O tempo no idioma hebraico Por Daniel Lago em 08/08/2010 Tamanho da fonte:
A Bíblia Hebraica é um texto do Oriente Próximo, escrito há mais de dois milênios, fruto de uma cultura completamente diversa da nossa. A perspectiva dos autores sobre a vida e o mundo que os cercava estava diretamente ligada às suas tradições e costumes. Quando lemos esse texto, não o podemos fazer a partir de nossa visão de mundo. Isso nos faria produzir interpretações completamente erradas de tal texto. Um exemplo de como o pensamento hebraico antigo é totalmente diferente no nosso está no modo como eles compreendiam o tempo. Em nossa visão ocidental, o ado está atrás, e o futuro, na frente. Em hebraico, porém, ocorre exatamente o contrário. Em hebraico, a palavra machar significa “futuro”, mas também pode significar “atrás”, enquanto o termo temol, que significa “ado”, também pode significar “à frente”.
Ou seja, no pensamento judaico antigo, o ado estava à frente, pois ele estava “diante dos olhos” dos homens, ou seja, era conhecido. O futuro, porém, estava “atrás”, isto é, “escondido”, “desconhecido” aos olhos das pessoas. Outro exemplo dessa visão diferente sobre o tempo está na Bíblia Hebraica. O Antigo Testamento entende o tempo como tendo uma natureza cíclica. Isso se reflete na palavra hebraica shanah, que significa “ano”, mas que também pode significar “repetição”. Cada ano, na cosmovisão judaica antiga, representa um ciclo completo de determinados eventos de natureza espiritual estabelecidos por Deus, que se repetem anualmente.
Todavia, ao mesmo tempo, cada ano também é, em si, único. Isto fica revelado na própria palavra shanah, que além de significar “repetição”, está relacionada ao verbo shoneh, que significa “mudança”. Embora o padrão de tempo seja repetido, a cada ano novos mistérios da realidade espiritual são revelados, que determinam a natureza dos acontecimentos que se sucederão naquele ano. É por esta visão do tempo enquanto mudança que os judeus são considerados o primeiro povo que incorporou uma visão linear do tempo, que aponta para um momento futuro em que se daria a consumação das profecias messiânicas. Esta contradição repetição/mudança está, portanto, também presente na promessa do Messias, o Rei Ungido que confirmaria o cetro de Judá, a quem todos os povos deveriam obedecer. Ao mesmo tempo em que eventos anteriores à manifestação do Messias já haviam anunciado sua vinda (o quase-sacrifício de Isaque; o Siló profetizado por Jacó; José tirado do poço e da prisão para reinar; o sacrifício de Nabote em favor de sua vinha, etc), para os cristãos, Jesus, o Ungido, cumpriu tais promessas, o que desencadeou uma mudança eterna, uma quebra no tempo cíclico. Isso porque, desde então, não há mais derramamento de sangue para remissão de pecados, pois Cristo “entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção” (Hebreus 9:12). Cristo, segundo a interpretação cristã, é o Siló profetizado por Jacó: “O cetro não se arredará de Judá, nem o bastão de entre seus pés, até que venha Siló; e a ele obedecerão os povos”. Gênesis 49:10 A palavra para cetro é o hebraico sebet, que significa “ramo” ou “tronco”, o que nos remete à profecia feita por Isaías sobre o Messias: “Então brotará um rebento do toco de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará.” Isaías 11:1
Este ramo ou tronco possui inúmeras finalidades: punir, lutar, reger e bengala. Este tronco rompeu o círculo do tempo, e, como um átomo que, carregado, extrapola para uma camada superior, nos fez romper a barreira do espaço-tempo. Siló (literalmente, “o enviado”) vem da palavra hebraica shalah, que pode significar tanto “segurança”, “prosperidade”, “felicidade”, como, através da palavra shalal, significar “extrair”, “tirar de”, “arrebatar”. Segundo a cosmologia cristã, Cristo é, portanto, o Deus que saiu da eternidade (‘olam) e entrou no tempo (êth) para nos levar para a eternidade. Assim também, a primeira vinda de Cristo representa uma prefiguração de sua segunda vinda, quando os cristãos aguardam por ser arrebatados (shalal), em um momento que precederá seu reino eterno, como a profecia de Jacó concernente a Siló. Siló representa, portanto, a consumação dos tempos, o momento em que o tempo circular será quebrado definitivamente, através de uma mudança que colocará fim ao próprio tempo, dando início à eternidade, que os judeus chamam de ‘Olam Haba, que significa “o mundo vindouro”. Todavia, a palavra hebraica para “mundo” (‘olam), também, pode significar “eternidade”, como na expressão le’olam (“para sempre”, ou, literalmente, “para o mundo”). Quando diz “para o mundo”, não se refere a este mundo, delimitado pelo tempo, mas sobre o mundo vindouro, sobre o qual não opera o poder do tempo, posto que é eterno. Referências Bibliográficas: BIRNBAUM, S. The Hebrew Scripts. Part One: The Text. Leiden: Brill, 1971. Part Two: The Plates. London: Palaeographia, 1954‐1957. BROWN, DRIVER AND BRIGGS. A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament. Oxford: Claredon Press, 1974. CLINES, D. J. A. The Dictionary of Classical Hebrew. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1993. ELLIGER, Karl e RUDOLPH, Wilhelm (eds.). Biblia Hebraica Stuttgartensia. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1967‐1977.
FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica: Introdução ao Texto Massorético. São Paulo: Vida Nova, 2006. GESENIUS, W. Hebrew Grammar, Rev. By Kautzch and Cowley. Oxford, Clarendon Press. 1963. KILPP, Nelson et alii. Dicionário hebraico‐português e aramaico‐português. 8 ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 1997. MCCARTER, P. K. Textual Criticism: Recovering the Text of the Hebrew Bible. Guides to Biblical Scholarship. Philadelphia: Fortress, 1986. The Leningrad Codex: A Facsimile Edition, ed. David Noel Freedman et al. Grand Rapids: Eerdmans; Leiden: Brill, 1998. *Daniel Lago é professor substituto de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Lingüística pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), graduado em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com extensão em filosofia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).