele pensasse na casa de Muriel. A textura granulada da faixa recordou-lhe todas as vezes que a irmã de Muriel viera ar a noite, e quando o colchão deslizava para a frente ele via o brilho do cabelo dourado e emaranhado de Claire. — Talvez devêssemos colocar os lençóis, agora que o abrimos — Sarah disse. Ela trouxe a sacola de roupas de cama que estava no vestíbulo da frente. Com Macon se posicionando do outro lado do sofá, ela fez um lençol flutuar sobre o colchão, depois foi de um lado a outro, prendendo-o. Macon ajudou, mas ele não era tão rápido quanto Sarah. O pó de argila ou o que quer que fosse tinha penetrado nas linhas dos dedos dela, ele viu. Havia algo de atraente nas mãos dela, pequenas, morenas e enrugadas, sobre o lençol branco. Ele disse:

— Vamos fazer um teste com a cama. Sarah não entendeu, no começo. Ergueu os olhos do lençol de cima, que estava desdobrando, e disse: — Teste? Mas ela permitiu que ele tirasse o lençol de suas mãos e puxasse seu moletom por cima da cabeça. Fazer amor com Sarah era confortável e tranquilizador. Depois de todos aqueles anos juntos, o corpo dela era tão familiar que nem sempre ele sabia a diferença entre o que ele sentia e o que ela sentia. Mas não era triste o fato de eles não ficarem minimamente preocupados que alguém pudesse aparecer de surpresa? Estavam tão solitários. Ele descansou o rosto no pescoço quente e empoeirado dela, e se perguntou se ela também compartilhava desse sentimento, se ela pressentia todo o ar vazio na casa. Mas ele jamais perguntaria. Enquanto Sarah tomava um banho, ele se barbeava. Deviam estar na casa de Bob e Sue Carney para o jantar. Quando ele saiu do banheiro, Sarah estava de pé diante da cômoda, colocando pequeninos brincos de ouro de pressão. (Ela era a única mulher que Macon conhecia que não tinha orelhas furadas.) Ele pensou que Renoir podia tê-la pintado: Sarah de combinação com a cabeça ligeiramente esticada, braços roliços e bronzeados erguidos. — Eu na verdade não estou com disposição para ir — ela disse. — Eu também não — Macon falou, abrindo a porta de seu closet. — Ficar em casa com um livro seria o suficiente. — Ele tirou uma camisa de um cabide. — Macon — ela disse. — Hmm. — Você nunca me perguntou se eu dormi com alguém enquanto estávamos separados. — Macon parou, o braço na metade de uma das mangas. — Você não quer saber? — ela lhe perguntou. — Não — ele respondeu. Ele vestiu a camisa e abotoou os punhos. — Eu achei que você devia estar se perguntando. — Bem, não estou — ele disse. — O problema com você, Macon, é... Foi surpreendente o arroubo de cólera que ele sentiu. — Sarah — ele disse — nem comece. Por Deus, se isso não resume cada mínima coisa que há de errado em estar casado. “O problema com você, Macon, é...” e “Eu te conheço melhor do que você mesmo, Macon...”

— O problema com você — ela continuou, resoluta — é que pensa que as pessoas deviam ficar em seus próprios pacotes lacrados. Você não acredita em abertura. Não acredita em trocas para um lado e para o outro. — Certamente que não — Macon disse, abotoando a frente da camisa. — Você sabe o que isso me lembra? Aquele telegrama que Harpo Marx enviou aos irmãos: Nenhuma mensagem. Harpo. Isso o fez abrir um sorriso. Sarah disse: — Você acharia isso engraçado. — Bem? E não é? — Não é nem um pouco! É triste! É de enfurecer! Seria de enfurecer ir até a porta e o recebimento do telegrama e abri-lo e não encontrar nenhuma mensagem! Ele pegou uma gravata na prateleira em seu armário. — Para sua informação — ela disse —, não dormi com mais ninguém esse tempo todo. Ele sentia que ela vencera algum tipo de concurso. Fingiu não tê-la ouvido.

Bob e Sue só tinham convidado os vizinhos, os Bidwell e um novo casal que Macon ainda não encontrara. Macon ficou conversando principalmente com o casal novo, porque com eles não tinha história. Quando lhe perguntaram se tinha filhos, ele disse: “Não”. Perguntou se eles tinham filhos. — Não — Brad Frederick disse. — Ah. A esposa de Brad estava em transição da meninice à maturidade. Usava seu vestido azul-marinho duro e grandes sapatos brancos como se pertencessem à sua mãe. O próprio Brad ainda era um menino. Quando saíram todos para ficar olhando o churrasco ser preparado, Brad encontrou um disco de frisbee entre os arbustos e o atirou à pequena Delilah Carney. Sua camisa polo branca se soltou de dentro da calça. Dominick Saddler veio à mente de Macon como um soco profundo e forte. Ele se lembrou agora que depois que seu avô morrera a visão de qualquer pessoa de idade fazia seus olhos se encherem de lágrimas. Deus, se ele não tomasse cuidado acabaria com pena da humanidade inteira. — Jogue esta coisa para cá — ele disse animadamente a Delilah, colocou de lado o xerez e estendeu a mão para pegar o disco. Não demorou muito para terem um verdadeiro jogo acontecendo, todos os

convidados participando, à exceção da esposa de Brad, que ainda estava perto demais da infância para correr o risco de ficar presa por lá se a revisitasse. No jantar, Sue Carney colocou Macon sentado à sua direita. Pôs a mão na dele e disse que era maravilhoso ele e Sarah terem resolvido seus problemas. — Ora, obrigado — Macon respondeu. — Deus, você faz mesmo uma salada muito boa, Sue. — Todos temos os nossos altos e baixos — ela disse. Por um segundo ele achou que ela queria dizer que suas saladas não eram sempre bem-sucedidas. — Vou ser honesta — ela disse a ele —, houve momentos em que eu me perguntei se eu e Bob íamos dar certo. Há momentos em que sinto que estamos simplesmente segurando a barra, sabe o que eu quero dizer? Momentos em que digo: “Oi, querido, como foi o seu dia?”, mas por dentro estou me sentindo como se fosse uma daquelas mães de vítimas de guerra. — Macon virou o pé de sua taça e tentou pensar que o do raciocínio lógico dela ele havia perdido. — Como alguém que sofreu uma perda na guerra — ela disse — e depois tem que continuar apoiando a guerra pelo resto da vida; tem que apoiá-la mais do que qualquer outra pessoa, porque de outro modo estaria itindo que a perda foi sem propósito. — Hm... — Mas é só um estado de espírito ageiro — ela disse. — Bem, naturalmente — Macon respondeu. Ele e Sarah caminharam de volta para casa em meio a um ar que era tão pesado quanto água. Eram 23 horas e os adolescentes que tinham toque de recolher àquela hora voltavam para casa. Eram os mais novos, a maioria jovem demais para dirigir, e assim, os mais velhos os traziam. Pulavam dos carros gritando: “Até mais! Obrigado! Me ligue amanhã, hein?” Chaves se sacudiam. Portas da frente se abriam e fechavam por rápidos instantes. Os carros seguiam em frente. A saia de Sarah fazia o mesmo ruído sussurrante do sistema de irrigação de grama dos Tucker, que ainda girava devagar sobre um pequeno trecho coberto de hera. Quando chegaram em casa, Macon deixou Edward sair para uma última volta. Tentou fazer a gata entrar, mas ela continuou encurvada sobre a saliência da janela da cozinha olhando para ele, como uma coruja, obstinadamente; então ele a deixou ficar. ou pelos cômodos desligando luzes. Quando chegou ao andar de cima, Sarah já estava na cama, apoiada na cabeceira com um copo de club soda. — Tome um pouco — ela disse, estendendo o copo.

Mas ele disse que não, estava cansado; tirou a roupa e deslizou para baixo das cobertas. O tilintar dos cubos de gelo de Sarah assumiu algum significado em sua mente. Parecia que a cada tilintar ele caía mais fundo. Por fim ele abriu uma porta e seguiu por uma agem entre fileiras de bancos e subiu na tribuna das testemunhas. Fizeram-lhe as perguntas mais simples. “Qual era a cor das rodas?”, “Quem trouxe o pão?”, “As persianas estavam fechadas ou abertas?” Ele honestamente não conseguia se lembrar. Tentava, mas não conseguia. Levaram-no à cena do crime, uma estrada sinuosa como algo de um conto de fadas. — Diga-nos tudo o que sabe — falaram. Ele não sabia nada. A essa altura estava claro, a julgar por seus rostos, que ele não era uma simples testemunha; era suspeito. Então ele vasculhou a própria mente, mas ainda assim saiu de mãos vazias. — Vocês têm que ver o meu lado em tudo isto! — ele exclamou. — Eu tirei tudo da minha mente; fiz força para tirar! Agora não posso trazer de volta. — Nem mesmo para se defender? — eles perguntaram. Ele abriu os olhos. O quarto estava escuro, e Sarah respirava suavemente ao seu lado. O radiorrelógio dizia que era meia-noite. O grupo do toque de recolher à meia-noite estava voltando. Vaias e risadas soaram, pneus cantaram numa curva, e uma correia do ventilador deu um guincho quando alguém tentou estacionar. Então aos poucos a vizinhança ficou em silêncio. Ficaria daquele jeito, Macon pensou, até a hora do grupo da 1 hora. Primeiro ele ouviria trechos débeis de suas músicas, depois mais risadas, portas de carros batendo, portas de casas batendo. Luzes nas varandas iam se apagar ao longo de toda a rua, escurecendo gradualmente o teto enquanto ele olhasse. No fim, ele seria o único acordado.

20 O avião para Nova York era uma coisinha de nada, mas o avião para Paris era um monstro, que mais parecia um apartamento. Dentro, grandes multidões enfiavam casacos e bolsas nos compartimentos sobre as poltronas, brigando, chamando as aeromoças. Bebês choravam e mães repreendiam seus filhos. A terceira classe dos navios não podia ter sido pior do que aquilo, Macon sentia. Ocupou sua poltrona junto a uma janela e foi seguido quase imediatamente por um casal mais velho falando francês. O homem se sentou ao lado de Macon e o cumprimentou com um aceno de cabeça, profundo e sério. Então disse algo à sua esposa, que lhe ou uma bolsa de lona. Ele abriu o zíper e remexeu no conteúdo. Baralho, uma lata inteira de Band-aids, um grampeador, um martelo, uma lâmpada... Macon estava fascinado. A toda hora deslizava os olhos para a direita, a fim de ver mais. Quando uma ratoeira de madeira caiu para fora, ele começou a imaginar que o homem podia ser algum tipo de louco; mas é claro que até uma ratoeira podia ser explicada, se você parasse para pensar um pouco. Sim, o que ele estava testemunhando, Macon concluiu, era apenas uma resposta à escolha eterna do viajante: O que era melhor? Levar tudo o que você tem, e penar para carregar? Ou viajar com pouca coisa e ar metade da viagem vasculhando as lojas em busca do que havia esquecido? Os dois métodos tinham suas desvantagens. Ele olhou para o corredor, aonde mais ageiros chegavam. Um japonês com uma grinalda de câmeras, uma freira, uma jovem de tranças. Uma mulher com um pequeno estojo de beleza, o cabelo, como uma tenda vermelha, o rosto, um triângulo magro. Muriel. Primeiro ele sentiu uma espécie de entusiasmo correr pelo seu corpo, aquela onda de calor que vem quando alguém familiar se adianta no meio de uma massa de estranhos. E depois: Oh, meu Deus, ele pensou, e chegou a olhar ao redor em busca de uma forma de escapar. Ela caminhou em sua direção de um modo gracioso e meticuloso, observando os próprios pés, e quando estava ao seu lado ergueu os olhos e ele viu que ela sabia o tempo todo de sua presença ali. Usava um terno branco que a transformava numa daquelas mulheres de preto, branco e vermelho que ele costumava irar nas telas de cinema quando era criança.

— Estou indo para a França — ela disse. — Mas você não pode ir! — ele falou. O casal francês olhou-o com curiosidade, a esposa se inclinando um pouco mais à frente a fim de vê-lo melhor. Mais ageiros chegaram atrás de Muriel. Eles murmuravam e esticavam o pescoço atrás dela, tentando se espremer para ar. Ela ficou parada no corredor e disse: — Vou caminhar pela beira do Sena. A esposa fez um pequeno “O” com a boca. Então Muriel notou as pessoas atrás dela e seguiu em frente. Macon nem sequer tinha certeza de que era possível caminhar pela beira do Sena. Assim que o corredor se liberou ele se ergueu ligeiramente e olhou lá para trás sobre as costas de sua poltrona, mas ela desaparecera. O casal francês se virou para ele, olhos cheios de expectativa. Macon se sentou outra vez. Sarah descobriria aquilo. Simplesmente acabaria sabendo. Ela sempre dizia que ele não tinha sentimentos e isso haveria de confirmá-lo — que ele podia se despedir dela tão afetuosamente e depois voar para Paris com Muriel. Bem, ele não era responsável por nada daquilo e uma ova que assumiria a culpa. Quando escureceu eles já estavam voando, e alguma espécie de ordem emergira no interior do avião. Era um daqueles aviões com uma programação tão intensa quanto um dia no jardim de infância. Filme sobre segurança, bebidas, fones de ouvido, jantar, filme. Macon recusou tudo o que lhe ofereciam e em vez disso estudou a pasta de Julian. A maior parte do material era ridícula. Hotel Sam’n’Joe, de fato! Ele se perguntou se Julian tinha inventado aquilo para implicar com ele. Uma mulher ou vestida de branco e ele olhou para ela sub-repticiamente, mas não era ninguém que conhecesse. Pouco antes do final do filme, ele pegou seu estojo de barbear e foi para um dos banheiros perto da traseira do avião. Infelizmente, outras pessoas tinham tido a mesma ideia. As duas portas estavam trancadas, e ele foi obrigado a esperar no corredor. Ele sentiu alguém chegar ao seu lado. Olhou, e lá estava Muriel. Ele disse: — Muriel, o que diab... — Você não é dono deste avião! — ela disse. — Cabeças se viraram. — E também não é dono de Paris. Estava em pé bem perto dele, cara a cara. Dela se projetava um cheiro que mal o enganava; não era só o seu perfume, não, mas sua casa; sim, era isso — o

cheiro do interior de seu closet, o cheiro atormentador e inquietante dos pertences de outra pessoa. Macon pressionou a têmpora esquerda. Disse: — Não entendo nada disso. Não sei nem mesmo como você sabia que voo tomar. — Liguei para a sua agente de viagens. — Becky? Você ligou para Becky? O que ela deve ter pensado? — Pensou que eu era sua assistente editorial. — E como você vai pagar os custos? — Oh, um pouco do dinheiro eu peguei emprestado com Bernice, e depois mais algum com a minha irmã, ela estava com esse dinheiro que tinha ganhado em... e fiz tudo em estilo econômico, peguei um trem para Nova York em vez de um avião... — Bem, isso não foi inteligente — Macon disse. — Provavelmente vai custar o mesmo, a longo prazo, ou até mais. — Não, o que eu fiz foi... — Mas a questão é, por que, Muriel? Por que você está fazendo isso? Ela levantou o queixo. (Seu queixo podia se tornar tão pontudo, às vezes.) — Porque fiquei com vontade — ela respondeu. — Ficou com vontade de ar cinco dias sozinha num hotel em Paris? — Você precisa de mim por perto — ela disse. — Preciso de você! — Você estava se despedaçando antes de mim. Um trinco estalou e um homem saiu de um dos banheiros. Macon entrou e trancou a porta rapidamente. Quem dera ele pudesse apenas desaparecer. Se houvesse uma janela, acreditava que a teria forçado e pulado — não porque ele quisesse cometer qualquer ato tão definitivo quanto o suicídio, mas porque queria apagar tudo; ah, Deus, bastaria voltar atrás e apagar todas as coisas descuidadas e impensadas pelas quais ele foi responsável na vida. Se ela tivesse lido pelo menos um de seus guias, saberia que não devia viajar de branco. Quando ele saiu, ela já se fora. Ele retornou ao seu assento. O casal francês encolheu os joelhos para que asse; estavam hipnotizados pela tela do filme, onde uma loira vestindo apenas uma toalha de banho batia na porta da casa de alguém. Macon pegou o Miss Macintosh só para ter algo em que pensar. Mas não funcionou. Palavras escorreram pelo seu campo de visão num fluxo delgado, transparente, sem fazer sentido. Ele estava consciente apenas de Muriel em algum lugar atrás dele. Sentia-se conectado a ela. Surpreendeu-se imaginando o que ela pensava daquilo — o avião escuro, o oceano invisível abaixo dela, o murmúrio de vozes quase irreais ao seu redor.

Quando desligou sua luz de leitura e fechou os olhos, imaginou poder sentir que ela ainda estava acordada. Era um sentimento no ar, algo alerta, tenso, quase vibrante. Pela manhã ele estava decidido. Usou um banheiro diferente, na parte da frente. Pelo menos dessa vez sentiu-se satisfeito por estar no meio da multidão. Quando pousaram, foi quase o primeiro a sair, e ou pela imigração rapidamente e disparou como uma flecha pelo aeroporto. O aeroporto era o Charles de Gaulle, com suas fileiras de assentos da era espacial. Muriel ficaria inteiramente perdida. Ele trocou o dinheiro às pressas. Muriel ainda devia estar esperando a bagagem. Ele sabia que ela traria muita bagagem. Esperar por um ônibus estava fora de questão. Ele fez sinal para um táxi e partiu rápido, sentindo-se de súbito maravilhosamente leve. O emaranhado de rodovias prateadas lhe pareceu, na verdade, prazeroso. A cidade de Paris, quando ele ingressou nela, estava tão ampla, pálida e luminosa como um olhar frio e indefinido, e ele irou o nevoeiro que pairava sobre ela. Seu táxi percorreu os bulevares enevoados em alta velocidade, virou numa rua de paralelepípedos e deu uma guinada ao parar. Macon vasculhou seus envelopes procurando por dinheiro. Só quando estava entrando no hotel lembrou-se de que sua agente de viagens sabia exatamente onde ele ia se hospedar. Não era um hotel muito luxuoso — um prédio marrom e pequeno onde coisas mecânicas tendiam a funcionar mal, como Macon descobrira em visitas anteriores. Desta vez, de acordo com um aviso no saguão, um dos dois elevadores não estava funcionando. O mensageiro o conduziu ao outro, e então ao terceiro andar e através de um corredor acarpetado. Ele escancarou a porta, exclamando alto em francês como se estivesse maravilhado com tal magnificência. (Uma cama, uma cômoda, uma cadeira, uma TV antiga.) Macon vasculhou um de seus envelopes. — Obrigado — ele disse, entregando a gorjeta. Quando se viu sozinho, ele desfez a mala e pendurou o paletó. Depois foi até a janela. Ficou parado olhando para os telhados; a poeira no vidro fazia com que parecessem distantes no tempo, parte de alguma outra era. Como ela ia se virar sozinha num lugar estranho? Ele pensou no modo como ela navegava por uma fileira de brechós, o modo como cruzava uma rua, hábil e decidida, saudando os antes pelo nome. E os compromissos aos quais ela levava os vizinhos: carregar Sr. Manion de carro ao reflexologista que dissolvia seus cálculos renais massageando-lhe os dedos dos pés; Sr. Runkle ao astrólogo que lhe disse que ganharia a loteria de 1 milhão de dólares; Sra. Carpaccio a um certo mercadinho perto da Johns Hopkins onde as

salsichas pendiam do teto como tiras de papel pega-mosca. Os lugares que Muriel conhecia! Mas ela não conhecia Paris. E estava inteiramente sozinha. Não tinha nem sequer um cartão de crédito, provavelmente levava pouquíssimo dinheiro, talvez não soubesse que devia trocar por francos o que levava. Talvez estivesse andando a esmo, desamparada, sem um tostão, incapaz de dizer uma palavra da língua. Quando ele a ouviu bater na porta, ficou tão aliviado que correu a abri-la. — Seu quarto é maior do que o meu — ela disse. ou por ele e foi até a janela. — Mas eu tenho uma vista melhor. Pense nisso, nós estamos mesmo em Paris! O motorista do ônibus disse que talvez chovesse mas eu disse a ele que não me importava. Chova ou faça sol, é Paris. — Como você sabia que ônibus pegar? — ele lhe perguntou. — Trouxe comigo o seu guia. — Ela deu uns tapinhas no bolso. — Quer ir ao Chez Billy para tomar o café da manhã? — ela perguntou. — É o que o seu livro recomenda. — Não, não quero. Não posso — ele disse. — É melhor você ir embora, Muriel. — Oh, está bem — ela disse. E foi embora. Às vezes ela fazia isso. Pressionava até ele se sentir capturado, então subitamente recuava. Era como um cabo de guerra em que a outra pessoa de repente largasse a corda, Macon pensou. Você cai no chão no ato; está tão despreparado. Está se sentindo tão vazio. Ele decidiu telefonar para Sarah. Em casa, o dia mal havia amanhecido, mas parecia importante entrar em contato com ela. Ele foi até a cômoda e pegou o telefone. Não havia linha. Apertou o botão algumas vezes. Típico. Colocou a chave no bolso e desceu até o saguão. O telefone do saguão ficava instalado dentro de uma antiga cabine de madeira, muito elegante. Havia um banco de couro vermelho para se sentar. Macon se curvou e ficou escutando a campainha tocar do outro lado, muito longe. — Alô? — Sarah disse. — Sarah? — Quem é? — É Macon. — Macon? Ela precisou de um momento para absorver aquilo.

— Macon, onde você está? — ela perguntou. — O que houve? — Não houve nada. Só fiquei com vontade de falar com você. — O quê? Que horas são? — Sei que está cedo e me desculpe por ter acordado você, mas queria ouvir sua voz. — Há algum tipo de estática na linha — ela disse. — Do lado de cá está nítida. — Sua voz parece tão tênue. — É porque é uma ligação internacional — ele disse. — Como está o tempo aí? — Como está quem? — O tempo! Está sol? — Não sei. As persianas estão todas fechadas. Acho que ainda não há nem luz. — Você vai fazer jardinagem hoje? — O quê? — Jardinagem! — Bem, ainda não pensei nisso. Vai depender do sol, eu acho. — Gostaria de estar aí — ele disse. — Poderia ajudar você. — Você detesta jardinagem! — Sim, mas... — Macon, você está bem? — Sim, estou ótimo — ele respondeu. — Como foi o voo? — Oh, o voo, bem, meu Deus! Bem, não sei; acho que estava tão ocupado lendo que nem notei direito — ele disse. — Lendo? — ela disse. Depois continuou: — Talvez você esteja com jet lag. — Sim, talvez eu esteja. Ovos fritos, ovos mexidos, ovo poché, omelete. Ele caminhou às cegas pela calçada. Não queria nem ar perto do Chez Billy. É intrigante, ele escreveu, como os ses são tão cuidadosos ao preparar a comida, mas tão desleixados ao servi-la. Na janela de um restaurante, uma gata preta fechou os olhos para ele. Parecia estar exultante. Estava tão em casa, tão segura do seu lugar. Mostradores de veludo amassado, sobre os quais se espalhavam, aqui e ali, correntes de ouro e relógios da espessura de fichas de pôquer. Mulheres vestidas como se estivessem no palco: penteados elaborados, maquiagem brilhante, calças com cortes estranhos que não tinham nada a ver com a anatomia humana. Senhoras de idade com babados de menininhas, meias finas brancas e sapatos boneca. Macon desceu a escada até o metrô; jogou ostentosamente seu bilhete

usado num pequenino receptáculo com a inscrição PAPIERS. Então se virou para olhar para todos os outros que atiravam seus bilhetes no chão, e ao se virar viu Muriel, seu rosto branco reluzindo em meio à multidão, mas devia ter se enganado. À noite, voltou para o hotel — os pés doloridos, os músculos das pernas doendo — e desabou na cama. Não se aram dois minutos antes que ouvisse baterem à porta. Ele gemeu e se levantou para abrir. Muriel estava ali com os braços cheios de roupas. — Olhe — ela disse, empurrando-o para ar. — Veja quanta coisa eu comprei. Jogou as roupas em cima da cama. Levantou-as uma por uma: uma capa curta preta, brilhante, uma calça justa marrom, um vestido de noite vermelho, bufante, de filó salpicado com discos de vidro em tamanhos diversos, como os refletores de bicicletas. — Você perdeu o juízo? — Macon perguntou. — Quanto tudo isso deve ter custado? — Nada! Ou quase nada — ela disse. — Encontrei um lugar que é como o avô de todas as vendas de garagem. Toda uma cidade de vendas de garagem! Essa garota sa me falou dele no lugar aonde eu fui tomar o café da manhã. Elogiei o chapéu que ela usava e ela me disse onde tinha comprado. Peguei o metrô para encontrar o local; o seu livro é bem útil com relação ao metrô; e é verdade, há de tudo lá. Ferramentas e engenhocas também, Macon. Baterias velhas de carro, caixas de fusíveis... e se você disser que algo é caro demais, eles abaixam o preço até ficar barato o suficiente. Vi esse casaco de couro pelo qual eu poderia cometer um crime, mas não consegui fazê-lo ficar barato o suficiente; o homem queria 35 francos. — Trinta e cinco francos! — Macon disse. — Não sei onde você conseguiria algo mais barato do que isso. Trinta e cinco francos são quatro dólares, aproximadamente. — Oh, é mesmo? Achei que francos e dólares eram mais ou menos a mesma coisa. — Meu Deus, não são. — Bem, então estas coisas foram superbarganhas — Muriel disse. — Talvez eu tente de novo amanhã. — Mas como você vai enfiar tudo isso no avião? — Ah, vou dar um jeito. Agora deixe-me levar isso de volta ao meu quarto para que possamos ir comer. Ele se enrijeceu. Disse: — Não, não posso.

— Que mal poderia haver em ir jantar comigo, Macon? Sou alguém de sua cidade! Você me encontrou por acaso em Paris! Não podemos comer alguma coisa juntos? Quando ela colocava as coisas dessa forma, parecia tão simples. Foram ao Burger King da Champs-Elysées; Macon queria conferir, de todo modo, aquele lugar. Pediu dois “Woppaires”. — Cuidado — ele advertiu Muriel —, esses não são os sanduíches Whopper com que você está acostumada. Tem que tirar os picles e a cebola extra. Mas Muriel, depois de provar o seu, disse que gostava daquele jeito. Sentouse ao lado dele num banquinho duro e lambeu os dedos. Seu ombro tocava o dele. Ele ficou realmente surpreso, de repente, que ela estivesse mesmo ali. — Quem está cuidando de Alexander? — ele lhe perguntou. — Ah, várias pessoas. — Que várias pessoas? Espero que você não tenha simplesmente largado ele com qualquer um, Muriel. Você sabe o quão insegura uma criança dessa idade pode... — Relaxe. Ele está bem. Claire fica com ele durante o dia e depois Bernice vem e faz o jantar e sempre que Claire tem um compromisso com o General as gêmeas ficam com ele, e se as gêmeas não puderem o General disse que Alexander pode... A Singleton Street apareceu diante dos olhos de Macon, em todas as suas cores e sua confusão. Depois do jantar Muriel sugeriu que dessem uma volta, mas Macon disse que estava cansado. Estava exausto, na verdade. Voltaram para o hotel. No elevador, Muriel falou. — Posso ficar um pouco no seu quarto? Minha TV não pega. — É melhor dizermos boa noite — ele lhe disse. — Não posso só entrar para lhe fazer companhia? — Não, Muriel. — Nós não precisaríamos fazer nada — ela disse. O elevador parou no andar dele. Ele disse: — Muriel. Você não entende a minha posição? Sou casado com ela há séculos. Quase mais tempo do que você tem de vida. Não posso mudar agora. Você não vê? Ela apenas ficou parada num canto do elevador, os olhos no rosto dele. Toda sua maquiagem tinha saído e ela parecia jovem, triste e indefesa. — Boa noite — ele disse. Saiu, e a porta do elevador deslizou e se fechou. Ele foi para a cama imediatamente, mas não conseguiu dormir em absoluto, e acabou ligando a TV. Estavam exibindo um western americano, dublado.

Caubóis esguios falavam um francês fluido e complexo. Os desastres aconteciam um após o outro: tornados, índios, secas, estouros de boiada. Mas o herói continuava firme. Macon já havia notado fazia muito que todos os filmes de aventura tinham a mesma moral da história: a perseverança recompensa. Por uma vez que fosse ele gostaria de ver um herói como ele mesmo — não alguém que desistisse, mas um homem que encarasse os fatos e desistisse elegantemente quando continuar insistindo fosse tolice. Ele se levantou e desligou a TV outra vez. Revirou-se na cama durante um bom tempo antes de dormir. Hotéis grandes, hotéis pequenos, hotéis sombrios com o papel de parede descascando, hotéis modernos com camas americanas king-size e cômodas americanas forradas de fórmica. Janelas escuras de cafés com os proprietários exibidos como manequins, segurando as mãos nas costas e se balançando desde os calcanhares até os dedos dos pés. Não se deixe enganar pelo prix fixe. É como sua mãe dizendo: “Coma, coma” — todos aqueles pratos impostos a você... No fim da tarde Macon se dirigiu, cansado, ao seu hotel. Atravessava o último cruzamento quando viu Muriel lá adiante. Seus braços estavam cheios de embrulhos, seu cabelo esvoaçava, e seus saltos agulha se moviam rapidamente. — Muriel! — ele chamou. Ela se virou e ele correu para alcançá-la. — Oh, Macon, tive um ótimo dia — ela disse. — Conheci essas pessoas de Dijon e acabamos almoçando juntos e eles me falaram de... Pegue, será que você pode levar algumas destas coisas? Acho que comprei demais. Ele pegou vários de seus embrulhos — sacolas amassadas, de aspecto usado, cheias de tecidos. Ajudou-a a carregá-los até o hotel e até o seu quarto, que parecia ainda menor do que era por causa das pilhas de roupas em toda parte. Ela jogou as compras na cama e disse: — Deixe-me mostrar, ora, onde é que está... — O que é isto? — Macon perguntou. Referia-se a uma garrafa de refrigerante de formato estranho sobre a cômoda. — Ah, encontrei isso na geladeira — ela disse. — Eles têm essa geladeirinha no banheiro, Macon, cheia de refrigerantes, e vinho e outras bebidas também. — Muriel, você não sabe que essas coisas custam os olhos da cara? Vão colocar na sua conta, você não sabia disso? Veja, essa geladeirinha se chama frigobar, e é para isso que você usa: de manhã, quando eles servem no seu quarto o café da manhã continental, trazem uma jarrinha de leite quente por alguma estranha razão e você simplesmente pega a jarrinha e coloca no frigobar para poder tomar um copo de leite mais tarde. De outro modo, sabe Deus de onde você tira o seu cálcio aqui neste país. E não coma os croissants; você sabe disso,

não sabe? Não comece o dia com carboidratos, especialmente sob a tensão da viagem. É melhor se dar ao trabalho de ir a algum café em busca de ovos. — Ovos, ugh — Muriel disse. Ela tirava a saia e vestia outra, uma que acabara de comprar, com franjas longas na barra. — Eu gosto dos croissants — ela disse. — E também gosto dos refrigerantes. — Bem, não sei como você pode dizer isso — ele falou. Pegou uma garrafa. — Olhe para o nome da marca: Pschitt. Se isso não é um som extremamente suspeito... e há um outro chamado Yukkie, Yukkery, algo desse tipo... — É o meu favorito. Já acabei com esses — Muriel disse. Prendia o cabelo no alto da cabeça. — Onde vamos jantar hoje? — Bem, não sei. Acho que está na hora de experimentar algum lugar chique. — Oh, que ótimo! Ele afastou o que parecia ser uma jaquetinha de cetim saída de um antiquário e ficou olhando enquanto ela ava batom. Foram a um restaurante iluminado a velas, embora ainda não estivesse totalmente escuro, onde os conduziram a uma mesa junto a uma janela alta, coberta com uma cortina. Os únicos outros fregueses eram americanos: quatro americanos estilo homens de negócios, nitidamente desfrutando de quatro pratos grandes de escargots. (Às vezes Macon se perguntava se de fato havia alguma demanda pelos seus livros.) — Muito bem, o que eu vou querer? — Muriel perguntou, estudando o cardápio. — Se eu perguntar em inglês o que é alguma coisa, você acha que eles vão conseguir me dizer? — Oh, não precisa se dar ao trabalho de fazer isso — Macon disse. — É só pedir uma Salade Niçoise. — Pedir o quê? — Achei que você tinha lido o meu guia! Salade Niçoise. É o único prato seguro. Viajei por toda a França sem comer outra coisa, todos os dias. — Bem, isso parece meio monótono — Muriel disse. — Não, não. Em alguns lugares eles colocam vagem, em outros, não. E pelo menos tem colesterol baixo, o que é mais do que você pode dizer de... — Acho que eu vou perguntar ao garçom — Muriel lhe disse. Colocou o cardápio de lado. — Você acha que eles as chamam de janelas sas em francês? — O quê? Não tenho a menor ideia — ele disse. Olhou na direção da janela, que tinha vidraças grossas e esverdeadas. Lá fora, num pátio com vegetação em demasia, um querubim de pedra esburacado cabriolava numa fonte.

O garçom falava mais inglês do que Macon esperara. Sugeriu a Muriel um creme de azeda-miúda e um tipo especial de peixe. Macon decidiu pedir a sopa também, em vez de ficar sentado sem fazer nada enquanto Muriel tomasse a dela. — Pronto — Muriel disse. — Ele não foi gentil? — Isso foi uma rara exceção — Macon respondeu. Ela bateu na barra da saia. — Maldita franja! Fico o tempo todo achando que alguma coisa está subindo pela minha perna — ela disse. — Aonde você vai amanhã, Macon? — Para fora de Paris. Amanhã começo a trabalhar nas outras cidades. — Vai me deixar aqui sozinha? — Esta é uma viagem rápida, Muriel. Não é diversão. Vou acordar com o raiar do dia. — Leve-me, assim mesmo. — Não posso. — Não tenho dormido muito bem — ela disse. — Tenho tido sonhos ruins. — Bem, então certamente não vai querer ficar vagabundeando por mais lugares desconhecidos. — Noite ada sonhei com Dominick — ela disse. Inclinou-se sobre a mesa, duas áreas coloridas no alto de suas bochechas. — Sonhei que ele estava furioso comigo. — Furioso? — Ele não queria falar comigo. Não queria olhar para mim. Ficava o tempo todo chutando alguma coisa na calçada. No fim das contas, ele estava furioso comigo porque eu não ia mais deixá-lo usar o carro. Eu disse: “Dominick, você está morto. Você não pode usar o carro. Eu deixaria se pudesse, acredite em mim.” — Bem, não se preocupe com isso — Macon disse. — Era só um sonho de viagem. — Estou com medo de que ele esteja mesmo furioso. Onde quer que esteja. — Ele não está — Macon falou. — Não ficaria furioso. — Estou com medo de que esteja. — Ele está feliz como uma cotovia. — Você acha mesmo? — Claro! Ele está lá em cima em alguma espécie de paraíso dos motores, polindo um carro só seu. E é sempre primavera e o sol está sempre brilhando e há sempre alguma loura de top para ajudá-lo com o polimento. — Você realmente acha que isso pode ser verdade? — Muriel perguntou. — Sim, acho — ele disse.

E o engraçado em tudo aquilo era que achava mesmo, naquele momento. Tinha uma imagem nítida de Dominick numa pradaria ensolarada, um pedaço de camurça na mão e um sorriso largo, satisfeito e convencido no rosto. Ela disse, no final da noite, que queria que ele fosse para o quarto dela, será que ele não podia vir? para protegê-la dos sonhos ruins?, e ele respondeu que não e lhe deu boa noite. E depois sentiu como ela o atraía, exercendo um profundo controle sobre ele, quando o elevador, aos estalos, levou-a embora. Enquanto dormia ele arquitetou um plano para levá-la consigo no dia seguinte. Que mal poderia haver? Era apenas uma viagem diurna. Várias vezes ao longo de seu sono disperso e intermitente ele pegou o telefone e discou o número do quarto dela. Foi uma surpresa descobrir, quando acordou pela manhã, que ainda não a havia convidado. Ele se sentou e estendeu a mão para o telefone e só nesse instante se lembrou, com o fone mudo apertado contra o ouvido, que o telefone não estava funcionando e ele se esquecera de avisar. Ele se perguntou se por acaso seria algo que teria condições de consertar sozinho, um fio fora da tomada ou coisa do tipo. Levantou-se e olhou atrás da cômoda. Curvou-se em busca de alguma espécie de tomada. E suas costas pifaram. Não havia dúvidas: aquele leve puxão num músculo à esquerda da sua coluna. A dor foi tão aguda que lhe tirou o fôlego. Depois diminuiu. Talvez tivesse ado por completo. Ele se endireitou, um movimento pequeníssimo. Mas foi suficiente para fazer a dor voltar com força total. Ele se abaixou na cama centímetro por centímetro. A parte difícil foi colocar os pés para cima, mas ele enrijeceu os músculos do rosto e conseguiu fazer isso também. Então ficou deitado pensando no que fazer em seguida. Uma vez isso tinha acontecido com ele, e a dor desaparecera em cinco minutos e não voltara mais. Fora apenas um evento incomum como câimbras nos pés. Mas uma vez também ficara de cama por duas semanas e andara como um homem muito velho durante um mês depois disso. Ficou deitado reorganizando sua agenda mentalmente. Se cancelasse uma viagem, postergasse outra... Sim, possivelmente o que tinha planejado para os próximos três dias poderia caber em dois, se pelo menos ele pudesse se mexer no dia seguinte. Devia ter voltado a dormir. Não sabia por quanto tempo. Acordou com uma batida e pensou ser o café da manhã, embora tivesse deixado instruções para não ser servido naquele dia. Mas então ouviu Muriel: — Macon? Você está aí? Ela estava esperando que ele ainda não tivesse deixado Paris; estava ali para

implorar novamente que ele a levasse. Ele sabia disso tão claramente como se ela tivesse anunciado. Ficou grato pelo espasmo que sentiu quando se virou para a direção oposta à da voz dela. De alguma forma aquele sono curto havia clareado sua cabeça, e ele viu que estava perigosamente perto de meter-se com ela de novo. Meter-se com ela: este foi o modo como ele colocou as coisas para si mesmo. Que sorte suas costas o haverem segurado. Mais um minuto, mais alguns segundos, e poderia estar perdido. Ele caiu no sono tão repentinamente que nem sequer a escutou ir embora. Quando acordou novamente já era muito mais tarde, sentiu, embora não quisesse se contorcer o necessário para poder olhar para o relógio. Um carrinho estava ando pelo seu quarto e ele escutou vozes, empregados do hotel, provavelmente, rindo no corredor. Eles deviam se sentir tão confortáveis ali; deviam todos se conhecer muito bem. Alguém bateu à porta, depois ouviu-se um barulho de chaves. Uma pequenina e pálida camareira enfiou a cara e disse: “Pardon monsieur”. Começou a recuar, mas então parou e perguntou algo em francês, e ele olhou para as costas e fez uma careta de dor. “Ah”, ela falou, entrando, e disse algo mais muito rapidamente. (Devia estar falando sobre as costas dela.). Ele disse: “Se você pudesse ao menos me ajudar a levantar, por favor”, porque concluiu que não tinha outra escolha a não ser ir telefonar para Julian. Ela pareceu entender o que ele queria e foi até a cama. Ele se virou de bruços e tentou se erguer com um braço — a única forma de se levantar sem sentir dor extrema. A camareira pegou seu outro braço e se enfiou por baixo, deixando que ele apoiasse o peso todo do corpo nela enquanto se erguia. Ela era muito mais baixa que ele, bonita num sentido frágil e dócil. Ele estava cônscio do seu rosto mal barbeado e de seu pijama amarrotado. “Meu paletó”, disse a ela, e prosseguiram mancando até a cadeira onde o paletó estava pendurado. Ela jogou-o nos ombros dele. Então ele disse: — Vamos descer? Até o telefone? Ela olhou para o telefone na mesa, mas ele fez um movimento negativo com a palma da mão, um gesto que lhe custou. Fez uma careta. Ela estalou a língua e o ajudou a sair para o corredor. Caminhar não era particularmente difícil; ele mal sentiu uma pontada. Mas o elevador sacolejou agonizante, algo que ele não tinha como prever. A camareira emitiu sons suaves de solidariedade. Quando chegaram no saguão, ela o conduziu à cabine telefônica e começou a ajudá-lo a se sentar, mas ele falou: — Não, não, de pé é mais fácil. Obrigado. Ela se afastou e o deixou ali. Ele a viu conversando com o recepcionista no balcão. Balançando a cabeça com pena; o recepcionista balançou a cabeça também. Macon temia que Julian ainda não tivesse chegado ao escritório, e não sabia

o número de sua casa. Mas o telefone foi atendido no primeiro toque. — Editora dos Homens de Negócios. Uma voz de mulher, confusamente familiar, por trás do chiado da ligação internacional. — Hm — ele disse. — Aqui é Macon Leary. Com quem estou... — Ah, Macon. — Rose? — Sim, sou eu. — O que você está fazendo aí? — Eu trabalho aqui agora. — Ah, entendo. — Estou colocando as coisas em ordem. Você não acreditaria no estado em que este lugar se encontra. — Rose, minhas costas pifaram — Macon disse. — Ah, não, justo agora! Você ainda está em Paris? — Sim, mas estava prestes a começar minhas viagens de um dia e há todos esses planos que tenho que alterar, compromissos, reservas de viagem, e não há telefone no meu quarto. Então, eu estava pensando se Julian poderia fazer isso daí. Quem sabe ele poderia pedir as reservas a Becky e... — Vou cuidar disso eu mesma — disse Rose. — Não se preocupe com nada. — Não sei quando vou para as outras cidades, diga a ele. Não tenho ideia de quando vou estar... — Vamos achar uma saída. Você foi ao médico? — Médicos não ajudam em nada. Basta ficar de cama. — Bem, então descanse, Macon. Ele deu a ela o nome de seu hotel, que ela repetiu vigorosamente e então mandou que ele voltasse para a cama. Quando ele retornou da cabine telefônica, a camareira tinha levado um mensageiro para ajudá-lo, e apoiando-se nos dois ele conseguiu chegar ao seu quarto sem problemas. Foram muito solícitos. Pareciam aflitos em deixá-lo sozinho, mas ele os assegurou de que ficaria bem. Durante toda a tarde ele ficou na cama, levantando-se duas vezes para ir ao banheiro e uma para pegar leite no frigobar. Não estava com tanta fome assim. Olhou para as flores marrons no papel de parede; pensou que nunca tinha conhecido um quarto de hotel com tanta intimidade. O lado da cômoda voltado para a cama tinha um risco na madeira que parecia um homenzinho ossudo de chapéu. Na hora do jantar, pegou uma garrafa de vinho no frigobar e avançou

devagar até a poltrona para bebê-lo. Até mesmo o gesto de levar a garrafa de vinho aos lábios causava dor, mas ele pensou que o vinho ia ajudá-lo a dormir. Enquanto estava sentado ali, a camareira bateu na porta e entrou. Perguntou, evidentemente, se ele queria algo para comer, mas ele agradeceu e disse que não. Ela devia estar a caminho de casa; carregava um livrinho de bolso surrado. Mais tarde, houve outra batida na porta, depois que ele se arrastara de volta à cama, e Muriel disse: — Macon? Macon? Ele ficou em absoluto silêncio. Ela foi embora. O ambiente se tornou cinzento e depois escuro. O homem ao lado da cômoda desapareceu gradualmente. os cruzaram o chão acima dele. Ele muitas vezes imaginara quantas pessoas morriam em hotéis. A lei das probabilidades diria que algumas morriam, certo? E aquelas que não tinham parentes próximos — digamos, um de seus leitores, um vendedor sem família — bem, o que era feito de tais pessoas? Será que existia alguma vala comum para viajantes desconhecidos? Ele poderia ficar deitado somente em duas posições: apoiado sobre o lado esquerdo ou de costas, e mudar de um para o outro significava acordar, decidindo-se conscientemente pela experiência penosa, estabelecendo sua estratégia. Depois ele retornava àquela irritante semiconsciência. Sonhou que estava sentado num avião ao lado de uma mulher vestida toda de cinza, uma mulher muito circunspecta, formal, de lábios finos, e ele tentava ficar imóvel, porque podia sentir que ela desaprovava o movimento. Era uma regra sua; ele de algum modo sabia disso. Mas ele foi ficando mais e mais desconfortável, então resolveu confrontá-la. Disse: — Minha senhora? — Ela virou os olhos para ele, olhos suaves e pesarosos sob cílios curvos e bonitos. — Miss Macintosh!. Acordou num espasmo de dor. Sentia-se como se um punho pequenino e cruel tivesse agarrado parte das suas costas e a retorcido. Quando o garçom trouxe seu café da manhã, a camareira veio junto. Ela devia ter um horário exaustivo, Macon pensou. Mas ficou feliz em vê-la. Ela e o garçom se ocuparam dele, misturando seu café com leite, e a camareira o ajudou a ir até o banheiro enquanto o garçom trocava os lençóis. Ele lhes agradeceu repetidas vezes; “Merci”, disse, desajeitadamente. Gostaria de saber como dizer em francês “Não sei por que vocês estão sendo tão gentis”. Depois que foram embora ele comeu todos os croissants, em que a camareira atenciosamente ara manteiga e geleia de morango. Depois ligou a TV em busca de companhia e voltou para a cama. Arrependeu-se da TV quando ouviu baterem à porta, porque achou que era Muriel e ela ouviria. Mas parecia cedo para Muriel estar acordada. E então uma

chave girou na fechadura e Sarah entrou. Ele disse: — Sarah? Ela usava um terno bege, e levava duas malas combinando, e trazia consigo uma espécie de brisa de eficiência. — Agora tudo está sob controle — ela disse. — Vou fazer as suas viagens por você. Colocou as malas no chão, beijou-o na testa e pegou um copo de sua bandeja de café da manhã. Enquanto ia para o banheiro, ela disse: — Remarcamos tudo nas outras cidades e começo amanhã. — Mas como você chegou aqui tão rápido? — ele perguntou. Ela voltou do banheiro, o copo cheio d’água. — Você tem que agradecer a Rose por isso — ela respondeu, desligando a TV. — Rose faz mágica. Ela reformou aquele escritório inteiro. Tome aqui uma pílula do Dr. Levitt. — Você sabe que eu não tomo pílulas — ele disse. — Desta vez vai tomar — ela insistiu. Ajudou-o a se erguer num dos cotovelos. — Vai dormir o máximo que puder, para ter tempo de se curar. Engula. A pílula era pequenina e muito amarga. Ele podia sentir seu gosto mesmo depois de ter se deitado novamente. — A dor está muito forte? — ela lhe perguntou. — Um pouco. — Como é que você está fazendo as refeições? — Bem, o café de manhã vem de qualquer modo, é claro. É mais ou menos isso. — Vou perguntar sobre o serviço de quarto — ela lhe disse, pegando o telefone. — Já que eu vou embora... O que há de errado com o telefone? — Está mudo. — Vou dizer na recepção. Posso lhe trazer alguma coisa enquanto estiver fora? — Não, obrigado. Quando ela saiu, ele quase se perguntou se a imaginara. Exceto pelo fato de que suas malas estavam ao lado da cama, lisas e de uma cor cremosa, as mesmas que ela guardava na prateleira do closet, em casa. Ele pensou em Muriel, no que aconteceria se ela batesse agora. Depois pensou em duas noites atrás, ou seriam três, quando ela entrara no quarto com todas as suas compras. Ele se perguntou se teria deixado traços. Um cinto perdido debaixo da cama, um disco de vidro caído de seu vestido de noite? Começou a se preocupar seriamente com aquilo. Parecia-lhe quase inevitável; claro que ela deixara alguma coisa. A única pergunta era o quê. E onde.

Gemendo, ele se virou e empurrou o corpo para se levantar. Saiu da cama com esforço e depois se colocou de joelhos para espiar ali embaixo. Não parecia haver nada por lá. Ele se pôs de pé e se inclinou sobre a poltrona para tatear as beiradas da almofada. Nada ali, tampouco. Na verdade, ela não chegara nem perto da poltrona, pelo que ele se lembrava; também não fora à cômoda, mas mesmo assim ele abriu as gavetas uma a uma para ter certeza. Seus próprios pertences, só um punhado, ocupavam uma delas. As outras estavam vazias, mas a segunda de cima para baixo estava salpicada de pó facial cor-de-rosa. Não era de Muriel, claro, mas parecia ser. Ele decidiu se livrar daquilo. Cambaleou até o banheiro, umedeceu uma toalha e voltou para limpar a gaveta. Então viu que a toalha estava com uma grande mancha rosada, como se uma mulher usando maquiagem demais tivesse enxugado o rosto com ela. Dobrou a toalha para ocultar a mancha e colocou-a nos fundos da gaveta. Não, aquilo poderia incriminá-lo. Tirou-a novamente e a escondeu sob a almofada da poltrona. Isso também não parecia direito. Por fim ele foi ao banheiro e lavou à mão a toalha, esfregando-a com um sabonete até a mancha ter desaparecido por completo. A dor em suas costas era constante, e gotas de suor brotavam de sua testa. Num dado momento ele concluiu que estava agindo de modo muito peculiar; na verdade devia ser a pílula; e largou a toalha molhada numa pilha no chão e se arrastou de volta à cama. Adormeceu de imediato. Não foi um sono normal; foi uma espécie de enterro. Ele soube que Sarah tinha voltado mas não conseguiu despertar para recebêla. E soube que ela saiu novamente. Ouviu alguém bater, ouviu o almoço sendo trazido, ouviu a camareira sussurrando: “Monsieur?” Continuava em seu estupor. A dor estava amortecida, mas ainda presente, apenas disfarçada, ele pensou; a pílula funcionava como aqueles desodorantes de ambiente de qualidade inferior nos anúncios, aqueles que apenas mascaram os odores desagradáveis. Então Sarah voltou pela segunda vez e ele abriu os olhos. Ela estava parada ao lado da cama com um copo d’água. — Como você está se sentindo? — ela perguntou. — Tudo bem — ele disse. — Aqui está a sua outra pílula. — Sarah, essas coisas são mortíferas. — Elas ajudam, não ajudam? — Elas me fazem apagar — ele disse. Mas tomou a pílula. Ela se sentou na beirada do colchão, tomando cuidado para não sacudi-lo. Ainda usava o terno e parecia ter acabado de se arrumar, embora a essa altura devesse estar exausta. — Macon — ela disse, em voz baixa. — Hmm.

— Eu vi aquela mulher, aquela sua amiga. Ele ficou tenso. Suas costas deram uma fisgada. — Ela também me viu — ela disse. — Pareceu muito surpresa. — Sarah, não é o que parece — ele lhe disse. — O que é, então, Macon? Eu gostaria de ouvir. — Ela veio por conta própria. Eu nem sabia disso até pouco antes de o avião decolar, juro! Ela me seguiu. Eu disse que não a queria por perto. Disse-lhe que não adiantava. Ela continuou olhando para ele. — Você não sabia até pouco antes de o avião decolar — ela disse. — Juro — ele insistiu. — Ele queria não ter tomado a pílula. Não estava em plena posse de suas faculdades. — Você acredita em mim? — ele lhe perguntou. — Sim, acredito em você — ela respondeu, e depois se levantou e começou a destampar os pratos do almoço dele. Ele ou a tarde em outro estupor, mas teve consciência da camareira vindo ver como ele estava duas vezes, e estava quase totalmente acordado quando Sarah chegou com uma sacola de supermercado. — Pensei em preparar eu mesma o seu jantar — ela disse. — Frutas frescas e coisas do tipo; você sempre se queixa de não comer frutas o suficiente quando viaja. — Isso é muito gentil da sua parte, Sarah. Ele foi se movendo até estar meio sentado, apoiado num travesseiro. Sarah desembrulhava queijos. — O telefone foi consertado — ela disse. — Você vai poder ligar para pedir suas refeições e tudo mais enquanto eu estiver fora. E então eu estive pensando: depois que eu tiver terminado as viagens, se você estiver melhor das costas, talvez pudéssemos fazer uns eios. Tirar algum tempo para nós, já que estamos aqui. Visitar alguns museus e coisas do tipo. — Ótimo — ele disse. — Ter uma espécie de segunda lua de mel. — Excelente. Ele a observou colocar os queijos num saco de papel alisado. — Vamos trocar sua agem de avião para uma data mais adiante — ela disse. — Sua reserva é para amanhã de manhã; não há a menor possibilidade de conseguir. Deixei minha própria agem com a volta em aberto. Julian disse que eu devia. Eu lhe contei onde Julian está morando? — Não, onde?

— Ele se mudou para a casa de Rose e dos seus irmãos. — Ele o quê? — Levei Edward para ficar com Rose enquanto estivesse fora e lá estava Julian. Ele dorme no quarto de Rose; começou a jogar Vacinação todas as noites depois do jantar. — Ora veja só — Macon disse. — Coma um pouco de queijo. Ele aceitou uma fatia, mudando de posição o mínimo possível. — É engraçado, Rose às vezes me recorda um linguado — Sarah disse. — Não no aspecto, é claro... Ela ficou no fundo do oceano por tanto tempo que um dos olhos mudou de lugar e foi parar do outro lado da cabeça. Ele parou de mastigar e a fitou. Ela colocava um líquido marrom e turvo em duas taças. — Cidra de maçã — ela lhe disse. — Achei que você não devia beber vinho com essas pílulas. — Oh. Certo — ele respondeu. Ela lhe entregou uma taça. — Um brinde à nossa segunda lua de mel — ela disse. — A nossa segunda lua de mel — ele ecoou. — Mais 21 anos juntos. — Vinte e um! — ele disse. Parecia tanta coisa. — Ou deveríamos dizer vinte. — Não, são 21 mesmo. Nós nos casamos em 19... — Isso porque pulamos o ano ado. — Oh — ele disse. — Não, ainda seriam 21. — Você acha? — Eu considero esse ano ado apenas um outro estágio no nosso casamento — ele disse. — Não se preocupe: são 21. Ela tocou a taça na dele. O prato principal deles era uma carne enlatada que ela espalhara em pão francês, e a sobremesa eram frutas. Ela lavou as frutas no banheiro, voltando com punhados de pêssegos e morangos; enquanto isso ficaram conversando, o que fez com que ele se sentisse em casa outra vez. — Comentei com você que recebemos uma carta dos Avery? Eles talvez em por Baltimore no final do verão. Oh, e o homem da descupinização veio. — Ah. — Não viu nada de errado. — Bem, isso é um alívio. — E eu quase terminei minha escultura e o Sr. Armistead diz que é a melhor

coisa que eu já fiz. — Que ótimo — Macon disse. — Oh — ela disse, dobrando o último saco de papel, — sei que você não acha minhas esculturas importantes, mas... — Quem foi que disse? — ele perguntou. — Sei que você acha que sou apenas essa mulher de meia-idade brincando de ser artista... — Quem disse? — Oh, eu sei o que você acha! Comigo não precisa fingir. Macon começou a afundar no travesseiro, mas foi logo trazido de volta por um espasmo muscular. Ela cortou um pêssego em pedaços, depois se sentou na cama e entregou a ele um dos pedaços. Disse: — Macon. Diga-me só isto. O menininho era a atração? - Hã? — Foi o fato de ela ter um filho o que o atraiu naquela mulher? Ele respondeu: — Sarah, juro a você, eu não tinha ideia de que ela planejava me seguir até aqui. — Sim, eu sei disso — ela falou —, mas estava pensando na questão do menino. — Qual questão do menino? — Eu estava me lembrando de quando você me disse que devíamos ter outro bebê. — Ah, bem, aquilo foi só... não sei o que foi aquilo — ele disse. Devolveu a ela o pêssego; não sentia mais fome. — Eu estava pensando que talvez você tivesse razão — Sarah disse. — O quê? Não, Sarah; Deus, foi uma ideia terrível. — Oh, sei que dá medo — ela lhe disse. — ito que ficaria com medo de ter outro bebê. — Exato — Macon falou. — Somos velhos demais. — Não, estou falando, você sabe, do mundo ao qual íamos trazê-lo. Tanta maldade e perigo. Eu ito: ficaria em pânico cada vez que o deixássemos sair na rua. Macon viu a Singleton Street em sua mente, pequena e distante como o pequeno mapa verde do Havaí de Julian e cheio de pessoas alegres esfregando os degraus da frente de casa, consertando seus carros, se refrescando na água dos hidrantes. — Oh, bem, você tem razão — ele disse. — Embora isso seja mesmo bem... comovente, não é? O modo como a maioria dos seres humanos tenta. Como eles tentam ser tão responsáveis quanto conseguem.

— Você está dizendo que sim, que podemos ter um bebê? — Sarah perguntou. Macon engoliu em seco: — Bem, não. Parece-me que o tempo para isso já ou, Sarah. — Então — ela disse — o menino dela não era a razão. — Olhe, já acabou. Será que não podemos virar a página? Eu não fico fazendo inquéritos a você, fico? — Mas não há ninguém me seguindo a Paris! — ela disse. — E se houvesse? Você acha que eu a consideraria culpada se alguém subisse num avião sem você saber? — Antes que decolasse — ela disse. — Perdão? Bem, espero que sim! — Antes que decolasse, você a viu. Podia ter ido até lá e dito: “Não. Saia daqui. Saia neste minuto. Não quero mais nada com você e nunca mais quero te ver.” — Você acha que sou dono da companhia aérea, Sarah? — Você podia tê-la detido se realmente quisesse — Sarah disse. — Podia ter tomado medidas. E então ela se levantou e começou a tirar o jantar deles. Ela lhe deu sua pílula seguinte, mas ele a segurou no punho fechado por algum tempo, porque não queria correr o risco de se mover. Ficou deitado com os olhos fechados, escutando Sarah tirar a roupa. Ela ligou a torneira no banheiro, ou a corrente na porta, desligou as luzes. Quando foi para a cama, as costas dele doeram, mesmo ela tendo tomado cuidado, mas ele não demonstrou. Ouviu-a respirando levemente quase que de imediato. Devia estar exausta. Ele refletiu que não tinha dado os o suficiente em sua vida, agora que pensava nisso. Não tinha mesmo. Seu casamento, seus dois empregos, seu tempo com Muriel, sua volta para Sarah, tudo parecia ter simplesmente lhe ocorrido. Ele não conseguia pensar numa única atitude de peso que tivesse tomado por conta própria. Seria tarde demais para começar? Haveria algum modo de aprender a fazer as coisas de forma diferente? Ele abriu a mão e deixou a pílula cair entre os lençóis. Seria uma noite inquieta, desconfortável, mas qualquer coisa era melhor do que cair de novo naquele estupor. Pela manhã, ele conseguiu realizar a viagem para fora da cama, até o banheiro. Fez a barba e se vestiu, ando longos minutos em cada uma dessas tarefas. Arrastando-se pelo quarto penosamente, fez a mala. O objeto mais

pesado que guardou foi Miss Macintosh, My Darling, e depois de pensar no assunto por um tempo, tirou-o outra vez e o colocou em cima da cômoda. Sarah disse: — Macon? — Sarah. Que bom você ter acordado — ele disse. — O que você está fazendo? — Estou arrumando a mala para ir embora. Ela se sentou. Seu rosto estava amassado de um lado. — Mas e quanto às suas costas? — ela perguntou. — E tenho todos esses compromissos! E nós vamos ter uma segunda lua de mel! — Querida... — ele disse. Ele se abaixou cuidadosamente até estar sentado na cama. Pegou sua mão, que estava sem vida enquanto ela observava seu rosto. — Você vai voltar para aquela mulher — ela disse. — Sim, vou. — Por que, Macon? — Eu simplesmente decidi, Sarah. Pensei nisso durante a maior parte da noite ada. Não foi fácil. Não estou encontrando o caminho mais fácil para ir embora, acredite em mim. Ela ficou sentada olhando fixamente para ele. Não tinha qualquer expressão no rosto. — Bem, não quero perder o avião — ele disse. Ele se sentou devagar e foi mancando até o banheiro pegar seu estojo de barbear. — Você sabe o que é isso? É tudo por causa daquela pílula! — Sarah gritou atrás dele. — Você mesmo disse que ela o derruba! — Não tomei a pílula. Houve um silêncio. — Macon? Você só está tentando ficar quite comigo pela vez que eu o deixei? — ela disse. Ele voltou com o estojo de barbear e disse: — Não, querida. — Imagino que você se dê conta de como vai ser a sua vida — ela disse. Saiu da cama. Ficou parada ao lado dele de camisola, segurando os próprios braços nus. — Vocês vão ser um daqueles casais descombinando que ninguém convida para festas. Ninguém vai saber o que pensar de vocês. As pessoas vão se perguntar, todas as vezes que encontrarem vocês: “Meu Deus, o que ele vê nela? Por que escolher alguém tão inapropriada? É grotesco, como é que ele a tolera?” E os amigos dela sem dúvida vão fazer as mesmas perguntas sobre você.

— Isso provavelmente é verdade — Macon disse. Sentiu uma suave pontada de interesse; via agora como tais casais evoluíam. Não eram, como ele sempre havia suposto, o resultado de alguma falta absurda de percepção, mas tinham ficado juntos por motivos que o resto do mundo jamais adivinharia. Abriu o zíper de sua bolsa. — Sinto muito, Sarah. Eu não queria decidir isto — ele disse. Pôs o braço dolorosamente em torno dela, e depois de uma pausa ela deixou sua cabeça descansar no ombro dele. Ocorreu a Macon que aquele era apenas um outro estágio de seu casamento. Haveria provavelmente outros estágios no trigésimo aniversário, no quadragésimo aniversário, no quinquagésimo, para sempre, por mais que eles decidissem percorrer caminhos separados. Ele não pegou o elevador; sentiu que não podia ar seu movimento vacilante. Desceu, em vez disso, pela escada. Conseguiu abrir a porta da frente empurrando-a com as costas, o corpo rígido. Na rua deparou-se com o alvoroço habitual de uma manhã durante a semana — balconistas ando às pressas, homens de pasta. Não havia táxis à vista. Ele rumou ao quarteirão seguinte, onde suas chances eram melhores. Caminhar era fácil, mas carregar a mala era uma tortura. Mesmo leve como era, fazia com que sua coluna ficasse desalinhada. Tentou levá-la na mão esquerda, depois na direita. E, afinal, o que havia lá dentro? Pijamas, uma muda de roupa de baixo, suprimentos de emergência que ele nunca usava... Ele parou diante de um edifício, um banco ou um prédio comercial com um muro baixo de pedra correndo ao redor. Colocou a mala sobre o muro e seguiu em frente, às pressas. Logo adiante viu um táxi com um garoto saindo, mas descobriu tarde demais que fazer sinal seria um problema. Levantar qualquer um dos dois braços era impossível. Então ele foi forçado a correr de um modo absurdo, apressado, enquanto gritava pedaços de francês que nunca havia dito em voz alta anteriormente: — Attendez! Attendez, monsieur! O táxi já estava indo embora e o garoto estava colocando a carteira no bolso do jeans, mas então levantou o rosto e viu Macon. Ele agiu rapidamente; virouse e gritou alguma coisa e o táxi freou. — Merci beaucoup — Macon arquejou, e o garoto, que tinha um rosto suave e puro, e cabelo louro desgrenhado, abriu para ele a porta do táxi e gentilmente ajudou-o a entrar. — Uf! — Macon disse, tomado por um espasmo. O garoto fechou a porta e então, para surpresa de Macon, ergueu a mão num adeus formal. O táxi seguiu em frente. Macon disse ao motorista aonde ia e afundou de volta no assento. Deu um tapinha sobre o bolso interno, verificando aporte, bilhete aéreo. Ele abriu o lenço e enxugou a testa.

Tudo em seu senso de direção falhara, como sempre. O motorista fazia a volta, voltando para o lugar de onde Macon acabara de vir. aram novamente pelo garoto. Ele tinha um modo vivaz de andar, com as pernas rígidas, que parecia familiar. Se Ethan não tivesse morrido, Macon pensou, ele não teria crescido e se tornado uma pessoa assim? Ele teria lançado mais um olhar ao garoto, mas não conseguia fazer o movimento. O táxi trepidava sobre os paralelepípedos. O motorista assobiava uma melodia entre os dentes. Macon descobriu que envolver o corpo com um dos braços de algum modo protegia suas costas dos solavancos. De tempos em tempos, porém, um buraco o pegava desprevenido. E se as pessoas mortas envelhecessem, não seria reconfortante? Pensar em Ethan crescendo no céu — 14 anos agora, em vez de 12 — aliviava um pouco a dor. Oh, era a imunidade deles ao tempo que tornava os mortos causadores de tanto sofrimento. (Olhe para o marido que morre jovem, a esposa envelhecendo sem ele; como é triste imaginar o marido voltando e a encontrando tão mudada.) Macon olhava pela janela do táxi, pesando a ideia em sua mente. Sentiu uma espécie de alvoroço interno, algo que o impulsionava para a frente. A aventura real, ele pensou, é o fluxo do tempo; é uma aventura tão intensa quanto qualquer um poderia desejar. E se ele imaginasse Ethan ainda fazendo parte desse fluxo — em algum outro lugar, mesmo que inalcançável — acreditava que talvez pudesse tolerar tudo aquilo, afinal. O táxi ou pelo hotel de Macon, marrom e arrumado, estranhamente familiar. Um homem acabava de sair com um cãozinho ansioso no braço. E ali na curva estava Muriel, cercada por malas e sacolas de compras com alças e caixas de papelão das quais se derramava veludo vermelho. Ela fazia sinal freneticamente para os táxis — primeiro um na frente, depois o de Macon. — Arrêtez! — Macon exclamou ao motorista. O táxi deu uma guinada e parou. Um súbito clarão de sol atingiu o parabrisa, e pequenos lampejos voaram pelo vidro. Os lampejos eram antigas gotas d’água, ou talvez marcas de folhas, mas por um momento Macon pensou que eram outra coisa. Eram tão brilhantes e festivos que por um momento ele pensou que eram confetes.

Este livro foi composto na tipologia Electra LH Oldstyle Figures, em corpo 11/15,3, impresso em papel off-white 8og/m2, no Sistema Cameron da Divisão Gráfica da Distribuidora Record.