Théophile Gautier O romance da múmia Título original: Le Roman de la Momie, 1858 Do texto em português — Editora Tecnoprint S.A., 1972 Editora Tecnoprint S.A. Grupo Ediouro
sinopse
Não muito longe do Nilo, no vale de Biban-el-Moluk, um jovem aristocrata inglês, lord Evandale, e um egiptólogo alemão, Dr. Rumphius, descobrem uma tumba egípcia intacta graças à ajuda de um escroque grego chamado Argiropoulos. Por mais de 3.500 anos, ninguém pisou no chão da câmara funerária em que repousa o sarcófago de um faraó. Quando abrem a pesada tampa de basalto negro, porém, os dois homens encontram, para sua surpresa, a múmia perfeitamente preservada de uma jovem de beleza magnífica chamada Tahoser. Após a descoberta, o romance conta a história da múmia e de seus amores.
dedicatória
A ERNEST FEYDEAU Dedico a você este livro, que lhe pertence por direito; ao me abrir sua erudição e sua biblioteca, fez-me acreditar que eu era um erudito e conhecia bem o antigo Egito para descrevê-lo; em seus os andei pelos templos, pelos palácios, pela hipogeia, na cidade viva e na cidade morta; você levantou diante de mim o véu da misteriosa Ísis e ressuscitou uma gigantesca civilização desaparecida. A história é sua, o romance é meu; não fiz mais que reunir em meu estilo, como um cimento de mosaico, as pedras preciosas que me trouxe. Th. G.
prólogo
— Tenho o pressentimento de que encontraremos um túmulo inviolado no vale de Biban-el-Moluk — dizia a um jovem inglês de ar fidalgo um personagem muito mais humilde, enxugando a calva com um grande lenço de xadrez azul. — Osíris o ouça — respondeu o jovem lord ao doutor alemão — mas não é a primeira vez que nos enganamos. Os caçadores de tesouros sempre chegam à nossa frente. — Um túmulo que não tenha sido escavado nem pelos reis pastores, nem pelos Medos de Cambises, nem pelos gregos, nem pelos romanos ou pelos árabes, que nos entregue as suas riquezas intactas e seu mistério virgem — continuava o encalorado sábio, com um entusiasmo que lhe fazia faiscar as pupilas por trás do vidro azul dos óculos. — E sobre o qual o senhor publicará uma eruditíssima dissertação, colocando-se no campo científico ao lado de Champollion e de outros sábios — disse o jovem lord. — Vou lhe dedicar minha dissertação, milord; pois sem a sua generosidade, eu não poderia confirmar minhas teorias, comparando-as com a visão prática dos monumentos, e morreria, na minha aldeia alemã, sem ter podido contemplar as maravilhas desta terra antiga — respondeu emocionado o sábio. Travava-se esse diálogo a pouca distância do Nilo, na entrada do vale de
Biban-el-Moluk, entre Lord Evandale, montado num cavalo árabe, e o Doutor Rumphius, mais modestamente acomodado num burro, cuja anca magra um felá açoitava. A barca que trouxera os dois viajantes e que durante a noite lhes deveria servir de morada estava amarrada do outro lado do Nilo, em frente à aldeia de Luxor, com os remos levantados e as grandes velas triangulares enroladas e atadas às vergas. Depois de visitarem as ruínas gigantescas de Tebas, tinham atravessado o rio num “sandal” (tipo de embarcação local leve) e se dirigiam para a árida cadeia de montanhas que encerra no fundo dos seus misteriosos hipogeus, os antigos habitantes dos palácios da outra margem. Lord Evandale, um desses jovens ingleses irrepreensíveis dos pés à cabeça, tais como a alta classe britânica os entrega à civilização, carregava consigo, por onde andasse, a desdenhosa segurança proporcionada por uma grande e hereditária fortuna, um nome histórico inscrito no “Peerage and Baronetage” (registro da nobreza inglesa), e por uma beleza sobre a qual só se poderia, no máximo, objetar, que era perfeita demais para um homem. Sócio do Iate Clube, o jovem lord permitia-se de vez em quando o capricho de uma excursão no seu iate chamado Puck, construído em madeira de teca, arranjado como um “boudoir” e manobrado por uma restrita, mas escolhida equipagem. No ano anterior visitara ele a Islândia; nesse ano visitava o Egito, e seu iate o esperava no porto de Alexandria. Trouxera consigo um sábio, um médico, um naturalista, um desenhista e um fotógrafo, para que a sua excursão não fosse inútil; ele próprio era homem instruído e seus êxitos na sociedade não faziam esquecer seus triunfos na Universidade de Cambridge. Vestia-se com aquela correção e aquele asseio meticuloso, característicos dos ingleses, que palmilham as areias do deserto nos mesmos trajes que usariam para um eio, no cais de Ramsgate, ou nas calçadas do West End. Rumphius, o egiptólogo, mesmo sob aquele clima ardente, trajava a casaca tradicional do sábio, com suas abas largas, o colarinho amarrotado, os botões esgarçados. Vestido com científica negligência, Rumphius, contudo, nada tinha de belo; uns ralos cabelos arruivados, mesclados de branco, juntavam-se ao redor das orelhas cabanas e se rebelavam contra a gola da casaca, sempre alta demais; a careca nua brilhava como um osso e encimava um nariz de comprimento prodigioso, esponjoso e bulboso na ponta, configuração que, somando-se aos discos azuis dos óculos, lhe dava uma vaga aparência de íbis, aparência ainda mais agravada pelos ombros curvos. Caminhavam, o lord e o doutor, na direção dos rochedos a pique que fecham o vale fúnebre de Biban-el-Moluk, a necrópole real da antiga Tebas, trocando o diálogo do qual reproduzimos algumas frases, quando, emergindo como um troglodita da goela negra de uma tumba vazia, habitação costumeira dos felás,
surgiu novo personagem, vestido de maneira teatral. Parou em frente aos viajantes e lhes fez a graciosa saudação dos orientais, que é ao mesmo tempo humilde, afetuosa e digna. Era um grego empreiteiro de escavações, fabricante e mercador de antiguidades, que vendia o novo quando lhe faltava o velho e há muito observava as idas e vindas dos viajantes através das ruínas; sabendo que não deixariam de atravessar o rio para visitar os hipogeus reais, esperara-os no seu próprio território, certo de lhes arrancar pelo ou pena. Encarava todo aquele império fúnebre como propriedade sua e maltratava bastante os pequenos chacais subalternos que tentassem ciscar pelos túmulos. Com a sutileza peculiar aos gregos, logo avaliou as rendas prováveis de Lord Evandale, pela apresentação de Sua Senhoria, e resolveu não o enganar, calculando que tiraria mais lucro da verdade que da mentira. Argirópulos, esse o nome do grego, explorara certos recantos do vale menos percorridos que os demais, e se convencera de que, num certo local, atrás de um monte de rochas aparentemente ali concentradas pelo acaso, existia a entrada de um túmulo, encoberta com particularíssimo cuidado. Sua grande experiência nessas pesquisas lhe mostrara milhares de indícios imperceptíveis a olhos inexperientes, mas claros para os seus olhos agudos como os dos gipaetas dos frontões dos templos. Há dois anos fizera essa descoberta e se abstivera até de para lá dirigir os os, ou sequer os olhos, no receio de chamar a atenção de algum violador de túmulos. — Vossa Senhoria tem intenção de fazer algumas pesquisas? — indagou Argirópulos. — Posso pôr à sua disposição cem felás intrépidos que, movidos pelo salário e pelas gorjetas, são capazes de cavar com as unhas até ao centro da Terra. Se convier a Vossa Senhoria, poderemos tentar descobrir uma esfinge enterrada, desobstruir uma nave, abrir um hipogeu… Vendo que o lord se mantinha imível ante aquela sedutora enumeração, e que um sorriso cético pairava sobre os lábios do sábio, Argirópulos compreendeu que não se defrontava com otários comuns e resolveu vender ao inglês a descoberta com a qual esperava consolidar sua pequena fortuna e dotar a filha. — Adivinho que são sábios e não simples viajantes, e que vulgares curiosidades não os seduziriam. Pois vou lhes revelar um túmulo que até hoje escapou aos investigadores e que só eu conheço. É um tesouro que guardei preciosamente para alguém que fosse digno dele. — E pelo qual cobrará caro — disse o lord, sorrindo. — Minha franqueza me impede de contradizer Vossa Senhoria. Por um túmulo da mais alta antiguidade, milord, que mão humana jamais perturbou
durante mais de três mil anos, depois que os sacerdotes lhe taparam a entrada com rochas, mil guinéus serão demais? Na verdade é baratíssimo. Pois o túmulo talvez esconda montões de ouro, colares de diamantes, brincos de carbúnculos, selos de safira, velhos ídolos de metal precioso, e moedas valiosas. — Velhaco esperto — disse Rumphius — você sabe valorizar a sua mercadoria. Mas sabe muito bem que não se encontram mais esses tesouros nos túmulos egípcios. Argirópulos, compreendendo que tratava com entendidos, deixou de lado as fantasias e virou-se para Evandale: — E então, milord, o negócio lhe convém? — Vá lá pelos mil guinéus, desde que o túmulo nunca tenha sido aberto, como você garante; e nada… se uma única pedra já houver sido deslocada pelos escavadores. — E sob a condição — ajuntou o prudente Rumphius — de que levaremos conosco tudo o que encontrarmos no túmulo. Argirópulos respondeu com firme segurança: — Aceito. Vossa Senhoria pode preparar o dinheiro em notas ou em ouro. — Meu caro Senhor Rumphius — disse Lord Evandale ao seu acólito — creio que está prestes a realizar-se o que você há pouco formulou. Esse camarada parece muito seguro de si. — Deus o queira — respondeu o sábio, levantando e baixando sobre a calva a grande gola da casaca, num gesto de dúvida. — Os gregos são descarados mentirosos! Cretae mendaces, como diz o ditado. — Mas este decerto é um grego de terra firme — respondeu Lord Evandale. — E acho que desta vez disse a verdade. Comportando-se como cavalheiro educado, o empreiteiro das escavações pôs-se alguns os à frente do lord e do sábio. Caminhava seguro e alegre, como homem que se sente em terreno seu. Breve chegaram ao estreito desfiladeiro que dá entrada ao vale de Biban-elMoluk. Sob as paredes a pique da rocha cortada, distinguiam-se vagamente restos informes de esculturas, roídas pelo tempo, e que mais pareciam asperezas naturais da pedra imitando um baixo-relevo. Para além da agem o vale se alargava um pouco, apresentando um espetáculo da mais triste desolação. De ambos os lados se elevavam, em escarpas, massas enormes de rochas calcárias, rugosas, estéreis, fendidas, pulverulentas, em plena decomposição sob o sol implacável. Os raios do sol aqueciam em brasa um dos lados do vale fúnebre; o outro lado tinha aquela cor azulada e crua das regiões tórridas, que parece inverossímil
nas terras do norte, quando os pintores a reproduzem, e que lembram as sombras desenhadas numa planta de arquiteto. Não se encontraria em todo o vale uma pitada de terra vegetal; e, portanto, nem uma folha de erva, nem um cardo, nem uma liana, nem mesmo uma pequena mancha de musgo que viesse interromper o tom uniformemente alvacento daquela paisagem estorricada. Dir-se-ia que tudo ali eram cinzas de uma cadeia de montanhas incendiada na era das catástrofes cósmicas, num grande fogo planetário; para completar a comparação, viam-se grandes ranhuras negras, semelhantes a cicatrizes de cauterização, riscando o flanco das escarpas. Reinava um silêncio absoluto sobre aquela devastação; nenhum frêmito de vida a perturbava, ou palpitação de asa, ou zumbido de inseto, nem corrida de lagarto ou réptil. Nem a própria cigarra, tão amiga das solidões ardentes, cantava ali. Aqui e além, nos flancos dos rochedos, abriam-se bocas negras, cercadas por blocos de pedras em desordem; buracos quadrados, emoldurados por pilares historiados de hieróglifos, e cujos frontões mostravam cartuchos misteriosos, onde se distinguiam, num grande disco amarelo, o escaravelho sagrado, o sol de cabeça de carneiro, e as deusas Ísis e Néftis, ajoelhadas ou de pé. Estavam ali os túmulos dos antigos reis de Tebas! Mas Argirópulos não se detinha e guiava os seus viajantes por uma espécie de rampa que a princípio parecia apenas uma ranhura no flanco da montanha, interrompida várias vezes por deslizamentos, até um platô estreito, ou cornija saliente sobre a parede vertical. Ali, os rochedos, aparentemente agrupados ao acaso, tinham, entretanto uma espécie de simetria, quando olhados com cuidado. Quando o lord, afeito a todas as proezas da ginástica, e o sábio, muito menos ágil, conseguiram aproximar-se de Argirópulos, este apontou com a sua bengala uma pedra enorme e disse com ar de triunfal satisfação: — É ali! — Argiropoulos bateu palmas à maneira oriental e imediatamente, das fissuras da rocha, das dobras do vale, acorreu às pressas um bando de felás, lívidos e desgrenhados, cujos braços cor de bronze agitavam alavancas, picaretas, martelos, escadas e demais ferramentas necessárias; escalaram a ladeira escarpada como uma legião de formigas negras. O grego fez um sinal a três dos mais robustos, que enfiaram as alavancas sob a massa maior de rochedos. Os músculos saltavam como cordas nos magros braços dos felás que punham todo o seu peso na ponta da barra de ferro. Afinal a massa se deslocou, vacilou alguns instantes como um bêbedo e rolou aos saltos pela escarpa. Dois outros blocos de dimensões menores foram afastados e então pôde-se verificar quão justas eram as previsões do grego. A entrada do túmulo, que evidentemente escapara às pesquisas dos caçadores de tesouros, apareceu
em toda a sua integridade. Era uma espécie de pórtico cavado em quadrado na rocha viva: sobre as paredes laterais dois pilares gêmeos mostravam os capiteis em formato de cabeça de vaca, cujos cornos compunham o crescente de Ísis. Atrás de uma parede de cascalhos e tijolos crus, que logo cedeu à picareta dos operários, descobriu-se uma laje de pedra que compunha a porta do monumento subterrâneo. Descalçaram a laje para enfiar a alavanca, pois o lord recomendara que não quebrassem nada. E então surgiu em meio à areia uma multidão de figurinhas de algumas polegadas de altura, feitas de barro esmaltado em azul ou verde, obra perfeita, minúsculas estatuetas funerárias, ali depostas em oferenda pelos parentes e amigos, tais como as coroas de flores que colocamos à porta das capelas fúnebres. Mas as flores logo murcham e aqueles testemunhos de dores antigas estavam ali intactos, já há mais de 3.000 anos. O Egito só trabalha para a eternidade. Abriu-se a porta de pedra deixando ar pela primeira vez a luz do Sol, depois de trinta e cinco séculos. Uma lufada de ar ardente saiu da sombria abertura, como da boca de um forno. Os pulmões esbraseados da montanha pareciam soltar um suspiro de satisfação por aquela boca tanto tempo selada. A luz arriscou-se pelo corredor fúnebre, fez brilhar vivamente as iluminuras dos hieróglifos entalhados na muralha em linhas perpendiculares, repousando sobre um plinto azul. Uma figura de cor vermelha, cabeça de milhafre, toucada pelo pschent, segurando um disco que encerrava o globo alado, parecia vigiar à entrada do túmulo, como um porteiro da Eternidade. Alguns dos felás acenderam tochas e precederam os dois viajantes, acompanhados por Argirópulos. O corredor penetrava diretamente pelo núcleo da montanha, acompanhando um filão calcário de grande pureza. No fundo do corredor uma porta de pedra, selada como a outra por um selo de argila, e encimada pelo globo de asas abertas, testemunha de que a tumba não fora violada, indicava a existência de novo corredor a mergulhar no ventre da montanha. Atacaram a porta que cedeu logo. Apareceu uma escadaria, de inclinação forte, talhada na rocha viva. À escadaria sucedeu uma rampa de grande declive. As muralhas eram cobertas de pinturas onde se distinguiam vagamente séries de cenas alegóricas, explicadas decerto pelos hieróglifos, inscritos abaixo, como legendas. Ao fim do corredor, o felá que levava a tocha recuou, num movimento brusco. O caminho se interrompia subitamente e, à superfície do solo, escancarava-
se, quadrada e negra, a boca de um poço. — Há um poço aqui, patrão — disse o felá para Argirópulos. — Que é que se faz? O grego apanhou uma tocha, sacudiu-a, para lhe aumentar a chama, e a lançou na goela escura do poço, inclinando-se com cuidado sobre o orifício. A tocha desceu rodopiando e assobiando; logo se escutou uma pancada surda, seguida de um crepitar de fagulhas e uma nuvem de fumaça; logo depois a chama se refez clara e viva, e a abertura do poço ficou a brilhar na escuridão, como o olho sangrento de um ciclope. — Gente astuciosa! — comentou o jovem lord. — Esses labirintos entremeados de poços destinam-se a aplacar a cobiça dos ladrões e dos sábios. — Mas não dá resultado — respondeu o doutor. — Os ladrões procuram ouro, os sábios a verdade, as duas mercadorias mais preciosas do mundo. — Tragam a corda de nós — gritou Argirópulos para os árabes. — Vamos explorar e sondar as paredes do poço, porque a escavação deve ir muito mais além. Oito ou dez homens, para o contrapeso, agarraram-se a uma ponta da corda e a outra ponta foi atirada ao poço. Com a agilidade de um macaco ou de um acrobata de profissão, Argirópulos agarrou-se ao cabo flutuante e se deixou cair por cerca de uns cinco metros, segurando-se aos nós e batendo com os calcanhares nas paredes do poço. A rocha auscultada produzia sempre um som cheio; Argirópulos então deixou-se escorregar até ao fundo do poço, batendo o chão com o bastão do seu “kandjar”; mas a rocha compacta não ressoava. Evandale e Rumphius, com febril curiosidade, debruçavam-se à borda do poço, arriscando-se a uma queda de cabeça para baixo, e acompanhavam com apaixonado interesse as pesquisas do grego. — Aguentem firme aí em cima — gritou afinal o explorador, cansado da inutilidade da perquisição; e segurou-se à corda com as duas mãos, para subir. A sombra de Argirópulos, iluminada por baixo pela chama da tocha que continuava a arder no fundo do poço, projetava-se no teto e desenhava a sua silhueta como um pássaro disforme. Era imenso o desapontamento na cara morena do grego, que mordia o lábio coberto pelo bigode. — Nem sinal de agem! Mas a escavação não pode parar aqui! — e o grego estirava-se sobre a borda do buraco, examinando, com o seu olhar penetrante de ave noturna, as paredes da pequena alcova formada pela parte superior do poço. De repente, parece que uma ideia o iluminou, e ele deu meia volta; sua velha experiência de empreiteiro de escavações lembrou-lhe um caso parecido. Aliás, o desejo de ganhar os mil guinéus do lord lhe estimulava a
inteligência: tomou uma picareta das mãos de um felá e, voltando sobre o caminho percorrido, pôs-se a bater com força, à direita e à esquerda, pela parede de pedra, arriscando-se a martelar algum hieróglifo ou quebrar o bico ou o élitro de um gavião ou escaravelho sagrados. O muro interrogado acabou por responder às perguntas do martelo e soou cavo. O grego berrou triunfante, com os olhos a, cintilar. O sábio e o lord bateram palmas. — Cavem aqui! — gritou Argirópulos para os homens, já seguro de si. Logo se abriu uma brecha que dava agem a um homem. Uma galeria contornava o obstáculo formado pelo poço contra os profanadores e levava a uma sala quadrada. Essa câmara tinha o teto azul apoiado em quatro pilares maciços, iluminado por figuras de pele vermelha e tanga branca, semelhante às que aparecem tão frequentemente nos afrescos egípcios com o busto de frente e a face de perfil. Essa câmara desembocava em outra de teto, um pouco mais alta e apoiada apenas em dois pilares. Tanto as paredes como os pilares eram ornamentados por diversas cenas, o Bari místico, o touro Ápis a carregar a múmia para as regiões do Ocidente, o julgamento da alma, a pesagem das ações do morto na balança suprema, as oferendas feitas às divindades funerárias. Só alguns minutos foram dedicados ao exame desses incisos, desenhados com toda a pureza do melhor estilo egípcio, na sua época clássica; logo os exploradores perceberam que a sala não tinha saída e que haviam chegado a uma espécie de caecum. O ar ia ficando rarefeito; as tochas ardiam mal, aumentando o calor do ambiente e enchendo-o de nuvens de fumo. O grego se oferecia a todos os diabos, como se essa dádiva já não fosse antiga o que não adiantava nada. De novo se sondaram, sem resultado, as paredes de rocha; a montanha plena, espessa, compacta, dava um som sempre firme. Nenhum sinal de porta, corredor ou qualquer espécie de abertura! O lord não escondia o desânimo; o sábio deixava pender moles os magros braços, ao longo do corpo. Argirópulos, temendo pelos mil guinéus, demonstrava um desespero feroz. E afinal tinham que voltar, pois o calor abafava intoleravelmente. Retornou à primeira sala e o grego, que não se resignava a ver virar fumaça o seu sonho de ouro, pôs-se a examinar com minuciosíssima atenção o cimo das colunas, para verificar se não escondiam algum artifício, algum alçapão que se descobriria ao movimentá-los; no seu desespero Argirópulos já confundia a arquitetura egípcia com os castelos quiméricos dos contos árabes. Mas os pilares faziam parte da própria massa da montanha, formavam com
ela um todo único e a sala fora escavada ao redor deles. Só um explosivo os abalaria. Estavam perdidas as esperanças. — Mas ninguém iria cavar à toa este labirinto, só de brincadeira! — observou Rumphius. — Deve existir num lugar qualquer outra agem igual à que rodeia o poço. Claro que o defunto está selado, para se defender contra os importunos. Mas, insistindo, conseguiremos descobrir a agem. Quem sabe alguma laje bem disfarçada (e este pó espalhado no chão talvez lhe encubra as juntas) não esconde uma descida que leve à sala fúnebre? Direta ou indiretamente. — Tem razão, meu caro doutor — exclamou Evandale. — Os danados desses egípcios soldam as pedras como as charneiras de um alçapão inglês! Vamos procurar mais. A ideia do sábio pareceu judiciosa ao grego, que se pôs a andar e fez andarem os felás, batendo com os calcanhares em todos os cantos e recantos da câmara. Afinal, perto do terceiro pilar, uma ressonância surda atraiu o fino ouvido do grego, que se atirou de joelhos e pôs-se a examinar o local, varrendo com um farrapo de albornoz, que um dos seus árabes lhe ara, a poeira impalpável, polvilhada durante cinco séculos de sombra e de silêncio. E aos poucos se desenhou uma linha negra, fina e clara como um traço riscado com régua numa planta de arquiteto; depois que a limparam toda, verificou-se que cortava no chão o formato de uma laje oblonga. — Bem que eu dizia! — gritava o sábio, entusiasmado — o subterrâneo não podia terminar assim! Enfiaram-se pinças na estreita fenda e, com algum esforço, a laje se abalou e ergueu-se. Uma escada de altos degraus a pino, afundando-se na escuridão, oferecia-se aos pés impacientes dos viajantes, que por ela se precipitaram. À escada sucedeu uma galeria em rampa, colorida dos dois lados por figuras e hieróglifos. Ao fim da galeria apareceram ainda alguns degraus, levando a um curto corredor, espécie de vestíbulo de uma sala do mesmo estilo que a primeira, porém maior, amparada por seis pilares maciços, cavados na rocha. A ornamentação dessa câmara era mais rica e os motivos de pintura fúnebre se multiplicavam sobre um fundo amarelo. À direita e à esquerda abriam-se na rocha duas pequenas criptas ou câmaras repletas de figurinhas funerárias em barro esmaltado, em bronze e em madeira de sicômoro. — Entramos na antecâmara da sala onde deve estar o sarcófago! —
exclamou Rumphius, deixando ver sob os óculos, que empurrara para a testa, os olhos cinzentos, faiscantes de alegria. Lord Evandale caminhou à frente, precedendo de alguns os o sábio menos ágil, ou que, por deferência, queria deixar ao moço lord a virgindade da descoberta. E, ao entrar na câmara mortuária, Lord Evandale sentiu-se presa de uma impressão singular. Parecia-lhe que, tal como na frase de Shakespeare, “a roda do tempo saíra do seu trilho”: no seu íntimo, a noção da vida moderna se apagava. Uma mão invisível invertera a ampulheta da eternidade, e os séculos tombando de grão de areia em grão de areia, como as horas na solidão e na sombra, recomeçavam a cair. Embora o local nada apresentasse de sinistro, invadia-o uma espécie de terror religioso, ao violar aquele palácio da Morte, tão cuidadosamente defendido contra os profanadores. Parecia-lhe uma tentativa ímpia e sacrílega e ele pensava: “Se o Faraó se levantar da tumba e me bater com o seu cetro!” Por um instante teve ele a ideia de deixar recair o sudário meio erguido sobre o cadáver daquela antiquíssima civilização. Mas o doutor, possuído de entusiasmo científico, não se permitia tais reflexões e berrava em voz estridente: — Milord, milord, o sarcófago está intacto! — Essa frase devolveu Lord Evandale ao sentimento da realidade. Saltando em pensamento, fez de volta os cinco séculos que o seu devaneio escalara, e respondeu: — Intacto, realmente, meu caro doutor? — Felicidade inaudita! Sorte maravilhosa! Achado inapreciável! — continuava a bradar o doutor, no seu delírio de erudito. Argirópulos, constatando o entusiasmo do doutor, teve remorsos, a única espécie de remorsos que lhe era possível, remorsos por não haver pedido mais mil guinéus. E pensava: “Fui ingênuo. Poderia ter conseguido muito mais. Este lord me roubou”. E prometia corrigir-se para o futuro. Para que os estrangeiros apreciassem bem a beleza do local, os felás haviam acendido todas as tochas. Era na verdade um espetáculo estranho e magnífico. Assim iluminada, a sala colorida parecia arder, e talvez pela primeira vez a cor das suas pinturas reluzisse em plena claridade. Vermelhos, azuis, verdes, brancos de um brilho novo, de uma pureza inédita, se destacavam daquela espécie de verniz dourado que servia de fundo às figuras e aos hieróglifos, e prendiam os olhos, antes que se pudessem distinguir os temas do conjunto. Maciço e grandioso, erguia-se, no meio da sala, o sarcófago cavado num bloco enorme de basalto negro, coberto por uma tampa também de basalto, de dorso abaulado. As quatro faces do monólito fúnebre eram cobertas por
personagens e hieróglifos tão preciosamente gravados quanto o entalhe da pedra de um anel. E os egípcios não conheciam o ferro, e o basalto tem o grão tão duro que amolga os aços mais rijos. A imaginação se desorienta, a cogitar por que processo aquele povo maravilhoso escrevia sobre o pórfiro e o granito, como com um estilete em tabuletas de cera. — Devemos abrir o sarcófago? — indagou Argiropoulos após permitir a Lord Evandale e a Rumphius que irassem os esplendores da sala dourada. E o moço lord respondeu logo: — Claro! Mas tenham cuidado em não desbeiçar as bordas da tampa quando enfiarem as alavancas nas junções. Quero levar este túmulo de presente ao British Museum. O bando inteiro reuniu forças para deslocar o monólito; por precaução calçaram as alavancas com cunhas de madeira. Ao cabo de alguns minutos de trabalho a pedra enorme se deslocou e deslizou sobre os calços preparados para a receberem. O sarcófago aberto deixava agora ver o ataúde fechado hermeticamente. Era um cofre ornado de pinturas que representava uma espécie de naos, com desenhos simétricos, losangos, quadrilhados, palmetas e linhas de hieróglifos. Levantou-se a tampa, e Rumphius, que se debruçara sobre o sarcófago, deu um grito de surpresa, ao olhar o interior do ataúde. — Uma mulher! Uma mulher! O sábio reconhecera o sexo da múmia pela ausência da barba de Osíris e pelo formato da cartonagem. Também o grego parecia espantado; sua velha experiência de escavador permitia-lhe compreender o quanto de insólito havia naquela descoberta. O vale de Biban-el-Moluk é a basílica de S. Dinis da antiga Tebas, e só contém tumbas de reis. A necrópole das rainhas fica situada mais além, numa outra garganta da montanha. Os túmulos das rainhas são simples, compostos ordinariamente por dois ou três corredores e de uma ou duas câmaras. No Oriente as mulheres sempre foram consideradas inferiores aos homens, mesmo depois da morte. E a maioria das tumbas de rainhas, violadas desde tempos muito antigos, serviram de receptáculo a múmias disformes, grosseiramente embalsamadas, onde se descobrem ainda sinais de lepra e de elefantíase. Qual seria a singularidade, o milagre, que fizera um ataúde feminino ocupar aquele sarcófago real, num palácio subterrâneo digno do mais ilustre e do mais poderoso dos faraós? O Doutor Rumphius observou a Lord Evandale: — Isso vem alterar todas as minhas noções, todas as minhas teorias, e inverte os sistemas melhor estabelecidos a respeito dos ritos fúnebres egípcios, seguidos com tanta exatidão durante milhares de anos! Com toda a certeza demos com
algum ponto obscuro — um mistério perdido na história. Sabe-se que uma mulher subiu ao trono dos faraós e governou o Egito: chamava-se Tahoser, segundo dizem alguns cartuchos superpostos a gravações mais antigas e desfeitas a martelo. Tahoser usurpou a tumba, como usurpara o trono; e talvez outra ambiciosa, cuja lembrança a história não guardou, haja repetido a tentativa. — Ninguém melhor do que nós poderá resolver esse difícil problema — disse Lord Evandale. — Vamos levar para a nossa barca este ataúde cheio de segredos; lá o senhor poderá decifrar à vontade este documento histórico e sem dúvida há de descobrir o enigma representado por estes milhafres, estes escaravelhos, estes vultos ajoelhados, estas linhas serrilhadas, estes uraeus alados, estas mãos em espátula, que o senhor sabe ler tão bem quanto o grande Champollion. Dirigidos por Argirópulos, os felás ergueram sobre os ombros o imenso cofre; e a múmia, refazendo em sentido inverso o eio que realizara nos tempos de Moisés, num bari pintado e dourado, precedido por um longo cortejo, embarcada sobre a balsa que trouxera os viajantes, em breve chegou à barca amarrada à margem do Nilo. E tão pouco muda a forma das coisas no Egito que a cabine onde a pam parecia-se muito com a naos da barca fúnebre em que da primeira vez a haviam conduzido. Argirópulos arrumou em torno do caixão todos os objetos que haviam sido encontrados ao redor dele e ficou de pé, respeitosamente, à porta da cabine, à espera. Lord Evandale compreendeu e mandou que o seu criado lhe contasse os mil guinéus. O ataúde aberto repousava sobre umas vigas no meio da cabine, e, brilhando dum clarão tão vivo como se as cores e ornamentos houvessem sido aplicados na véspera, enquadrava a múmia, moldada na sua cartonagem, num acabamento irável de riqueza e perfeição. O lord e o sábio, depois de irarem bastante essa primeira cobertura, tiraram da sua caixa a cartonagem e a encostaram a uma das paredes da cabine. Rumphius, armado de escopro e martelo a fim de separar ao meio a cartonagem da múmia, lembrava um gênio fúnebre, face coberta por uma máscara bestial, dos que se veem nas pinturas dos hipogeus, cumprindo, em torno dos mortos, algum rito assustador e misterioso. Lord Evandale, atento e calmo, com o seu perfil puro, lembrava o divino Osíris à espera de uma alma para julgamento; e, querendo levar mais longe a comparação, dir-se-ia que sua bengala lembrava o cetro do deus. Terminada a operação, que levara bastante tempo, porque o doutor não queria estragar as douraduras, a cartonagem se separou em duas, como as partes de um molde, e a múmia apareceu em todo o esplendor do adereço fúnebre,
faceiramente ornada, como se pretendesse seduzir os gênios do império subterrâneo. Quando se abriu a cartonagem espalhou-se pela cabine um vago e delicioso perfume de arômatas, licor de cedro, pó de sândalo, mirra e cinamomo; o corpo não fora embebido e endurecido por aquele betume negro que petrifica os cadáveres comuns. A mais perfeita arte dos embalsamadores, antigos habitantes de Memnonia, parecia ter-se esgotado na tarefa de conservar aquele precioso despojo. Rumphius ergueu a múmia, tirando-a da caixa: tinha o peso de um corpo de criança. O alemão pôs-se a desenfaixá-la, com a rapidez e a perícia de uma mãe que descobrisse o corpo do filhinho. Desfez primeiro o envoltório de pano costurado, impregnado de vinho de palmeira, e as largas faixas que, de espaço em espaço, rodeavam o corpo. Depois descobriu a ponta de uma fita estreita que descrevia infinitas espirais em torno dos membros da jovem egípcia e enrolandoa sobre si mesma, como o faria a mais hábil das tarischeutas da cidade fúnebre, acompanhou-a em todos os seus meandros e circunvoluções. E à medida que o trabalho avançava, a múmia, liberta dos envoltórios, como estátua que o artífice vai desbastando no mármore, aparecia cada vez mais esbelta e pura. Desenrolada aquela fita apareceu uma outra, mais estreita ainda, e destinada a apertar ainda mais as formas da morta. Era de pano tão fino e de trama tão lisa que se poderia comparar com um moderno tecido de cambraia. Os bálsamos como que a haviam engomado e, ao se desenrolar, puxada pelos dedos do doutor, fazia um ruído seco de papel que se amarrota. Afastado o último obstáculo, surgiu afinal a jovem egípcia, guardando ainda, ados tantos séculos, a graça leve das suas linhas puras. Sua postura era incomum para uma múmia, a da Vênus de Médicis, como se os embalsamadores quisessem evitar àquele corpo encantador a triste atitude da morte e lhe amenizar a rigidez de cadáver. Era uma maravilha e, tanto Rumphius como Evandale, soltaram um grito de iração. Jamais se vira estátua grega ou romana com tal elegância de formas. Os caracteres especiais do ideal egípcio davam àquele belo corpo, tão miraculosamente conservado, uma esbelteza e uma leveza desconhecidas dos mármores antigos. As delicadas mãos afiladas, a fidalguia dos pés estreitos, cujos dedos terminavam por unhas brilhantes como ágata, a cintura fina, as pernas um pouco longas, delicadamente esculpidas, lembravam a graça delgada das musicistas e das dançarinas que aparecem nos afrescos representando repastos fúnebres, nos hipogeus de Tebas. Era aquela forma de graça ainda infantil que a arte egípcia exprime com terna suavidade, quer pintando em
rápidas pinceladas uma parede de câmara mortuária, quer cavando pacientemente o basalto rebelde. A cabeça parecia mais adormecida do que morta. As pálpebras, franjadas ainda por longos cílios, faziam luzir, entre as linhas de antimônio, os olhos de esmalte, onde brilhavam os úmidos clarões da vida. Dir-se-ia que aqueles olhos iriam afastar como um sonho leve o sono de trinta séculos. O nariz, pequeno e fino, conservava suas arestas puras. Depressão nenhuma deformava as faces, arredondadas como o flanco de um vaso; a boca, levemente avermelhada, conservara as pregas imperceptíveis e, sobre os lábios, adejava um sorriso meigo, triste e encantador. Aquele mesmo sorriso resignado e terno que marca deliciosamente as adoráveis cabeças que coroam os vasos canopos, no museu do Louvre. Em volta da testa lisa e curta, como o exigem os cânones da beleza antiga, amontoavam-se os cabelos de um negro de azeviche, divididos em finíssimas trancas, que caíam sobre os ombros. Vinte grampos de ouro, pontilhando os cabelos como flores num toucado de baile, estrelavam de pontos luminosos a negra cabeleira, que parecia postiça, por tal modo era abundante. Dois grandes brincos, em forma de disco, como pequenos escudos, refletiam a luz amarela ao lado das faces morenas. Um esplêndido colar, formado por três filas de divindades e amuletos em ouro e pedras finas, rodeava o pescoço da linda múmia; e mais abaixo, sobre o peito, desciam outros dois colares, cujas pérolas e rosetas em ouro, lápis-lazúli e cornalina, compunham uma simetria de gosto requintado. Um cinto de desenho idêntico apertava o talhe esbelto com um círculo de ouro e pedras de cor. Uma pulseira com duas fiadas de pérolas de ouro e de cornalina rodeava o punho esquerdo e no indicador da mão esquerda brilhava um pequeno escaravelho em esmalte sobre fundo de ouro, encastoado num aro de ouro finamente trançado. Que estranha sensação! Encontrar-se diante de um ser humano que vivera nas eras em que a História apenas gaguejava, recolhendo as narrativas da tradição, diante de uma beldade contemporânea de Moisés, conservando ainda as formas delicadas da juventude; tocar naquela mão pequenina, impregnada de perfumes, e que talvez um Faraó beijara; roçar os dedos por aqueles cabelos que haviam durado mais do que os impérios, e eram mais sólidos que monumentos de granito! O douto Rumphius fazia o inventário das joias, sem, contudo, as tirar do corpo da múmia, quando de repente descobriu um rolo de papiro, enfiado entre o braço e o flanco do cadáver.
— Ah, decerto é o exemplar do ritual fúnebre que se colocava no último ataúde, escrito com maior ou menor cuidado, de acordo com a riqueza e a importância do personagem. E, com precaução infinita, o alemão se pôs a desenrolar a tira frágil. Mas, logo ao descobrir as primeiras linhas, Rumphius se mostrou surpreso: não reconhecia as figuras e os sinais costumeiros do ritual; procurava em vão, no local consagrado, as vinhetas que representavam os funerais e o comboio fúnebre, que servem de frontispício a esses papiros; não se via ali a ladainha dos cem nomes de Osíris, nem o aporte da alma, nem a prece aos deuses do Amenti. Desenhos especiais anunciavam cenas completamente diversas, referindo-se à vida humana e não à viagem para a sombra do outro mundo. — Fora de qualquer dúvida, milord, nós fraudamos o Senhor Argirópulos — disse Rumphius a Evandale, mostrando-lhe todas as diferenças que descobrira entre o papiro e os rituais ordinários. — É a primeira vez que se encontra um manuscrito egípcio que não contenha as fórmulas hieráticas! Oh, hei de decifrálo, nem que perca os olhos! Nem que a minha barba cresça, abandonada, até dar três voltas em torno do meu gabinete! Hei de arrancar o teu segredo, Egito misterioso! Hei de saber tua história, linda moça morta, porque deve ser tua história que vem contada neste papiro que apertavas com o braço e contra o teu coração. E me cobrirei de glória e rivalizarei com Champollion e farei Lepsius morrer de inveja! O doutor e o lord voltaram à Europa. A múmia, recoberta com todas as suas faixas, recolocada nos três ataúdes, ocupa, na propriedade de Lord Evandale, no Lincolnshire, aquele mesmo sarcófago de basalto que ele fez transportar de Biban-el-Moluk, a peso de ouro, mas não deu de presente ao British Museum. Às vezes o lord se debruça sobre o sarcófago, entrega-se a um profundo devaneio e suspira… Depois de três anos de encarniçados estudos, Rumphius conseguiu decifrar o papiro misterioso, salvo em alguns trechos ilegíveis ou que apresentavam sinais desconhecidos. E é a sua tradução latina, por nós retraduzida, que vamos ler, sob o título: O ROMANCE DA MÚMIA. FIM DO PRÓLOGO
1
capítulo
Oph (é o nome egípcio da cidade que os antigos chamavam Tebas das Cem Portas, ou Diospolis Magna) parecia adormecida sob a força ardente de um sol de chumbo. Era meio-dia. Caía do céu pálido uma luz branca, sobre a terra amortecida de calor; a luz do Sol reverberava como metal polido e, ao pé dos edifícios, a sombra traçava apenas uma fina linha azulada, semelhante ao risco de tinta que o arquiteto desenha na planta, sobre o papiro. As casas, de paredes levemente inclinadas, ardiam como tijolos ao fogo. As portas estavam fechadas e, às janelas, de cortinas descidas, não aparecia uma só cabeça. Nas extremidades das ruas desertas, acima dos terraços, recortavam-se, no ar de pureza incandescente, a ponta dos obeliscos, o cimo dos pilones, o vulto dos palácios e dos templos, cujos capiteis, esculpidos em face humana ou em flor de lótus, emergiam pela metade, quebrando a linha horizontal dos tetos, elevando-se como escolhos no mar das residências particulares.
Mas nem tudo dormia em Tebas: das paredes de um grande palácio, cuja massa ornada de palmas traçava a sua longa linha reta sobre o céu em fogo, saía um vago murmúrio de música. E essas baforadas de harmonia se espalhavam de vez em quando através da atmosfera trêmula, e quase que se poderia acompanhar com os olhos as suas ondulações sonoras. Abafada pela espessura das paredes, a música em surdina tinha uma doçura estranha: era um canto de languidez exausta, a exprimir a fadiga do corpo e o desânimo da paixão; poder-se-ia nela sentir, também, o tédio luminoso daquele azul eterno, o indefinível tédio dos países quentes. De onde vinha aquela cantiga, aquele suspiro de leve exalado, no silêncio da cidade? Que alma inquieta velava, enquanto tudo ao seu redor dormia? A fachada do palácio, que dava para uma praça ampla, tinha a retidão de linhas e o aspecto monumental, característicos da arquitetura civil e religiosa do Egito. Era evidente, pela escolha dos materiais, pelo cuidado da construção, pela riqueza dos ornatos, que aquela residência só poderia pertencer a uma família de príncipes ou de sacerdotes. No centro da fachada elevava-se um grande pavilhão, flanqueado por duas alas e encimado por um teto em triângulo. Transposta a porta, entrava-se num grande pátio cercado por um alpendre em quadrado que se apoiava em colunas, cujos capiteis eram formados por quatro cabeças de mulher, de orelhas de vaca, longos olhos oblíquos, nariz levemente achatado, sorriso aberto, que sustentavam um cubo de grés duríssimo. Sob esse alpendre abriam-se as portas dos apartamentos, onde mal penetrava a luz filtrada pela sombra da galeria. No meio do pátio cintilava sob o Sol um espelho de água emoldurado por uma borda de granito de Siena, e escondido sob largas folhas de lótus, cujas flores róseas e azuis se entrefechavam, como se desmaiassem ao calor, apesar da água em que se banhavam. Nos canteiros que enquadravam o tanque havia flores plantadas em leque sobre pequenos montículos de terra e, pelos estreitos caminhos abertos entre as touceiras, eavam cuidadosas duas cegonhas mansas, fazendo de vez em quando estalar o bico ou palpitar as asas, como se pretendessem voar. A música leve e doce, de que falamos, saía de uma das câmaras cujas portas davam para o alpendre. E, embora o sol batesse em cheio no pátio, fazendo o seu piso brilhar numa luz crua, uma sombra azulada e fresca, transparente, em sua intensidade, banhava o apartamento, onde o olhar ofuscado pelas reverberações externas só conseguia distinguir as formas depois que se habituava à penumbra.
As paredes, de uma cor lilás clara, eram encimadas por uma cornija de cores brilhantes, enfeitada por pequenas palmas de ouro. Ao fundo, junto à parede, desenhava-se uma cama de forma bizarra, representando um boi toucado por plumas de avestruz, com um disco entre os chifres, e o dorso achatado para receber o adormecido ou adormecida sobre o fino colchão vermelho; sustentava-se o animal em patas negras de cascos verdes, e erguia a cauda dividida em dois flocos de pelos. No meio da sala, uma mesa redonda, de madeira preciosa, lindamente trabalhada, apoiava-se sobre um pedestal oco. Tinha em cima uma porção de objetos, um vaso com flores de lótus, um espelho de bronze polido com pé de marfim, um estojo de ágata cheio de pó de antimônio, uma espátula para perfumes em madeira de sicômoro, com a forma de uma jovem a nadar, e procurando erguer a caçoula acima da água. Perto da mesa, sobre uma poltrona em madeira dourada, rajada de vermelho, sentava-se uma mulher jovem, ou antes, uma moça, de maravilhosa beleza, em graciosa atitude de descuido e melancolia. Suas feições, de ideal delicadeza, eram do mais puro tipo egípcio e os escultores deviam muitas vezes ter pensado nela, quando talhavam imagens de Ísis e de Hator. Reflexos rosa e ouro lhe coloriam a palidez ardente, onde se desenhavam os grandes olhos negros, aumentados por um traço de antimônio e alongados em indefinível tristeza. Os cabelos da moça, de um negro vivo, dispostos em finas trancas, se amontoavam ao lado das faces redondas, cujo contorno ressaltavam, e desciam até aos ombros. À sua sombra, brilhavam como sóis os brincos formados por dois grandes discos de ouro. Da cabeleira pendiam duas longas tiras de pano de pontas franjadas, que lhe caíam graciosas pelas costas. Ajoelhada perto de Tahoser, a jovem egípcia, com uma perna dobrada sob a coxa e a outra formando um ângulo obtuso, naquela atitude que os pintores gostam de reproduzir nas paredes dos hipogeus, via-se uma tocadora de harpa, com o seu instrumento pousado sobre uma espécie de pedestal baixo, destinado certamente a lhe aumentar a ressonância. Atrás dela, outra musicista, em pé, tocava uma espécie de bandurra de braço extremamente longo, cujas três cordas se ornavam de borlas de cor. Uma terceira jovem, que a enorme cabeleira fazia parecer ainda mais delgada, marcava o como com um timbale formado por um quadrado de madeira coberto com pele de onagro. A harpista tocava e cantava uma melopeia queixosa, de inexprimível doçura e profunda tristeza. Tahoser, o cotovelo apoiado sobre um dos leões da poltrona, a mão encostada
à face e o dedo dobrado contra a testa, escutava, com atenção mais aparente do que real, o canto da musicista. Às vezes um suspiro lhe arfava o peito; outras vezes uma lágrima lhe dava ao olhar uma luz úmida e os dentes miúdos mordiam o lábio inferior, como se ela se rebelasse contra a sua emoção. — Satu — disse a moça batendo palmas para fazer calar a cantora, que imediatamente abafou com a mão as vibrações da harpa —, sua cantiga me põe nervosa e me deixa tonta como um perfume forte demais. As cordas de sua harpa parecem que foram retorcidas com as fibras do meu coração e ressoam dolorosamente no meu peito. Sinto-me até envergonhada, pois é minha alma que chora através da música. E quem contou os segredos da minha alma? — Senhora — disse a harpista —, o poeta e o músico tudo adivinham; os deuses lhes revelam os sentimentos ocultos. Eles exprimem nos seus ritmos aquilo que o pensamento mal concebe e que a língua balbucia confusamente. Mas, se o meu canto te entristece, posso mudar de ritmo e fazer com que nasçam ideias mais alegres no teu espírito. E Satu atacou as cordas da harpa com uma energia alegre, num ritmo vivo que o timbale acentuava; após esse prelúdio, entoou uma canção celebrando as delícias do vinho, a embriaguez dos perfumes e o delírio da dança. Algumas das jovens, sentadas sobre aqueles bancos dobradiços de pescoço de cisne azul, cujo bico amarelo morde as pernas do assento, ou ajoelhadas sobre almofadas escarlates cheias com pelo de cardo, ergueram-se e por um impulso irresistível pam-se a dançar. Mas Satu exagerara o poder de sua arte. O ritmo alegre parecia haver aumentado à melancolia de Tahoser. Uma lágrima lhe rolou pela linda face, como uma gota de água do Nilo sobre uma pétala de nenúfar; e escondendo a face no colo da escrava favorita, que se mantinha debruçada sobre a poltrona da senhora, Tahoser murmurou num soluço, como gemido de pomba sufocada — Oh, Nofrê, sinto-me tão triste, tão infeliz! — Nofrê, pressentindo uma confidencia, fez um gesto; a harpista, as duas musicistas, as dançarinas e as acompanhantes se retiraram silenciosamente, em fila, como as figurinhas pintadas nos afrescos. Quando a última jovem desapareceu, a favorita falou para a senhora, em tom carinhoso e com ivo, como uma jovem mãe que embala o choro do filhinho: — Que tem, minha amada senhora, e por que está triste e infeliz? Não é jovem e livre, linda de fazer inveja às mais lindas, e seu pai, o grão-sacerdote Petamunof, cuja múmia repousa num rico túmulo, não deixou grandes riquezas de que dispõe à vontade? Tahoser respondeu a Nofrê: — Sim, claro, os deuses superiores foram generosos comigo. Mas que
importa tudo que possuímos se não temos a única coisa que queremos? Um desejo insatisfeito torna tão pobre o rico no seu palácio dourado e colorido, entre seus depósitos de trigo, de arômatas, de mercadorias preciosas, quanto o mais pobre operário de Memnônia que apanha com serragem sangue dos cadáveres, ou o negro seminu a manobrar sobre o Nilo sua frágil barca de papiro, ao quente sol do meio-dia. Nofrê sorriu e disse com um ar de imperceptível zombaria: — Será possível, senhora, que algum capricho seu não seja imediatamente realizado? Se sonha com uma joia, entrega ao ourives um lingote de ouro puro, cornalinas, lápis-lazúlis, ágatas, hematites, e ele logo executa o desenho imaginado; e o mesmo acontece se quer vestidos, carros, perfumes, flores, instrumentos de música. Seus escravos, de Filae a Heliópolis, procuram para seu uso o que há de mais belo e raro. E, se não existe no Egito algo que deseja, as caravanas o trazem até do fim do mundo! A bela Tahoser sacudiu a cabeça, impaciente com a pouca inteligência da sua confidente. — Perdão, senhora — disse então Nofrê, compreendendo que se enganara —, não me lembrava de que já faz quatro meses que o Faraó partiu na expedição à Alta Etiópia, e que o belo oeri (oficial) que invariavelmente levantava a cabeça e retardava o o ao ar sob seu terraço seguiu em companhia do soberano. Como era belo nos seus trajes militares! Formoso, jovem, valente! Tahoser entreabriu os lábios, como se quisesse falar, mas um leve rubor lhe cobriu as faces; curvou a cabeça e a frase, prestes a alçar voo, não quis abrir as asas sonoras. A escrava percebeu que acertara e continuou: — Nesse caso, senhora, seu desgosto vai acabar. Esta manhã chegou um correio esfalfado, anunciando o regresso triunfal do rei para antes do pôr do sol. Já não escuta mil rumores, zumbindo confusamente na cidade que sai do seu torpor do meio-dia? Livre-se dessa languidez e vá ver o belo espetáculo. Quando estamos tristes, devemos nos misturar à multidão. A solidão alimenta os pensamentos sombrios. Do alto do seu carro de guerra, Ahmosis lançará um sorriso gracioso, e voltará mais alegre para seu solar. — Ahmosis me ama — respondeu Tahoser —, mas eu não o amo. Contudo, Tahoser se animou e deixou a poltrona com inesperada vivacidade, ela que se mostrara tão desolada durante os cantos e as danças. Nofrê, ajoelhada aos seus pés, calçou-lhe uma espécie de pantufas de bico recurvo, lançou-lhe aos cabelos um pó perfumado, tirou de um cofre alguns braceletes em forma de serpente e anéis que tinham no engaste um escaravelho sagrado, pôs-lhe nas faces um pouco de pintura verde, que o contato da pele imediatamente
transformou em rosa; poliu-lhe as unhas com um cosmético e alisou as pregas amarrotadas da calasiris, como serva zelosa que deseja ver sua senhora a aparecer com todo o realce. E logo chamou dois ou três escravos e disse-lhes que preparassem a barca para a travessia do rio e atrelassem a carruagem. O palácio, ou, se o título parece pomposo demais, a casa de Tahoser, erguiase bem próximo ao Nilo, do qual só os jardins a separavam. A filha de Petamunof, com a mão apoiada ao ombro de Nofrê, precedida pelos escravos, seguiu até a margem do rio pelo caramanchão, cujas lianas, filtrando o sol, manchavam de sombra e luz a encantadora silhueta da jovem. Em breve chegaram a um grande cais de tijolos, onde formigava imensa multidão, à espera da partida ou da volta das embarcações. Havia extraordinário movimento no rio que, apesar da sua enorme largura, estava coberto de embarcações de toda espécie, da canoa de popa e proa alçadas, ou os nãos pintado de cores e douraduras, até minúsculos barcos de papiro. Não se haviam omitido sequer as barcaças de transportar gado e frutas, nem as jangadas de junco que flutuam por meio de odres e servem em geral para o transporte de vasos de barro.
Não era tarefa pequena transportar através do rio uma população de mais de um milhão de almas, e para realizá-la tornava-se necessário que os marinheiros de Tebas fizessem uso de toda a sua eficiência. A água do Nilo, batida, açoitada, cortada pelos remos, pelos varejões e pelos lemes, escumava como um mar e formava mil redemoinhos a romperem a face da corrente.
Tahoser entrou na sua barca, decorada com grande riqueza, cujo centro era ocupado por uma cabine, ou nãos, coroada por uma fileira de uraeus, com ângulos formando pilastras, e paredes riscadas por desenhos simétricos. Desatada a amarra e exposta a vela ao vento, a barca se afastou da margem, dividindo com a proa a aglomeração de botes, cujos remos se embaraçavam e se agitavam como patas de escaravelhos revirados sobre o dorso; avançava descuidosa por entre um concerto de injúrias e gritos, e consciente de sua força superior desdenhava choques que afundariam embarcações mais frágeis. Em breve chegou à margem oposta. A balsa que carregava o carro atracou quase ao mesmo tempo; os bois aram sobre a prancha e, em alguns minutos, os escravos que os conduziam os colocaram sob a canga. Eram bois brancos, malhados de negro, toucados por uma espécie de tiara que recobria em parte a canga presa ao timão e segura por largas correias que lhes avam por baixo do pescoço e pela barriga. O carro, de extrema leveza, tinha capacidade para duas ou três pessoas de pé. Nofrê, debruçada à borda, segurava as rédeas dos bois, bridados como cavalos, e conduzia o carro conforme o uso egípcio. Tahoser, imóvel, apoiava a mão constelada de anéis na moldura dourada do respaldo. As duas lindas jovens, uma faiscando de pedras preciosas, a outra velada por uma túnica de gaze, formavam um par encantador, em pé no carro colorido. Oito ou dez servidores, vestidos num gibão de listras transversais, acompanhavam a viatura, regulando o o pelo andadura dos bois. Daquele lado do rio a afluência de povo não era menor. Os habitantes do bairro de Memnônia e das aldeias vizinhas também para lá se dirigiam, e a cada instante as barcas, depondo a sua carga no cais de tijolo, traziam mais curiosos a engrossar a multidão. Inúmeros carros se dirigiam para o campo de manobras, fazendo com que os raios das rodas brilhassem como sóis entre a poeira dourada que levantavam. Tebas, naquele momento, deveria estar deserta, como se um conquistador lhe houvesse carregado o povo em cativeiro. O espetáculo era digno de um quadro. No meio das plantações verdejantes de onde sobressaíam os penachos das palmeiras, desenhavam-se em cores vivas as casas de recreio, palácios, pavilhões de veraneio, cercados por sicômoros e mimosas. Piscinas brilhavam ao sol, as vinhas se entrelaçavam nas latadas. Ao fundo, recortava-se a silhueta gigantesca do palácio de Ramsés Meiamun, com seus pilones desmesurados, suas enormes muralhas, seus mastros dourados, cujas bandeirolas flutuavam ao vento. Mais ao norte os dois colossos entronizados em postura de eterna imibilidade, montanhas de granito com forma humana, defronte à entrada do Amenófium, se esboçavam numa meiatinta azulada; encobriam a meia o Raméssium, ainda mais longínquo, e o túmulo
do grão-sacerdote, mas deixavam entrever por um dos seus ângulos o palácio de Menefta. Tahoser olhava vagamente aquela paisagem que lhe era familiar, e seus olhos distraídos não exprimiam qualquer iração. Mas, ao ar por uma casa quase encoberta pela vegetação, a donzela saiu de sua apatia e parecia procurar com os olhos alguém no terraço ou na galeria exterior. Um belo moço, displicentemente encostado a uma das colunetas do pavilhão, olhava o povo. Mas as suas pupilas escuras, diante das quais pareciam dançar um sonho, não se detiveram no carro que carregava Tahoser e Nofrê. A mão da filha de Petamunof agarrou-se nervosa ao respaldo do carro. As faces empalidecera sob a pintura que lhes pa Nofrê e a moça respirou por várias vezes o perfume do seu ramo de flores de lótus, como se se sentisse desfalecer.
2
capítulo
Nofrê era perspicaz, mas não reparou no efeito que o desdenhoso desconhecido exercia sobre a sua senhora. Não lhe vira a palidez seguida de um grande rubor, nem a luz mais intensa do seu olhar. É verdade que toda a sua atenção estava voltada ao manejo do carro, tarefa dificílima, por entre as massas cada vez mais compactas de curiosos que desejavam assistir à volta triunfal do Faraó. Afinal o carro chegou ao campo de manobras, imensa praça preparada com cuidado para nela se realizarem festas militares; aterros, que deveriam representar os trabalhos de anos de trinta nações ali trazidas em cativeiro, formavam agora um gigantesco paralelogramo; paredes em tijolos crus, formando talude, revestiam os aterros; agora os cimos dos muros estavam cobertos por várias camadas de centenas de milhares de egípcios, cujos trajes brancos ou listrados de cores vivas borboleteavam ao sol, nesse frêmito perpétuo que caracteriza a multidão, até mesmo quando ela está imóvel. Por trás do cordão de espectadores, eram tantos os carros, as carretas, as liteiras, guardadas pelos cocheiros, os carreiros e os escravos, que o local tinha o aspecto de acampamento de um povo em migração. Pois Tebas, a rainha do mundo antigo, contava mais habitantes do que vários reinos. A areia fina e lisa que cobria a vasta arena, emoldurada por um milhão de
cabeças, cintilava em reflexos de mica, sob a luz que vinha de um céu azul como o esmalte das estatuetas de Osíris. Ao sul da praça o revestimento se interrompia, permitindo que nela desembocasse a estrada que levava à Alta Etiópia, ao longo da cadeia líbica. No ângulo oposto, uma saída permitia ao caminho prolongar-se até o palácio de Ramsés Meiamun, ando através de espessas muralhas de tijolos. Tahoser e Nofrê, para quem os servidores tinham conseguido abrir espaço, estavam nesse ângulo, no alto do talude em boas condições para verem desfilar a seus pés o cortejo inteiro. Um prodigioso rumor, surdo, profundo e poderoso como o de um mar que se aproximasse, fez-se ouvir ao longe e encobriram os mil sussurros da turba. E logo o som especial dos instrumentos se destacou naquela trovoada terrestre produzida pelo rolar dos carros de guerra e a marcha cadenciada dos soldados a pé. Uma espécie de neblina, avermelhada como a poeira levantada pelo vento do deserto, invadiu o céu daquele lado, e, contudo não havia brisa. O nevoeiro poeirento era produzido pelo exército em marcha, e planava sobre o mesmo como uma nuvem fulva. Aumentava o tumulto. Abriram-se os turbilhões de poeira e as primeiras fileiras de músicos desembocaram na arena imensa, para grande alegria da multidão que, apesar do seu respeito pela majestade faraônica, começava a se fatigar da espera sob aquele sol capaz de derreter qualquer crânio que não fosse egípcio… A vanguarda dos músicos deteve-se alguns instantes. Colégios de sacerdotes, deputações dos principais habitantes de Tebas, atravessaram a praça para receberem o Faraó, e se colocaram em alas, em postura de máximo respeito, deixando agem livre ao cortejo. Os músicos que, sozinhos dariam para formar um pequeno exército, conduziam tambores, tamboris, trombetas e sistros. Cada corpo de músicos contava pelo menos duzentos homens; mas o furacão de ruído produzido pelos clarins, tambores, sistros, tamboris e que faria deitar sangue aos ouvidos no interior de um palácio, nada tinha de excessivo sob a vasta cúpula daquele céu, no meio daquele espaço imenso, por entre aquele povo que zumbia, em frente àquele exército que fatigaria os que desejassem contá-lo e que avançava com o rugido de uma inundação. Depois dos músicos vinham os cativos bárbaros, de aspecto estranho, máscara bestial, pele negra, gaforinha crespa, lembrando tanto macacos quanto homens, e vestidos à moda de sua terra: uma saia que partia das ancas, seguro por um único suspensório, bordado de ornamentos e cores diversas. Uma crueldade engenhosa presidira ao encadeamento desses prisioneiros. Uns eram atados às costas, pelos cotovelos, outros pelas mãos erguidas acima da
cabeça, numa posição extremamente incômoda. Alguns traziam os pulsos presos em toras de madeira, outros tinham o pescoço estrangulado numa corda que atava uma fila inteira, dando um nó em cada vítima. Parecia que os carrascos se haviam deleitado em contrariar ao máximo possível as atitudes humanas, garroteando aqueles desgraçados que avançavam à frente do seu vencedor em o trôpego, aboticando os grandes olhos e contorcendo-se de dores. Guardas marchavam ao lado dos prisioneiros e faziam-nos caminhar a pauladas. Vinham em seguida os porta-estandartes, erguendo o punho dourado das insígnias, que representavam baris místicos, milhares sagrados, cabeças de Hator coroadas de plumas de avestruz, ibex alados, cartuchos gravados com o nome do rei, crocodilos e outros símbolos religiosos ou guerreiros. Um arauto, trazendo à mão um rolo coberto de sinais hieroglíficos, avançava isolado entre os porta-estandartes e os turiferários que precediam a liteira do rei. O arauto proclamava em voz forte, estridente como uma trombeta de bronze, as vitórias do Faraó. Dizia as fortunas dos diversos combates, o número de cativos e de carros de guerra arrebatados ao inimigo, o montante do saque, as medidas de ouro em pó, os dentes de elefante, as plumas de avestruz, os montes de goma odorífera, as girafas, os leões, as panteras e outros animais raros. Anunciava o nome dos chefes bárbaros mortos pelos venábulos e pelas flechas de Sua Majestade, o Aroeris todo poderoso, o favorito dos deuses. A cada enunciação o povo soltava um clamor imenso e, do alto dos taludes, lançava sob os pés do vencedor as longas folhas verdes de palmeira que tinham em mãos. Enfim, apareceu o Faraó. Os sacerdotes, volvendo-se a intervalos medidos, estendiam-lhe os turíbulos, depois de haverem lançado incenso sobre os carvões acesos, na pequena tigela de bronze segura por uma mão presa a uma espécie de cetro, terminada na outra extremidade pela cabeça de um animal sagrado. Marchavam respeitosamente, aos recuos, enquanto a fumaça perfumada e azul subia ao nariz do triunfador, aparentemente indiferente às honrarias, como uma divindade de bronze ou de basalto. Doze oeris ou chefes militares, com a cabeça coberta por um capacete leve encimado por penas de avestruz, os rins envoltos numa tanga de pregas rígidas, levando o broquel suspenso à cintura, carregavam uma espécie de andor sobre o qual pousava o trono do Faraó, uma poltrona de pés e braços de leão, encosto alto, com uma grande almofada bordada. Os pés, braços e nervuras do trono eram dourados e pintados de cores vivas. De ambos os lados do andor, flabelíferos agitavam enormes leques de plumas em forma de meia-lua; dois sacerdotes erguiam uma grande cornucópia, ricamente ornamentada, de onde
caíam ramos de gigantescas flores de lótus. O Faraó usava um capacete alongado em formato de mitra, recortado em torno das orelhas e caindo sobre a nuca, para protegê-la; duas largas fitas cor de púrpura lhe desciam sobre os ombros, completando o toucado de majestosa elegância. Um gorjal de sete carreiras de esmalte, pedras preciosas e pérolas de ouro, arredondava-se ao peito do Faraó, falseando ao sol. O resto do corpo do monarca envolvia-se em dobras do mais fino linho, todo pregueado, preso aos quadris por um cinto de placas imbricadas em esmalte e ouro. Sandálias de ponta curva, semelhantes a pantufas, calçavam-lhe os pés estreitos e longos, encostados um ao outro como os pés dos deuses nas muralhas dos templos. O rosto do Faraó, imberbe, de grandes traços puros, que parecia liberto de qualquer emoção humana e a que o sangue vulgar da vida não dava cor, com sua palidez morta, seus lábios fechados, seus olhos enormes aumentados por traços negros, de pupilas imóveis como as do gavião sagrado, inspirava, justamente por aquela imobilidade, um respeitoso temor. Dir-se-ia que aqueles olhos fixos só olhavam para a eternidade e o infinito: os objetos que o rodeavam não se pareciam refletir neles. As saciedades do gozo, os tédios das vontades satisfeitas tão logo se exprimiam, o isolamento de semideus que não tem igual entre os mortais, o nojo das adorações como a fadiga do triunfo, havia imobilizado para sempre aquela fisionomia, implacavelmente suave e de uma serenidade granítica. Osíris, julgando as almas, não teria um ar mais majestoso ou mais tranquilo. Um grande leão manso, deitado ao lado do Faraó, sobre o andor, estirava as patas enormes, como uma esfinge no seu pedestal, e piscava as pupilas amarelas. Uma corda atada à liteira ligava ao Faraó os carros de guerra dos chefes vencidos; o soberano arrastava-os atrás de si, como animais na trela. Esses chefes, de ar triste e fero, cujos cotovelos atados formavam um ângulo desgracioso, vacilavam canhestros, à trepidação dos carros levados por cocheiros egípcios. Em seguida vinham os carros de guerra dos jovens príncipes da família real. Ao lado de cada príncipe, postava-se o cocheiro, encarregado de dirigir o carro durante a batalha, e o escudeiro, cujo dever era aparar com o escudo os golpes dirigidos ao combatente, enquanto ele próprio atirava flechas e dardos apanhados nas aljavas laterais. Depois dos príncipes vinham os carros de guerra, que constituíam a cavalaria dos egípcios, vinte mil ao todo, cada um puxado por dois cavalos e guarnecido por três homens. Avançavam a dez de frente, os eixos quase a baterem um no outro, mas sem se tocarem nunca, tão grande era a destreza dos cocheiros.
Aos carros sucediam-se os batalhões de infantaria, marchando em ordem, escudo no braço esquerdo e, de acordo com a sua arma particular, a lança, o gancho, o arco, a funda ou a machada à mão direita. O ar imível dos soldados, a regularidade dos seus movimentos, sua cor de cobre vermelho, escurecida pela recente expedição às regiões longínquas da Alta Etiópia, a poeira do deserto que lhes embebia as vestes, inspiravam iração como provas de disciplina e coragem. Com tais soldados, o Egito poderia conquistar o mundo. Em seguida vinham as tropas aliadas, fáceis de identificar pelas formas bárbaras dos seus capacetes, que ora lembravam mitras truncadas, ora eram encimadas por crescentes. Seus gládios de lâmina larga, suas machadas talhadas, deveriam provocar feridas incuráveis. Os escravos transportavam os despojos anunciados pelo arauto; traziam-nos aos ombros ou em padiolas; os beluários conduziam em trelas as panteras, os guepardos que se arrastavam por terra como se se quisessem esconder, avestruzes que batiam as asas, girafas que ultraavam a multidão com toda a altura do pescoço, e até mesmo ursos pardos, apanhados, dizia-se, nas montanhas da Lua. Já há muito o Faraó entrara em seu palácio e o desfile continuava ainda. ando defronte ao talude ocupado por Tahoser e Nofrê, o Faraó que, da sua liteira ficava acima da turba e ao nível da jovem, fixara lentamente sobre ela o seu olhar negro. Não virará a cabeça, não movera sequer um músculo da face, sua máscara se mantivera imóvel como a máscara de ouro de uma múmia. Contudo, as pupilas haviam deslizado para o lado de Tahoser, entre as pálpebras pintadas. Uma das mãos deixara o braço do trono e erguera-se a meio, gesto imperceptível para todos, mas percebido por um dos servidores que marchava junto à liteira. E os olhos do escravo descobriram a filha de Petamunof. A noite caíra de repente, pois no Egito não existe crepúsculo e a noite, ou antes, um dia azul, se sucede ao dia amarelo. Sobre o céu de transparência infinita acendiam-se numerosas as estrelas, cujas cintilações tremiam confusamente na água do Nilo, agitada pelas barcas que levavam a população de Tebas para a outra margem do rio. E as derradeiras coortes do exército desenrolavam-se ainda sobre a planície como anéis de uma serpente gigantesca, quando a barca deixou Tahoser diante dos jardins de seu palácio.
3
capítulo
Chegou o Faraó ao seu palácio, situado a pequena distância do campo de manobras, à margem esquerda do Nilo. Na transparência azulada da noite, o imenso edifício assumia proporções ainda mais colossais, e recortava seus ângulos enormes sobre o fundo violeta da cadeia líbica, com vigor assustador e sombrio. A ideia de um poder absoluto ligava-se àquelas massas inabaláveis, sobre as quais a eternidade deveria deslizar como uma gota de água sobre o mármore. Os oeris se detiveram à porta principal. Escravos trouxeram um escabelo de vários degraus e o colocaram ao lado da liteira. O Faraó ergueu-se com majestosa lentidão e manteve-se de pé alguns instantes, em imobilidade perfeita. Erguido assim sobre o seu pedestal humano, pairava acima das cabeças de todos e parecia ter doze cúbitos de altura. Iluminado esquisitamente em parte pela Lua nascente, em parte pelo clarão das lâmpadas, suas vestes a lançar faíscas, lembrava Osíris, ou antes, Tífon. Desceu os degraus, em o de estátua, e penetrou afinal no palácio.
Um primeiro pátio interior, cercado por enorme fila de colunas riscadas de hieróglifos e sustentando uma frisa terminada em voluta, foi lentamente atravessado pelo Faraó, por entre uma multidão de escravos e servos prosternados. Apresentou-se em seguida outro pátio, cercado por um alpendre sustentado por colunas grossas que terminavam num capitei em formato de dado, sobre o qual pesava a maciça arquitrave. Parecia que uma marca de indestrutibilidade estava inscrita nas linhas retas e nas formas geométricas daquela arquitetura, erguida com pedaços de montanhas. Ao fundo abria-se a porta do gineceu e dos apartamentos secretos, decorados com particular magnificência. No meio da sala, uma mesa redonda em pórfiro, cujo disco repousava sobre a figura de um cativo, desaparecia sob um amontoado de urnas, vasos, garrafas, potes, de onde irrompia uma floresta de enormes flores artificiais; pois flores verdadeiras pareceriam mesquinhas no centro daquela sala imensa, e era preciso pôr a natureza em proporção com o trabalho grandioso do homem. As cores mais vivas, amarelo de ouro, azul, púrpura, decoravam aqueles cálices enormes. Ao fundo elevava-se o trono ou poltrona do Faraó, cujos pés se ornavam com quatro estatuetas de prisioneiros bárbaros, ajoelhados, atados e carregando à cabeça humilhada a almofada de quadros dourados, vermelhos e negros, onde se assentava o vencedor. Focinhos de animais quiméricos, cuja mandíbula aberta deixava escapar, à guisa de língua, uma grande borla vermelha, ornavam as travessas do assento. Aos lados do trono, destinadas aos príncipes, alinhavam-se poltronas menos ricas, mas ainda assim de extrema elegância e acabamento; pois que os egípcios tanto esculpem o cedro, o cipreste, o sicômoro, e os douram, colorem e incrustam de esmalte, como talham nas pedreiras de Filae ou Siene monstruosos blocos graníticos para os palácios do Faraó e o santuário dos deuses. O rei atravessou a sala em o lento e majestoso, sem que as suas pálpebras tintas palpitassem uma só vez. Nada indicava que se apercebia dos seres humanos ali ajoelhados ou prosternados; sentou-se, os tornozelos unidos, as mãos pousadas sobre os joelhos, na atitude solene das divindades.
Os jovens príncipes tomaram lugar à direita e à esquerda do pai. Os servos os despiram dos gorjais de esmalte, dos cinturões e gládios, derramaram-lhes frascos de essências sobre os cabelos, esfregaram-lhes os braços com óleos aromáticos, ofereceram-lhes grinaldas de flores, frescos colares de aromas, luxo perfumado que combinava melhor com as festas que a pesada riqueza do ouro, das pedras preciosas e das pérolas, com os quais, aliás, se mistura iravelmente. Ressoaram então as harpas, as liras, as flautas duplas, as bandurras, acompanhando um canto triunfal entoado pelos coristas dispostos em frente ao trono, um joelho em terra, o outro erguido, batendo o como com as palmas das mãos. Começou o banquete. As iguarias, trazidas por etíopes das imensas cozinhas do palácio, onde mil escravos, num ambiente de fornalha, tratavam das preparações do festim, estavam postas em aparadores a alguma distância dos convivas. Os pratos de bronze, de madeira odorífera preciosamente esculpida, de barro ou de porcelana esmaltada em cores vivas, continham quartos de boi, coxas de antílope, gansos recheados, siluros do Nilo, massas enroladas, doces de sésamo e de mel, melancias, romãs, uvas amarelas e roxas. Quando foram trazidas as vasilhas esculpidas em formato de pássaros, de peixes, de quimeras, que continham os molhos e os condimentos, os convivas lavaram as mãos. Continuaram a circular as taças de vinho ou de bebida fermentada. Apareceram as jovens musicistas, pois se retirara o coro dos músicos. Tinham a cabeleira ornada de fitas de papiro e flores de lótus, grandes argolas de ouro nas orelhas e gargalheiras de esmalte e pérolas ao pescoço e pulseiras que ressoavam ao se entrechocar nos pulsos. Fizeram sua entrada as dançarinas: finas, esbeltas, leves como serpentes; os grandes olhos brilhavam entre as linhas negras traçadas nas pálpebras, brilhavam os dentes entre a linha vermelha dos lábios. As longas espirais dos cabelos lhes
flagelavam as faces; algumas vestiam ampla túnica listada em branco e azul, que flutuava ao redor de seus corpos como uma névoa. Executaram a princípio algumas posturas de graça preguiçosas; logo, agitando ramos floridos, agitando guizos de bronze, em feitio de cabeça de Hator, batendo nos timbales com os punhos fechados, fazendo ressoar sob o polegar o couro curtido dos tamborins, entregaram-se a os mais rápidos, saltaram em piruetas e “jetés” caprichosos e turbilhonaram com vivacidade sempre crescente. Mas o Faraó, preocupado, devaneando, não se dignou de dar o menor sinal de assentimento: seus olhos fixos nem sequer as olharam. Dois anões de pés tortos, corpo giboso e disforme, cujas caretas tinham o privilégio de animar a majestade granítica do Faraó, também não conseguiram êxito; suas contorções não lhe arrancaram sequer um sorriso dos lábios de cantos caídos. Também não se animou o Faraó ante as proezas de dois combatentes que, com um braço escudado por um cesto, lutavam armados de bastões. Também não o divertiram dois atiradores de facas, que as lançavam com precisão miraculosa num bloco de madeira. Repeliu o tabuleiro de xadrez que a bela Tvéa lhe apresentou, oferecendo-se como adversária. Ergueu-se e retirou-se para seus apartamentos, sem pronunciar uma palavra. Imóvel, à porta, mantinha-se o servidor que, durante o desfile triunfal, reparara no gesto imperceptível do Faraó. E ele falou: — Ó rei amado pelos deuses, afastei-me do cortejo, atravessei o Nilo numa barquinha de papiro e acompanhei a barca da mulher sobre a qual seu olhar de milhafre dignou-se baixar: ela é Tahoser, a filha do sacerdote Petamunof! O Faraó sorriu e disse: — Bom! Dou-lhe um carro com cavalos e um peitoral em contas de lápislazúli e cornalina, com uma argola de ouro pesando tanto quanto o seu peso em basalto verde.
4
capítulo
Na margem esquerda do Nilo levantava-se a mansão de Poeri, o moço que tanto perturbara Tahoser quando, a caminho do campo de manobras para assistir à chegada triunfal do Faraó, a filha de Petamunof ara no seu carro puxado por bois, sob o balcão onde indolentemente se debruçava o belo distraído. Aquele pavilhão não se parecia em nada com as outras casas de Tebas. O arquiteto que o construíra não se preocupara com o alicerce largo, as grandes linhas monumentais, os materiais ricos das construções urbanas; seu objetivo fora criar uma elegância leve, uma simplicidade agradável, uma graça campestre em harmonia com o verde e a paz dos campos. O andar único, elevado sobre o térreo, não alcançava o teto em terraço, deixando assim um vazio entre o forro e a cobertura horizontal da casa. À frente do pavilhão verdejavam imensos vinhedos. A cada lado, dois lagos de forma oblonga deixavam flutuar, nos seus transparentes espelhos, plantas e aves aquáticas. Nos ângulos dos lagos, quatro grandes palmeiras abriam os seus leques. Próximo a cada lago elevava-se um quiosque erguido em pequenas colunas que sustentavam o leve teto, de onde se poderia gozar a vista da água e a frescura da manhã ou da tarde, no conforto de assentos rústicos de madeira ou de vime. Iluminado pelo Sol nascente, aquele jardim tinha um aspecto de alegria, de
repouso e de felicidade. Tudo ali tão verde e florido fazia impressionante contraste com a aridez de giz da cadeia líbica que se avistava para além dos muros, recortando-se no azul do céu; ali, o ante sentia desejos de se deter e plantar sua tenda. Dir-se-ia um ninho para abrigar dias felizes. Abriu-se a porta do pavilhão e Poeri apareceu ao umbral. Embora se trajasse à moda egípcia, suas feições não lembravam o tipo nacional. Era fácil de perceber que o jovem não pertencia à raça autóctone do vale do Nilo. Tinha o nariz aquilino e estreito, as faces retas, os lábios sérios de desenho delicado, o oval perfeito do rosto; e diferia, pois, essencialmente, do nariz africano, das maçãs salientes, dos lábios grossos e da máscara larga dos egípcios. Nem a cor de sua pele era a mesma: aquele tom de cobre avermelhado dos egípcios era em Poeri substituído por uma tez morena clara, que um sangue puro coloria de rosa. Os olhos, em vez de mostrarem, entre linhas de antimônio, uma pupila de azeviche, eram de um azul escuro, como o céu à noite. Os cabelos, mais sedosos, encrespavam-se em ondulações menos rebeldes. Os ombros não mostravam aquela linha transversalmente rígida que se repete, como sinal característico da raça, nas estátuas dos templos e nos afrescos dos túmulos. Aquelas singularidades compunham um todo de rara beleza, à qual a filha do grão-sacerdote não se pudera manter insensível. Desde o dia em que por acaso Poeri lhe aparecera, debruçado à janela do pavilhão, seu local predileto quando os trabalhos da lavoura não o ocupava, ela sempre voltava ali, a pretexto de eio, e fazia ar seu carro sob o balcão da casa de campo. Mas, embora Tahoser vestisse as mais finas túnicas, pusesse nos braços as pulseiras mais finamente cinzeladas, coroasse a cabeça com grinaldas das mais belas flores de lótus, alongasse até às têmporas a linha negra dos olhos, avivasse o carmim das faces, jamais Poeri lhe dera atenção. E, contudo, Tahoser era linda. E, pois, a donzela enlanguescia, embora respirasse perfumes, se rodeasse de flores e tomasse beberagens que fazem esquecer. A música ou a aborrecia ou lhe exagerava a sensibilidade; já não lhe davam o menor prazer as danças das companheiras; à noite, o sono lhe fugia das pálpebras… Na noite seguinte à entrada triunfante do Faraó, Tahoser sentiu-se tão infeliz, tão incapaz de viver, que decidiu não morrer sem tentar um esforço supremo. Envolveu-se num bioco de pano comum, deixou nos pulsos apenas um bracelete de madeira perfumada, enrolou um pano de gaze listada nos cabelos e, à primeira luz da madrugada, sem que Nofrê a pressentisse, saiu do quarto, atravessou o jardim, puxou os ferrolhos da porta que dava para a margem do rio, caminhou pelo cais, despertou um remador que dormia no fundo do seu barquinho de papiro e fez com que ele a levasse à outra margem do Nilo. Trêmula, apertando com a mão as batidas do coração, Tahoser caminhou em
direção à casa de Poeri. Era dia claro e as portas se abriam para dar agem às juntas de bois que seguiam para o trabalho e aos rebanhos que iam ao pasto. Tahoser ajoelhou-se à entrada da casa e ergueu as mãos sobre a cabeça, em gesto de súplica. Mostrava-se ainda mais bela naquela atitude humilde e naqueles trajes pobres. O peito lhe palpitava e lhe corriam lágrimas dos olhos. Poeri a avistou e a tomou pelo que ela realmente aparentava, uma mulher infeliz. E disse: — Entra sem medo. A casa é hospitaleira. Encorajada pela frase amiga de Poeri, Tahoser deixou a atitude de súplica e ergueu-se. Um rubor intenso lhe cobriu as faces antes pálidas. Sua ação estranha a fazia envergonhar-se e, àquela porta que seus sonhos tantas vezes haviam transposto, a jovem hesitou. Poeri, pensando que apenas a timidez, companheira da desventura, impedia Tahoser de penetrar na casa, disse-lhe em voz musical, penetrada por um leve sotaque estrangeiro: — Entre jovem, e não trema tanto. A casa é grande, pode abrigá-la. Se está cansada, repouse; se tem sede, meus criados trarão água pura, refrescada em potes de barro; se tem fome, eles trarão pão de trigo, tâmaras e figos secos. A filha de Petamunof, animada por aquelas palavras hospitaleiras, entrou na casa que justificava o hieróglifo de boas-vindas escrito à porta. Poeri levou-a a uma peça do térreo, cujas paredes eram pintadas de branco com desenhos verdes. O jovem sentou-se sobre um divã; Tahoser acocorou-se diante do moço que sobre ela fixava um olhar cheio de benévola curiosidade. Ela estava encantadora; o véu de gaze lhe caíra nas costas, descobrindo as massas de cabelo presas por uma fita branca, e deixava ver sua fisionomia meiga, bela e triste. — Meu nome é Poeri — disse o moço — e sou intendente dos bens da coroa. Tenho direito de usar no meu toucado de cerimônia os cornos dourados do carneiro sagrado. — Eu me chamo Hora — respondeu Tahoser, que previamente havia estudado sua pequena fábula. — Meus pais morreram e seus bens, vendidos pelos credores, deram apenas para lhes custear os funerais. Fiquei só e pobre. Consentiu em me acolher e serei grata pela hospitalidade. Sei fazer os trabalhos domésticos, embora minha condição não me exigisse que os fizesse. Sei girar o fuso, tecer panos com fios de várias cores, imitar flores e riscar desenhos com a agulha. E, até mesmo quando chegar cansado do trabalho e sofrendo com o calor, poderei distraí-lo cantando ou tocando harpa ou bandurra. — Hora, seja bem-vinda em casa de Poeri. Encontrará aqui, sem se cansar muito, pois é franzina, ocupações condizentes com uma jovem que conheceu
tempos melhores. Minhas criadas são moças meigas e comportadas que farão boa companhia e ensinarão as regras de vida na nossa casa. E com o tempo, quem sabe, chegarão para dias melhores? Se não, poderá envelhecer calmamente em minha casa, em paz e abundância: o hóspede mandado pelos deuses é sagrado. Ditas essas palavras, Poeri ergueu-se como para evitar os agradecimentos da falsa Hora que se prosternara aos seus pés e os beijava, como fazem os desgraçados que recebem um favor importante. Antes de sair para fiscalizar os trabalhos da propriedade, Poeri voltou-se da porta e disse a Hora: — Fique aqui até que eu lhe escolha um quarto. Vou mandar comida por um dos criados. E afastou-se em os tranquilos, balançando ao punho o chicote de patrão. Os trabalhadores o saudavam levando uma mão à cabeça e outra perto da terra; mas, à cordialidade com que o recebiam, via-se que era um bom amo. Às vezes Poeri se detinha a dar uma ordem ou um conselho, porque era muito entendido em lavoura e jardinagem. Depois voltava a caminhar, examinando tudo, à esquerda e à direita. Tahoser, que humildemente o acompanhara até à porta, e que se acocorara no degrau de entrada com o cotovelo ao joelho, o queixo na palma da mão, acompanhou-o com o olhar até que ele se escondeu sob as arcadas de folhagem. E, muito depois que ele desaparecera nos campos, ela olhava ainda. Um criado, cumprindo a ordem que Poeri lhe dera ao ar, trouxe a Tahoser um prato com uma coxa de ganso, cebolas cozidas ao borralho, um pão, figos, e um pote com água, onde boiavam folhas de mirto. — O nosso amo manda isto. Coma jovem, e crie forças. Tahoser não sentia fome, mas no seu papel devia mostrar apetite: os pobres devem devorar a comida que lhes é oferecida. Assim, pois a moça comeu e bebeu um comprido gole de água. Quando o criado se afastou, ela voltou à postura contemplativa. Mil pensamentos opostos lhe tomavam a cabeça. Às vezes se arrependia do que fizera; às vezes aplaudia a própria audácia. Depois dizia consigo: “Afinal, eis-me aqui sob o teto de Poeri; posso vê-lo livremente, todos os dias. Escutarei sua voz que é música para a minha alma. Mas ele, que nunca reparou em mim quando eu ava sob suas janelas, vestida nos meus trajes de cores brilhantes, ornada com as minhas joias mais finas, perfumada por essências e flores, de pé no meu carro pintado e dourado, com o seu guarda-sol, acompanhada por um cortejo de criados, como uma rainha, será que irá reparar numa pobre rapariga recebida por piedade e vestida com roupa ordinária”?
“O que meu luxo não pôde obter será ganho por minha miséria? Talvez, afinal serei feia? Será que Nofrê apenas adula, quando diz que da fonte desconhecida do Nilo até sua foz, no mar, não existe moça mais linda que a sua senhora? Será que Poeri algum dia vai me amar? Se eu fosse uma velha enrugada, de peito descarnado, coberta de farrapos, ele me receberia do mesmo modo afável”… “Qualquer outro teria imediatamente reconhecido, sob os disfarces de Hora, a donzela Tahoser, filha do grão-sacerdote Petamunof. Ele, porém nem sequer abaixou o olhar sobre mim, como a estátua de um deus de basalto não baixa o olhar sobre os devotos que lhe oferecem quartos de antílope e ramos de lótus.” A coragem de Tahoser abatia-se ante tais pensamentos. Mas logo lhe voltava à confiança ao imaginar que sua beleza, sua mocidade, acabaria por enternecer aquele coração insensível: seria tão meiga, tão dedicada, usaria de tal arte e tal faceirice nos seus trajes pobres, que decerto Poeri não resistiria. Então, lhe revelaria que a humilde criada era uma moça de alto nascimento, dona de escravos, de terras e de palácios, e compunha em sonhos, para depois da felicidade obscura; uma vida de ventura esplêndida. — Para começar, preciso ficar bonita — disse ela erguendo-se e se dirigindo a um dos lagos. Ajoelhou-se à margem de pedra e lavou o rosto, o pescoço e os ombros; a água agitada lhe mostrava uma imagem confusa e trêmula que lhe sorria como através de uma gaze verde; e os peixinhos, vendo a sombra da jovem, cuidavam que lhes iam atirar algumas migalhas e se aproximavam aos bandos. Tahoser colheu duas ou três flores de lótus que desabrochavam ao lume d'água, retorceu-lhes o caule em torno da fita dos seus cabelos e compôs um penteado que a arte de Nofrê não igualaria, mesmo esvaziando sua caixa de joias. Quando terminou e se ergueu, fresca e radiosa, um íbis manso, que gravemente a ficara observando, levantou-se sobre as patas longas, estirou o comprido pescoço e bateu as asas duas ou três vezes, como para aplaudir. Terminada a toalete, Tahoser voltou a tomar lugar à porta da casa, à espera de Poeri. Poeri voltou afinal; terminara sua inspeção e recolheu-se ao seu quarto para deixar ar as horas ardentes do dia. Tahoser o acompanhou timidamente, deixou-se estar junto à porta, pronta a sair ao menor sinal. Mas Poeri lhe acenou que ficasse. Ela se adiantou alguns os e se ajoelhou na esteira. — Hora, disse que sabe tocar bandurra. Apanha aquele instrumento que está pendurado na parede; toque-o e cante para mim uma canção antiga, bem suave,
bem terna e bem lenta. O sono embalado pela música é cheio de sonhos lindos. A filha do grão-sacerdote apanhou a bandurra, aproximou-se do leito de repouso onde Poeri se reclinava, apoiando a cabeça à cabeceira de madeira talhada em meia-lua, apertou a bandurra ao peito, alongou a mão pelo braço do instrumento, deixou errar a outra mão sobre as cordas e tirou alguns acordes. E cantou em voz afinada, embora um pouco trêmula, uma velha canção egípcia, vago suspiro dos anteados transmitido de geração em geração, onde retornava sempre uma mesma frase monótona, penetrante e suave. — Realmente — disse Poeri voltando sobre a moça as suas pupilas de um azul escuro —, não me enganou. Conhece os ritmos como um músico profissional e poderia exercer sua arte no palácio de um rei. Mas dá a seu canto uma expressão nova. Essa canção parece até que a inventa e empresta um encanto mágico. Seu rosto é outro, não mais o de hoje pela manhã. Uma outra mulher aparece através de você, como a luz por um véu. Quem és? — Sou Hora — respondeu Tahoser —, já não contei minha história? Apenas lavei do rosto a poeira da estrada, alisei o vestido amarrotado, pus uma flor nos cabelos. Sou pobre, mas isso não me obriga a ser feia, e os deuses recusam a beleza aos ricos. Mas quer que eu continue? — Sim! Sua canção me fascina, me embala, tira-me a memória, como o faria uma taça de nepentes. Repita-a, até que o sono me feche os olhos e me traga o esquecimento. Em breve os olhos de Poeri, antes fixados em Tahoser, fecharam-se a meio, e afinal se cerraram. A moça continuou a fazer vibrar as cordas da bandurra e repetia o estribilho da canção em voz cada vez mais baixa. Poeri dormia. Tahoser calou-se e pôs-se a abanar o amo com um leque de folhas de palmeira que estava sobre a mesa.
5
capítulo
Quando o dia apareceu, Nofrê, que dormia num pequeno catre aos pés de sua senhora, espantou-se por não ouvir Tahoser bater palmas, chamando-a, como sempre o fazia. Soergueu-se e viu que o leito estava vazio. O sol já lançava sobre os muros a sombra dos capiteis da colunata. Tahoser não costumava ser tão matinal e não saía da cama sem a ajuda das criadas. E jamais sairia sem pentear os cabelos que a noite desarrumara. Nofrê, inquieta, pôs-se a procurar sua senhora. Procurou-a nos alpendres dos pátios, pensando que, insone, talvez, Tahoser tivesse ido respirar o ar fresco da madrugada. Mas Tahoser lá não estava. — Vamos ver o jardim — disse Nofrê. — Quem sabe ela teve o capricho de ir ver brilhar o orvalho noturno e assistir ao despertar das flores. Mas o jardim estava deserto. Nofrê o percorreu todo, sem êxito. Procurou no quiosque, nada da senhora. A fiel criada assustou-se e deu o alarma na casa inteira. Os escravos e criados saíram de seus cubículos e, informados por Nofrê da estranha desaparição da senhora, pam-se à sua procura. Correram os terraços, os quartos, todos os esconderijos onde Tahoser pudesse estar. A senhora positivamente não se encontrava em casa.
Um velho criado teve a ideia de examinar a areia das alamedas, à procura de rastros da jovem senhora; os pesados ferrolhos da porta principal estavam fechados, Tahoser não ara por ali. É verdade que Nofrê, atarantada, já percorrera todos os caminhos, marcando-os com o rastro das suas sandálias. Mas o velho Suhem logo reconheceu, entre os os de Nofrê, a marca delicada de um pé muito menor que o da criada. Os ferrolhos estavam corridos e os batentes apenas cerrados; era evidente que a filha de Petamunof fugira por ali. Mais além perdia-se o rastro. O chão de tijolos do cais não mostrava sinal nenhum. O bateleiro que conduzira Tahoser à margem oposta não voltara ao seu ponto. Os outros dormiam e, interrogados, disseram que não haviam visto nada. Só um contou que uma mulher mal vestida, de classe baixa, ara manhã cedo para o outro lado do rio, ao bairro de Memnônia, decerto para cumprir algum rito fúnebre. Nofrê e Suhem não poderiam encontrar qualquer analogia entre essa mulher e a elegante Tahoser. Voltaram os dois para casa, tristes e desapontados. Criados e escravos sentaram-se ao chão, em atitude desolada, erguendo para o céu a palma de uma das mãos, pondo a outra mão sobre a cabeça e carpindo-se: “Desgraça! Desgraça! Desgraça! A senhora partiu!”. — Juro por Oms, cão dos infernos, que a encontrarei, nem que eu tenha que ir até ao fundo das regiões do poente, para onde viajam os mortos — jurou o velho Suhem. — Era uma boa senhora; dava-nos comida abundante, não exigia trabalho excessivo e nos mandava açoitar com justiça e moderação. Seu pé não nos pesava ao pescoço e em sua casa o escravo se sentia como homem forro. Suhem acocorou-se, dobrando os joelhos, como aquelas imagens de cinocéfalos talhadas num bloco de basalto, e, apertando as têmporas entre as mãos, pôs-se a refletir. Nofrê sentia-se cada vez mais inquieta e perturbada. Receava que acusassem os criados da casa de haverem morto Tahoser para lhe roubarem as riquezas, e que os espancassem para que confessassem o que não sabiam. Pelo seu lado, o Faraó também pensava em Tahoser. Após fazer as libações e oferendas exigidas pelo ritual, sentara-se no pátio interior do gineceu e devaneava. Empoleirado no encosto da poltrona, o macaquinho manso quebrava tâmaras, estalando os dentes; encostado às pernas do seu senhor, o gato favorito nelas se esfregava, arredondando o dorso; o anão puxava o rabo do macaco e os bigodes do gato, e um gritava e o outro bufava brincadeiras que em geral divertiam o rei. Mas naquele dia o Faraó não estava disposto a rir; afastou o gato, fez descer o macaco, deu um cascudo no anão e se dirigiu para os apartamentos de granito.
Cada uma dessas câmaras era formada por blocos de tamanho prodigioso, fechadas por portas de pedra que nenhum poder humano poderia arrombar sem saber o segredo que as abria. Nessas câmaras estavam encerradas as riquezas do Faraó, o saque arrebatado às nações conquistadas. Lingotes de metais preciosos, coroas de ouro e prata, gargalheiras e braceletes de esmalte, brincos reluzentes como o disco de Mui; panos preciosos, tão finos que a peça inteira aria por um anel; plumas de avestruz pretas e brancas, ou matizadas de diversas cores; presas de elefantes de grossura monstruosa, taças de ouro, de prata, de vidro dourado, estatuetas lindas, tanto pela confecção como pelo material. Em cada uma das câmaras o Faraó fez lotar uma padiola carregada por dois escravos robustos e, batendo palmas, chamou Timoft, o criado que seguira Tahoser, e lhe disse: — Leve isso a Tahoser, filha de Petamunof, como dádiva do Faraó. Timoft pôs-se à frente do cortejo que atravessou o rio sobre um barco real, e logo os escravos chegaram com sua carga à casa de Tahoser. — Para Tahoser, que lhe manda o Faraó — disse Timoft batendo na porta. Vendo aqueles tesouros, Nofrê quase desmaiou, tanto de medo quanto de deslumbramento; receava que o rei a mandasse matar quando soubesse que a filha do grão-sacerdote não estava mais em casa. — Tahoser partiu — disse ela, tremendo, a Timoft — juro pelos quatro gansos sagrados, Amset, Sis, Soumauts e Kebhsniv, que voam nas quatro direções do vento, que não sei onde ela está. — O Faraó, preferido de Frê, favorito de Amon-Ra, enviou estes presentes e não posso levá-los de volta. Guarde-os até que se encontre sua senhora. É responsável por eles, sob risco de morte. Mande-os fechar nas câmaras de Tahoser, guardados por criados fiéis — respondeu o enviado do rei. Quando Timoft voltou ao palácio e, prostrado ao chão, disse ao Faraó que Tahoser desaparecera, o monarca foi tomado de um grande furor; bateu no chão com o cetro, com tal força que a laje fendeu.
6
capítulo
Tahoser, diga-se, nem pensava em Nofrê, sua escrava favorita, nem nas inquietações que a sua ausência provocaria. A senhora amada tudo fizera para esquecer sua bela casa de Tebas, seus criados e seus ornatos, coisa difícil e quase incrível, em se tratando de uma mulher. A filha de Petamunof nem sequer desconfiava dos sentimentos do Faraó. Não se apercebera do olhar que sobre ela caíra, do alto daquela majestade que nada na terra conseguia comover. Rodando o fuso, pois tinham-na mandado fiar, ela acompanhava com o canto do olho os movimentos de Poeri; gozava silenciosamente a ventura de estar perto do amado, no pavilhão cuja entrada ele lhe permitira. Sentado à mesa, o moço se inclinava sobre uma folha de papiro onde colhendo tinta numa placa oca de alabastro, escrevia suas contas em algarismos demóticos, com o auxílio de um estilete. Seus modos para com Tahoser eram delicados, benévolos, mas reservados, como se quisesse prevenir ou afastar qualquer confissão importuna, à qual lhe seria penoso responder. Era tempo de colheita e Poeri saiu a fim de inspecionar os trabalhadores. Tahoser, que não podia afastar-se dele como a sombra não se pode afastar do corpo que a projeta, acompanhou-o tímida, receosa de que ele lhe ordenasse ficar
em casa. Mas o jovem senhor lhe disse numa voz sem traço de cólera: — A dor abranda ante o espetáculo dos pacíficos trabalhos do campo; e, se alguma lembrança dolorosa da prosperidade perdida fere a alma, a tristeza desaparecerá à vista dessa alegre atividade. A agricultura deve ser para você uma novidade, pois seus pés delicados, suas mãos finas, a elegância com que se envolves nesse pano grosseiro que a veste me mostram, sem a menor dúvida, que sempre morou em cidade, no seio dos requintes e do luxo. Venha, pois, sente-se, rodando seu fuso, à sombra daquela árvore, onde os apanhadores penduraram no fresco o odre de bebida. Tahoser obedeceu e se acomodou sob a arvore, os braços sobre os joelhos, os joelhos encostados ao queixo. Dos muros do jardim, a planície se estirava até aos primeiros contrafortes das montanhas líbicas, como um mar amarelo, onde o menor sopro de vento encrespava ondas de ouro. A luz do Sol era tão intensa que branqueava o dourado do trigo, tornando-o cor de prata. Naquele rico húmus do Nilo as espigas cresciam rijas e altas como dardos, e nunca tão rica colheita brilhara ao sol; havia ali com que encher até aos cimos a linha de celeiros que se arredondavam mais além. Já fazia tempo que os homens trabalhavam, e via-se de longe suas cabeças a emergirem das ondas de trigo, cobertas com um pano branco, e os torsos nus, cor de tijolo cozido. Ceifavam o trigo com movimentos regulares, a foice acima e abaixo, numa linha tão certa como se a houvessem traçado com a corda. As espigas ceifadas se acamavam na eira em montes que iam aumentando sempre pelos novos cestões nela despejados. Então Poeri fez sinal ao carreiro para avançar com os bois, magníficos animais, de longos chifres em leque, como o toucado de Ísis, cangote alto, peito poderoso, pernas secas e nervosas, tendo na anca a marca do dono, feita a ferro em brasa. Marchavam gravemente, presos a uma canga horizontal que unia as quatro cabeças. Trouxeram-nos para a eira e, ativados pelo chicote, pam-se a pisotear em círculo, fazendo o grão saltar sob os seus cascos fendidos. Terminada a tarefa dos bois, vieram os criados que, munidos de bandejas rasas de madeira, jogavam o trigo alto no ar, para separar o grão da palha. Depois de peneirado, era o trigo posto nas sacas e levado aos celeiros. Tahoser, à sombra da árvore, distraía-se com aquele espetáculo animado e até mesmo grandioso, e muitas vezes sua mão esquecia de torcer o fio. O dia avançava e já o Sol, erguido por trás de Tebas, transpa o Nilo e se dirigia para as montanhas líbicas, atrás das quais se esconde todas as noites. Era a hora em que os animais voltam do campo para os estábulos. Tahoser, junto a Poeri,
assistia a esse desfile pastoral. Surgiu primeiro um grande rebanho, depois os boiadeiros com seu chicote e cordas; ao arem defronte ao amo os homens se ajoelhavam, tocando a terra com a fronte, em sinal de respeito. Escribas anotavam em tabuletas o número de reses. Aos bois se sucederam os asnos, trotando e escouceando sob as varadas dos burriqueiros de cabeça raspada; desfilavam sacudindo as grandes orelhas e martelando a terra com os cascos duros. Os burriqueiros fizeram a mesma genuflexão que os boiadeiros e os escribas anotaram também o número de burros. Foi em seguida a vez das cabras, que aram berrando, indisciplinadas, criando dificuldades aos cabreiros; também foram contadas e registradas e os pastores prestaram a sua saudação a Poeri. Fechavam o cortejo os gansos, fatigados da caminhada, bamboleando-se nas grandes patas, batendo as asas, estirando o pescoço, soltando grasnidos roucos. E foram registrados nas tabuletas. Muito tempo depois da agem dessas colunas de bois, jumentos, cabras e gansos, a poeira ainda estava alta no ar e o vento não a conseguia varrer. Poeri falou a Tahoser: — Agradou-a o espetáculo, Hora? São esses os prazeres do campo. Aqui não temos, como em Tebas, tocadores de harpa e dançarinas. Mas a agricultura é santa: é a mãe dos homens, e quem semeia um grão de trigo pratica um ato agradável aos deuses. Agora vá jantar, com suas companheiras, e eu vou calcular quantos alqueires de trigo deu a colheita. Tahoser pôs uma mão no chão e outra sobre a cabeça, em sinal de respeitosa obediência, e retirou-se.
Na sala de refeições pairavam e riam muitas jovens criadas, comendo cebolas cruas, bolos de dourah e tâmaras; era já noite, e um pavio aceso, metido num pequeno vaso de barro cheio de óleo, lhes clareava as faces morenas. Algumas moças se assentavam em bancos de madeira, outras se encostavam à parede, com o joelho dobrado. — Aonde vai meu senhor toda noite? — indagou uma jovem de ar malicioso, abrindo uma romã. — O senhor vai aonde quer — respondeu um escravo alto, que mastigava pétalas de flor. — Quer que ele preste contas a você? — Ele usa nome egípcio e trabalha para o Faraó, mas pertence à raça bárbara de Israel. E, nessas saídas à noite, decerto vai assistir aos sacrifícios de crianças que os hebreus celebram nos locais desertos onde a coruja pia, a hiena dá risadas e a víbora silva. Tahoser saiu discretamente da sala e foi se esconder no jardim, atrás de uma moita de mimosas. adas duas horas, viu Poeri que saía para o campo. Leve e silenciosa como uma sombra, ela o acompanhou. Poeri, que levava na mão um forte bastão de palmeira, dirigia-se para o rio, seguindo por uma calçada estreita que atravessava um campo de papiros aquáticos. Contendo o fôlego, pisando na ponta dos pés, Tahoser o seguiu; não havia lua e a espessura dos papiros dava bem para esconder a moça, que caminhava um pouco atrás. Surgiu um espaço descoberto. A falsa Hora deixou que Poeri se adiantasse, curvou-se bem e quase se arrastou pelo chão.
Veio em seguida um bosque de mimosas e Tahoser pôde adiantar-se sem tantas precauções. Receosa de perder-se de Poeri caminhava tão perto dele que às vezes lhe batiam no rosto os ramos que o jovem deslocava. Chegando à beira do rio, Poeri desceu uns degraus talhados na escarpa e curvou-se, como se desatasse uma amarra. Tahoser, deitada de bruços no alto da barreira, viu com desespero que o ante misterioso libertava um pequeno barco de papiro, fino e longo como um peixe, e se preparava para atravessar o rio. Realmente, o rapaz pulou no bote, empurrou-o com o pé e rumou ao largo, manobrando o remo único na popa do leve esquife. A pobre moça torcia as mãos: ia, perder a pista secreta que lhe interessaria tanto conhecer. Será que teria de voltar, presa de suspeitas e incerteza? Encheuse de coragem e tomou uma resolução. Procurar outro barco seria impraticável. Deixou-se deslizar pela barranca e penetrou corajosamente no rio, tratando de não fazer respingar a água. Esguia e leve como uma cobra marinha estirou os belos braços cortando a água escura, onde brilhavam as estrelas, e pôs-se a acompanhar o bote. Tahoser nadava iravelmente; todos os dias se exercitava na piscina do seu palácio, acompanhada de suas criadas, e nenhuma delas era mais forte do que a ama, na natação. A corrente, parada naquele local, não oferecia muita resistência; mas no meio do rio, para não ser arrastada, a moça teve que açoitar vigorosamente a água com os pés e multiplicar as braçadas. Ficou de fôlego curto, sibilante, e com esforço procurava contê-lo, com medo de que o jovem hebreu a escutasse. Algumas vezes uma onda mais forte lhe enchia a boca de água e lhe ensopava os cabelos. Felizmente, já fatigada, alcançou águas mais calmas. Um feixe de juncos que descia o rio causou-lhe um grande susto; no escuro, parecera-lhe o dorso de um crocodilo. Aliás, o perigo era real, sobretudo à noite; durante o dia, o movimento de barcos, o trabalho no cais e o tumulto da cidade afastavam os crocodilos que iam se aquecer ao sol em margens menos frequentadas pelo homem; mas à noite recuperavam a audácia. Tahoser não se lembrara dos sáurios. Paixão não reflete. E, mesmo que lhe ocorresse a ideia desse perigo, talvez o enfrentasse, ela que se assustava com uma borboleta teimosa que volteasse ao seu redor, tomando-a por uma flor. De repente o bote se deteve, embora a margem estivesse ainda distante. Poeri, parando de remar, parecia olhar ao redor, inquieto. Avistara a mancha branca que o vestido de Tahoser fazia na água. Imaginando que fora descoberta, a valente nadadora mergulhou, resolvida a não emergir, mesmo que sufocasse, senão quando as suspeitas de Poeri se
dissiem. “Parece que alguém me segue a nado”, disse consigo Poeri, recomeçando a remar. “Mas quem se arriscaria no Nilo a uma hora destas? Loucura minha”. Quando Tahoser, que já sentia as veias das têmporas sibilando e avistava clarões vermelhos na água, voltou às pressas à superfície, o bote de papiro de novo singrava o rio, manobrado por Poeri. Agora, a margem estava apenas a algumas braçadas. A sombra prodigiosa das pilastras e das enormes muralhas do palácio do Norte estendia-se imensa e formidável sobre o rio, protegendo Tahoser, que podia nadar sem receio de ser percebida. Poeri abordou um pouco abaixo do palácio e atou o bote a uma estaca, para o encontrar quando voltasse. Depois retomou o bastão de palmeira e subiu a rampa do cais em o rápido. A pobre Tahoser, quase exausta, segurou-se ao primeiro degrau da escada e saiu com dificuldade da água; o contato do ar tornava-lhe o corpo pesado e faziaa sentir subitamente a fadiga. Mas estava realizado o pior da sua tarefa. Subiu os degraus com a mão sobre o coração, que batia forte. Depois de ver a direção que Poeri tomara, sentou-se no alto da rampa. Soprava uma brisa tépida. Mas a exaustão fazia com que Tahoser batesse os dentes; foi com imenso esforço que, encostada à muralha dos grandes edifícios, ela conseguiu não perder de vista o moço hebreu: ele dava volta à imensa muralha de tijolos do palácio e penetrava nas ruas de Tebas. Com um quarto de hora de marcha, desapareceram os palácios, os templos, as casas ricas, cedendo lugar a moradas mais humildes. Ao granito e ao calcário, sucediam-se os tijolos de adobe, o barro amassado com palha. Esbatiam-se as formas arquitetônicas, dando lugar a cabanas arredondadas; montes de tijolos crus enchiam os caminhos. “Será que Harfrê falou a verdade?” — pensava Tahoser, impressionada pelo aspecto sinistro do local. “Será que Poeri vinha mesmo sacrificar alguma criança aos deuses bárbaros que gostam de sangue e sofrimento? Lugar nenhum pareceria mais propício a ritos cruéis”. Assim mesmo, valendo-se de ângulos de sombra, de esquinas de muro, de tufos de mato, de desigualdades do terreno, a moça se mantinha a uma distância sempre igual de Poeri. “Mesmo que eu tenha que assistir a alguma cena horrível e escutar os gritos da vítima, vou até o fim”, dizia a si mesma Tahoser, ao ver o jovem israelita penetrar num barraco de barro, cujas fendas deixavam filtrar alguns raios de luz amarela. Poeri entrou e a filha de Petamunof aproximou-se, sem provocar ruído com o seu o de fantasma, sem que um cão ladrasse, lhe denunciando a presença. A
moça deu volta ao barraco, apertando o coração, contendo a respiração, e descobriu na parede de barro uma fenda bastante larga para lhe deixar espiar o interior da habitação. Uma pequena lâmpada iluminava o quarto, menos pobre do que o faria pensar a aparência da cabana. As paredes lisas tinham um brilho de estuque. Em bancos de madeira, pintados de cores variadas, viam-se vasos de ouro e prata; joias cintilavam em cofres entreabertos. Pratos de metal brilhante luziam nas paredes e um ramo de flores raras desabrochava num vaso de barro esmaltado, sobre uma mesinha. Mas não eram os detalhes do mobiliário que interessavam Tahoser, embora o contraste daquele luxo com a miséria exterior a houvesse surpreendido. Sua atenção era atraída invencivelmente por outro objeto. Num estrado coberto de esteiras, estava uma mulher de raça desconhecida e maravilhosamente bela. Branca como nenhuma filha do Egito o seria, branca como leite, como um lírio, como os cordeiros que saem do lavadouro; tinha sobrancelhas como arcos de ébano, nariz fino, aquilino, narinas róseas. Os olhos lembravam olhos de rola, ao mesmo tempo vivos e lânguidos; os lábios eram duas fitas de púrpura, desatando-se e mostrando fiadas de pérolas; os cabelos se erguiam aos lados das faces de romã, em madeixas negras e lustrosas como dois cachos de uvas maduras; brincos lhe pendiam das orelhas, e colares de placas incrustadas de prata brilhavam ao redor do pescoço redondo e liso como uma coluna de alabastro. Vestia trajes singulares, que consistiam numa túnica ampla, bordada de listas negras e desenhos simétricos de diversas cores, descendo do ombro até ao meio da perna. O jovem hebreu sentou-se na esteira, ao pé da mulher, e pôs-se a falar. Tahoser não entendia a língua, mas, para desgraça sua, adivinhava bem o sentido da conversa: Poeri e Ra’hel exprimiam-se na língua da pátria, tão doce ao exilado e ao cativo. “Quem sabe é irmã dele”, pensava Tahoser; “ele vem visitá-la às escondidas por não querer que se saiba que pertence a essa raça cativa”. E a egípcia encostou o rosto na fenda, escutando com dolorosa intensidade as palavras harmoniosas, da qual cada sílaba deveria conter um segredo que ela daria a vida para desvendar. “Como essa mulher é linda…” murmurava Tahoser, devorando com o olhar aquele vulto estranho e encantador, de pele pálida, e cuja beleza tinha qualquer coisa de misteriosamente fatal. — Ó Ra’hel! — dizia a todo tempo Poeri. Tahoser recordou-se de que o ouvira dizer esse nome, quando lhe embalara o
sono. “Até em sonhos pensa nela: Ra’hel: é decerto seu nome”. E a pobre moça sentiu no peito uma dor aguda, como se todos os animais sagrados dos altares, todas as víboras das coroas faraônicas lhe enterrassem no coração os dentes venenosos. Deixou-se escorregar por terra, à sombra do barraco. Por duas vezes tentou erguer-se, mas caía de joelhos. Uma nuvem lhe encobriu os olhos, seus membros cederam e ela rolou no chão, desmaiada.
7
capítulo
O Faraó, inquieto e furioso com o desaparecimento de Tahoser, cedera ao desejo de movimento, característico dos corações atormentados. Retirara-se o monarca para o Palácio de Tebas, sozinho, taciturno e irado; e lá, em vez de ficar assentado no trono, na atitude solene dos deuses todopoderosos que não se mexem nem fazem um gesto, eava febrilmente através dos salões imensos. Era um estranho espetáculo ver aquele Faraó de elevada estatura, de ar imponente, formidável como os colossos de granito moldados à sua imagem, a fazer ressoar as lajes dos aposentos sob a sola recurva das suas sandálias. À agem do soberano os guardas assustados pareciam transformar-se em estátuas. Continham a respiração e não se via sequer tremerem as plumas de avestruz que tinham no capacete. Quando o Faraó se afastava, comentavam: — Que terá hoje o Faraó? Se tivesse voltado derrotado da campanha não se mostraria tão triste e sombrio. Se, em lugar de conquistar dez vitórias, matar vinte mil inimigos, trazer cem cargas de ouro em pó, mil cargas de ébano e dentes de elefantes, sem contar os produtos raros e os animais desconhecidos, o Faraó tivesse visto os seus exércitos desbaratados, seus carros de guerra destruídos e, sozinho fugisse da derrota, sob uma nuvem de flechas, poeirento, ensanguentado, tomando as rédeas do cocheiro morto ao seu lado, não mostraria,
decerto, um rosto mais desesperado. Afinal de contas, a terra do Egito é fértil em soldados; milhares de cavalos povoam as cocheiras do palácio, e os operários logo teriam afeiçoado a madeira, fundido o cobre, aguçado o bronze! Mutável é a fortuna dos combates. Um desastre se repara. Mas desejar algo que não obteve imediatamente, encontrar um obstáculo entre uma vontade e a realização dessa vontade, eis o que espantava o Faraó na sua onipotência! Houve um momento até em que lhe ocorreu que ele era apenas um homem! Errava, pois o rei pelo palácio, entre colunatas, obeliscos e estátuas, entre as figuras de deuses, de reis e de seres simbólicos, que pareciam animar, com uma vida estranha e fantástica, a solidão das salas enormes, cada uma delas tão grande como um palácio. Essas divindades, esses anteados, esses monstros quiméricos, na sua imobilidade eterna, mostravam-se surpresos por verem o Faraó, habitualmente tão calmo quanto eles, ir e vir, constantemente, como se seus membros fossem de carne e não de pórfiro ou basalto. Cansado de vaguear por aquela floresta de colunas que sustentava um céu de granito, como um leão que segue o rastro da presa e fareja a areia movediça do deserto, o Faraó subiu a um terraço do palácio, deitou-se num diva e mandou chamar Timoft. Timoft apareceu no alto da escada e adiantou-se prosternado até ao Faraó. Receava a cólera do amo, de quem, por momentos, esperara o favor. Será que a sua habilidade em descobrir a morada de Tahoser bastaria para fazer perdoar o crime de lhe haver perdido o rastro? Levantando um joelho, Timoft estendeu os braços para o rei, com um gesto súplice: — Ó rei, não me faça morrer nem espancar. A bela Tahoser, filha de Petamunof, será decerto encontrada; e quando, de volta a casa, vir seus magníficos presentes, seu coração há de se comover. — Interrogou as criadas e os escravos da casa? Bastonadas desemperram as línguas mais rebeldes e a dor faz dizer o que se procura ocultar. — Nofrê, a criada favorita, e Suhem, o decano dos escravos, disseram-me que haviam percebido que os ferrolhos da porta do jardim tinham sido abertos, e que provavelmente sua senhora saíra por ali. A porta dá para o rio e a água não guarda o rastro dos barcos. — Que disseram os bateleiros do Nilo? — Não viram nada! Só um contou que uma mulher pobremente vestida atravessara o rio, na primeira claridade do dia. Mas tal mulher não poderia ser a bela e rica Tahoser, em quem o próprio Faraó pôs os olhos, que anda como uma rainha vestida em trajes preciosos. O raciocínio de Timoft não convenceu o Faraó, que encostou o queixo no
punho e ficou a meditar alguns minutos. O pobre Timoft esperava em silêncio, temendo uma explosão de furor. E os lábios do rei se mexiam, como se ele falasse consigo: “As tais roupas pobres eram um disfarce… Assim transformada, ela atravessou o rio… Esse Timoft é um imbecil… Tenho vontade de mandar jogá-lo aos crocodilos, de arrebentá-lo de açoites… Mas por quê? A filha do grão-sacerdote sair assim de seu palácio, sem prevenir ninguém!” A face do Faraó avermelhou-se como num reflexo de incêndio: o sangue todo lhe subia do coração ao rosto; e ao rubor sucedeu uma palidez assustadora; as sobrancelhas se torceram como víboras, a boca se contraiu, os dentes rilharam, a fisionomia do rei ficou por tal modo terrível que Timoft, apavorado, deixou-se cair de nariz nas lajes, como um morto. Mas o Faraó se acalmou, voltou ao seu aspecto entediado e plácido; e, vendo que Timoft não se erguia, empurrou-o com o pé. Quando Timoft, que já se imaginava estirado no leito fúnebre de pés de chacal, com o ventre esvaziado pronto para receber o banho de salmoura, se soergueu, não ousou levantar os olhos para o Faraó e ficou acocorado, na mais pungente angústia. — Anda Timoft, levante-te, corra, envie mensageiros para todos os lados, mande dar busca nos templos, nos palácios, nas casas, nos jardins, até nos mais humildes barracos, e me encontre Tahoser. Envie carros por todas as estradas, percorra o Nilo com barcos. Vá você mesmo e pergunte se ninguém viu uma mulher com os sinais dela. Viole os túmulos, se ela se refugiou nos asilos da morte; procure-a como Ísis procurou seu marido Osíris despedaçado por Tífon e, morta ou viva, traga-a, ou juro pelo meu diadema e meu cetro que morrerá em terríveis suplícios. Timoft sai correndo a fim de cumprir as ordens do Faraó que, tranquilizado, reassumiu uma das suas posturas de serena majestade, aquelas que os escultores gostam de emprestar aos colossos sentados na porta dos templos; e, calmo como convém àqueles cujas sandálias repousam sobre a cabeça dos povos, esperou. Um trovão surdo ressoou em redor do palácio e se o céu não estivesse de um azul de lápis-lazúli imutável seria possível pensar em tempestade; era o rumor dos carros que partiam a galope em todas as direções. Logo o Faraó, do alto do terraço, avistou os barcos que cortavam a água sob o esforço dos remadores e os correios a se espalharem pela outra margem. Para além do rio, erguiam-se palácios e templos, mas não era para eles que o Faraó olhava; entre as palmeiras e as searas viam-se casas modestas, aqui e além; sob um daqueles tetos, Tahoser se escondia decerto; e ele sonhava em artes de mágica que tornassem aqueles tetos transparentes. As horas se avam; o Sol já desaparecera por trás das montanhas e os
mensageiros não voltavam. O Faraó continuava imóvel. A noite caiu sobre a cidade; e, no seu canto do terraço, o Faraó silencioso, imível, continuava como uma estátua de basalto. Várias vezes os pássaros noturnos lhe voltearam em torno da cabeça; mas, assustados com a respiração lenta e profunda do rei, fugiam batendo as asas. Pousando o olhar e o pensamento sobre aquela imensa cidade da qual era o senhor absoluto, o Faraó meditava tristemente nos limites do poder humano e dizia consigo: “Essas casas todas abrigam seres que, ao me verem, se prostram ao chão, e para os quais minha vontade é uma ordem dos deuses. Quando o no meu carro dourado ou na liteira carregada pelos oeris, os sacerdotes me incensam com os seus turíbulos e o povo agita palmas ou espalha flores; o silvo de uma das minhas flechas faz tremer as nações e as muralhas enormes como montanhas mal chegam para que nelas se gravem minhas vitórias. Esgotam-se as pedreiras fornecendo granito para as minhas imagens colossais. E dentro da minha soberba saciedade, quando concebo um desejo, não posso satisfazer esse desejo! Timoft não reapareceu; decerto não descobriu nada”. Contudo os emissários, com Timoft à frente, visitavam as casas e batiam as estradas, perguntando pela filha do grão-sacerdote, dando os seus sinais aos viajores que encontravam. Mas ninguém lhes podia responder. Um primeiro mensageiro apareceu no terraço anunciando ao Faraó que Tahoser não fora encontrada. O Faraó golpeou-o com o cetro e o mensageiro tombou morto, apesar da proverbial dureza do crânio dos egípcios. Apareceu um segundo mensageiro: tropeçou no corpo do companheiro, estremeceu, viu que o Faraó estava encolerizado. — E Tahoser? — perguntou o rei, sem mudar de postura. — Ó Majestade, seu rastro se perdeu — respondeu o desgraçado ajoelhado na sombra, diante daquela outra sombra negra que parecia mais uma estátua de Osíris do que um rei vivo. O braço de granito se destacou do torso imóvel, o cetro de metal desceu, como um corisco, e o segundo mensageiro rolou ao lado do primeiro. Um terceiro homem teve a mesma sorte. De casa em casa, Timoft chegou até o pavilhão de Poeri, que, voltando de sua excursão noturna, espantou-se por não encontrar ao amanhecer a falsa Hora. Harfrê e as criadas que, na véspera, haviam ceado com ela, não sabiam que fim levara a moça; seu quarto estava vazio. Procuraram-na em vão pelos jardins e celeiros. Às perguntas de Timoft, Poeri lhe respondeu que realmente uma moça lhe aparecera à porta, suplicante, e de joelhos lhe implorara asilo. Ele lhe dera abrigo
e comida, mas a jovem desaparecera sem motivo, misteriosamente. Era bela, triste, vestia roupa simples, e parecia pobre; o nome de Hora que ela lhe dera esconderia o nome de Tahoser? Poeri deixava à sagacidade de Timoft a resolução desse problema. Munido dessas informações, Timoft voltou ao palácio e, colocando-se fora do alcance do cetro do Faraó, contou-lhe o que descobrira. “O que ela fazia na casa de Poeri?” — indagava a si mesmo o rei. “Se esse nome de Hora em verdade esconde Tahoser, é que ela ama Poeri. Não, porque então ela não fugiria após se abrigar na casa do hebreu. Ah, hei de encontrá-la, nem que tenha que sacudir o Egito das cataratas ao delta!”
8
capítulo
Ra’hel, que da porta da cabana, olhava Poeri se afastar, supôs escutar um débil suspiro. Prestou ouvidos: alguns cães uivavam à lua; a coruja soltava seu pio fúnebre, os crocodilos vagiam entre os juncos do rio, imitando um choro de criança. A jovem israelita ia entrar, quando escutou um gemido mais claro, que não poderia ser atribuído aos ruídos da noite, mas saía evidentemente de um peito humano. Ra’hel aproximou-se com cuidado, receosa de uma emboscada; perto da parede da cabana avistou uma sombra azulada como a forma de um corpo caído por terra. Ra’hel, vendo que se tratava de uma mulher desmaiada, perdeu o medo e ajoelhou-se ao pé dela, procurando ver se a criatura respirava e se o seu coração batia. Respirava sim, e o coração batia fraco. Sentindo água nas vestes da desconhecida, Ra’hel pensou que fosse sangue e supôs que ali estaria a vítima de um crime; chamou Tamar, sua criada, pedindo ajuda, e as duas levaram Tahoser para dentro da cabana. Deitaram-na num leito; Tamar segurava a luz, enquanto Ra’hel, debruçada sobre a jovem, procurava o ferimento, sem o encontrar. Tiraram-lhe as roupas molhadas, enrolaram-na num pano de lã e logo o calor fez voltar à vida suspensa. Tahoser abriu lentamente as pálpebras e circulou em torno o seu olhar assustado, como uma gazela prisioneira.
Precisou de alguns minutos para retomar o fio das ideias. Não podia compreender ainda como se encontrava naquele quarto, naquela cama. Mas logo lhe voltou a memória e com ela a noção dos fatos. A luz batia em cheio no rosto de Ra’hel, e Tahoser a estudava em silêncio, desolada por a descobrir tão bela. Em vão, com todo o azedume do ciúme feminino, lhe procurava um defeito; e sentia-se, se não vencida, pelo menos igualada; Ra’hel era o ideal israelita, como Tahoser era o ideal egípcio. “Cometi um grande erro”, dizia consigo Tahoser“, ao me apresentar a Poeri sob o aspecto humilde de uma pedinte. Louca! Fiz como um soldado que vai para a guerra sem couraça e sem lança. Se eu houvesse aparecido armada com meu luxo, coberta de joias e esmaltes, em pé no meu carro dourado, acompanhada pelos meus escravos, talvez lhe interessasse à vaidade, ou até mesmo ao coração”. — Como se sente agora? — perguntou em língua egípcia Ra’hel a Tahoser; pois, pelo feitio do rosto e pelos cabelos trançados em cordões, Ra’hel compreendera que a jovem não era de raça israelita. O som daquela voz era meigo e comivo e o sotaque estrangeiro lhe dava mais graça ainda. Tahoser sentiu-se comovida: — Vou melhor; em breve estarei boa, com seus cuidados. — Não se canse falando — recomendou a israelita, pondo a mão sobre os lábios de Tahoser. — Procure dormir para recuperar as forças. Tamar e eu velaremos seu sono. As emoções, a travessia do Nilo, a longa corrida através dos bairros perdidos de Tebas, tinham esgotado a filha de Petamunof. Em breve seus longos cílios se fecharam. Veio o sono, mas agitado, cortado por sonhos estranhos, por alucinações ameaçadoras. Tahoser estremecia nervosamente e balbuciava palavras sem sentido. Sentada à cabeceira da cama, Ra’hel acompanhava os movimentos das feições de Tahoser, inquietando-se quando as via contraídas, tranquilizando-se quando a outra se acalmava. Tamar, acocorada defronte à ama, também observava a filha do grão-sacerdote, com muito menos benevolência, contudo. Pela cara se via que Tamar era mulher de instintos vulgares; os olhos, apesar da idade da criada, brilhavam de curiosidade; o nariz era curvo como um bico de ave de rapina, parecendo farejar segredos; seus lábios, que se moviam sem falar, pareciam preparar perguntas. Intrigava-a muito aquela desconhecida apanhada à porta da cabana. De onde vinha, como chegara ali, com que fim, quem seria? E Tamar não imaginava respostas satisfatórias. Acrescente-se que Tamar, como em geral as velhas, tinha prevenções contra a beleza: e Tahoser, tão bela, a desagradava. Só à sua ama
Tamar perdoava ser bonita, beleza que aliás considerava como sua e da qual tinha orgulho e ciúme. Vendo que Ra’hel não falava, a velha veio sentar-se junto a ela e, piscando as pálpebras que lembravam asas de morcego, disse baixo, em hebraico: — Senhora, não auguro nada bom dessa mulher. Acho estranho ela vir desmaiar aqui e não em outro lugar. — A moça caiu no lugar onde se sentiu mal. A velha abanou a cabeça. — Acha então que o desmaio dela era fingido? — indagou Ra’hel. — Um embalsamador que a visse poderia lhe cortar o flanco, de tal modo parecia um cadáver. Olhar apagado, rosto sem cor, corpo inerte, pele fria, isso ninguém simula. — Não, não se finge, embora haja mulheres tão hábeis que sabem simular esses sintomas, enganando os mais astutos. Creio, porém que essa moça tinha realmente desmaiado. — Então de que desconfia? — Como é que ela veio parar neste local isolado, no meio da noite? Aqui, onde só moram os da nossa tribo, ocupados em fazer tijolos para o perverso Faraó? Que razão traria aqui uma moça egípcia, e com a roupa molhada, como se saísse de um tanque ou do rio? — Também não sei — respondeu Ra’hel. — E se viesse espiar nossos amos? Preparam-se grandes acontecimentos. Quem sabe não houve algum alerta? — lembrou a velha, com o olhar cheio de ódio. — Como é que essa moça doente poderia nos fazer mal? Está em nossas mãos, fraca e sozinha; e, aliás, à menor suspeita, poderemos detê-la até o dia da libertação. — Assim mesmo, é bom desconfiar. Olha como tem as mãos delicadas. — E que perigo há nisso? — Ó mocidade imprudente, que nada sabe ver, que caminha confiante sem crer em emboscadas, no espinho escondido sob a relva, na brasa coberta de cinzas, capaz de amimar uma víbora pensando que é uma cobrinha sem veneno! Compreenda, Ra’hel, abra os olhos: essa mulher não pertence à classe que simula; não tem o polegar achatado pelo fuso; essa mãozinha, amaciada pelos cosméticos, nunca trabalhou; essa miséria é um disfarce. As palavras de Tamar impressionaram Ra’hel que examinou Tahoser com mais atenção. À luz trêmula da lâmpada, Ra’hel viu quanto Tahoser era formosa: mas isso não lhe provocou qualquer mau sentimento; aquela beleza a enternecia. Não lhe era possível crer que tanta perfeição escondesse uma alma pérfida, e
nisso talvez tivesse mais razão que a velha. Amanheceu afinal e a febre de Tahoser aumentou: vinham-lhe alguns momentos de delírio e depois compridas sonolências. — Se ela morrer aqui — dizia Tamar — vão nos acusar de assassinato. — Ela não vai morrer — respondeu Ra’hel, levando água à boca ardente da moça enferma. — À noite levarei o corpo ao rio — continuava obstinada Tamar — e os crocodilos sumirão com ele. ou-se o dia, veio à noite e, na hora de costume, Poeri apareceu como na véspera, na porta da cabana. Ra’hel veio recebê-lo, levando um dedo à boca, pedindo silêncio, pois Tahoser dormia. Poeri imediatamente reconheceu a falsa Hora, cujo desaparecimento o preocupava, principalmente depois da visita de Timoft, que a procurava em nome de seu senhor. Mostrava-se espantadíssimo ao se erguer, após se debruçar sobre a cama, para ver se aquela era realmente a jovem que acolhera; não podia conceber como a moça viera parar ali. Ra’hel viu a surpresa de Poeri e olhou-o bem: — Então a conheces? Tamar fazia uma careta de satisfação, orgulhava-se da sua perspicácia, dir-seia que estava feliz por suas suspeitas se haverem em parte confirmado. — Sim — respondeu simplesmente Poeri. Os olhos da velha ardiam de maligna curiosidade e Ra’hel de novo ficou serena. Poeri lhe contou que uma jovem, dizendo chamar-se Hora, lhe aparecera pedindo agasalho e que ele a acolhera como é dever fazer-se com qualquer hóspede. No dia seguinte a jovem não mais estava entre as criadas e ele não entendia como a encontrava ali. Contou mais, que os emissários do Faraó procuravam por toda parte Tahoser, filha do grão-sacerdote Petamunof, desaparecida de seu palácio. — Bem vê que eu tinha razão, senhora — disse Tamar, triunfante. — Hora e Tahoser são a mesma pessoa. — É possível — respondeu Poeri. — Mas há nisso muitos mistérios que não compreendo. Primeiro por que Tahoser (se é ela) teria usado esse disfarce? Depois, por que milagre se encontra aqui essa jovem, que ontem deixei do outro lado do Nilo, e que decerto não poderia saber para onde eu ia? — Com certeza ela o seguiu — sugeriu Ra’hel. — Mas tenho certeza de que, naquela hora, só meu barco atravessava o rio. — Então é por isso que os cabelos dela e a roupa estavam ensopados; decerto
atravessou o rio a nado. — Realmente, houve um instante em que me pareceu entrever uma cabeça humana à flor d'água. — Era ela, coitadinha — disse Ra’hel — e a prova é a fadiga e o desmaio que sofreu. Depois que partiu encontrei-a desacordada do lado de fora da cabana. — É, as coisas devem ter se ado assim — observou Poeri. — Vejo bem as ações, mas não entendo os motivos. — Pois eu explico — disse Ra’hel sorrindo —, embora eu seja uma pobre ignorante e comparem você, pela sua ciência, com esses sacerdotes egípcios que estudam dia e noite no fundo dos santuários. Mas acontece às vezes que os homens, preocupados com astronomia, com música e com algarismos, não adivinham o que se a no coração das jovens. Hora, ou Tahoser, porque é Tahoser, disfarçou-se para se introduzir na sua casa e viver junto perto de você. Compreende agora? Através dos fantasmas dos seus sonhos Tahoser percebeu Poeri, em pé junto a ela. Uma alegria estática pintou seu rosto; e, soerguendo-se, ela segurou a mão do moço e a levou aos lábios. — Os lábios dela parecem fogo — disse Poeri retirando a mão. — Ela está muito mal — falou Ra’hel. — E se Tamar fosse chamar Moisés? Ele é mais sábio que os sábios e adivinhos do Faraó, cujos prodígios imita; conhece as virtudes das plantas e sabe compor beberagens que ressuscitariam os mortos. Ele curará Tahoser.
9
capítulo
Tamar partiu resmungando e logo voltou acompanhada por um velho de alta estatura, cujo aspecto majestoso impunha respeito. Uma imensa barba branca lhe descia em ondas sobre o peito e de ambos os lados da sua fronte duas protuberâncias enormes atraíam e prendiam a luz. Dir-se-iam dois cornos, ou dois raios. Sob os cenhos espessos os olhos brilhavam como chamas. Apesar dos seus trajes singelos, ele parecia um profeta ou um deus. Informado por Poeri, Moisés sentou-se ao pé do leito de Tahoser e falou, estendendo as mãos sobre a moça: — Em nome d'Aquele que tudo pode e junto ao qual os outros deuses são apenas ídolos e demônios, embora não pertença à raça eleita pelo Senhor, volte à saúde, jovem! E o grande velho retirou-se em o lento e solene, deixando como um clarão atrás de si. Tahoser, surpresa por se sentir repentinamente curada, corria os olhos pelo quarto e, logo, envolvendo-se no pano com que Ra’hel a cobrira, deslizou os pés para o chão e se sentou à borda do leito: a fadiga e a febre haviam desaparecido completamente. Tahoser estava fresca como após um longo repouso, e sua beleza irradiava. A egípcia se ergueu lentamente, caminhou para a jovem israelita e lhe envolveu o pescoço com os braços. Um soluço que ela não podia conter fazia-a às vezes estremecer. E aquela
desolação comoveu Ra’hel. Tahoser se confessava vencida e implorava piedade por suas súplicas mudas. Ajoelhou-se aos pés de Ra’hel e lhe beijou a mão; Ra’hel levantou rodeou com o braço, afetuosamente. Era um grupo encantador formado por aquelas duas mulheres de raças diferentes, cuja beleza resumiam. Tahoser elegante, graciosa e fina, como uma criança crescida depressa demais; Ra’hel deslumbrante, forte e soberba, na sua maturidade precoce. — Tahoser — falou Poeri —, pois é esse seu nome, creio. Tahoser, filha do grão-sacerdote Petamunof. A moça fez um gesto de concordância. — Como se explica que, vivendo em Tebas num palácio, cercada de escravos, desejada pelos mais belos egípcios, baixe os olhos para o filho de uma raça cativa, um estrangeiro que não partilha de suas crenças e do qual a separa tão imensa distância? Ra’hel e Tahoser sorriram, e a filha do grão-sacerdote respondeu: — É exatamente por isso. — Embora eu goze do favor do Faraó e seja intendente do domínio, tendo o direito de usar os cornos dourados nas festas da agricultura, não posso me elevar até onde você está. Aos olhos dos egípcios, sou apenas um escravo, e você pertence à mais alta e mais venerada casta sacerdotal. Se me ama, e tenho que acreditar que me ama, terá que descer de sua posição… — E eu não me fiz sua criada? Hora não guardou nada de Tahoser, nem sequer os colares de esmalte e os véus de gaze transparente. Por isso me achou feia. — Terá que renunciar a sua pátria e m acompanhar às regiões desconhecidas, através do deserto, onde o sol queima, onde sopra o vento de fogo, onde a areia movediça confunde os caminhos, onde nem uma árvore nasce, onde não brota uma fonte, entre os vales de perdição, semeados de ossos brancos, como marcos de estrada. — Eu irei — disse tranquilamente Tahoser. — E não é isso apenas — continuou Poeri —, seus deuses não são os meus, seus deuses são feitos pela mão do homem de basalto e granito, ídolos monstruosos de cabeça de milhafre, de macaco, de íbis, de vaca, de chacal, de leão, que usam máscaras de animais como se os vexasse a face humana onde brilha o reflexo de Jeová. Está escrito: “Tu não adorarás a pedra, nem a madeira, nem o metal.” No fundo desses templos enormes, cimentados com o sangue das raças oprimidas, escondem-se demônios impuros, que usurpam as libações, as oferendas e os sacrifícios. Um único Deus, infinito, eterno, sem formas, sem cor, basta para encher a imensidade dos céus que os seus povoam com uma
imensidade de fantasmas. Nosso Deus nos criou e vocês criaram os seus. Por mais apaixonada que estivesse Tahoser, aquelas palavras de Poeri lhe produziram um efeito estranho e ela recuou, assustada. Filha de um grãosacerdote, estava habituada a venerar aqueles deuses, contra os quais o jovem hebreu blasfemava com tamanha insolência. Ela depa ramos de lótus e queimara perfumes diante de suas imagens imíveis, eara pelos templos, ornados de lindas pinturas. Vira seu pai executar ritos misteriosos, acompanhara os colégios de padres que carregavam pelos propileus enormes a bari simbólica, e acompanhara com olhar sonhador os afrescos que representavam vultos emblemáticos, a viajar pelas regiões ocidentais. Tahoser não podia renunciar assim às suas crenças. Ficou calada um instante e afinal disse: — Você me explicará seu Deus; procurarei compreendê-lo. — Está bem — disse Poeri —, será minha esposa; mas por ora fique aqui, pois o Faraó a procura com seus emissários. Ele não a descobrirá nesta humilde cabana e, dentro de alguns dias, estaremos fora de seu poder. Mas a noite vai alta e tenho que partir. Poeri afastou-se e as duas moças logo adormeceram, de mãos dadas, como duas irmãs.
Tamar, que se mantivera escondida a um canto como um morcego, levantouse resmungando, debruçou-se sobre a cama e pôs-se a escutar a respiração das
moças. Quando, pela regularidade do fôlego, se convenceu de que dormiam profundamente, dirigiu-se à porta, na ponta dos pés. Saiu e encaminhou-se às pressas no rumo do Nilo, repelindo os cães que lhe mordiam a túnica, ou os encarando com um olhar ardente que os fazia fugir, ganindo. Logo atravessou os trechos perigosos ocupados à noite pelos membros da confraria dos ladrões e penetrou nos bairros ricos de Tebas; três ou quatro ruas, ladeadas de altos edifícios, conduziram-na ao recinto do palácio, que era a meta da sua caminhada. Mas entrar lá não era fácil àquela hora da noite, para uma velha criada israelita, suja e rasgada. Tamar apresentou-se ao pilone principal, velado por cinquenta esfinges acocoradas. As sentinelas a detiveram, batendo-lhe rudemente com o cabo das lanças. Só depois lhe perguntaram o que queria. — Quero ver o Faraó — disse a velha esfregando as costas. — Imagina! Incomodar por causa dessa feiticeira o Faraó, favorito de Frê, preferido de Amon-Ra, soberano dos povos! — E os soldados se pam a rir. Tamar repetiu, teimosa: — Quero falar já e já com o Faraó. — Escolheu bem o momento! Faz pouco o Faraó matou três mensageiros, batendo-lhes com o cetro. Está no terraço, sinistro como Tífon, deus do mal — disse um dos soldados, dignando-se dar uma explicação. A criada de Ra’hel tentou forçar a porta; as lanças lhe bateram em cadência na cabeça, como martelos na bigorna. Tamar se pôs a gritar como um frango depenado vivo. Um oeris acorreu ao tumulto; os soldados pararam de bater em Tamar. — O que quer essa mulher e por que batem nela? — Quero falar com o Faraó — gritou Tamar arrastando-se aos pés do oficial. — É impossível — respondeu o oeris —, mesmo que em vez de miserável fosse um grande personagem do reino. — Sei onde está Tahoser — murmurou a velha, escandindo cada sílaba. Ante aquelas palavras o oeris segurou Tamar pela mão e a conduziu através das salas e dos corredores do palácio até o santuário de granito onde se erguia a colunata de capiteis de lótus; lá, chamou Timoft e lhe entregou Tamar. Timoft levou a velha ao terraço onde se encontrava o Faraó, sombrio e silencioso. — Só lhe fales de uma distância fora do alcance do cetro — recomendou Timoft à israelita.
Assim que avistou o rei, entre as sombras, Tamar deixou-se cair de rosto contra as lajes, ao lado dos corpos que ali jaziam; e logo, erguendo-se, nos joelhos, falou com voz segura: — Ó Faraó, não me mate que trago boas novas. — Fale sem temor — ordenou o rei, cujo furor se acalmara. — Sei onde se esconde essa Tahoser que seus mensageiros procuraram aos quatro ventos. Ante o nome de Tahoser o Faraó se ergueu de brusco e deu alguns os na direção de Tamar, que se mantinha ajoelhada. — Se fala a verdade, pode apanhar nas minhas câmaras de granito tanto ouro e objetos preciosos quanto for capaz de carregar. — Fique tranquilo que a terá — disse a velha com riso estridente.
Que motivo levara Tamar a denunciar ao Faraó o esconderijo da filha do grão-sacerdote? Queria impedir uma união que a desagradava. A raça do Egito lhe provocava um ódio cego, quase bestial, e lhe sorria a ideia de despedaçar o coração de Tahoser. Uma vez nas mãos do Faraó a jovem não poderia fugir: as muralhas do palácio guardariam bem a presa. — Onde está ela? — indagou o Faraó. — Diga o local, quero vê-la já. — Majestade, só eu posso guiá-lo; conheço as voltas daqueles quarteirões imundos onde nem o mais humilde de seus criados se dignaria pisar. Tahoser está lá, numa cabana de adobe, igual a todos os outros casebres dos arredores, entre os montes de tijolos que os hebreus modelam para o Faraó, fora das moradias regulares da cidade. — Bem, confio-me a você. Timoft, mande atrelar um carro. Timoft desapareceu. Logo se escutaram as rodas do carro nas lajes do pátio e o tropel dos cavalos que os escudeiros detinham. O Faraó desceu, acompanhado por Tamar. O rei subiu ao carro, segurou as rédeas e, vendo que Tamar hesitava, disse: — Vamos, suba. O real condutor estalou a língua e os cavalos partiram. Os ecos repetiam o ruído das rodas, soando como um trovão surdo no silêncio das ruas.
Compunham um estranho espetáculo, aquela velha horrenda, agarrando-se com os dedos ossudos ao rebordo do carro, e o Faraó de estatura colossal, semelhante a um deus; felizmente as únicas testemunhas eram as estrelas cintilando no céu negro. — Será por aqui? — indagou o Faraó ante uma rua que se bifurcava. — Sim — respondeu Tamar apontando com a mão seca a direção. Os cavalos, excitados pelo chicote, atiravam-se para a frente, e o carro saltava sobre as pedras com um ruído de bronze. — Modere seus cavalos — recomendou Tamar ao Faraó —, o barulho das rodas neste silêncio pode assustar a fugitiva e fazê-la escapar outra vez. O Faraó, aceitando o conselho, diminuiu a marcha impetuosa do carro, apesar de sua impaciência. — É ali — mostrou Tamar. — Deixei a porta aberta: entre, que eu seguro os cavalos. O rei desceu do carro e, baixando a cabeça, penetrou na cabana. A lâmpada ainda ardia e clareava fracamente as duas moças adormecidas. O Faraó tomou Tahoser nos braços robustos e se dirigiu à porta da cabana. A filha do grão-sacerdote, despertando e vendo flamejar perto de seu rosto a face faiscante do Faraó, quis gritar, clamar por socorro. Mas a voz não lhe saiu da garganta. Quem, aliás, a socorreria contra o Faraó? De um salto o rei pulou no carro, ou as rédeas pela cintura, e, apertando no peito Tahoser semimorta, atirou os corcéis a galope em direção ao Palácio do Norte. Tamar deslizou como um réptil para dentro da cabana, acocorou-se em seu lugar de costume e ficou contemplando, com olhar quase tão carinhoso quanto o de uma mãe, a sua querida Ra’hel que continuava a dormir.
10
capítulo
Forte corrente de ar, produzida pelo deslocamento rápido do carro, em breve despertou Tahoser. Apertada, quase esmagada contra o peito do Faraó pelos dois braços de granito, mal tinha lugar no próprio peito para as batidas do coração. Os cavalos, aos quais o rei afrouxava as rédeas, debruçando-se à borda do carro, precipitavam-se com fúria; as rodas turbilhonavam, as placas de bronze retiniam, os eixos inflamados fumegavam. Tahoser, apavorada, via vagamente, como num
sonho, voarem à direita e à esquerda as formas confusas de construções e arvoredo e estatuária fantástica. Que pensamentos seriam os seus durante aquela corrida desesperada? Talvez os da pomba palpitante nas garras do falcão que a arrebata. Um terror mudo a paralisava e lhe gelava o sangue. Não tinha vontade nem músculos e, se os braços do Faraó não a sustivessem, ela escorregaria para o fundo do carro como um pano largado. O carro entrou por uma avenida de esfinges terminada por um arco gigante onde se ostentava o globo emblemático; à noite, menos opaca, permitiu à filha do sacerdote discernir o palácio real. O desespero então se apoderou de Tahoser que se debatia, debruçando-se às bordas do carro. Esforço inútil, luta insensata! Enquanto isso, os cavalos alcançavam o arco, que atravessaram a galope, felizes por voltarem à cocheira, e o carro rodou sobre um pátio imenso. Acorreram criados que se atiraram à cabeça dos cavalos, cujos freios estavam brancos de espuma. Tahoser correu em redor seu olhar apavorado. Muralhas altíssimas, um templo, piscinas dos crocodilos sagrados. O Sol nascia, mostrando à jovem que não havia ali nenhuma esperança de fuga; só um cataclismo cósmico abriria uma fenda naquelas paredes espessas, derrubaria aqueles pilões formados por pedaços de montanhas. Mesmo um incêndio só poderia lamber com as suas línguas de fogo aqueles blocos indestrutíveis. A pobre Tahoser não tinha à disposição nenhum desses meios violentos e via-se forçada a se deixar transportar como uma criança pelo Faraó, que descera do carro. O rei penetrou na entrada do palácio, formada por quatro altas colunas, e, ao transpor a porta, depôs Tahoser delicadamente no chão; vendo-a cambalear, disse-lhe: — Acalme-se. Você reina sobre o Faraó e o Faraó reina sobre o mundo. Eram as primeiras palavras que ele lhe dizia.
O Faraó era dotado de beleza sobre-humana: as feições amplas, puras, regulares, pareciam obra de um cinzel e não se encontrariam nelas a menor imperfeição. O hábito do poder lhe pa nos olhos aquela luz penetrante que distingue as divindades e os reis. Sua estatura alta, bem proporcionada,
majestosa, tinha a nobreza de linhas das estátuas dos templos. E quando ele aparecia, solene e radioso, coberto de ouro, de esmaltes e de pedras preciosas, entre a fumaça azulada do incenso, não parecia fazer parte daquela raça frágil que, de geração em geração, ia caindo como caem as folhas, e acabaria por extinguir-se, embebida em betume, nas tenebrosas profundezas dos túmulos. Quem era, diante daquele deus, o franzino Poeri? E, contudo, Tahoser o amava. Depois de atravessar inúmeras salas, segurando Tahoser pela mão, o Faraó se assentou numa cadeira em forma de trono, numa câmara magnificamente decorada. No teto brilhavam estrelas de ouro, aos pilares encostavam-se estátuas de reis; entre um e outro pilar ardia uma lâmpada. As paredes ostentavam um verdadeiro desfile etnográfico: viam-se nelas figuradas, com suas fisionomias especiais e seus costumes particulares, as nações das quatro partes do mundo. À frente da série, guiado por Horo, o pastor dos povos, caminhava o homem por excelência, o egípcio, o “Rot-en-ne-roem” de fisionomia suave, nariz ligeiramente aquilino, cabeleira trançada, pele vermelho escura, realçada por uma tanga branca. Depois vinha o negro, ou “nahasi”, com sua pele preta, lábios grossos, pômulos salientes, cabelos encarapinhados; depois o asiático ou Namu, pele amarelada, nariz fortemente aquilino, barba preta e espessa, cortada em ponta, vestido de um saio colorido, franjado; depois o europeu ou Tambu, o mais selvagem de todos, diferente dos demais pela sua pele branca, barba e cabeleira ruivas, com um couro cru de boi atirado aos ombros e tatuagens nos braços e nas pernas. Cenas de guerra e triunfos enchiam as outras paredes, cujo sentido era explicado por inscrições hieroglíficas. No meio da sala, numa mesa cujos pés figuravam cativos atados, tão habilmente esculpidos que pareciam viver e sofrer, um grande ramo de flores perfumava o ambiente. Assim, naquela câmara magnífica, cercada pelas efígies dos seus anteados, tudo contava e cantava a glória do Faraó. As nações do mundo marchavam atrás do Egito e lhe reconheciam a supremacia; e ele, o Faraó, dominava o Egito. Contudo, a filha de Petamunof, longe de ficar deslumbrada por aquele esplendor, pensava na casa de campo de Poeri e, principalmente, na miserável cabana de adobe do bairro dos hebreus, onde deixara Ra’hel adormecida. O rei a apavorava, o esplendor de sua face a deslumbrava, e as pernas da moça fraquejavam. O Faraó, vendo a perturbação de Tahoser, fê-la sentar-se a seus pés numa almofada. — Ó Tahoser, quando a avistei, do alto do meu palanquim triunfal carregado
pelos oeris acima da cabeça dos homens, um sentimento desconhecido me penetrou na alma. Compreendi que eu sozinho não era tudo. Até então eu vivera solitário na minha onipotência, no fundo dos meus palácios gigantescos. Escutava de longe o rumor vago e os gemidos das nações sobre cujas cabeças eu limpava o pó das sandálias, ou que eu soerguia pelos cabelos, tal como me representam os baixos-relevos simbólicos dos pilones; no meu peito, frio e compacto como o de um deus de basalto, eu não escutava as batidas do meu coração. Parecia-me que não existia em toda a Terra um ente semelhante a mim e que me pudesse comover. Pensava que, colocado pelos deuses acima de todos os mortais, eu não devia partilhar das dores e das alegrias dos mortais. Um tédio imenso, semelhante decerto ao que sentem as múmias enfaixadas que esperam, nos seus ataúdes no fundo dos hipogeus, que suas almas completem o circuito das migrações, se apoderara de mim no meu trono, onde muitas vezes eu me deixava ficar, de mãos sobre os joelhos, como um colosso de granito, meditando no impossível, no infinito, no eterno. Muitas vezes pensava em soerguer o véu de Ísis, sob o risco de cair fulminado aos pés da deusa. “Talvez, dizia eu comigo, o rosto misterioso da deusa seja o rosto com que sonho. Se a terra me recusa a felicidade, escalarei o céu…” Mas eu avistei você, e experimentei um sentimento estranho e novo; compreendi que existe, além de mim, um ser necessário, imperioso, fatal, sem o qual não poderei viver e que tem o poder de me tornar infeliz. Eu era um rei, quase um deus; e oh, Tahoser, você fez de mim um homem! Talvez fosse o mais longo discurso do Faraó. Habitualmente uma palavra, um gesto, um bater de pálpebra, lhe bastavam para manifestar uma vontade, logo adivinhada por mil olhares atentos, inquietos. A execução seguia-se ao pensamento, como ao relâmpago sucede o raio. Mas, para Tahoser, o Faraó parecia haver renunciado à sua majestade granítica; falava e se explicava como um mortal.
Tahoser era presa de estranha perturbação. Não sentia a menor simpatia pelo preferido de Frê, pelo favorito de Amon-Ra, pelo espezinhador de povos, por aquele ente assustador, solene e soberbo, para o qual mal ousava erguer os olhos. A esse Faraó que lhe raptara o corpo ela não podia dar sua alma que ficara com Poeri e Ra’hel; e como o rei parecesse aguardar uma resposta, ela lhe disse: — Por que prodígio, ó rei, entre todas as jovens do Egito, seu olhar terá caído sobre mim, que tantas outras vencem em beleza, em talentos e dons? Como, entre os tufos de lótus brancos, azuis e róseos, de corola aberta e perfume suave, escolheu um humilde ramo de erva que não se distingue em nada? — Não o sei. Mas fique sabendo que só no mundo só você existe para mim, e que farei das filhas dos reis suas criadas. — E se eu não o amasse? — indagou timidamente Tahoser. — Que me importa? — respondeu-lhe o Faraó. — Odeie-me, e será apenas mais encantadora. Pela primeira vez minha vontade encontrará um obstáculo e saberei vencê-lo. — E se eu amasse um outro? — continuou Tahoser, atrevendo-se. Diante dessa suposição o cenho do Faraó se contraiu; o rei mordeu violentamente o lábio inferior, onde seus dentes deixaram marcas brancas, e apertou até provocar dor os dedos da jovem, que segurava ainda. Acalmou-se depois e disse em voz lenta e profunda: — Depois de viver neste palácio, no meio destes esplendores, esquecerá tudo, como esquece aquele que mastiga o nepentes. Sua vida ada parecerá
um sonho; seus sentimentos anteriores hão de se evaporar como o incenso sobre as brasas do turíbulo; a mulher amada por um rei não se lembra mais dos homens. Ande, venha se acostumar às magnificências faraônicas, enfie a mão nos meus tesouros, faça correr o ouro em ondas, amontoe pedrarias, ordene, faça, desfaça, abaixe, eleve, seja minha mulher e minha rainha. Dou-lhe o Egito com seus sacerdotes, exércitos, camponeses, seu povo inumerável, seus palácios, templos e cidades. Amarrote-o como a um retalho de gaze; eu lhe darei outros reinos, maiores, mais belos, mais ricos. Se o mundo não bastar, eu conquistarei os planetas e destronarei os deuses. Você é a minha amada, Tahoser. A filha de Petamunof não existe mais.
11
capítulo
Quando Ra’hel despertou, sentiu-se surpresa por não encontrar Tahoser ao seu lado e correu com os olhos a cabana, supondo que a egípcia já se houvesse levantado. Acocorada a um canto, Tamar, de braços cruzados aos joelhos, a cabeça sobre os braços, ossudo travesseiro, dormia, ou, antes, fingia dormir; pois que através das mechas grisalhas do seu cabelo em desordem, que caía até ao chão poder-se-iam ver suas pupilas ruivas como a de uma coruja, fosforescentes de alegria maligna e de maldade satisfeita. — Tamar — disse Ra’hel —, o que foi feito de Tahoser? A velha, fingindo despertar em sobressalto à voz da ama, estirou lentamente os membros de aranha, pôs-se de pé, esfregou as pálpebras escuras, com o dorso da mão amarela e mais seca que a de uma múmia, e disse com espanto bem simulado: — E ela não está mais aí? — Não — respondeu Ra’hel — e se eu não visse seu lugar marcado na cama ao lado do meu, e pendurado naquele torno o vestido que ela tirou, acreditaria que os estranhos acontecimentos desta noite eram apenas um sonho. Embora soubesse perfeitamente o que motivara o desaparecimento de
Tahoser, Tamar ergueu um pedaço de cortina estendido ao fundo do quarto, como se a moça egípcia pudesse estar escondida atrás dele. Abriu a porta da cabana e, em pé na entrada, examinou minuciosamente os arredores; virando-se depois para dentro, fez à ama um sinal negativo. — É estranho — disse Ra’hel pensativa. — Senhora — falou a velha aproximando-se da bela israelita com modos dulçorosos e meigos —, sabe que essa estrangeira me desagradava. — Todo mundo a desagrada, Tamar — respondeu Ra’hel sorrindo. — Exceto a senhora — disse a velha levando aos lábios a mão da jovem. — Oh, sei que me quer bem. — Nunca tive filhos e penso às vezes que é minha filha. — Querida Tamar — disse Ra’hel comovida. — Estaria eu errada em considerar estranha a aparição daquela jovem? Sua desaparição se explica. Ela dizia que era Tahoser, filha de Petamunof. Mas não ava de um demônio que tomara forma de mulher para seduzir e tentar um filho de Israel. Viu como se perturbou quando Poeri lhe falou dos ídolos de pedra, de madeira e de metal? E como teve dificuldade em dizer aquelas palavras: “Procurarei acreditar no teu Deus?” Dir-se-ia que a palavra lhe queimava os lábios, como uma brasa. — As lágrimas de Tahoser que me molharam o colo eram lágrimas verdadeiras, lágrimas de mulher — disse Ra’hel. — Os crocodilos também choram quando querem, e as hienas riem para atrair as presas — continuou a velha —, os maus espíritos, que rondam à noite entre as pedras e as ruínas, sabem muitas astúcias e desempenham todos os papéis. — Então, em sua opinião, a pobre Tahoser é apenas um fantasma produzido pelo inferno? — Com toda certeza. Seria verossímil que a filha do grão-sacerdote Petamunof se apaixonasse por Poeri e o preferisse ao Faraó, que dizem estar apaixonado por ela? Ra’hel não achava que o fato fosse tão inverossímil. — Se ela o amava tanto quanto dizia, por que fugiu? Foi a condição de renunciar aos falsos deuses e adorar Jeová que pôs em fuga esse diabo disfarçado. — Em todo caso — disse Ra’hel —, o tal demônio tinha a voz muito meiga e os olhos muito ternos. No fundo, Ra’hel talvez não estivesse muito descontente com a desaparição de Tahoser.
A pretexto de sair para compras, Tamar dirigiu-se ao palácio do rei, cuja promessa sua cupidez não esquecera. Munira-se de um grande saco de pano escuro, para encher de ouro. Quando Tamar se apresentou na porta do palácio, os soldados não a espancaram como da primeira vez; ela já tinha a sua importância e o oeris da guarda a fez entrar imediatamente. Timoft levou-a à presença do Faraó. Ao avistar a velha imunda que rastejava em direção ao trono como um inseto meio esmagado, o rei recordou sua promessa e deu ordem para que abrissem à judia uma das câmaras de granito, a fim de que ela apanhasse tudo que pudesse carregar. Timoft, em quem o Faraó tinha confiança e que conhecia o segredo da fechadura, abriu a porta de pedra. O imenso monte de ouro refulgiu sob um raio de sol; mas o clarão do metal não brilhava mais que o olhar da velha. Depois de alguns minutos de deslumbrada contemplação, ela arregaçou as mangas da túnica remendada, desnudou os braços secos cujos músculos saltavam como cordões, abriu e fechou os dedos curvos, parecidos com garras de grifos, e se lançou sobre o monte de siclos de ouro com avidez feroz e bestial. Mergulhava no ouro até os ombros, abraçava-o, agitava-o, rolava-o, fazia-o saltar. Seus lábios tremiam, as narinas se dilatavam, corriam—lhe tremores convulsivos pela espinha. Embriagada, louca, com risos espasmódicos, ela atirava punhados de ouro no seu saco, dizendo: Mais, mais! E em breve o encheu até a boca. Timoft, divertido com o espetáculo, deixava-a agir à vontade, sem pensar que aquele espectro descarnado pudesse carregar tanto peso. Mas Tamar atou com uma corda a boca do saco e, ante a surpresa do egípcio, carregou-o às costas. A avareza emprestava forças desconhecidas àquela carcaça descarnada; todos os músculos, nervos, tendões, dos braços e dos ombros, tensos em ponto de romper, carregavam uma massa de metal que faria dobrar-se o mais robusto carregador da raça Nasahi. Com a fronte caída como a testa de um boi quando a reina da charrua encontra uma pedra, Tamar, com as pernas titubeantes, saiu do palácio, batendo nas paredes, caminhando quase de quatro pés, porque de vez em quando levava as mãos ao solo, para que o peso não a esmagasse. Mas enfim
saiu, e a carga de ouro lhe pertencia legitimamente. Ofegante, esgotada, coberta de suor, as costas pisadas, os dedos cortados, a velha sentou-se à porta do palácio, sobre o seu abençoado saco, e jamais estofado nenhum lhe parecera tão macio. ado algum tempo, avistou ela dois israelitas que avam com uma padiola, de volta de algum carreto; chamou-os e, prometendo-lhes boa recompensa, mandou-os carregar o saco e segui-la. Os dois israelitas, precedidos por Tamar, meteram-se pelas ruas de Tebas, chegaram aos terrenos vagos onde se erguiam as cabanas de adobe e depam a carga à porta de uma delas. Tamar, regateando, deu-lhes a recompensa prometida. Enquanto isso, Tahoser fora instalada num apartamento magnífico, um apartamento real, semelhante ao do Faraó. Sentada numa poltrona de marfim, Tahoser olhava os brocados e as joias que algumas jovens lhe mostravam, descobrindo as riquezas contidas nos cofres. O Faraó apareceu à entrada da sala; uma víbora de ouro lhe segurava a cabeleira espessa, e um calasiris, cujas pregas reunidas à frente caíam em ponta, lhe rodeava o corpo, da cintura aos joelhos. Uma gargantilha lhe rodeava o pescoço, de músculos invencíveis. Ao avistar o rei, Tahoser quis se erguer da cadeira e prosternar-se; mas o Faraó aproximou-se, soergueu-a e fê-la assentar-se. — Não te humilhes assim, Tahoser — disse ele em voz meiga. — Quero que sejas minha igual. Aborrece-me ser sozinho no universo. Afasta qualquer temor; sê uma mulher, com todos os seus caprichos, suas simpatias e antipatias; nunca vi uma mulher assim. Mas, se teu coração bater afinal por mim, oferece-me, quando eu entrar na sala, a flor de lótus da tua cabeleira. E, embora ele o tentasse impedir, Tahoser deixou-se cair aos joelhos do Faraó e molhou com uma lágrima os seus pés nus. “Por que minha alma pertence à Poeri?”, indagava ela de si, retomando o seu lugar na poltrona de marfim. Timoft, levando uma mão ao solo e outra à cabeça, penetrou na sala. — Ó rei, um personagem misterioso pede para te falar. Sua barba imensa desce até ao ventre; cornos luminosos lhe saem da fronte e seus olhos brilham como chamas. Um poder desconhecido o precede, porque todos os guardas se afastam e todas as portas se abrem diante dele. O que ele diz tem que ser feito e vim procurar-te, interrompendo os teus prazeres, correndo o risco de que a morte castigue a minha audácia. — Como se chama ele? — indagou o rei. Timoft respondeu: — Moisés.
O rei ou para outra sala a fim de receber Moisés e sentou-se em um trono cujos braços eram formados por dois leões. Cobriu o peito com um amplo peitoral, segurou o cetro e assumiu uma postura de suprema indiferença. Moisés apareceu; um outro hebreu, por nome Aarão, o acompanhava. Por mais augusto que se mostrasse o Faraó no seu trono de ouro, cercado pelos seus oeris e seus flabelíferos, naquela alta sala de colunas enormes, sobre aquele fundo de pinturas que representavam as façanhas dos seus avós e as suas próprias, Moisés não se mostrava menos imponente. A majestade da idade equivalia à majestade real. Embora tivesse oitenta anos, mostrava-se de um vigor completamente viril e nada, nele, traía as decadências da senilidade. As rugas da testa e das faces, semelhantes a riscos de cinzel em granito, tornavam-no venerável, sem lhe acusarem a data dos anos. O pescoço moreno e enrugado se prendia a ombros fortes por músculos descarnados, mas ainda poderosos, e um trançado de veias cobria as mãos que o tremor habitual dos velhos não agitava. Uma alma mais enérgica do que a alma humana lhe vivificava o corpo, e sobre seu rosto brilhava, mesmo à sombra, uma luz singular. Dir-se-ia o reflexo de um sol invisível. Sem se curvar, como era costume diante do rei, Moisés avançou até ao trono do Faraó e disse: — Assim falou o Eterno, o Deus de Israel: “deixa ir meu povo para que ele me ofereça um sacrifício no deserto”. O Faraó respondeu: — Quem é o Eterno cuja voz devo escutar para deixar partir Israel? Não conheço o Eterno e não deixarei partir Israel. Sem se deixar intimidar pelas palavras do rei, o grande velho repetiu com firmeza, porque a antiga gagueira desaparecera: — O Deus dos hebreus manifestou-se a nós. Queremos caminhar a uma distância de três dias no deserto e lá fazer sacrifícios ao Eterno, nosso Deus, para que Ele não nos fira com o gládio ou com a peste. Aarão, com um gesto de cabeça, confirmou o pedido de Moisés: — Por que ireis afastar o povo das suas ocupações? — perguntou o Faraó. — Voltai aos vossos trabalhos. Felizmente, para vós, estou hoje de humor clemente, pois poderia muito bem mandar-vos açoitar com varas, cortar o nariz e as orelhas, atirar-vos vivos aos crocodilos. Sabei, que vo-lo digo, que não existe outro deus senão Amon—Ra, o ser supremo e primordial; dele emanam todos os outros deuses que ligam o céu à terra; os sábios o conhecem, como o conhecem os sacerdotes que por muito tempo estudaram os mistérios, nos colégios e no fundo dos templos consagrados às suas diversas representações. Não alegueis,
pois um outro deus da vossa invenção para incitar os hebreus à revolta e impedilos de realizar a tarefa imposta. Vosso pretexto de sacrifício é transparente: quereis fugir. Retirai-vos de ante a minha face e continuai a moldar a argila para meus edifícios reais e sacerdotais, para minhas pirâmides, meus palácios e muralhas. Ide, já disse. Moisés, vendo que não podia comover o coração do Faraó e que se insistisse lhe excitaria a cólera, retirou-se em silêncio, acompanhado pelo consternado Aarão. — Obedeci à ordem do Eterno — disse Moisés ao companheiro, quando transpôs o portão — mas o Faraó se manteve insensível como se eu falasse a esses homens de granito sentados em tronos à porta dos palácios, ou a algum desses ídolos de cabeça de cão, de macaco ou de milhafre, que os sacerdotes incensam no fundo dos santuários. Que iremos responder ao povo quando nos interrogarem sobre o êxito da nossa missão? O Faraó, receando que os hebreus tivessem a ideia de sacudir o seu jugo, seguindo as sugestões de Moisés, fê-los trabalhar ainda mais rudemente e lhes recusou palha para a misturar ao barro dos tijolos. Assim, os filhos de Israel se espalharam pelo Egito inteiro, arrancando colmo e maldizendo os exatores, pois se sentiam muito infelizes e diziam que os conselhos de Moisés lhes redobraram a miséria. Um dia, Moisés e Aarão reapareceram no palácio, e mais uma vez concitaram o rei a deixar partir os hebreus, para que sacrificassem ao Eterno no deserto. O Faraó lhes respondeu: — Quem me prova que verdadeiramente o Eterno vos envia até mim, para me dizer essas coisas, quem me diz que não ais de vis impostores, como o imagino? Aarão atirou o cajado à frente do rei e a madeira começou a torcer-se, a ondular, a cobrir-se de escamas, a agitar a cabeça e a cauda, a soltar horrendos assobios. O cajado se transformara em serpente. Chocalhava os anéis nas lajes, inchava o papo, dardejava a língua bipartida e, rolando os olhos vermelhos, parecia escolher a vítima a quem picaria. Os oeris e os servidores de pé junto ao trono mantinham-se imóveis e mudos de medo, à vista daquele prodígio. Os mais valentes puxaram da espada. Mas o Faraó não se abalara; um sorriso desdenhoso lhe aflorou aos lábios e ele disse: — Eis o que sabeis fazer. É milagre pífio, grosseiro prodígio. Chamem meus sábios, meus mágicos, meus mestres de hieróglifos. Chegaram os homens chamados. Eram personagens de aspecto formidável e
misterioso; cabeças raspadas, sapatos de biblos, vestidos em longas túnicas de linho, traziam nas mãos bastões gravados de hieróglifos. Eram amarelos e ressequidos como múmias, de tanto velarem, estudarem, jejuarem; as fadigas das sucessivas iniciações se liam em seus rostos, onde só os olhos pareciam vivos. Os sábios se enfileiraram em frente ao trono do Faraó, sem darem atenção à serpente que se estorcia no chão e sibilava. — Poderei transformar seus bastões em serpentes como fez Aarão? — perguntou o rei. — Ó rei, é para esse brinquedo de criança — disse o mais velho do grupo — que nos manda chamar nas nossas câmaras secretas, onde sob os tetos estrelados, à luz das lâmpadas, meditamos debruçados sobre papiros indecifráveis, ajoelhados diante de esteias hieroglíficas de sentido misterioso e profundo, arrancando os segredos da natureza, calculando a forma dos números, levando nossa mão trêmula à fímbria do véu da grande Ísis? Deixe-nos voltar, porque a vida é curta e o sábio mal tem tempo para transmitir a outro a palavra revelada; deixa-nos voltar aos nossos trabalhos. Basta um saltimbanco, um tocador de flauta da rua, para te satisfazer. — Enana, faça o que ordeno — disse o Faraó ao chefe dos mágicos. O velho Enana voltou-se para o grupo de sábios que se mantinham de pé, imóveis, já com o espírito mergulhado no abismo das meditações. — Atirem os cajados ao chão, dizendo as palavras mágicas. Com um ruído seco os cajados caíram juntos sobre as lajes e os sábios voltaram à sua postura perpendicular, semelhantes às estátuas encostadas às paredes dos templos; não se dignavam sequer olhar o chão, para ver se o prodígio se realizava, de tal modo confiavam no poder de sua fórmula. E teve então lugar um estranho e horrível espetáculo: os cajados se torciam como ramos verdes ao fogo; suas extremidades se achatavam formando cabeças, se afilavam em caudas; uns ficavam lisos, outros se escamavam, conforme a espécie de serpente em que se transformavam. Uma se arrastava, sibilava, se enlaçava e se enovelava medonhamente. Havia víboras com marca de ponta de lança na cabeça chata, cerastas de protuberâncias ameaçadoras, hidras esverdeadas e viscosas, áspides de presas móveis, trigonocéfalas amarelas, cobras de vidro, crótalos de focinho curto e pele escura, fazendo soar os cascavéis da cauda; cobras de duas cabeças, andando para frente e para trás; boas, que abriam as largas bocas, capazes de engolir até o boi Ápis; serpentes de olhos cercados dos discos, como os das corujas; o pavimento da sala estava coberto delas. Tahoser, que partilhava o trono do Faraó, ergueu os lindos pés nus e sentouse sobre eles, pálida de medo.
— Ora, bem vê — disse o Faraó a Moisés — que a ciência dos meus mestres de hieróglifos iguala ou ultraa a sua. Seus cajados se transformaram em serpentes, como o de Aarão. Invente outro prodígio, se quer me convencer. Moisés estendeu a mão e a serpente de Aarão se precipitou para os outros vinte e quatro répteis. A luta não foi longa: em breve ela engolira os horrendos animais, criações reais ou aparentes dos sábios do Egito; depois retomou sua forma de cajado. Esse resultado pareceu espantar Enana. Ele inclinou a cabeça, refletiu e disse como homem que muda de ideia: — Encontrarei a palavra e o signo. Interpretei mal o quarto hieróglifo da quinta linha perpendicular, onde se encontra a conjuração das serpentes… ó rei, ainda precisa de nós? Estou ansioso para voltar à leitura do Hermes Trimegisto, que contém segredos muito mais importantes que esses truques de prestidigitador. O Faraó fez sinal ao velho indicando que podia se retirar e o cortejo silencioso retornou às profundezas do palácio. O rei voltou ao gineceu em companhia de Tahoser. A filha do grão-sacerdote, assustada e ainda trêmula à vista dos prodígios, ajoelhou-se diante do soberano e disse; — Ó Faraó, não receia irritar com sua resistência esse deus desconhecido, ao qual os israelitas querem sacrificar no deserto, a três dias de distância? Deixa que partam Moisés e os hebreus para cumprirem seus ritos. Receio que o Eterno, como eles o chamam, castigue a terra do Egito e nos faça morrer. — Será possível que essas mágicas com cobras a assustem? — respondeu o Faraó. — Não viu que meus sábios também produziram serpentes com seus cajados? — Sim, mas a serpente de Aarão devorou as outras, e isso é um mau presságio. — Que me importa? Afinal, sou o favorito de Frê, o preferido de Amon-Ra. Tenho debaixo das sandálias as efígies dos povos vencidos. Se eu quiser, com um simples sopro varrerei essas invenções hebraicas e verá se o Deus deles os protegerá. — Tonha cautela, Faraó — disse Tahoser, que recordava as palavras de Poeri a respeito do poder de Jeová — não deixe que o orgulho endureça seu coração. Esse Moisés e esse Aarão me causam pavor. É preciso que se sintam apoiados por um Deus terrível, se ousam afrontar sua cólera! — Se esse Deus fosse assim poderoso — disse o Faraó, procurando combater o medo expresso por Tahoser — iria deixá-los assim cativos e humilhados, dobrados como animais de carga, sob os trabalhos mais duros?
Esqueçamos esses vãos prodígios e vivamos em paz. Convença-se de que o Faraó tem mais poder do que o Eterno, divindade quimérica dos hebreus. — Sim, é o espezinhador de povos, o dominador de tronos e os homens, diante do Faraó, são como grãos de areia carregados pelo vento do sul. Eu sei — afirmou Tahoser. — E, contudo, não pude me fazer amar por você — replicou o Faraó, sorrindo. — O ibex tem medo do leão, a pomba receia o milhafre, a pupila teme o sol, e eu só o vejo ainda através de terrores e deslumbramento. A fraqueza humana demora a se familiarizar com a majestade real. Um deus assusta sempre uma mortal. — Faz com que eu lamente não ser um homem comum, Tahoser; um oeris, um monarca, um sacerdote, um agricultor, ou menos ainda. Mas já que não posso fazer de um rei um homem, posso fazer de uma mulher uma rainha, e atar a víbora de ouro a sua linda fronte. A rainha não temerá o rei. — Mesmo quando me faz sentar a seu lado, no trono, meu pensamento fica ajoelhado a seus pés. Mas é tão bom, apesar da beleza sobre-humana, seu poder sem limites e sua irradiação fulgurante, que talvez meu coração venha a se atrever a bater de encontro ao seu. Assim conversavam o Faraó e Tahoser; a filha do grão-sacerdote não conseguia esquecer Poeri e procurava ganhar tempo…
12
capítulo
Alguns dias depois, o Faraó, em pé no seu carro e acompanhado pelo seu cortejo, costeava as margens do Nilo para ver até que ponto chegara a cheia do rio quando, a meio do caminho, ergueram-se como dois fantasmas Aarão e Moisés. O rei conteve os cavalos, que já salpicavam de baba o peito do grande velho imóvel. Moisés, com voz lenta e solene, repetiu sua adjuração. — Prova com algum milagre o poder de seu Deus — respondeu-lhe o rei, e eu satisfarei teu pedido. Moisés, voltando-se para Aarão que o acompanhava alguns os atrás, disse: — Pegue seu cajado e estenda a mão sobre as águas dos egípcios, sobre seus regatos, seus rios, seus lagos e seus depósitos de água; que essas águas se transformem em sangue; haverá sangue por todo o país do Egito, até nos vasos de madeira ou de pedra. Aarão brandiu o cajado e bateu com ele no rio. A corte do Faraó esperava com ansiedade o resultado. O rei, que tinha um coração de bronze num peito de granito, sorria desdenhoso, fiando-se na ciência dos seus mestres de hieróglifos para confundir aqueles mágicos estrangeiros.
Mas assim que o cajado do hebreu — o mesmo cajado que já se transformara em serpente, tocou no rio, as águas começaram a se toldar, a ferver, e sua cor de limo se alterou de modo sensível; tons vermelhos iam aparecendo e afinal toda a massa aquática tomou uma sombria cor de púrpura, e o Nilo ficou a parecer um rio de sangue a rolar vagas escarlates, bordejadas por escuma rósea. Dir-se-ia que ele refletia um incêndio imenso, ou um céu ardente de relâmpagos; mas a atmosfera estava calma. Tebas não ardia e, contudo o fogo imutável se estendia sobre aquele lençol vermelho, já salpicado, aqui e além, pelo ventre branco dos peixes mortos. Os grandes crocodilos escamosos, arrastando-se nas patas tortas, emergiam do rio pelas margens, e os pesados hipopótamos, semelhantes a blocos de granito róseo recobertos por uma lepra de musgo negro, fugiam por entre os juncos, ou erguiam, por sobre o rio o seu focinho enorme, incapazes de respirar naquela água sangrenta. Os canais, os viveiros, as piscinas, tinham tomado a mesma cor, e as taças cheias de água estavam rubras como as copas onde se recebe o sangue das vítimas. O Faraó não se espantou com aquele prodígio e disse aos dois hebreus: — Esse milagre poderia espantar o populacho crédulo e ignorante; mas não tem nada que me surpreenda. Chamem Enana e o colégio dos mestres de hieróglifos; eles desfarão esse e de mágica. Os mestres de hieróglifos vieram com o chefe à frente; Enana lançou um olhar ao rio que rolava em ondas cor de sangue e viu do que se tratava. — Volte as coisas ao estado anterior — disse ele ao companheiro de Moisés — para que eu repita seu milagre. Aarão bateu de novo com o cajado no rio, que voltou imediatamente a sua cor natural. Enana fez um gesto de aprovação, como sábio imparcial que presta homenagem à habilidade de um confrade. Considerava boa a mágica, para alguém que não tivera, como ele, a vantagem de estudar nas câmaras misteriosas do Labirinto, aonde só podem chegar alguns raros iniciados, tão difíceis são as provas de iniciação. — Agora é minha vez — disse ele. E estendeu sobre o Nilo o seu cajado gravado com sinais hieroglíficos, murmurando palavras de uma língua tão antiga que já não deveria ser entendida no tempo de Menei, o primeiro rei do Egito. Uma língua de esfinge, com sílabas de granito. Um imenso lençol vermelho se estendeu repentinamente de uma margem à outra e o Nilo começou a levar até ao mar suas ondas sangrentas.
Os vinte e quatro mestres de hieróglifos saudaram o rei, pretendendo retirarse. — Fiquem — disse o Faraó. Os sábios voltaram a sua postura imível. — Só tens essa prova para me dar de tua missão? Como viste, meus sábios imitam muito bem teus prodígios. Sem se mostrar desanimado ante as palavras irônicas do rei, Moisés falou: — Dentro de sete dias, se não permitir que os israelitas saiam para o deserto, a fim de oferecerem sacrifícios ao Eterno, segundo seus ritos, voltarei e farei diante do Faraó outro milagre.
Ao cabo de sete dias, Moisés reapareceu. E transmitiu a seu servidor Aarão as palavras do Eterno: — Estenda a mão com seu cajado sobre os regatos, rios, lagos, e faça com que as rãs subam ao país do Egito. Assim que Aarão fez o gesto, do rio, dos canais, dos regatos, dos pântanos, surgiram milhões de rãs; as rãs cobriam os campos e os caminhos, saltavam sobre os degraus dos templos e dos palácios, invadiam os santuários e as câmaras mais ocultas; e sempre novas legiões se sucediam às primeiras. Havia rãs nas casas, nos alguidares de massa, nos fornos, nas arcas; não se podia pôr o pé em lugar nenhum sem esmagar uma rã. Como se tivessem molas, elas saltavam por entre as pernas dos caminhantes, à direita, à esquerda, à frente, atrás. Até perder de vista podiam as rãs ser descobertas a saltar, a pular umas sobre as outras; como já lhes faltasse espaço, as camadas se espessavam, se amontoavam, e os milhões de dorsos verdes formavam nos campos uma espécie de relvado movediço, vivo, onde brilhavam como flores os olhos amarelos dos batráquios. Os animais, cavalos, asnos, cabras, assustados e repugnados, fugiam através dos campos, mas por toda parte encontravam aquele pulular imundo.
O Faraó, que da entrada do palácio contemplava aquela maré montante de rãs com ar aborrecido e enojado, esmagava quantas podia com a ponteira de seu cetro, ou pisava-as com seu calçado recurvo. Trabalho inútil! Novas rãs, vindas não se sabia de onde, substituíam as mortas, mais numerosas, mais coaxantes, mais sujas, mais incômodas, mais atrevidas, inchando o lombo, fixando no rei os seus grandes olhos redondos, esticando os dedos palmados, enrugando a pele branca do papo. Os animais imundos pareciam dotados de inteligência e seus montões eram mais densos em torno do rei do que em qualquer outro lugar. A inundação fervilhante subia, subia sempre; sobre as estátuas, os colossos, os pilões, nos ombros dos deuses; os íbis, que a princípio festejavam aquele maná inesperado, picando-as com os compridos bicos e as engolindo às centenas, começavam a se alarmar com aquela invasão prodigiosa, e voavam bem alto no céu, fazendo estalar as mandíbulas. Aarão e Moisés triunfavam; Enana, convocado pelo Faraó, parecia refletir. Com o dedo pousado sobre a testa calva, os olhos semifechados, dir-se-ia que procurava no fundo da memória uma fórmula mágica esquecida. O Faraó, inquieto, interpelou-o: — Então, Enana! De tanto sonhar, perdeu a cabeça? Será que esse prodígio está acima de sua ciência? — Isso nunca, ó rei! Mas quando se mede o infinito, se calcula a eternidade e se decifra o incompreensível, pode acontecer que não se tenha presente a palavra arcaica que domina os répteis e os faz nascer ou os aniquila. Mas olhe bem! Essa imundície toda vai desaparecer! O velho mestre de hieróglifos agitou o cajado e disse em voz baixa algumas sílabas. Num instante os campos, os palácios, os caminhos, os cais e o rio, as ruas da
cidade, os pátios dos palácios, as câmaras das casas se viram limpas da invasão coaxante e voltaram ao estado primitivo. O rei sorriu, orgulhoso do poder dos seus mágicos. — Não me basta desmanchar o encantamento de Aarão — disse Enana. — Vou reproduzi-lo. E Enana, agitando o cajado em sentido contrário, articulou em voz baixa a fórmula contrária. Imediatamente reapareceram as rãs em número ainda maior, saltitando e coaxando; num piscar de olhos a terra se viu coberta por elas; mas Aarão estendeu seu cajado e o mágico egípcio não pôde dissipar aquela invasão provocada pelos seus encantamentos. Por mais que Enana repetisse as palavras misteriosas, a encantação perdera o poder. O colégio dos mestres de hieróglifos retirou-se, cismado e confuso, perseguido pela peste imunda. Os cenhos do Faraó contraíram-se de furor. Mas assim mesmo o monarca não se abrandou e não quis ceder às súplicas de Moisés. Seu orgulho levava-o a lutar até ao fim contra o Deus de Israel. Contudo, como não podia se libertar dos imundos animais, o Faraó prometeu que, se Moisés intercedesse perante o seu Deus e os fizesse desaparecer, daria aos hebreus a liberdade de sacrificar no deserto. As rãs morreram ou voltaram às águas; mas o coração do Faraó continuava irado e, apesar das meigas advertências de Tahoser, não cumpriu sua promessa. Desencadeou-se então sobre o Egito uma série de calamidades e pragas. Estabeleceu-se uma luta insensata entre os mestres de hieróglifos e os dois hebreus, cujos prodígios os egípcios repetiam. Moisés transformou em insetos toda a poeira do Egito. Enana fez o mesmo. Moisés apanhou dois punhados de fuligem e os atirou no ar, diante do Faraó: imediatamente uma peste vermelha, ardente como fogo, atacou a pele do povo egípcio, respeitando os hebreus. — Imite esse prodígio — exclamou o Faraó fora de si, vermelho como se tivesse no rosto o reflexo de uma fornalha —, dirigindo-se ao chefe dos mestres de hieróglifos. — De que adiantará? — perguntou desanimado o ancião. — O dedo do Desconhecido anda nisso tudo. Nossas fórmulas vãs não conseguirão prevalecer contra essa força misteriosa. Submeta-se e deixe-nos voltar ao nosso recolhimento para que estudemos esse Deus novo, esse Eterno mais poderoso do que Amon-Ra, do que Osíris e do que Tífon. A ciência do Egito foi vencida. O enigma guardado pela esfinge emudeceu, e a grande Pirâmide encobre apenas o vácuo de seu enorme mistério.
E, como o Faraó continuasse negando o pedido dos hebreus, todo o gado dos egípcios foi ferido pela morte. Os israelitas, contudo, não perderam uma rês. Levantou-se um vento sul que soprou a noite inteira e, quando pela manhã nasceu o dia, uma imensa nuvem ruiva velava o céu, de um lado a outro. E através dessa nuvem o sol brilhava, vermelho como um escudo posto ao fogo da forja, e parecia desprovido de raios. Era uma nuvem diferente das outras, uma nuvem viva, que estalava e batia as asas e se abatia sobre a terra. Mas não em grossas gotas de chuva e sim em massas de gafanhotos rosados, amarelos e verdes, mais numerosos que os grãos de areia do deserto líbico. Vinham em turbilhões, como palha dispersada pela tempestade. O ar ficara escuro, espesso, turvado por eles. Os gafanhotos entupiam os vaiados, as ravinas, os cursos de água, apagavam sob a sua massa as fogueiras que o povo acendia para os liquidar. Quando encontravam um obstáculo amontoavam-se sobre ele até que o cobriam e o escalavam. Quem abrisse a boca, engolia um gafanhoto; alojavam-se nas pregas do vestuário, nos cabelos, nas narinas. Suas colunas espessas faziam estacar os carros, derrubavam o ante solitário e logo o recobriam. E aquele formidável exército, saltitando e batendo asas, avançava sobre o Egito, das cataratas ao delta, ocupando imensa largura de terra, cortando a erva, reduzindo as árvores ao estado de esqueletos, devorando as plantas até às raízes, deixando atrás de si apenas o chão nu e batido como um terreiro. A pedido do Faraó, Moisés fez cessar a praga. Um vento do oeste, de extrema violência, carregou todos os gafanhotos para o mar das Algas. Porém o coração obstinado do rei, mais duro do que o bronze, o pórfiro e o basalto, ainda não cedeu. Granizo, calamidade desconhecida no Egito, caiu do céu, entre relâmpagos cegantes e trovoadas de ensurdecer. Caíam pedaços de gelo enormes, lacerando tudo, quebrando tudo, cortando rente o trigo, como o faria uma foice. Depois vieram as trevas, negras, opacas, apavorantes, dentro da qual as lâmpadas se apagavam como se estivessem nas profundidades dos subterrâneos privados de ar; estenderam as trevas suas nuvens sobre aquela, terra do Egito tão loura, tão luminosa, tão dourada sob o seu céu azul, aquele Egito onde a noite chega a ser mais clara do que o dia em algumas latitudes. O povo, apavorado e acreditando já estar envolvido na sombra impenetrável do sepulcro, errava tateante ao longo das muralhas, soltando brados de dor e rasgando as vestes. Em seguida, uma noite, noite de medonho terror, um espectro sobrevoou o Egito e entrou em todas as casas cuja porta não estivesse assinalada de vermelho.
E todos os primogênitos morreram, e tanto morreu o filho do Faraó como o filho do mais miserável escravo. Mas o rei, diante de todos esses pavorosos sinais, não queria ainda ceder. Ficava o Faraó no fundo do seu palácio, terrível, silencioso, olhando o corpo do filho primogênito num leito fúnebre de pés de chacal, e não sentia as lágrimas com que Tahoser lhe banhava as mãos. Moisés apareceu na porta da câmara sem que ninguém o houvesse introduzido: todos os servidores e criados haviam fugido a sua aproximação. O grande velho repetiu seu pedido com imperturbável serenidade. E o Faraó gritou, afinal: — Vão! Sacrifiquem a seu Deus como lhes convier! Tahoser pulou no pescoço do rei: — Agora eu o amo. É um homem e não um deus de granito.
13
capítulo
Faraó não respondeu a Tahoser. Ficara-se a contemplar com olhar sombrio o cadáver do filho primogênito. O orgulho indomado do rei revoltava-se com a submissão. No seu coração o Faraó ainda não acreditava no Eterno; a explicação das pragas que haviam açoitado o Egito estaria para ele no poder mágico de Moisés e de Aarão — poder maior do que o dos seus mestres de hieróglifos. A ideia de ceder exasperava aquela alma violenta e soberba. Mas, embora quisesse prender ainda os israelitas, seu povo, apavorado, não o permitiria. Receosos de morrer, os egípcios se juntariam para expulsar aqueles estrangeiros causadores de tantos males. Todos fugiam a qualquer contato com os hebreus, tomados de supersticioso terror; e quando o grande hebreu ava, acompanhado por Aarão, os mais valentes escondiam-se, temerosos de algum novo prodígio, e diziam entre si: — O cajado do companheiro de Moisés irá de novo transformar-se em serpente e nos enlaçar? E teria Tahoser esquecido Poeri, quando envolvera com os braços o pescoço do Faraó? De modo nenhum. É que sentira na alma obstinada do rei o despontar de projetos de vingança e de extermínio.
Tahoser temia os massacres que iriam arrastar na sua onda o jovem hebreu e a meiga Ra’hel; temia uma matança geral que, daquela vez, transformaria as águas do Nilo em sangue de verdade. E, pois, procurava afastar a cólera do rei, usando de carícias e de palavras de amor. Veio o cortejo fúnebre carregar o corpo do jovem príncipe. Levaram-no ao bairro de Memnônia, onde o cadáver deveria submeter-se aos preparativos do embalsamento que duram setenta dias. O Faraó o viu partir com ar sombrio e disse, como que possuído por um triste pressentimento: — Agora já não tenho filho, Tahoser; se eu morrer, serás rainha do Egito. — Por que falas em morte? — replicou a filha do grão-sacerdote. — Os anos se sucederão aos anos sem deixarem marca de sua agem sobre o teu corpo robusto, e ao teu redor as gerações hão de cair como folhas do outono em torno de uma árvore que continua de pé. — Eu, o invencível, não fui vencido? — indagou o Faraó. — De que me servem os baixos relevos dos templos e dos palácios, representando-me armado do açoite e do cetro, ando meu carro de guerra sobre os cadáveres, arrastando pelos cabelos as nações vencidas, se sou obrigado a ceder às feitiçarias de dois mágicos estrangeiros? De que me servem os deuses, aos quais elevei tantos templos imensos, construídos para a eternidade, se não me podem defender contra o Deus desconhecido dessa raça obscura? O prestígio do meu poder foi para sempre destruído. Meus mestres de hieróglifos, reduzidos ao silêncio, me abandonam. Meu povo murmura. Hoje sou apenas um vão simulacro. Eu quis e não pude. Tu é que tinhas razão quando falavas ainda há pouco, Tahoser. Eis-me rebaixado ao nível dos homens. Mas, já que agora tu me amas, procurarei esquecer e te desposarei logo que terminarem as cerimônias fúnebres. Temerosos de que o Faraó voltasse atrás da sua palavra, os hebreus se preparavam para a partida. E logo suas coortes se movimentaram, guiadas por uma coluna de fumaça durante o dia, e por uma coluna de chamas durante a noite. As colunas-guia mergulharam nas solidões arenosas de entre o Nilo e o mar das Algas, evitando encontrar povos que se opusessem à sua agem. Uma após outra desfilaram as tribos, diante da estátua de cobre fabricada pelos mágicos, e que tem o poder de deter os escravos que fogem. Mas daquela vez não se operou o encantamento que durante séculos se mostrara infalível: o Eterno o quebrara. A imensa multidão avançava lentamente, cobrindo a terra com os seus rebanhos, seus animais de carga carregados de riquezas adquiridas dos egípcios, arrastando a enorme bagagem de um povo que se desloca repentinamente. O
olho humano não poderia alcançar quer a cabeça, quer a cauda da coluna que se perdia nos dois horizontes, sob uma névoa de poeira. Se alguém se assentasse à beira da estrada para esperar o fim do desfile, teria visto o Sol nascer e deitar-se mais de uma vez: os hebreus avam, avam sempre. O sacrifício ao Eterno, a ser feito no deserto, não ava de um vão pretexto: Israel deixava para sempre a terra do Egito, enquanto a múmia de Iusuf, no seu ataúde pintado e dourado, partia também, levada aos ombros de carregadores que se revezavam. Diante disso o Faraó, tomado de grande furor, resolveu sair em perseguição dos hebreus que fugiam. Mandou atrelar seiscentos carros de guerra, convocou seus comandantes, apertou em torno dos rins seu largo cinturão de pele de crocodilo, fez encher de flechas e dardos tanto as duas aljavas como o próprio carro e armou o punho com o bracelete de bronze que amortece a vibração da corda. E então o rei pôs-se a caminho, arrastando atrás de si um povo inteiro de soldados.
Furioso e terrível, o Faraó exigia o máximo dos cavalos, e, atrás dele, os seiscentos carros retiniam com estrepito de bronze, como trovões terrestres. Os guerreiros a pé estugavam o o, mas não podiam acompanhar aquela corrida impetuosa. Muitas vezes o Faraó se via obrigado a deter o carro, a fim de esperar o resto de seu exército. Durante essas paradas, batia com o punho fechado na borda do
carro, sapateava de impaciência e rangia os dentes. Debruçava-se o rei para o horizonte, procurando descobrir, por trás das dunas de areia agitadas pelo vento, as tribos fugitivas dos hebreus; e pensava, encolerizado, que a cada hora aumentava o espaço que os separava. Se os oeris não contivessem o monarca, ele teria seguido em frente, sem parar, arriscando-se a arrostar, sozinho um povo inteiro. Já não atravessavam os soldados do Faraó o vale verde do Egito; corriam por planícies onduladas e movediças, estriadas de ondas como a superfície do mar. A terra esfolada deixava ver seus ossos. Rochas anfractuosas, moldadas em formas estranhas, como se animais gigantescos as houvessem calcado aos pés quando a terra estava ainda em estado de barro mole, na época em que o mundo emergia do caos, faziam corcovas aqui e além na vasta extensão de terra; e rompiam de longe em longe, em repentinos ressaltos, a linha chata do horizonte, fundida com o céu numa zona de bruma ruiva. A enormes distâncias erguiam-se palmeiras abrindo o seu leque poeirento perto de alguma fonte logo esgotada, cuja lama os cavalos sedentos revolviam com os focinhos ensanguentados. Mas o Faraó, insensível à chuva de fogo que caía daquele céu incandescente, dava imediatamente o sinal de partida e cavaleiros e infantes recomeçavam a marcha. Carcaças de bois e animais de carga, deitadas de lado, e sobre as quais volteavam espirais de abutres, marcavam a agem dos hebreus e não permitiam que a cólera do rei se abrandasse. Um exército bem treinado, habituado à marcha, anda muito mais rapidamente do que a migração de um povo inteiro, a arrastar consigo velhos, mulheres e crianças, bagagens e tendas. E, assim, rapidamente diminuía o espaço entre as tropas egípcias e as tribos israelitas. Foi em Piha’hirot, perto do mar das Algas, que os egípcios afinal alcançaram os hebreus. As tribos estavam acampadas na praia e quando o povo viu luzir ao sol o carro de ouro do Faraó, acompanhado por seus carros de guerra e seus exércitos, soltou um clamor imenso e se pôs a amaldiçoar Moisés, que os arrastara à destruição. Na verdade, a situação era desesperadora. Diante dos hebreus, a frente de batalha. Por trás, o mar profundo. As mulheres rolavam por terra, rasgavam as vestes, arrancavam os cabelos. E clamavam: — Por que não nos deixou no Egito? É melhor o cativeiro do que a morte, e nos trouxe ao deserto para que aqui morrêssemos. Tinha medo de que nos faltassem sepulturas? Assim vociferavam as multidões furiosas contra Moisés, que se mantinha
imível. Os mais corajosos lançavam mão das armas e se preparavam para a defesa. Mas a confusão era terrível e os carros de guerra, lançando-se através daquela massa compacta, fariam decerto uma destruição horrenda. Moisés invocou o Eterno e estendeu seu cajado sobre as águas; e ocorreu então um prodígio que nenhum mestre de hieróglifos poderia imitar. Levantou-se com extraordinária violência um vento do Oriente que cortou as águas do mar das Algas como se fosse o ferro de uma charrua gigantesca, erguendo de um lado e de outro altas montanhas salgadas, coroadas por uma crista de escumas. Separadas pelo ímpeto daquele sopro irresistível que seria capaz de varrer as Pirâmides como grãos de pó, as águas se erguiam em muralhas líquidas e deixavam livre, entre elas, um largo caminho, onde se poderia ar a pé enxuto. Através da transparência aquática, como através de um grosso vidro, podia-se ver os monstros marinhos a se torcerem, apavorados por se verem apanhados pela luz do dia, nos mistérios do abismo. As tribos se precipitaram por aquela saída miraculosa; era uma torrente humana correndo através das muralhas escarpadas de água verde. O imensurável formigueiro manchava com dois milhões de pontos negros o fundo li vido do mar e imprimia seus rastros sobre a lama até então raiada apenas pelo ventre dos leviatãs. E o vento terrível continuava a soprar, ando sobre a cabeça dos hebreus; se os alcançasse, teria vergado a todos como hastes de trigo, mas limitava-se a conter com a sua pressão as vagas amontoadas e rugidoras. Era a respiração do Eterno que dividia o mar ao meio!
Apavorados com o terrível milagre, os egípcios hesitavam em perseguir os hebreus. Mas o Faraó, com a sua altiva coragem que nada podia abater, impeliu os cavalos, que empinavam e caíam para trás, sobre os timões, açoitando-os com ambos os braços com o seu chicote de taça dupla, os olhos encarniçados, a espuma nos lábios, rugindo como o leão cuja presa se escapa! E afinal o rei conseguiu obrigar os cavalos a penetrarem naquele caminho tão estranhamente aberto! Os seiscentos carros acompanharam o Faraó. Os israelitas que fechavam a marcha e entre os quais se encontravam Poeri, Ra’hel e Tamar, supam-se
perdidos quando viram que o inimigo tomava também o caminho aberto nas águas. Mas, assim que os egípcios se haviam afundado bem mar adentro, Moisés fez um gesto: as rodas dos carros se desprenderam e foi uma horrível confusão de cavalos, de guerreiros, entrechocando-se e colidindo. Depois as montanhas de água miraculosamente suspensas se abateram e o mar tornou a se fechar. E no turbilhão de espumas rolaram homens, animais, carros, como palhas apanhadas por um remoinho na correnteza de um rio. Sozinho o Faraó, em pé no seu carro que flutuava, bêbedo de orgulho e furor, lançava as derradeiras flechas do seu carcás contra os hebreus que alcançavam a outra margem. Esgotadas as flechas, apanhou o dardo, e com o corpo já mais da metade submerso, tendo apenas os braços fora da água, o Faraó o arremessou. Tiro impotente contra aquele Deus desconhecido, que o egípcio enfrentava já arrastado ao fundo do abismo. Uma onda enorme, rolando duas ou três vezes pela borda do mar, engoliu os derradeiros destroços. Da glória e dos exércitos do Faraó nada mais restava! Na margem oposta do mar das Algas, Míriam, irmã de Aarão, exultava e cantava, tocando o tamboril, e todas as mulheres de Israel batiam o ritmo sobre a pele esticada de onagro. Dois milhões de vozes cantavam o hino da libertação!
epílogo
Tahoser em vão esperou o Faraó. E foi proclamada rainha do Egito. Mas curto foi seu reinado, pois a morte a alcançou em breve tempo. Depam o corpo da Rainha Tahoser no magnífico túmulo preparado para o Faraó, cujo corpo não pudera ser encontrado. E a história de Tahoser, escrita em papiro com os títulos em caracteres vermelhos, pela mão de Kakevu, gramata da dupla câmara de luz e guardião dos livros, foi colocada ao lado do corpo da rainha, sob o trançado das faixas. Seria o Faraó ou Poeri o objeto da saudade de Tahoser? Kakevu não o conta, e o Doutor Rumphius, que traduziu os hieróglifos do gramata egípcio, não ousou assumir a responsabilidade de decidir a questão. Quanto a Lord Evandale, jamais quis se casar, embora seja o derradeiro de sua raça.
o autor
THÉOPHILE GAUTIER, escritor francês, nasceu em Tarbes. Foi uma das mais típicas figuras da época da transição entre o romantismo e o parnasianismo. Levado para a capital com a idade de três anos, ali fez seus estudos. Foi sempre parisiense por seus gostos, maneiras e espírito. Atraído primeiro para as artes figurativas, foi aluno do pintor Rioult, porém, inclinou-se logo para a poesia. Conheceu Victor Hugo e, entusiasmando-se pela nova literatura, aderiu decididamente ao romantismo. O culto a Hugo foi acompanhado de uma sincera amizade a Baudelaire. Gautier viveu uma dura existência e viu-se obrigado a dissipar seu talento na atividade jornalística, que durou mais de trinta e cinco anos. Crítico artístico e literário, autor dramático, libretista, pintor, diretor de revistas, encontrou, assim mesmo tempo para escrever muitos livros. Gautier é um dos mais curiosos escritores ses, tendo deixado livros notáveis, em que a forma é bem cuidada, o que o coloca entre os mais perfeitos cultores da língua sa. Suas principais obras foram Esmaltes e Camafeus, O romance da múmia, Capitão Fracasso e Mademoiselle de Maupin.
Disponibilização: Marisa Helena Digitalização: Marina Revisão Vania