VALÊNCIO XAVIER
o MEZ
DA GRIPPE
E OUTROS LIVROS
-~COMPANHIA
DAS LETRAS
Copyright
© 1998 by Valêncio Xavier Projeto gráfico: Hélio de Almeida,
com base em indicações do autor Capa: Hélio de Almeida Preparação: Denise Pegorim Revisão: Eliana Antonioli Ana Maria Barbosa
Dados Internacionais de Caralogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Xavier, Valêncio O
-
mez da grippe e outros livros / Valêncio
São Paulo: Companhia
Xavier.
das Lerras, 1998.
Bibliografia. 85-7164-810-7
ISBN
1. Contos brasileiros I. Título. 98-3379
CDD-869.935
Índices para catálogo sistemático: 1. Contos:
Século
20 : Literatura
brasileira
2. Século 20 : Contos: Literatura brasileira
869.935 869.935
1998
Todos os direi tos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 72 04532-002 - São Paulo - SP Telefone: (011) 866-0801 Fax: (011) 866-0814 e-mail:
[email protected]
ÍNDICE
o mez da grippe, 7 MacÍste no inferno, 81
o minotauro,
137
O mistério da prostituta japonesa 13 mistérios
+
& Mimi-Nashi-Oichi,
O mistério da porta aberta, 203
Nota bibliográfica, 323
181
OMEZ DAGRIPPE novella
Vê-se um sepulcro cheio de cadáveres, sobre os quais se podem observar todos os diferentes estados da dissolução, desde o instante da morte até a destruição total do indivíduo. Esta macabra execução é de cera, colorida com tanta naturalidade que a natureza não poderia ser, nem mais expressiva, nem mais verdadeira. MARQUÊS DE SADE
1918
Outubro QTTUBRO ==--~--=-..::~~ _~jSI!IQ9:~ I~ 27 ;~S.IiHi00131i -1I~I!2i~3;:!4~!;:~ti IRil'l():_~, ~I 3;!~ll!1 -ti 6 20 ti- I121 91~~llfl~ 13114: lói
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Em Paranaguá, n'aquella epocha, ia effectuar-se o casamento de uma filha do syrio Barbosa. Do Rio de Janeiro vieram assistir ás bodas alguns syrios, que estavam com o mal incubado. De Antonina e Morretes seguiram para aquella cidade, com o mesmo fim dos do Rio, alguns patricios do Sr. Barbosa. Folgaram juntos e cada um dos residentes em Antonina entre e Morretes trouxe das comreferidas sigo o gérmen que se disseminou rapidez as populações cidades. doEmmal, Paranaguá, por sua vez,com os hospedes fluminenses não s6 padeceram da molestia, como também a transmitiram aos patricios e á população. Relatório do Sr. Dr. Trajano Reis director do Serviço Sanitario.
Um homem eu caminho sozinho nesta cidade sem gente as gentes estão nas casas <
grippe
13
,-----------------------------_
..
-
DIA 20 DOMINGO $
A Allemanha vae capitular A SEMANA RIMADA "La influenza espanoIa" Esso todo, Ia gran grita, No tiene casi que nada No a, cosa esquisita I De una ... gran espanoIada J eca Rabecão O COMMERCIO
DO PARANÁ
li
•
OORTIIVAS
•
OORTINADOS BRIZE-BIZES
ESTORES OS SORTI MENTOS QUE APRESENTA
VE.RIFIQUE M
OLOUVRB RUA QIJINZE DE NoveMBRO,
14
43 5.
IJRAI..'N.w
CI".
DIA 22 TERÇA
o DlRECTOR DO SERVIÇO SANITARIO MANDA AVISAR AS EMPREZAS FUNERARIAS QUE FICAM PROIBIDOS OS ENTERROS Á MÃO, ENQUANTO ENTENDER NECESSARIO Á BEM DA SAUDE PUBLICA E QUE OS ENTERROS DOS QUE FALLECERAM DE MOLESTIAS TRANSMISSÍVEIS SERÃO FEITOS SEM ACOMPANHAMENTO SENDO O CADA VER PROMPT AMENTE REMOVIDO PARA O NECROTERIO DO CEMITERIO MUNICIPAL. CORITIBA, 22 DE OUTUBRO DE 1918 O SECRETARIO - RICARDO NEGRÃO FILHO
- "E, era a pé. Iam carregando o caixão e as gentes a pé acompanhando pela cidade inteira até o Cemitério Municipal. Tinha os muito ricos que faziam enterro com carro, cavalos de penacho, pano preto, mas eram bem poucos. A maioria a pé, DONA LÚc1A - 1976 por muito tempo, foi assim." 15
UM CASO PUNGENTE Quando o povo se achava agglomerado em frente ao botequim, chegou ali Maria Esteves, noiva do assassinado, que pedia para ver o cadaver de seu noivo: pedido a que os guardas depois de muita relutancia resolveram acceder. A infeliz, ao ver o cadaver do noivo, cahiu debulhada em lagrimas, lamentando a sua triste sorte. COMMERCIO
DO PARANÁ
~============="
IIVida Social .~=======~ II
Positivamente a vida humana não vale um caracol ... COMMERCIO DO PARANÁ
16
B
•
OftlciJulo
'W. 15 de Yovtlmbro. lU "'ndlM"e\o teleg. _ "Diarlo" l .•ba. do Corrttlo - O "'E1d,,"HONEl lI08
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DIARIO
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DiJ'cctor: Generoso nor~l'~
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A influenza
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NO PARAN,
A Syrla e
A inspecção do sr. general Barbedo a esta cir·
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hida (1('1" mt'l'Imu ar, gC'nt'n1.l O cOl.~ula.do ~ que' deve ter notado o m'uito l.l.UC se gaJ10 di wppril tem esforçado 09 .sre.· eommal'ldan tchf"Qullri<e de.: tes, oMiciaes e '1,rat'l.s das div
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-de folffk.iacs e a d('[i$ipncia do ma· teria.l lll'C'~~;;sa,riopara que a instruc· çü'o
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obseI"Vou.
Por todO<:! esses nlotiv06 apresen to minhas felicitaçõE"1iI aos sr8. com mandantes de unidades e dirE'e-torE's de e8ta~leêlmento!i mj.litares, belIl como aos o1iri-cille8e praças, (IUC'b~ -tante concorreram para os resulta doa colhidos, agradeçendoJ.hes o in"
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THEA'lRO MduzidUi·, Und
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A designação desses ofriciaes que era. feita por 80rte rooalhiu no.!!fle
CONTINUA
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NA 2,
PAGINA
••••- ••••------'Andradtl
guintes Grs.: 1.0 t&nen-te j<"a.brlcl& nt>-do Rego Ba.IlOS, do· 4.0 R. Lj 2.0 tenente Adria.no Saldanha. MazzR. e aspirante â. 'O'f!tcial Ant,onlo ANCS de Magalhites, da 2,- C. M.; capiotão JOü.o F.:rnandes Jonsen Tavares, do 2.° H. A. M., e capitão Seba.stifi.o Pin to da Silva, de 2.° B. E. Devo citar t
viço de Saude
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cine:ra&togt'
com. que o PaI hontem u'n& c&
Para. h"je
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chefedo Se-r ,
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cumacrlpçi.o, que se encarregou do Com
numero
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rel;"i,me-n'al. !uneet-o.. C'--"ro"t:"-
~'J,,,:..•:.r..•• I_
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eervi(:o de con!erencl&!l 1I0bre h)'" giene, que 'Proouziu um beBo traba. lho l!!obre alcooliemo, declamado Q
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17
CONSELHO ACONSELHAMOS AOS HABITANTES DE CORITIBA QUE NÃO SE VISITEM, MESMO QUE NÃO HAJA MOLESTIA NAS CASAS QUE PRETENDEREM FREQUENTAR, ATÉ QUE TERMINE A EPIDEMIA NO RIO DE JANEIRO; BEM COMO QUE NÃO CONCORRAM AOS LOGARES ONDE HOUVER AGGLOMERAÇÕES DE PESSOAS. SR. DR. TRAJANO REIS DIRECTOR DO SERVIÇO SANITARIO DO ESTADO
22/10/1918
Entro na casa a porta sem chavear alguém que saiu para voltar e não mais voltou entrou para sair e não mais saiu
Não sei porque entro entrei nesta casa onde nunca entrei Pássaro em água estranha Vagueio pela penumbra do corredor pela porta entreaberta vejo
18
DIA 23 QUARTA MUSAALEGRE
fUCA VIOLA
Não há nada neste mundo Que mais possa aborrecer Do que cruel "que brade ira" Sem vintem pr'a dispender Esteve aqui a Olona Com Salvat - o bello par E não pude uma só vez Os mesmos apreceiar-p! Não vos sei tambem dizer Porque houve tal vazante Si por andarem como eu Numa lizura berrante
Cada coro- uma sentença! Um conselho em cada esquina E a série de disparates Boas risadas propina ...
Ou si por cousa diversa: Por se meter na cachóla Do povo qualquer receio De companhia "hespanhola"
Mas eu, pensando no caso, Prá não adoecer Tomo o conselho do Lauro E deixo o barco correr
Pois que d'elln só se falla N'outra cousa não se pensa E anda tonta, atrapalhada, A propria gente da "Imprensa" O Lauro Lopes já disse: Quem quiser ser forte e "são"
Beba limão com cachaça Sem abusar do "limão" ...
DIÁRIO DA TARDE
Manuel
Salvat 19
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~ma na~mai~ ij~lla~ ~ronu~~õ~~ --'--'--~c..J~~.~'~.~""
-s_.-~--_.
O peeopd dos treeottds
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DIA 24 QUINTA
NA BELGICA OS EXERCITOS ALLIADOS VAO LEVANDO DE VENCIDA OS ALLEMÃES NÃO MORREU NINGUEM Informa-nos o sr. Benedicto Carrão, official do registro civi~ que hontem e hoje, não DIÁRIO DA TARDE se registrou obito algum nesta capitaL 20
«Ccmmerrio I do Parará» Em virtude doccido
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que a edicção hisse com tod d
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de redacçãD.
"Famílias inteiras. Não houve casa que não tivesse alguém doente. Parecia a cidade dos mortos." DONA
LÚCIA
-
1976
DECRETO N~ 132 O PREFEITO MUNICIPAL DA CAPITAL, TENDO EM VISTA QUE AS DIRECTORIAS DE SERVIÇOS SANITARIOS DA CAPITAL DE SÃO PAULO E DESTE ESTADO, BEM COMO DA CAPITAL FEDERAL, ACONSELHAM INSISTENTEMENTE QUE SE EVITE AGGLOMERAÇÃO, PRINCIPALMENTE Á NOITE, AFIM DE IMPEDIR A PROPAGAÇÃO DA "GRIPPE ESPANHOLA", EPIDEMIA ORA REINANTE EM DIVERSAS CAPITAIS DO PAIZ. A peste! EUa não nos visitou ainda, não nos visitará. E, se subir a serra pela linha ferrea ou pela estrada da Graciosa, não encontrará aqui ensachas, meio favoravel á sua propagação virulenta. (Sebastião Paraná - Commercio do Paraná) RESOLVE, COMO MEDIDA PREVENTN A CONTRA A INVASÃO DESSA EPIDEMIA, SUSPENDER O FUNCIONAMENTO DOS CINEMAS E OUTRAS CASAS DE DIVERSÕES DESTA CAPITAL. CURITYBA, 24 DE OUTUBRO DE 1918 (ASSIGNADO) - JOÃO ANTONIO XAVIER PREFEITO MUNICIPAL 21
OUSADIA BOCHE O distinto advogado criminal sr. Napoleão Lopes effectuou hontem a prisão do germanophilo Roberto Thomaz que no "buffet" do Theatro Hauer teve palavras ofensivas às nossas instituições e ao governo da República determinadamente ao sr. presisente Wenceslau Braz. Ouvindo aquelle advogado palavras insultuosas á nossa Patria, deu,aquelle subdito sueco, que assim, se manifestava tão favoravel á Germania e tão hostil a nossa Republica, voz de prisão, á ordem do sr. dr. Chefe de policia, indo, immediatamente á chefatura de policia, onde, por escripto, deu essencia do seu acto. O referido germanoplhilo foi recolhido ao xadrez ... para exemplo, às 23 e 30 horas. COMMERCIO DO PARANÁ
22
DIA 25 SEXTA
o PAPA INTERCEDE PARA
QUE
A BELGICA NÃO SEJA DESTRUIDA PELOS ALLEMÃES Mãos grandes como de cavalo. A direita assentada sobre o lento respirar do seio rijo. A esquerda, a da aliança por sobre o lençol branco branco braço nú, parca seara de louros pelos
OFFICIO DO DR. LINDOLPHO PESSOA, CHEFE DE POLICIA AO DIRECTOR DE HYGIENE DO ESTADO DO PARANÁ, EM 25 DE OUTUBRO DE 1.918. "SENDO NO MOMENTO ACTUAL DE GRANDE NECESSIDADE PARA A SAUDE PUBLICA, A HYGIENE QQUE SE DEVE MANTER NAS PRISOES DOS POSTOS CENTRAL, DA GRACIOSA, PORTÃO E DESTA REPARTIÇÃO, SOLICITO A V. EXCA. AS NECESSARIAS PROVIDENCIAS AFIM DE SER FEITA, COM A POSSIVEL URGENCIA, A DESINFECÇÃO DAS REFERIDAS PRISOES. ONDE EXISTE AVULTADO NUMERO DE DETENTOS. SAUDAÇOES.
o
MELHOR DESINFECTANTE
NeDhlUn 'recepta'àulc
genulno qU
WILLIAM
Esta t..:u~a
".
das lffillaçocs,
PEARSON
tem nada que ver com qu.:.dquer OU~j'·1 synOD)"m(i .A..C::U~."LT~~~. SE:: u.tKuma."l cOlltêrn meia agua. e IIt~n;\lIm J,Jod"1 'deAi/lrect:}'Lte
U<JO
r.oIIMERC[A~iES
SEitI ESCRUPULOS
TOR~AM
I. INCHEI:
"JSSAS
LATAS; REFUSE:~ OS R~CJP!F.!lTES D'FSTA r.t\SSE.
23
NÓS E A "INFLUENZA" A nossa edição de hontem saiu muito aquem da espectativa, devido a uma interrupção inesperada do trabalho em consequencia de terem adoecido operários da secção de composição, obrigando-nos assim ao sacrificio de materia redactorial cuja inserção foi absolutamente impossivel. Esse facto suscitou hontem em certas rodas, commentarios ironicos em torno da nossa attitude em relação á epidemia da "grippe espanhola", dizendo-se abertamente que a molestia invadira a nossa tenda para obrigar-nos á uma formal retratação. Não obstante, continuamos firmes em nossa attitude pela razão de n[o ter sido de "gripe espanhola" verificado ainda um só caso n'esta capital, tratando-se de simples grippe, aliás commum na estação que atravessamos, os casos de doença existentes. COMMERCIO
DO PARANÁ
"Fiquei, sim. Mas em mim deu fraca, fiquei dias caída na cama ardendo em febre, prostrada sem vontade, como num outro mundo." DONA LÚCIA - 1976
DIA 26 SA'BADO
DECRETO O SR. DR. PRESIDENTE DO ESTADO DECRETA QUE SEJA CONSIDERADO DE FERIA O DIA DE HOJE, 26 DE OUTUBRO DE 1.918, NAS REPPARTIÇÔES ESTADOAES EM COMMEMORAÇÃO AO 1.0 ANNIVERSARIO DA ENTRADA DO BRASIL NA GUERRA ACTUAL. 24
NA SERVIA NA BELGICA E NA FRANÇA OS ALLIADOS
A VANCAM VITORIOSOS "A HESPANHOLA" De manhã abro as gazetas nenhuma nota - que bola! Limpo e relimpo as lunetas Nada, nada de hespanhola. .. A policia nos socorre Toda noticia degola -Aqu~ de vez, ninguém morre, Foi p'ro xadrez, a hespanhola. José da Gaita
DT
*l["õ@:~l@l~.jl~H,*,I~
-----
.•,.
,..,...~,
=.~~~~~~.J ------------, peito, pulmO~se garganta.
I
Os olhos costurados pela febre loura linha a mesma que tece seus cabelos
AMANHÃ NÃO HAVERÁ
CULTO
Attendendo aos conselhos da Inspectoria de Hygiene, a Egreja Evangelica Presbyteriana da rua Comendador Araujo resolveu não realizar amanhã, domingo, os cultos de costume. DIÁRIO DA TARDE 25
Depois raciocinemos um pouco. As egrejas são templos sumptuosos de Deus. Nestas condições, irrisorio seria que se as desinfectassem, Deus vendo a creolina penetrar no seu templo certamente se sentiria diminuido em meio da radiosidade de seu prestigio ... Fechemos os cinemas, mas também abertas não continuem as egrejas. VALlOSISSIMA
OPINIAoI
GASTÃO FARIA
- DT
"Remédios não havia. Pro pessoal da fábrica eles distribuíam garrafas com limonada. Havia o padre Miguel que ia nas casas levando follias de eucalipto. Mas não tinha remédio que servisse." DONA LÚCIA - 1976
VARIAS Phenomeno unico na vida coritibana accentuando o contraste de somente em epoca de epidemia ás portas do Estado e quando se pretende espalliar o panico isto se dar: ha trez dias que não é registrado um só obito numa população de 80 mil almas.
Hontem, na rua Marechal Deodoro, no trecho entre as ruas Primeiro de Maio e Floriano Peixoto, estava sendo descoberta, com grande perigo para a saude publica, uma parte da rede de exgottos, pondo ao sol um lodo podre e capaz de infeccionar o ambiente.
Durante a semana ultima de 14 a 20 do corrente, nasceram no districto desta Capital, 39 pessoas e faleceram 19. De molestia infecciosa houve apenas um obito, de febre typhoide. COMMERCIO 26
DO PARANÁ
NOTICIAS DO PAIZ O RIO COBERTO DE LUTO RIO,26 - A peste de guerra aqui importada pelo "Demerara" e recebida gentilmente com o carinhoso titulo de "pucha-pucha! DIÁRIO DA TARDE
DIA 27 DOMINGO
~ 1i
(I
Vida Social
II
.~========:;::====='"
SUELTO ... A influenza hespanhola e o amor seria uma tese psychologica magnifica para ser desenvolvida por um Paul Bourget de francaria que se atormentasse num eterno sonho de duquezas e condessas, pallidas e loiras, muito loiras e frias ... COMMERCIO
DO PARANÁ
Cabelos de vassoura mais macios, meus dedos dizem Amarelos Ao levantar o branco lençol advinharei os outros pelos ?
27
A AUDACIA DO INIMIGO PRECISAMOS SER MAIS ENERGICOS AO MENOS EM NOSSO PAIZ
É deveras para se lastimar o facto occorrido hontem á noite, nesta cidade. Uma cama de allemães audaciosos, cheios de presumpção e agua benta ( ), entenderam de em pleno seio da capital desrespeitar a nossa pátria, cantando hymnos patrioticos allemães e jogando chacotas aos brasileiros praticando outras tantas imprudencias que o atual estado de guerra em que nos achamos não permite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..
Na Repartição Central
.
. " O mais exaltado era o conhecido fanfarrão Frederico Rummert que em portuguez arrevesado gritava: "Não bode ser, nós não somos criminosos e não ha lei que obrigue a falla portuguez". "Cantamos e havemos de cantar hymnos allemães porque não somos trahidores de nossa patria". Esse estupido e atrevido subdito do kaiser, revoltou-se contra os guardas, procurando offendel-os com palavras asperas quando era recolhido ao xadrez". Havendo algumas mulheres dito que "não iam para casa sozinhas" . .. o escrivão daquelle posto offereceu guardas civis para acompanhal-as. Á essa offerta, ellas responderam: "Não precisamos ir com brasileiros, preferimos ir sosinhas". E foram ... COMMERCIO
DO PARANÁ
VARIAS Em nossa edição de antehontem noticiamos a tentativa de suicídio de d. Anna Urichi, esposa do sr. Stanislau Urichi, barbeiro á praça Zacarias 22. Hon tem visitou-nos esse sr. explicando-nos ter sido desgostos por uma infermidade incuravel a causa daquelle acto de desespero, e não o receio da epidemia de grippe, como sahio na noticia ...
Com o de hontem, ha tres dias em que não se verifica um só obito nesta Capital (quadro urbano). Apenas no quarteirão das Merces se deram dois fallecimentos um por tuberculose e outro por lepra. Praza a Deus que assim se conserve Coritiba. COMMERCIO 28
DO PARANÁ
PRECISA-SE De uma mulher para viver com um bom homem solteiro. Rua Saldanha Marinho n. o 168 (das 5 as 6 horas da tarde)
familias ProcuI'{ds
comprar
Naphtuliun C)'eol, eJl\ escaw{J.s, l)ois é a melhol plua u. desinfecçí\o no in terior das ~"sa~, queiman do-se uma p(~quena porçí\() sobre brl! Z(\8. ; Com este metllodo pra tico e C('oUQlllico. AvttR_S
facllmen te :t
lH'opIIgac;Ao
de quahluer EI)tdemia. "É, folhas de eucalipto, Para queimar dentro de casa. Remédios não havia. Muito repouso, ficar deitado curtindo a DONA LÚCIA - 1976 febre alta, o cansaço, a dor por dentro," 29
DIA 28 SEGUNDA
o KAISER
VAI SER DEPOSTO
A SITUAÇÃO NO RIO DECLINA LENTAMENTE
,
A EPIDEMIA E OS CADAVERES
JA SÃO SEPULTADOS
A PESTE RECRUDESCE A SOPA DOS POBRES buço parco louro encima lábios rubros do calor da febre ao levantar o branco lençol encontrarei outros pelos louros cercando rubros lábios
NAS RUAS E NA POLICIA NO QUE DEU A "HYGIENE NAS PRISÕES" Hontem a tarde, o preso João Baptista Alves dos Santos, que se acha recluso no xadres do Posto Centra~ tentou contra a existência tomando uma forte dose de DIÁRIO DA TARDE creolina, isso por desgostos intimos. . . 30
1~tJf V.l . Convite
I'
o;
serAoil SAo celebrad"slPn ) f duas missas, Rcqu!I e AmAnhA a São S9baGtiA' , ás 8 e és 8 112 hc ras, na Cathedr31-':' I Lo
afim rla que epid@mia connAo I t\1; no& eftlija. 510li portanto" ~ vidadzs
artcer. es~e
) )
8066
I
todas pnssoas Que acto qU3ircrn cump' A-/ A COM MiSSÃO
Rneumatismo,
UIG~~ cancerosas
M
mirei bo ~en!Jor: qele é meu refúgio e min!Ja fortale?a. o meu meus; i.lrle confiarei ~orque
qele te Iíbrará
bo (aço bos caçabores e ba peste perniciolla.
qele te cobrirá com suas
penall e bebaixG be suas
allas te acol!Jerá: a llua
berbabe llerá teu ellcubo e broque!. jião
teráll mêbo bo terror
nocturno.
nem ba seta que bôa be bia.
jiem ba pellte que bagueia nas trebas; nem ba calamibabe que alISo(a ao meío·bia. jflil cairão ao teu labo. e bn ~ómente tlorque
mil à tua bireita.
com os teuS o(!Jos tontemplarás, o teu refúgio é o ~en!Jor.
mall não se t!Jegará a ti.
e brrás
ao ~ltíssimo
a paga bos prcaborell
te entregallte.
~~ltjflQ!')
90
DIA 29 TER~A
o "COMMERCIO" NÃO CIRCULOU Deixou de circular hoje o nosso apreciado collega mattutino "Commercio Paraná", em virtude de terem adoecido diversos funccionarios de suas officinas.
do
DIÁRIO DA TARDE 31
No jardim do Hospício tinha umas pereiras,brancos os pés, pintados de cal. Não adiantava, lugar úmido, sempre cheio de lesmas. O louco comia pêra com lesma. ficava horas mastigando fruta e bicho, olhando, olhando com aqueles olhos...
COMO MEDIDA PREVENTIVA ESTÃO SUSPENSAS AS VISITAS AOS DOENTES INTERNADOS NO HOSPICIO NOSSA SENHORA DA LUZ. TODA E QUALQUER INFORMAÇÃO AO RESPEITO DOS MESMOS DEVERÁ SER DADA PELA EXMA. SRA. IRMÃ SUPERIORA E PELOS MEDICOS DO ESTABELECIMENTO NAS HORAS HABITUAES DE VISITA. CURITlBA, 29 DE OUTUBRO DE 1.918 ODIRECTOR DR. LEMOS
No monte de venus parca loura penugem - como pelo de pecego margeando os lábios rubros do amor - fenda virgem para mfm advinhada por mim
"Muita gente ficou com o juizo abalado. Por causa da febre forte dias e dias. Mesmo muito tempo depois da gripe encontrava-se gente que nunca mais recuperou a razão, pro resto da vida." DONA LÚCIA - 1976 32
DIA 30 QUARTA
AS VICTORIAS DOS ALLIADOS SE MANIFESTAM POR TODA PARTE! ~~~"";,;;eCt~
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II Aa paz Austria rende-se e quer i incondicionalmente I iI
95 êDglo·jjalianos avançam aíé~ do (íé\Ve e capturam
12.000 ai.Isfflél(OS e 50 canbõfs
I
I
f\ Brlgicd Vde ter a séde do seu governu dentro dos territorios
receul-libertados
A GRIPPE Embora a censura policial tivesse varrido do noticiario da imprensa a rekltação dos fatos verificos, com relação á epidemia, o nosso dever profissional nos força a sahir do mutismo em que nos encontravamos nesse sentido e vir dizer ao povo que todo esse preparativo que se faz não é apenas para evitar que o mal chegue até nos, mas sim para dar combate á enfermidade que já n?s atingiu. DIÁRIO DA TARDE
"Os primeiros mortos tinham mortalha, eu mesma costurei algumas. Depois era de qualquer jeito, faltou até caixão. Vinham buscar os mortos, antes de enterrar tiravam do caixão DONA LÚCIA - 1976 pra servirpara outro:' 33
ONDE IREMOS PARAR? A QUE PONTO CHEGA A INSOLENCIA DE UM BOCHE O allemão Rodolfo André Damn, veio á rua 15 de Novembro, onde praticou uma necessidade phisiologica na porta da redacção do "Diario da Tarde" e em seguida veio escarrar na porta da nossa redação. COMMERCIO
34
-,-
DO PARANÁ
o SR. PRESIDENTE DA REPUBLICA ESTARÁ COM A "MARIA IGNACIA"? Rio 30 - Encontrasse ligeiramente enfermo o sr. Wenceslau Braz, que não desceu hontem às salas de recepção. DIÁRIO DA TARDE A FALTA DE CINEMAS TRANSFORMA CURITIBA EM UMA CIDADE DE MORTOS DT
DIA 31 QUINTA
ReJO DO OPRIEDADE
DA
SOCIEDADE
ANONVM4
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"COMMEACIO
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Coritiba _. Quinta-feira, 31 de Outubro de 1918
Visões da Guerra
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FRANÇA .-.
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A biHlda de rc'!'hncllto
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tnusira do tã') cele brc quAo ZURVOS
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35
]lini8ter;o da Justiça, e Negoci".s Interiores Serviço ~e prophylaxia
rural do Paraná
Combate á grippe Conselhos á população paranaense
É impossivel evitar a propagação da epidemia de grippe por não existir um preventivo seguro capa"" de evitar a infecção. Aconselhamos, com tudo, o seguinte: Tranqyilidade e confiança nas auctoridades sanitarias. Não fazer visitas e evitar o o com os doentes de'~ porque o contagio é directo, de individuo doente a individuo são. fuitar. toda a fadiga ou excessos physicos. ~ refeições leves e a horas certas e dormir tempo sufficente. Inmar um laxante cada 4 dias, afim de trazer o tubo digestivo sempre desembaraçado Ellgir das agglomerações, sobretudo á noite. fuitar. o uso de bebi das alcoolicas. l..loou:...a bocca, nariz e gargarejar com agua salgada com agua salicylada a 1 por 200, de manhã e de noite, e instillar, em seguida, 5 gottas de oleo gomenolado a 5% nas narinas, ou usar tampões de algodão com 'vaselina mentholada a 3%. Eara lavar a bocca e gargarejar é excellente a agua com um pouco de tintura de iodo. fuitar.as causas de resfriamentos, que facilitam a infecção. Sentjndo dôres de cabeça e pelo corpo, com febre, deve ir immediatamente para a .ldI1l1lI, fazer uso de purgante salino' ou de calomelanos e tomar aspirina e quinino á 0,30 centigrammos para uma capsula. Tomar 3 por dia. Dieta lactea. So levantar-se quando não sentir mais nada. O repouso ao leito, o regimen lacteo e essa medicação inicial, evitam as complicações pulmonares gastro-intestinaes ou nervosas, que são muito graves. Só chamar o medico para os casos serios, afim de evitar que elles adoeçam pelo esfalfamento e venha a faltar no momento mais difficil, quando elles poderão prestar maiores serviços ápopulação. Indo doente grave deve ser entregue a um enfermeiro ou enfermeira, para evitar a intervenção de pessoas da família ou extranhas, que seriam contagionadas, aggravàndo a situação geral. QIDln!Q á desinfect;ão basta ar um panno molhado em agua com creolina pelo soalho da casa do doente e desinfectar o seu escarro, também com creolina. O mais importante é a desinfecção da roupa de corpo e de cama, do doente, diariamente, pela ~ ~ é molestia muito séria quando descuidada. ~não deve receber visitas, a não ser do medico assistente. Recommpudamos maior rigôr TUl def(>,'tI.1 CÚU edosas e c(('Unça,li, ("(mIm a in/t'q:.tiu.
pessoas
AVISO: - A homeopathia, O espiritismo e as hervas, não curam a grippe, como nenhuma outra molestia infectuosa ou parasitaria.
36
1918
Novembro
o mez
da grippe
DIA 1 SEXTA
HO KAISER CAPUT_"
Contra esse injustificado interesse das autoridades sanitarias, de ocultar a verdadeira situação, foi que, em termos claros, não em entrelinhas nos manifestamos ante-hontem, pois que, quasi sem homens para o trabalho, vendo hora a hora cahirem os nossos companheiros enfermos, reconhecendo que outra cousa não era sinão essa epidemia que já se estende por todo o Brasil, não nos era possivel descuidar da nossa propria vida, achando razão nas declarações de que em Coritiba não há epidemia. DIÁRIO DA TARDE
Agora está m~o
morrendo muita gente.
Começou o mez de Novembro com um obito por grippe, no dia primeiro. Dahi em diante, o mal tomou proporções assustadoras, espalhou-se de modo aterrador, invadiu, por assim dizer, todas as casas, todas as classes sociaes. Relatório do Sr. Dr. Trajano Reis, director do Serviço Sanitário
não obstante, continuamos ftrmes em nossa attitude pela razão...
"Como saber quantos morreram? O governo não ia dizer o número verdadeiro dos mortos para não alarmar. Até hoje, ninguém sabe ao certo." DONA LUCIA - 1976
Fina loura linha não de tecer mas louro novelo ninho para o pássaro asas da minha mão 39
DIA 2 SA13ADO
~
I.uta ' A.
no •••• officin •• da C05tur. fornecem encommend •• no prazo mal. curto po•.. mo• Iva' por preç
dicCl
J'
... E assim vamos indo nessa estrada, Tristonha de amarguras e miseria, Deixando o corpo á podridão do Nada. FERREIRA LEAL - Nov. 1918
PEQUENAS NOTAS Embora permitindo que os cinemas voltassem a funccionar, a directoria do Serviço Sanitario o fez sob condicção de funcionarem somente 3 vezes por semana.
A freira, na lidadeira daqueles dias, deixou a porta aberta. O louco entrou, viu a coifa da freira em cima da cama. Deve ter achado bonito, colocou na cabeça e saiu daquele jeito pelos corredores: camisolão branco e coüa na cabeça, cantando: 40
DIA 3 DOMINGO
Nas outras mulheres que conheci na cama preta mata cerrada escondendo o sulco muitas vezes arado
Crreada Precisn-s'J com urgüllcio. cOl!inhoir~ para acompanhar milil\ para ·fvra dl\ Yapita1.
á
r\.,'l CcmmenfÍRdor
de uma uma. faTrata-se Al'RlI,io n. 51.
"Muitas famílias saíram da cidade, com medo da gripe. Quem podia, saía. Mas ir para onde? As outras cidades também estavam doentes." DONA LÚCIA - 1975 41
DIA 4 SEGUNDA
Kirie Eleisson, Kriste Eleisson Buxeta, Buxeta, Buxeta, Allamão Allamão Te pego allamão AhhhhhAaaaaaah Ghhaaaaaaaaa A HOMOEOPATHIA
TAMBÉM CURA
A VISO - A homoeopathia, o espiritismo e as hervas, não curam a grippe, com' nenhuma outra mo/estia infectuosa ou parasitaria. DR. HERACLIDES DE ARAUJO Na homoeopathia está a salvação do genero humano, a segurança das sociedades, ,~ saude das familias, a garantia do médico conscencioso, o complemento e a certeza de arte de curar - DR. SATURNINO SOARES DE ME/RELES - Conceitos sobre e doutrina homoeopathica. Zombar de uma cousa de que se não tem conhecimento, que se não sondou com c escalpello do obseroador consciencioso, não é criticar, é dar prova de leviandade" pobre idéa do proprio juizo. -ALLAN KARDEK - Livro dos Espiritos O Altissimo creou da terra os medicamentos e o homem prudente não os desprezará. DIÁRIO DA TARDE - ECCLESIASTICO - Capo 38 V.4. não obstante, continuamos ftrmes em nossa attitude pela razão ...
DIA 5 TER~A
"Ali naquela casa morreram sete, era o pai chegar de um enterro já tinha de levar outro ftlho para o cemitério. Ele mesmo fazia os caixões. No ftm, faltou madeira." DONA LÚCIA - 1976 42
DIA 6 QUARTA
VIGOROSO ATAQUE BRITANICO MEDIDAS DA SOUTH Luctando com a falta de pessoal devido a epidemia reinante, resolveu a South Brazilian Railway, suspender temporariamente o trafego de eletricos á noite em nossa Capital. - 6/11/1918
Ou então, as de pouco pelo (negro) que conheci ofereciam lesmas escuras que mesmo penduradas da carne faziam parte
"Morava um casal de alemães, a mulher alta, loira, muito bonita. Clara, isso, seu nome era Clara. Não recebiam muita visita, não se davam com a gente do bairro. Os dois caíram com a gripe, ninguém notou. Imagine os dois, um num quarto, outro no outro, sofrendo sem assistência. aram muitos dias até que uma vizinha lá entrou e encontrou os dois ... " DONA LÚCIA - 1976
43
A "BLACK LIST" ALLEMÃ "Apesar do estado de guerra, em que nos achamos, é sabido que os subditos aliemães que infectam a nossa capital mantêm um "jornal" escripto á machina o qual escreve telegranunas que dizem receber por intermédio da Argentina. Esse "jornal boche" a de mIo em mão" ... COMMERCIO
DO PARANÁ
- 6(11(1918
DIA 7 QUINTA
A PAZ NÃO ESTÁ TÃO PRÓXIMA DIZ CLEMENCEAU Nada assemelhado a isso fenda estreita oferecida como lábios da febre pequeno regato de morna ácida água onde vibram mil peixes DEIXEMOS DISSO · . . Imagine-se, por exemplo, um pobre enfermo a curtir 400 de febre e ouvir ::; fora, no silencio sepulchral das ruas desertas, o buzinar estridente da ambulancia é:; Assistencia Publica que, ás vezes, a por ahi somente porque vae levar o chal;' feur ao almoço ? .. · .. Ao ouvir o trombetear agudo do auto ambulancia tem-se a impressão doloras:; de que qualquer coisa apavorante ocorre ao nosso derredor. COMMERCIO
DO PARANÁ
As abas da coifa, asas sinistras sibilantes, corvo branco da morte, o louco homici&
~============~ IIVida Social II .~=======,\'t · .. Mas a sra. d. Hespanhola, parece não ter vontade de deixar ninguém em paz ... COMMERCIO
44
DO PARANÃ
DIA 8 SEXTA
A CESSAÇÃO DA GUERRA COM A ALLEMANHA FOI FIRMADA o REGOSIJO
PELA 1ERMINAÇÁO DA GUERRA É ENORME FM TODAS AS CIDADES DO MUNDO
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OOMMERCIO --,-----.----
DO PAllANA
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armisticio entre os alHados
e a AJlemanba RIO, 7 (Urgente)-- Telegramma recebido á ultima hord ._ondres, noticia que foi hoje, ás 11 horas, a~signado o isticio entre os paizes alliados c o imperio allemão. l!ssa noticia sen::.acional, máo gra.do a situação lamen:1 e doloro~a em que se ach~1o Rio, causou grande lção, tendo a cidade 5e movimentado mUlto ác; prirn\3ihoras da noite. intensificou-se ainda mais a sensação popular, quando ',rnar-:s affixaram outros despad10s teleglaphicos annun· do que ás 13 horc,s de hoje foram cessadas as hoc;tili·
,j~.em todas as
frf1ntes
dp. batalha.
A hruma, a ~evoa, a grippe.
8/11/18
JAIME BALLAO JUNIOR - Caderno de um grippado
45
DIA 9 SA'BADO
A "HESJ?AlliiQLK' Só se falia da epidemia. Mata se gente nos cafés, aggrava-se o estado dos enfermos nas esquinas, cream-se cifras de doentes, e só não se fazem sepultamentos por que o official do Registro reclama. Peior, pois, do que a grippe hespanhola o que está nos matando é o boato. Acabemos com elle e terminará a grippe que de trocadilho em trocadilho, de pilheria em pilheria, está pela simples suggestão attirando com toda a gente á cama. NÃO IlAVERÂ CONCERTO Ao contrario do que foi noticiado por um jorna~ não haverá, amanhã concerto de banda de musica na Praça Tiradentes; primeiro porque a quasi totalidade dos musicos de nossa milicia baixou hospital atacado da epidemia reinante e, segundo, porque estando a população a braços com a epidemia não seria louvavel essa organização de diversões. DIÁRIO DA TARDE
DECRETO NO 133 O EXMO. SR. CORONEL PREFEITO MUNICIPAL AUTORIZA O COMMERCIO DE SECCOS E MOLHADOS E PHARMACIAS A CONSERVAREM SEUS ESTABELECIMENTOS ABERTOS DURANTE OS DOMINGOS E DIAS FERIADOS, ENQUANTO PERMANECER A EPIDEMIA REINANTE. CURITYBA, 9 DE NOVEMBRO DE 1918. assoJOÃO ANTONIO XAVIER - Prefeito Municipal 46
DIA 10 DOMINGO
Estou de pé ao pé da cama o traço de sua fenda do amor fica horizontal em relação a mim, como se os lábios fossem sua boca onde encosto meus lábios.
MOLESTIAS
DO PEITO Se a tosse vos persegue USAr
Xarope
O
~e
6rin~clia de OLlVfIRA JUNIOR
o MEDICO:-Então I Sente-se melhor? A DOENTE:-
Muito pouco. Estou vendo, doutor, que não
ha remedio senlo appeIlar para o XAROPE DE GRINDELIA.
UNICO QUE CURA
" ... Não, não estavam mortos, não, mas quase. Tiveram que levar os dois para o hospital." DONA LÚCIA - 1976
47
DIA 11 SEGUNDA
o KAISER O KRONPRINZ O ARMISTICIO
ABDICOU E
TAMBEM NÃO QUIZ FOI ASSIGNADO
COM A COMPLETA CAPITULAÇÃO
DA ALLEMANHA
A REVOLUÇÃO ESTENDENDO-SE POR TODA ALLEMANHA
Mesmo na imobilidade da febre suas coxas se entreabrem lentas como a pedir que eu penetre sua gruta com minha Ifngua de sangue em chamas 48
INFLUENZA
pelo Dr. Nilo Cairo
... 0
começo da molestia é ordinariamente brusco. Em geral os typos classicos da influenza começam por uma "febre" bastante forte, depoi~ de repetidos "arrepios" de frio, violenta "dor de cabeça", grande prostação /feral, e muito frequentemente "dores" bastante intensas das "costas e das cadeiras'. A prostação é algumas vezes tão profunda que pessoas bem robustas são obrigadas a se meter na cama. Outras vezes se observam symptomas nervosos, excitação e delirio. . . Aponta-se também como symptoma caracteristico da injluenza, um "peso doloroso nos olhos", que se produz principalmente quando o doente move com os olhos. DIARIO DA TARDE - 11.11.1918
Kirie eleysson alIamão te cuspo escarro lesma em cima de ti alIamão alIamão cabeça de mamão alIamão mão peluda
RECLAMAÇÕES Sr. redactor do "Diario da Tarde" Um facto que deve merecer a attenção de quem de direito é esse de estarem a dobrar finados, a todo instante, os sinos da Igreja do Rosario, em caminho do Cemiterio Municipal. Agora que o numero de mortos augmentou os sinos ali dobram constantemente sempre que um enterro se aproxima, espalhando, esse som, a apprehensão, a magua e a tristeza.
49
DIA 12 TER~A
IOR CIRCULAÇÃO
NO PARANÁ -
Coritibs - Terça-fsira. 12 da N
Telegrammas,! VENCEMOS
Á~
GUERRi\!
 COMMUNICAÇAO
OFl'ICI-. AS CONDIÇOES IMPOSTAS AL DA CE8SAÇAO DA GUEB; &A.- AI RESOLUÇOES DO PELOS ALLlADOS SAO Ml GOVEBNO· lUO. l~. - O u. dr. NUo P.. llUIS HUMILHANTES PAdai recebeu
Ç&Dha. IIÚIlÍAro
Exteriores.
&elaçõel hnnt.em i
&A A AI 1 EMANHA.
o ex·Kaizer
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.\)1 "'I']';fW.\-\[,
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YARIAS AS BARBAS DO VISINHO É O caso que havendo fallecido domingo a esposa de um cidadão, foi elle a uma empresa funeraria para encomendar o indispensavel caixão mortuario. Pois bem: a empreza declarou-lhe que a sua encommenda só seria attendida hoje, terça feira, para quando teria de ser transferido o enterramento. Vendo que tal facto constituia uma anormalidade o cidadão referido dirigiu-se á policia, onde ouviu que "a policia não tem nada com isso". COMMERCIO
50
DO PARANÁ
12/11/1918
AS VICTIMAS AVOLUMAM-SE 21 OBITOS SENDO 16 DE GRIPPE OS CINEMAS FECHARAM A CRIPPE TORNA-SE CONTAGIOSA SETE DIAS POR SEMANA DT
t
Agora está mesmo morrendo muita gente.
DIA 13 QUARTA
ENFIM A PAZ! ASPIRAÇÃO DOS POVOS CULTOS
7, 7 J
Esta folha sempre se manteve numa attitude de calma solicitude ante os interesses publicos, abstendo-se de dar noticias que pudessem levar terror á nossa população. . . COMMÉRCIO DO PARANÁ A MORTANDADE
CRESCE
Hoje, até rís duas horas da tarde foram registrados no Cartorio da Praça Tiradentes, 22 obitos, sendo 16 causados pelo mal reinante DIÁRIO DA TARDE 51
DIA 14 QUINTA
, JA MORREM 24 PESSOAS POR DIA EM CORITIBA "Não sei bem no que o marido trabalhava, acho que era dono de alguma coisa. Eles quase não falavam com os vizinhos. O marido ava fora o dia inteiro." DONA LÚCIA - 1976
I
Ph',;f,~!~';:i~:" POii;;;;:Za
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Precisa-se de dois
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'cocheiros na EmpreIza
Funeraria, de P.
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FTlp.amws:M'
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BAI~BEARIA I Riq~~;rq~ib~ia l~~!:~}illl Faço isso Somente depois é que meus lábios minhas mãos percorrerão, precorreram outras partes de seu corpo: a boca ru bra febre, os cabelos, o bico róseo dos seios,
52
DIA 15 SEXTA
No dia em que não houve caixões para serem transportados
os cadaveres, mandei-os
fabricarpelo e, preço quandopedido, faltaram para conduzir os carros funebres, mandei-os alugar para anirnaes que não ficassem insepultos os infelizes fallecidos. Relatorio do Sr. dr. Trajano Reis, direetor do Serviço Sanitario.
Coifa branca, camisolão, a muleta é foice que ceifa mil milllões de cabeças. Anjo exterminador.
o movimento observado hontem nos postos de socorro e nas pharmacias, assim como os informes fornecidos por alguns medicas, nos auctorizam a affirmar que a epidemia começou a declinar, sendo já muito limitado o numero de casos novos, nesta capital. Queremos ganhar as alviçaras, dando aos nossos leitores tão animadora noticia que irá restituir a calma e tranquilidade á nossa população. COMMERCIO
DO PARANÁ
53
DIA 16 SA13ADO
os olhos agora semicerrados, a parte interna das coxas, novamente o bico dos seios agora também todo o seio branco talhado enche minha boca
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SEIOS =
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"O que a gente via era a mulher, no quintal, cuidando de alguma coisa. Muito branca, alta, o cabelo bem comprido brilhando mesmo quando não tinha sol. Loiro." DONA
54
LOCIA - 1976
DIA 17 DOMINGO .
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nas L2' e" 3°a pam. &' Vt .-. nas e publicando a materia nr, ltes, editorial e de collaboraçào : i ;e:~nas 10 e 4.a paginas. prol ,'s~im pedimos pxc usas ao~ ri nosso~ :1!1J'lunciante~aca:;o ar::: prejudicados com essa tr2ns· d.- forlllhçãot Que n s f')i .irrpos llt ~; t,\ Dor circum~tancias ~l11pe· ~ IJI
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DIA 18 SEGUNDA a suave curva do ventre e meus dedos percorrem tremulos a copa de seus pentelhos, sugo seu pescoço: uma mancha vermelha que depois será roxa, suas mãos os dedos se erguendo com meu forte apertar, novamente a fonte do amor. A EPIDEMIA DECLINA OU AUGMENT A? É o povo cuja sorte está em jogo a todo o momento interroga. Ninguém lhe diz, porém. Não se publica uma nota estatistica pela qual se veja que a marcha da molestia que nos infelicita está sendo acompanhada cuidadosamente, e DIÁRIO DA TARDE com esforços empregados para debela-lu. 55
DIA 19 TER~A
M OS OBITOS DE HONTEM
,
NÃO HA AUMENTO NEM DIMINUIÇÃO
Ela geme baixinho, não mais de febre agora de gôzo? Gózo e no auge do gôzo tento abraçar todo seu corpo que se me escapa e tenho nas mãos como um pássaro peixe 56
DIA 20 QUARTA
"
A EPIDEMIA SO DECLINA PARA ASCIENCIA
OFFICIAL
Maldito pesadelo da mão peluda pulo 3 vezes O mar do mar para lá ficou
AS TROPAS ALLIADAS CHEGAM AS MARGENS DO RHENO ABORTOU NO RIO UM
MOVIMENTO
GREVISTA SEDICIOSO o GOVERNO ESTÁ DISPOSTO A MANTER A ORDEM, CUSTE O QUE CUSTAR RIO 20 - Apesar da censura da imprensa, alguns jornaes noticiam que a policia descobriu um plano de gréve com caracter politico, tendo surprendido agitadores exactamente no momento de explodir o movimento. O governo está disposto a manter a ordem custe o que custar. Reina tranquilidade na cidade, estando a força policial de promptidão. DT
EM 130BITOS,lOSÃODECREANÇAS! 57
~!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!I.I!!!!~'"
Aviso fi
,
•
€mpreza Funeraría pires ~IiCia.
i [lMticipa
ao publico em geral Que, desde hoje em diante, attenderA a er.terro~, devido a seus p: 0Iprietf1rlos já cc acharem restabe:ecidos da ericr· midad~ Que os obn~ou a fecharem seu estabE"ieI cimento, estando :l,:tos para lltten~erem SI Qu{'lquC'r peS~()J que necessItar dos servIços da me~nl1
Empreza j
Coritiba, 20 de Novembro
J.
I
de 1918-
BBrreiros Pires & Cia. DIA 21 QUINTA
iCommuRique·se. t
•
aos pobres este aVIso :
o Dispensario 810 Vicente de Paulo, delicadamente, nos pede indiquemos aqui os pontos da cidade, onde distribue, o durante dia" o caldo Já preparadopau os i entermos pobres: . Praçi\ da Repubtica (CoUegio
i
José)Santos Andrade (Oolte:I São Praça gio Sion) Hua Jguass\\ n. 20õ (Colleglo Coração de Jesus) ; Rua Ractcliff n. 2 t 7 (bandas d' A~ua Verde). E para desejar que todes se tornem junto aos pobre~, pOrtavoz dessa communíct'çào: 58
I
DIA 22 SEXTA
" -----0
FUGlO NO DELlRlO DA FEBRE E NINGUt.,M O t.,'NCONTRA Noticiamos ha dros que o sr. Telemaco Jardim em um momento de crise neroosa occasionada pella grippe de que estava acommetido, fugiu de sua residencro á ma Carlos de Caroalho n.8, tendo a familro do enfermo solicitado os officios da policro para descobrir-lhe o paradeiro. Entretanto, dros já se am e não obstante os esforços empregados pela Inspectorro de Agentes e por pessoas amigas, o desventurado moço não é encontrado. Concorre muito para interceptar as investigações o facto do pouco movimento da cidade, difficultando as informações que poderrom ser colhidas acerca do paradeiro do sr. Telemaco. A falta de qualquer noticro sobre o pobre moço, leva a crer que se trate de uma occurenCla maIS grave. A policia prossegue nas diligencros para deslin(ÚJro facto. DIÁRIO DA TARDE
~Vida Social ~ Que noitadas magnificas nos proporcionou a Companhia Salvat-Olona. .. E de saudade em saudade, como de abysmo em abysmo, chegamos até a tet saudade do tempo em que os cinemas abertos apresentavam a fita "Bigodinho vae á missa" ... COMMERCIO DO PARANÁ ou outra coisa egualmente profunda. . . 59
RBCLAMAÇÕESDOPOYO Pedem-nos moradores da rua Alferes Poly que intercedamos da hygiene municipal que providencie sobre uma casa da rua Silva Jardim onde residem lavadeiras que cuidam das roupas de um hospital de grippados, estendendo-as pelas cercas. O escoamento da agua se faz pela valleta da rua, onde estagna, pondo em risco a saude dos mesmos moradores. COMMERCIO
Um grito lancinante foi ouvido.
DIA 23 S~BADO
Mão peluda acuda acuda acuda cuda cuda cuda cuda cuda cuda mãe cuda mãe cuda mãe
Cuiàado
com a Hespanhola! Use o poderoso antiputrido Balsamo Santa He1ena
desinfectante analgesico, ini· migv do máu cheiro Empreg2 do em gargarejos, pora a conservação dos dentes, contra o mau hàlito e
!
affecções da garganta
Um
vidro
em todas
as
1$500
pharmaclas
Só o Balsamo 8t8. Helenll
-----------: 60
DO PARANÁ
DIA 24 DOMINGO
POLICIAES
BAILES DE ARRELIA VISINHANÇA INCOMMODADA Hontem, na casa n.158 da rua Silva Jardim, teve logar um barulhento baile que, dado a agglomeração de mulheres da vida faci1 e de muitos desocupados, muito incommodou a visinhança, onde se acham pessoas atacadas de grippe. Segundo fomos informados o baile da arrelia foi promovido pelo cabo do 4~ Regimento, Manoel Candido de Almeida. Tarde da madrugada, quando a bachanal chegou ao auge, algumas pessoas pediram á patrulha de cavallaria para acabar com a encrenca. COMMERCIO
DO PARANÁ
Pancada tão forte que saiu uma espuma de sangue da boca. Ficou ali tempo, no chão de cimento, dezenas de bolhas de sangue pegajosas, levando tempo para ir estourando, uma a uma.
Quando de fadiga não puderam os coveiros abrir sepulturas, mandei gratificar a outros individuos para que as fizessem, de modo a evitar a decomposição dos cadaveres. Relatório do Sr. dr. Trajano Reis, director do Serviço Sanitario.
Nada mais me importa agora nem a mancha do gôzo em minha calça Nem o paletó cheguei a tirar O marido? tosse que ecoa por toda a casa saio pela porta sem chavear sem a volta da chave na fechadura saio sem me voltar ao menos 61
DIA 25 SEGUNDA
Telegrammas As tropas zas chegar~o_ a esta semana" Os americanos ----------------------------Vienna já invadiram as províncias rhenana~~~ lemãs - A conferencia da paz iniciará seus trabalhos ern ..Janeiro - Hinden~ burg cornmunicou ao governo allemão que o exercito gerrnanico não poderá combater nem um só exercito - A as· quadrra ingleza parrte papa Kiel. DIA 26 TERÇA
o Conselheiro Rodrigues Alves vae assu.. 111ir a
presidencia da Republica
Os holiandezes odeiam o Kaiser - O ge· ~eral d'Esperay chegou a Constanti-_ nla - O general Pers0ing será o subo stituto do president~_~ilson •.Os frac~ ~~ze§> __estão nas rna'~gens __ ~_~~~~noJ numa extensão de 100 milhas - A irn---_._--------_._~_._._-~"---------------------_._prensa allernã pede intervenção dOS ~J-= ~,?_do~J?ara reorganisa~ política allemã 62
DIA 27 QUARTA
o CHILE E O PERU
EM
EMMINENCIA DE GUERRA Há dias deu-se um caso que encolerizou quantos o presencearam. Uma moça, brasileira nata, moradora a rua Riachuelo, simplesmente pelo facto de ser seu pae allemão (pois sua mãe é brasileira) não tremulou dizer em frente á muitas patricias estas palavras fllhas de uma alma entoxicada pela "Ku1tur": "Eu preferia ser devorada pelos peixes a ser enterrada em território brasileiro" COMMERCIO
DO PARANÁ
Lá em cima se confere os pecados aqui em baixo ferro e sangue allamão mão mão mão peluda Lüaaahaaahhh
AGRADECIMENTOS
-o
distincto cidadão, sr. João Pereira ckt Fonseca, no seu nome e no de sua exma. familia visitou-nos agradecendo a noticia que estampamos sobre o amento de sua galantinha netta a pequena Diva. DT 63
DIA 28 QUINTA
Um grito Iancinante foi ouvido. Um grito lancinante foi ouvido. Um grito lancinante foi ouvido.
Não obstante, continuamos fmnes em nossa attitude pela razão ... Não obstante, continuamos fmnes em nossa attitude pela Não obstante, continuamos fmnes em nossa attitude Não obstante, continuamos fmnes em nossa Não obstante, continuamos fmnes em Não obstante, continuamos firmes Não obstante, continuamos Não obstante, Não.
Pedaço branco de miolo escorrendo pela parede. Como um verme, igual a um verm: descendo pela parede deixando uma baba de rastro, como uma lesma. 64
DIA 29 SEXTA
o KAISER VAE ACABAR NO HOSPICIO .. FECHAM-SE OSPOSTOS MEDICOS MAS OS NECESSITADOS DEVEM PROCURAR A REPARTIÇÃO DE HYGIENE Por achar-se quasi extincta a epidemia da grippe nesta capita~ a Directoria do Seroiço Sanitario determinou que fossem extinctos os postos medicos que o governo creara no quadro urbano e nos suburbios providencinndo tambem para que as pharmacins que estavam autorisadas a preparar receitas gratuitamente para os necessitados, não mais o façam. DT
JOSEPHINA - a distincta familia Jardim vem sendo curelmente ferida pela impiedosa epidemia que tantas lagrimas tem ao nosso povo arrumado. Dias atraz, noticiamos o fallecimento de um filho do sr. Telemaco Jardim, facto esse que o exaltou de tal forma que, no delirio da febre, quando atacado também do ma~ abandonou o lar e se foi deixar morrer, abandonado e só à beira da Cascatinha de Santa Felicidade. E, implacavel, a morte paira ainda sobre o lar infeliz e arrebata a gentil menina Josephina primogenita do malogrado cidadão, e que contava apenas sete annos de idade. O enterro da desventurada creança realizou-se hoje ás 15 horas, saindo o feretro da rua Carlos de Carvalho n. 8 para o Cemitério MunicipaL DIÁRIO DA TARDE 65
, O KAISER ESTA COM HESPANHOLA DIA 30 SKBADO
De amanhã em diante será restabelecido o trafego dos bonds os quais circularão dE accordo com o antigo horario. DI
Mas sempre terei diante de mim a visão de eu abrindo a porta a casa vasia, seu corpo de loura plumagem Sem me voltar, sem voltar diante de mim a cidade vazia, silenciosa nestes dias da grippe ninguém me viu nem me verá "Ela, a mulher, nunca mais ficou com o juízo perfeito. ava uns tempos boa, teve até um filho, criança linda. De repente, dava assim como uma tristeza nela, saía a andar sozinha pelas ruas, sempre com um vidrinho de veneno nas mãos. Nunca largava do veneno, mesmo quando estava normal, alegre com o marido e o filho ... " DONA LÚCIA - 1976 66
OS 6BITOS DE GRIPPE NOVEMBRO DE 1.918 DIA 1 DIA 2 DIA 3 DIA 4 DIA 5 DIA 6 DIA 7 DIA 8 DIA 9 DIA 10 DIA 11 DIA 12 DIA 13 DIA 14 DIA 15 DIA 16 DIA 17 DIA 18 DIA 19 DIA 20 DIA 21 DIA 22 DIA 23 DIA 24 DIA 25 DIA 26 DIA 27 DIA 28 DIA 29 DIA 30
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11 7 18 14 13 16 12 15
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FONTE: DIÁRIO DA TARDE
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forte. oor immorvrae-nos, ,de todo anto Deus.
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A última ktra do alfabeto
DIA 1 DOMINGO
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Social
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Os cinemas "in totun" abrirão amanhã, annunciando exihibiç6es novas depelli culas attrahentes.
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DIA 2 SEGUNDA
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Scena M6cahra No
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na U08 um louco mata
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suas Desenrolou-se hontem no Hospicio N. S. da Luz uma scena terrificante que teve como protagonista um infeliz demente ali recluso. Manoel de Campos, de 22 annos de idade, fora recolhido áquelle estabelecimento ha muito tempo, mas desde 5 armos que não tivera accessos de loucura, vivendo por isso solto pelas alamedas dos jardins do Hospicio. Andava por ali abobado, sem que alguem pudesse um dia augurar a scena horrivel que elle foi causador hontem. Seria 1/2 furioso horas da manhã,ao que tivera um grippe se achava pelae febre, tomado6 de accesso, encontrar dos ereclusos que exaltado era aleijado usava molletas, de uma destas se apoderou vibrando-lhe forte pancada no craneo. Caido exanime o primeiro, o louco avançou sobre outra victima. Era esta o cosinheiro do estabelecimento, que procurou defender-se com o braço. Baldado foi seu esforço, pois qque recebendo pancada violenta, caiu também sem vida. Numa aneia de matar, olhos injectados de sangue, a faiscarem, o louco, sempre com a tragica molleta já rubra e cheia de massa encephalica de suas victimas saiu em busca de outros. Em quantos que encontrava, o louco desferia pancadas. E naquelle aranzel, naquella confusão que se estabeleceu, irmãs de caridade fugiam, velhos e mendigos reclusos pelos se ocultavam-se, que após umae Paulo lucta Kopff, perigosa,queo infeliz demente foi ali subjugado empregados até Pandellis Rethis o puzeram em camisa de força, recolhendo o a uma cella. Entretanto, no solo, em meio de uma profusão de sangue, jaziam cadaveres quatro pessoas. . . DIÁRIO DA TARDE 72
DIA 3 TER~A U
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Uma proeZa macabra Domingo foi nossa população cruelmente abalada com a noticia de que no Hospital de N. S. da Luz occorrera uma tectrita scena de sangue, da qual era protagonista um dos infelizes reclusos daquel1e estabelecimento. No desejo de bem informar os nossos leitores, como o fazem todos os jornais verdadeiramente modernos, destacámos hontem um dos nossos companheiros para ir até aquel1e estabelecimento, a fIm de colher impressões sobre a horrorosa tragedia e ao mesmo tempo syndicar das circunstancias do caso, a ver se haveria razão em acreditar-se que o descalabro se dera por qualquer imprudencia, ou por relaxamento em tomar as necessarias precauções com os infelizes que habitam aquel1a casa sinistra. Chegados que fomos á mansão dos irresponsaveis, já nos chamou a attenção o cantar monotono de um doido, que naquel1a coisa entoada á guisa de canção está a mostrar o quanto a inconsciencia toma os irresponsaveis como que felizes immersos na noite negra da inconsciencia. Pelo que ouvimos, podemos mais ou menos reconstruir a scena horrivel da seguinte forma: O CRIMINOSO E SEUS ANTECEDENTES. Chama-se Manoel de Campos o autor da horrorosa scena de sangue; conta cerca de 32 armos de edade. Foi recolhido ao asylo ha cerca de 5 annos, em 1913.
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no Hospicio
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da uHespanhola"
Apalermado, jamais teve el1e occaSlao de manifestar indicios de loucura furiosa e quem o visitasse era até capaz de jurar que o desgraçado estava ali recolhido por excesso de zelo. Como todo o louco tem a sua mania, uns a mania de perseguição, outros a de grandezas, Manoel de Campos quando era interrogado por alguem relativamente á sua identidade, respondia que era "governador" do Estado, sendo portanto um delirio mais democratico, pois que o infeliz não se suppunha um rei ou imperador, nem mesmo um simples presidente da republica: contentava-se com ser Governador do Estado ... Ultimamente, com a invasão da peste hespanhola em nosso Estado, a enfermidade fez a sua entrada tambem no Hospicio, sendo Manoel de Campos uma de suas victimas. Teve el1e febre alta e todos os demais symptomas da terrivel enfermidade. Tratado, porém, com todo o carinho pelas religiosas daquel1e estabelecimento, achava-se el1e ultimamente em convalescença e sempre apalermado, ninguem suppunha que el1e viesse a ter um accesso de loucura furiosa. A SCENA DE SANGUE Pela manhã a ronda foi fazer uma visita aos diversos departamentos da instituição, nada encontrando de anormal que chamasse a sua attenção. Então as irmãs preparavam-se para ir celebrar o sacrifIcio da missa, talvez tendo no co73
bido de todos, correndo em sua perseguiração o desejo de levantar a Deus uma prece em favor dos infelizes recolhidos ao ção muitos doentes e empregados. Sedento de mais sangue o infeliz demen te arreestabelecimento. Um grito lancinante foi mette contra os primeiros que lhe approouvido, mas ninguem deu a elle attenção ximam, conseguindo prostrar sem vida alguma, pois é natural que naquella casa Manoel Salathiel Domingues, Francisco se ouçam frequentemente gritos dos irresBittencourt, Nicoláo Domenico e Miguel ponsaveis. E todos estavam longe de ima- Kosmiake. ginar que era o infeliz mendigo Paulo Subjugado, foi Manoel de Campos Bruquikoski que tombava mortalmente preso a uma camisola de força. Interrroferido por uma pancada desferida com gato, foi Manoel de Campos sobre o seu uma tranca de madeira. Com a tranca acto, a sua resposta era mais ou menos toda ensanguentada e a moleta do mendilucida. Mas, hontem estando lá o delego ás mãos, Manoel tenta fugir e perseguigado dI. J. Ribeiro, que lhe perguntou si do pelo epileptico Bento dos Santos, fere se lembrava do que fizera, respondeu que a este, felizmente não o matando porque não. Quando lhe disseram que havia morBento tivera a boa idéa de, por instincto to quatro pessoas e ferido uma, responde conservação, levar o braço a cabeça, recebendo os ferimentos no braço. A deu: - Agora está mesmo morrendo muita gente: meu pae morreu sósinho e seguir, poz-se o infeliz a correr em demanestes morreram logo quatro ... da do portão para se por em liberdade, COMMERCIO DO P ARAN Á sendo que a essas horas já o facto era sa-
74
" ... até que, um dia, tomou o veneno na rua, morreu, acharam ela já morta. Foi muito tempo depois, acho que foi lá por 30." DONA LÚCIA - 1976
M Missa Germano Heisler penhoradamente
agradece os restos mortaes atp á sua ultima morada de sua pranteada e inesquecivel esposa
a todas as pessoas que acompanharam
CLARA MARGARETH
HEISLER
Aproveitando a opporrunidade convida seus parentes e pessoas de sua amirode para assistirem á missa que manda celebmr sexta-feira, a hora 8, na egreja da Ordem. Por este acto de religião e caridade se confessa agradecido.
"Moça bonita, solteira. Morreu na gripe. Não resistiu a febre forte. Muito branca, alta, cabelo loiro bem comprido. Morreu na gripe." DONA LÚCIA - 1976 75
"Não, ela morreu na gripe. O marido se salvou, mas ela morreu. Vi o corpo, bonita, muito branca, cabelo branco de tão loiro, mortallia branca." DONA LÚCIA - 1976
Missa GermanQ Heisler e filhos penhoradamente agradecem a todas as pessoas que acompanharam os restos mortaes até á sua ultima morada de sua pranteada e inesquecivel esposa e mãe CLARA MARGARETH
HEISLER
Aproveitando a opporrunidade convidam seus parentes e pessoas de sua amisade para assistirem a missa eu mandam celebrar sexta-feira a hora 8. na egreja da Ordem. Por este acto de religiiio e caridade confessam-se agradecidos.
"Não, na época ela não era casada. Moça bonita, solteira. Muito branca, loira. Casou, teve fIlhos, mas nunca mais ficou certa da cabeça. Tinha períodos de lucidez, casou depois da gripe, teve fIlhos, mas nunca mais ficou certa da cabeça." DONA LÚCIA - 1976
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00
OS MORTOS DA GRIPPE
ANNO DE 1918 POPULAÇÃO DE CURITYBA E SUBURBIOS 71 112 67 7316 254 137 CASA1.629 25 127 31 29 1.261 34 59 NASCI18 59 321 TOTAL MENTOS OBITOS OBITOS POR GRIPE 4DEZ. 9 240 248 NOV. DISTRICTOS POLONIA DOTABOÃO
TOTAL GERAL DOENTES DE GRIPE
2.244
283
=
73.000 HABITANTES
1.466
= 45.249
PORCENTAGEM DE OBITOS
:
0,&4%
RELATÓRIO DO SR DR. TRAJANO REIS DIRECfOR DO SERVIÇO SANITÁRIO CURYTIBA 1919
295
89
384
N1 FIM
MACISTE NO INFERNO raconto
Noite de Amor. .. Vertigem de Luxo ... Caminho da Perdição ... Gigolô... Rouge e Pó de Arroz . Perdida em Paris . Os Mysterios de Hollywood. .. Bachanal .. Sodoma e Gomorra . Três Noites de D. juan Macho e Femea . Maciste no Inferno .
.
"Columnas, templo, quadrigas, bastilhas de papelão, cavalleiros da Idade Média, D' artagnans de fancaria, annuncios luminosos, projectores, lampadas, lettreiros, caretas, diálogos, versos, chronicas, commentarios, apreciações, taboletas nos bondes e nos automóveis; latagões de feira com estandarte e bandas de músicas; coxas nuas de girls macias, meninas cobras deitadas sobre areias, mulheres velludo em atitudes lascivas sobre leitos ou dentro de alcovas, mãos que agarram, lábios que procuram, femeas que se entregam, corpos em crispações, oscullos infinitos, desejos, ancias, fremitos, espasmos ..."
Maciste, o heroe, o homem de vigor sem egual e coração generoso era tão estimado em sua aldeia natal, onde vivia como um paladino do bem que, um bello dia, Plutão em seu seu reino subterrâneo de treva e rancor invejou-o e para combatel-o mandou a Terra o demônio Barbadilha, um dos seus mais ardillosos subditos, com a missão de corromper a bella Graziella, irmã de creação de Maciste
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Negro como o inferno até acostumar a vista fico em pé as mãos na mureta de madeira que separa as fileiras de cadeiras da grande porta com cortinas de velludo que separa a salla de exibições da salla de espera Este vendo Grazie/la seduzida por um conquistador sem escrupulos percebe a intervenção de Barbadilha e, ousada mente, trava renhida lucta com o demônio que o arrasta para o inferno
Com a luz que vem da tella busco com os olhos aquillo que quero e busco meu logar a mulher Até me assegurar que é uma mulher fico atraz da mureta de madeira as mãos segurando suas bordas Para que os outros espectadores não se apercebam das minhas intenções finjo entrar na fileira de traz com mais gente; mudo de idéia e entro na fileira da frente ameaço sentar numa cadeira vazia mas sento-me ao lado della É uma mulher
É uma mulher Fingindo attenção na tella com o rabo dos olhos olho com coragem viro um pouco, bem pouco, a cabeça para que ella não perceba que estou olhando a ella Nem tentei encostar meu braço no seu e ella olha a tella tremeluz
Ora o mortal que chega ao inferno sem ter morrido, pode voltar ao mundo se ao fim de trez dias não tiver cedido à tentação de alguma beldade d'aquelle antro
É bella e macia, estou com meus braços cruzados e as pontas dos meus dedos acariciam o fino tecido de sua blusa solta ella não solta os olhos da tella cintilante nem sente minha caricia na seda macia diferente do áspero velludo das vermelhas cortinas
É um fume marron nas cennas de inferno é vermelho Um calor me sobe por todo meu corpo, frieza da seda Ora, Proserpina, a esposa própria de Plutão tenta-o com encantos taes que Maciste ousa beijal-a: Estava decretada sua sentença às pennas etternaes
Ouso, empurro meus dedos tremulos e toco seu braço como se fosse sem querer Não sobre a cadeira ao lado meu chapeu esta assentado sobre meu sexo agora zona de calor EUa afasta seu braço Ouso, insisto eUa afasta seu braço vira-se e olha firme para mim meus olhos estão na teUa
Entrectanto Barbadilha, ardiloso e revoltoso, quer a todo transe desthronar Plutão, para tanto architeta uma revolução no inferno. Somente por sua lealdade instinctiva, Maciste poem sua força e destreza sem egual ao serviço de Plutão e consegue debellar a revolução e castigar o pérfido Barbadilha
Acaricio o fino tecido e os dedos vão se aproximando vagarosamente Como os braços della estão bem postos para traz os dedos vão chegando a parte do lado de seu seio direito, logar onde o tecido também é solto - como nas mangas da blusa - e não encosta no seio pelo menos na parte lateral Olho a tella e nada vejo Poma macio dura vejo
Então terminada a lucta, Plutão chama o heroe a sua ignobil presença e em lembrança aos seus serviços auctoriza-Ihe a voltar a Terra: Proserpina protesta contra isso, mas em vão. Maciste prepara-se para partir, mas Proserpina arma-lhe um laço, manda-o prender e torna a beija I-o, condemnando-o novamente à penna eterna Latagões com estandartes e bandas de músicas, coxas nuas de girls macias, meninas cobras deitadas sobre areias, mulheres velludos em attitudes lascivas, mãos que agarram tóco finalmente o lado de seus seios calor, lábios que procuram, femeas que se entregam, corpos em crispações, oscullos infinitos, desejos, ancias, fremitos, espasmos ... No espasmo do gôzo nem sinto suas unhas vermelhas fincarem-se em minha carne: "Que é isso? se o senhor não ficar quieto eu chamo o guarda!"
Levanto sem olhar saindo pelo outro lado das cadeiras Disfarço sair agora sem o filme acabar chamaria atenção; por isso dirijo-me ao banheiro Letreiros homens pintado num vidro que a luz vermelha alumia Uma pequena cortina vermelha antes da porta impede que abrindo a porta a meia luz do logar chegue na salla de projeção Evito olhar no espelho não há toalha limpo a mim e a calça como posso com o papel do programa que anuncia as próximas fitas Caminho da Perdição ... As Trez Noites de D. Juan ... Macho e Femea... Sodoma e Gomorra ... Entrectanto, na Terra, o seductor de Graziella arrependido de seu acto, volta para junto d'ella e seu filho, que já tem então um anno e meio de edade. Na véspera do Natal,
Graziella faz esta adorável creança rezar por seu protector, o impávido col/osso Maciste e dá-se o milagre: a prece infantil é ouvida e o Todo Poderoso liberta Maciste e este volta à Terra para gozar a ventura de um novo lar, entre seus amigos
Não posso ficar neste logar muito tempo chamaria a attenção sobre minha pessoa A fita está acabando apresso-me com o chapeu cubro a mancha úmida de minha calça as gentes da salla de .. espera me. olham sou o pnmeuo a saIr
Mesmo a luz mortiça das quatro horas da tarde me cega Já não escuto o piano quando todos começam a sair da sessão já estou escutando o barulho da cidade das casas das vozes dos automóveis dos ruidos Sou novamente parte da cidade e " nmguem me ve
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E9 mINE9TAURE9 novela
Para não pagar a mulher, abandonei o quarto no meio da noite. Não que a mulher não me agradasse. Acordei, ela dormia ao meu lado, na cama do hotelzinho barato. Uma bela fêmea, branca, loira, cabelão esparramado pelo lençol, nua. Tenho pouco dinheiro, nem sei como convenci aquela estátua de mulher a ar a noite comigo neste hotelzinho vagabundo, tão sujo, o que eu podia pagar. O preço combinado, tudo o que eu tinha no bolso, ia me deixar sem nada até o fim do mês. No escuro me levantei, quieto vesti minhas roupas, sem fazer barulho deschaveei a porta e, de mansinho, saí para o corredor escuro.
Sozinho? Nessa hora da madrugada ninguém entra sozinho naquele hotel. É um hotel de encontros e ninguém o procura para se hospedar. Se por acaso algum desavisado procurar um quarto para, fatigado, dormir algumas horas, será alerta do pelo porteiro noturno sobre a real categoria do estabelecimento e dissuadido de entrar. Ao contrário, alguém sair sozinho do hotel durante a noite é relativamente comum: a hora certa para chegar em casa, a hora que obriga um homem casado a deixar sua parceira noturna dormindo, os pequenos desentendimentos amorosos, as questiúnculas por questões de dinheiro, a insatisfação com a companhia escolhida, o sono alcoólico que impede os prazeres do sexo, são motivos corriqueiros para se abandonar um quarto pago adiantadamente. E não há razão nenhuma para se entrar sozinho naquele hotel de encontros. Nunca aconteceu isso.
Excelente fêmea - e, geralmente, as loiras não são boas de cama -, essa polacona que eu peguei. Não era mulher para aquele ambiente, nem sei o que ela viu em mim. Também, quando nos cruzamos na noite, estávamos meio bêbados, os dois, no bar. Geralmente as loiras são largas, aguadas, ela não, apertadinha, pentelheira loira. Foi tocar na pele e ela se arrepiou toda, foi logo beijando meu corpo: como era quente aquela boca com o meu sexo dentro. Quando enfiei nela, a mesma coisa: quentura de um pote de mel. Três vezes seguidas e eu e ela queríamos mais, mas o sono não deixou, a gente tinha bebido demais. Acordei no meio da noite, dormindo ela era coisa morta, nada da potranca que eu cavalgara três vezes. Me veio a preocupação de que se eu ficasse até de manhã, teria de pagá-Ia, e então ia ficar sem dinheiro até o final do mês. Encostei a porta com cuidado e me atirei pelo corredor escuro.
- Você viu a Marilda? - Não pintou por aqui hoje. - Porra! Será que ela ainda vem? - E eu é que sei? - Tesão. Tem um cigarro? -Não. - Porra, enfia teu cigarro no eu. - Não enche o saco. -
Se a Marilda aparecer, diz que eu volto. Tchau, tesão. - Vê se me esquece.
Porque me parecia que fora por esse lado que eu chegara, me atirei para o lado direito do estreito corredor escuro. Não enxergava nada, eu ia com as mãos nas paredes e não para a frente, como seria normal quando se caminha na escuridão. Nas mãos abertas eu sentia as paredes de tábua e, de intervalo a intervalo, o relevo das mata-juntas; a intervalos maiores, a áspera madeira das portas de inúmeros quartinhos. Me choquei de frente com uma parede de alvenaria que fechava meu caminho. Como não sentisse com a mão a parede do lado direito, percebi que o corredor descambava para a direita, numa curva de noventa graus, agora parede de material. E continuei seguindo.
Quase que caio. O corredor principiava com uma escadinha. Tropecei em imprevistos degraus, formados no vazio a partir da direita até a parede contra a qual eu me chocara. Desci cuidadosamente, arrastando os pés, pois não sabia quantos degraus existiriam no escuro. Continuei seguindo, arrastando os pés, com medo de encontrar pela frente outros degraus. Com as mãos nas paredes eu sentia uma repetição do corredor anterior, este mais curto. Logo senti um vazio na mão esquerda. Parei, estendi a mão direita para a frente e senti outra parede bloqueando o corredor, encaminhando-o para a esquerda. Me virei e segui arrastando os pés, dei uma topada num degrau. Havia uma escada à esquerda. Ao contrário da outra, esta escadinha era ascendente. Galguei, cuidadosamente, seus três degraus.
Para a numeração dos quartos deste hotelzinho utilizam-se plaquetas de metal de cerca de sete centímetros de comprimento. São de formato oval, esmaltadas de branco com os números em azul, ornadas com friso também azul, formando uma delgada moldura. Pequeno furo em cada uma das extremidades permite a agem de pregos, ou parafusos, para fixá-Ias nas portas dos quartos. Algumas plaquetas estão pregadas tortas e mesmo de cabeça para baixo, outras se acham penduradas, presas somente por uma das pontas, e falta numeração em muitos dos quartos, numa demonstração de serviço malfeito. Apesar de muitas estarem riscadas ou com o esmalte partido, são plaquetas de boa qualidade. Devem ter servido em estabelecimento de mais categoria antes de seu uso aqui.
Talvez por economia, neste hotelzinho barato o acender de uma lâmpada se faça atarrachando-a no bocal. Alcançado o topo da escada, continuei a caminhar. Qualquer coisa de abafadiço, neste novo corredor, aumentava o cheiro de mofo, sensível em todos os quartos e corredores. Estendo as mãos para o alto e alcanço o forro baixo, que, pelo tato, parecia ser de áspera madeira compensada, cheia de abaulamentos. Durante algum tempo continuei com as mãos pelo teto, na esperança de encontrar uma lâmpada que, desrosqueada no bocal, estivesse provocando a escuridão. No meu tatear pelas paredes ainda não encontrara nenhum interruptor de luz. Talvez nem existissem. Uma luz acesa me indicaria o caminho a seguir. Àquela hora tardia não se esperavam mais hóspedes, e para economizar certamente o porteiro apagara todas as luzes.
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Uma tremenda
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E como é que tá? - Fraco. - E de novo?
duma peça. Uma loirona que eu nunca vi por aqUI. - Boa mesmo?
Coisa fina, deve ser gata de alguma boate. - E o cara com ela?
Acho que já vi antes, um pé-de-chinelo. Olha, hoje joguei na dezena da vaca, seco na cabeça: 25. Viu o que deu: 24. - Em que quarto você pôs eles? - No oito.
wc Este corredor me parece mais longo que os outros. Emanações de urina e fezes se juntam agora ao cheiro de mofo. A mão direita encontra um vazio, a porta entreaberta de um banheiro malcheiroso. Empurrei a porta e entrei. Procurei com as mãos o interruptor da lâmpada que, sem sombra de dúvida, deve existir em um banheiro. Um cubículo. Minhas mãos percorrem todas as paredes, bato no puxador da descarga, me arranho num prego onde se espetavam ásperos papéis cortados irregularmente, com certeza pedaços de jornais velhos. E não encontrei o interruptor. Erguendo as mãos, encontro um bocal vazio fixado no teto baixo. A lâmpada ou havia sido retirada, ou nunca estivera lá. Eu não tinha mais nada a fazer neste banheiro escuro, então saÍ.
Não tenho o hábito de fumar, por isso não carrego fósforos comigo. A luzinha do meu relógio queimou há tempos e de nada adiantaria mesmo, pois era muito fraquinha, mal se viam os números do mostrador. Um castiçal com uma vela acesa me seria mais útil nesta escuridão.
S/NC} UMA LENDA DA ANTIGA GRÉCIA. Por ser perversa e tenebrosa, a rainha Parsifae, mulher do rei Minos, da ilha de Creta, foi castigada pelos deuses tendo um filho monstruoso, o Minotauro, corpo de gente, cabeça de touro e comedor de carne humana, Vivia o Minotauro no Labirinto, enorme construção de muitos corredores emaranhados. Impenetrável à luz, o inextrincável Labirinto era formado de mil voltas com mil corredores arrevesados, intrincados, enredados, tortuosos, tornando impossível para quem nele entrou achar o caminho de volta. O rei Minos invade a Grécia e ataca Atenas, que se rende. A condição de paz imposta à cidade é que, uma vez por ano, deveria entregar 7 moças virgens e 7 rapazes para serem sacrificados ao Minotauro, sempre sedento de sangue humano. Teseu, moço loiro, belo, fortÍssimo, inteligente, andava pela Grécia eliminando bandidos e ladrões. Ao saber das exigências do Minotauro, toma o lugar de um dos rapazes escolhidos e segue para Creta, decidido a matar o monstro.
Ao desembarcar, é visto pela filha mais nova do rei Minos, a bela princesa Ariadne, que se apaixona perdidamente por ele. Ariadne dá armas e um novelo de fio de ouro a Teseu, para que ele encontre o caminho de volta no Labirinto. Entrando no Labirinto, após mil voltas Teseu chega ao lugar onde o espera o Minotauro, enorme com seu corpanzil de homem e caratonha de touro. Ao ver carne fresca, o Minotauro ruge e baba de cobiça e gula. Sem perda de tempo, Teseu enfia-lhe a lança no coração e corta-lhe a cabeçorra com a espada. Vencido o monstro, Teseu encontra facilmente o caminho de volta seguindo o fio que desenrolara por quilômetros de escuros corredores. Na saída, Ariadne espera ansiosa por seu amado. Teseu embarca com ela de volta à Grécia. No meio da viagem, a pretexto de cansaço pela luta com o Minotauro, Teseu encosta o navio na ilha de Nacsos. Deita-se para descansar e Ariadne adormece ao seu lado. Aproveitando o sono da bela Ariadne, Teseu abandona-a na ilha deserta e zarpa sozinho para a Grécia.
Perdido na escuridão, percebo depois de algum tempo que devo estar em outro corredor. Nauseado pelo mau cheiro, quando saí do banheiro devo ter caminhado em linha reta e não para o lado. Como não bati em nenhuma parede, devo ter entrado por um desapercebido corredor que inicia bem defronte ao pequeno banheiro. Sinto também uma corrente de ar frio vinda da escuridão à minha frente.
A mulher acorda no meio da noite com vontade de urinar, muita bebida. a as mãos pela guarda da cama, esperando achar uma pêra de luz. Acha não. Acostumada nesses ambientes, sem sair da cama, tateando o chão com as mãos, procura até encontrar uma bacia de metal. Se levanta, puxa a bacia para perto de si, agacha-se e solta o segurado jato de urina, metálico ruído. Mesmo na escuridão sabe onde encontrar: pega o rolo de papel higiênico na mesinha-de-cabeceira e se enxuga. Ao voltar para a cama, percebe que está sozinha.
8DEMAlO BELA LOIRA DEVORADA
POR URUBUS
Na manhã de oito de maio, o lavrador Casemiro Pietroski, moradOl do distrito de Itaqui, em Campo Largo, distante vinte e cinco quilômetros de Curitiba, atraído por nuvens de urubus sobrevoand, um capão de mato existente no prolongamento da antiga estrada Curitiba-Campo Largo, dirigiu-se para o local e, em meio ao mau cheiro reinante, deparou-se com uma cena tétrica. Uma mulher loira, aparentando vinte e poucos anos, encontrava-se caída de bruços, nua, morta, servindo de repasto aos urubus. Assustado e enojado, Casemiro Pietroski procurou logo avisar a polícia. Ao locê compareceu uma viatura da delegacia de Campo Largo que providenciou a remoção do corpo para o Instituto Médico Legal d,e Curitiba. Os primeiros exames realizados não evidenciam nenhum, perfuração por projétil de arma de fogo; porém, como o corpo da bela jovem loira se encontra bastante bicado pelos urubus, que lhr arrancaram diversos pedaços da carne já putrefata, torna-se necessária a realização da devida autópsia, com vistas a estabelece' a causa mortis. Vasculhando cuidadosamente a região pouco habitada, a polícia não encontrou as vestes da vítima, nem qualqur documento que facilitasse sua identificação. A estradinha de tern, termina uns cinco quilômetros adiante do lugar do macabro achad e tem muito pouco movimento, sendo de se supor que a bela loira tenha sido assassinada em outro local e ali jogada durante a noite
Silêncio. Eu não escutava nenhum barulho vindo dos quartos, como se esperaria num hotelzinho de encontros. Pela pouca espessura dos tabiques de madeira, seria natural que se ouvissem barulhos: gemidos de amor, tosses noturnas, peidos, gente roncando. A loira roncava. Nada, silêncio total. E eu devia estar bem no centro do hotelzinho, cercado de quartos dos dois lados do corredor sem nenhuma janela, pois nem os ruídos noturnos da cidade eu escutava.
Na minha frente, uma baça luminosidade retangular. Pequena, bem no centro, ao fundo. Minhas mãos tocam a plana lisura do vidro. É uma pequena janela. A noite lá fora está tão escura quanto aqui dentro. Não há nada para ver. Em frente, bem perto, o oitão sem aberturas de um edifício alto. De um lado, também quase encostado, o que parece ser uma das paredes do hotelzinho. Do outro, um muro. Abaixo, a escuridão. Pequena janela sem serventia. Quatro vidros, um quebrado.
- Ninguém comentou nada? -E quem? - Será que alguém ficou sabendo? - Só quem ficou sabendo fomos nós (nós aí incluídos os dois interlocutores, o patrão, a mulher do patrão, o agente de polícia e Shamanta, o travesti que cuida da limpeza dos quartos). Ninguém desconfiou quando tiramos para pôr no carro. - Também, embrulhado no acolchoado do jeito que estava, parecia um monte de roupa para lavar. - E a Shamanta lavou tudo direitinho, não deixou nenhum sinal. - Mas você não alugou para ninguém, não é? - Estou te dizendo que está quase vazio. Deixei a porta aberta para ventilar: para saírem os maus eflúvios: não é assim que se diz? - Parece que é. - E a Shamanta até defumou o quarto todo: para acalmar o espírito da infeliz. - Cadê a bichinha? - Acho que, depois do acontecido, ficou com medo de ar a noite aqui. Deve estar caçando.
Pelo vidro quebrado entrava o vento frio, que não sinto agora. Um fino ferro redondo, um pequeno pedaço reto, uma pequena curva para cima, depois um pedaço reto maior, onde pôr a mão. Então me veio a idéia de ir abrindo a porta de todos os quartos. Que merda, não quero ficar rondando a noite toda. Em algum quarto deve ter luz, ou alguém me empresta um isqueiro. Que se danem. Tudo fechado. Será que tem gente dentro? Parece que esse corredor não era tão comprido: será que não estou onde pensei que estava? Uma porta aberta, nem precisei baixar a maçaneta de ferro redondo, provavelmente enferrujada. A porta estava aberta. Vou entrando devagar, mãos para a frente. - Tem gente aí? Dou uma tremenda duma topada com a canela no pé da cama. Somente depois de ada a dor forte me levanto da cama e procuro no ar uma lâmpada. Como das outras vezes, só o bocal vazio, este pendurado no teto pelo fio elétrico. Merda. Cheiro de defumação nesse quarto. Há quanto tempo estou aqui?
(ou não?)
A mulher loira acorda durante a noite com vontade de urinar, muita bebida. Procura seu parceiro, a a mão pelo espaço vazio e sente, no lençol, um molhado gosmento. TSK - ela faz com a boca. Depositado pelo homem não mais ao seu lado, o esperma deve ter escorrido de dentro dela durante o sono, ela não se limpou. Limpou os dedos em outra parte do lençol e somente então, acostumada com esses ambientes, sem sair da cama, tateando o chão com as mãos, procura até encontrar uma bacia de metal.
- Em que quarto mesmo você disse? -No oito.
(ou 30-0)
Rolei escada abaixo. Braços cansados, deixei de tatear as paredes, quando vi estava sem apoio. Os degraus dessa escada em caracol giram partindo de um centro que é o canto direito do patamar formado pelo final do assoalho do corredor. Degraus de formato triangular como um pedaço de pizza vão se abrindo em leque para baixo. Na escuridão, dificilmente a gente consegue caminhar em linha reta. Eu andava quase encostado na parede direita e entrei na escada em caracol, justamente no lado onde os degraus são mais estreitos. Perdi o equilíbrio e rolei escada abaixo, tentando inutilmente me agarrar em algum ponto de apoio. Não me machuquei, foi mais o susto de cair girando num abismo escuro. O barulho da minha queda não provocou nenhuma resposta, nenhuma porta se abriu, nenhum hóspede apareceu para ver o que acontecia.
Não olhei as horas quando acordei, meu relógio está com a luzinha queimada e eu não conseguiria ver os números agora. No escuro caminho no espaço e não no tempo, num espaço que não compreendo. Imagino que o hotel tenha três andares, um velho casarão no centro da cidade. Bêbado, quando aqui cheguei com a loira me lembro, embaçadamente, de ter subido escadas. Sei aonde pretendo chegar: na porta da rua. Desci escadas, subi escadas e continuo no mesmo lugar: na escuridão.
Há um outro homem que se movimenta, na escuridão, pelos corredores do pequeno hotel. Ele conhece o caminho. Declinou a escada ao lado da pequena portaria, antes percorreu o longo corredor retilíneo do andar térreo e prefere subir pela estreita escada dos fundos. Conhece o chão onde pisa e sabe que, por ali, o caminho é menos cheio de meandros para chegar aonde quer. Na hora certa, entre as inúmeras portas do hotelzinho ele saberá qual abrir.
A porta está aberta. Saio do corredor escuro e entro no quarto escuro. Vou falando: Tem alguém aí? Desvio a cama e vou ando as mãos pelas paredes, ora de madeira, ora de material. Procurando uma luz, encontro uma janela. É uma grande janela, a vidraça abre para o lado de dentro e, por mais força que eu faça, não consigo abrir a veneziana nunca aberta. Espio pelas frestas e nada mais vejo além da escuridão. Não me lembro se tinha janela no quarto da loira. Haverá outros quartos abertos.
De madrugada, na cidade, há uma hora em que parece que tudo pára. Tudo está fechado, não se escuta carro ando, as gentes dormindo. Aquele silêncio todo e se ouve um zumbido contínuo como um apito de navio, bem baixinho, mal se ouve. Acho que vem dos postes de luz. Aquele zumbido continuado não é silêncio.
Ele fuma. Antes de subir a escada, no fim do corredor, acendeu um cigarro e se deixou ficar ali parado, em pé, fumando. Talvez por mesquinharia, para não ter de reparti-lo com o porteiro, talvez porque a maconha lhe aclare a mente sobre o que fazer ou, talvez, apenas por vontade de fumar, ele acendeu o cigarro antes de subir a escada e se deixou ficar ali parado, no fim do corredor, sozinho no escuro, fumando.
Eu penso em fogo, chamas. Na verdade, sinto frio. Se tivesse um fósforo, poria fogo nos jornais e me aqueceria. Na verdade, não faria isso. Se eu tivesse um fósforo e tivesse em mãos os jornais do banheiro, eu faria uma tocha, uma luz para me guiar.
Outro jornal, de menor circulação, sem nenhuma fotografia na primeira página, noticiou que o assassino (ou assassinos) havia posto fogo no cadáver para evitar a identificação. Na notícia, o nome da localidade aparecia grafado errado: Itaigüi.
- A Marilda já veio? - Não. Faz dias que não aparece. - Tá gozando com a minha cara? Ainda ontem ela esteve aqui, com um velho. Eu estava com o meu. - É tanta gente que aparece por aqui, se eu for olhar para a cara de cada puta que entra ... - Se você não olha para a gente, como sabe que ela não veio hoje? - Tá a fim de fazer hora comigo? Já disse que ela não veio e não me encha o saco. - Tesão. Não tem mesmo um cigarro, estou louca de vontade de fumar. - Já disse que não.
Abro uma porta destrancada e vou entrando num quarto escuro. - Onde você andava? Só vejo a voz da loira e respondo: - Fui no banheiro.
o outro homem vê que o 27 está escancarado. Quem deixou a porta aberta? Espia para dentro do quarto e, zelosamente, encosta a porta.
- Você tem fósforo? - Pra que que você quer fósforo? Venha deitar logo que eu estou com frio. - É que está escuro. Não tem luz nessa porra. - Deixa de frescura e vem de uma vez. No escuro, eu caminho na direção dela, em direção à cama. Piso na bacia de metal que entorna seu líquido em cima de mim. O líquido gelado me entra por dentro dos sapatos. Molha a barra da minha calça, os meus pés.
A mulher loira também não sabia onde era a luz, mas tinha fósforos na bolsa. No escuro, me entregou uma caixa de fósforos de papelão, preta, com o nome do inferninho impresso em letras douradas: Le Labirinthe. Com a desculpa de me enxugar, saio outra vez. A caixa tinha apenas três palitos. Um custou a riscar e queimou meu dedo quando acendeu, atirei fora num grito. O outro me guiou até o banheiro, onde eu sabia que encontraria papel.
- Está a fim de um programa, bonitão? O ante não responde e continua seu caminho. A outra mulher pouco se importa, perguntou por perguntar. Sabe muito bem que, àquela hora, dificilmente encontrará um freguês. Se deixou ficar ali, perto da pequena porta de entrada do hotel, porém num lugar onde não possa ser vista pelo porteiro. O outro homem sobe, lentamente, pela escada que leva ao corredor do banheiro. Quando seus olhos chegam na altura do piso do corredor, percebe uma luminosidade alaranjada movendo-se na escuridão. O porteiro noturno lê, mais uma vez, a notícia estampada no jornal do dia anterior. A mulher loira dorme, sem roncar.
Em preto e branco a fotografia da mulher loira caída de bruços, manchetes impressas em vermelho, mas as letras da reportagem estão em preto. O jornal se encontra bastante amassado e o fogo do terceiro palito de fósforo começa a queimá-Io pela margem. Estou acocorado junto ao foguinho e, com outro pedaço de jornal, esfrego a barra da calça para secá-Ia. - Qyhé bbohhar oohhô nnnohehll? Ao mesmo tempo que escuto a voz irada que não entendo, em movimento vejo um sapato preto de cordão, uma canela sem meia, uma perna metida numa calça preta. O sapato esmaga o jornal incendiado e, novamente, a escuridão. Rápido, assustado, ao levantar me choco contra um corpo aflanelado grosso redondo que perde o equilíbrio e bate com estrondo na porta semi-aberta do banheiro, onde cai, um barulho seco no chão cimentado. No escuro, eu corro pelo corredor, pela escada, por outra escada e vejo, quando a outra escada termina, luz no fim do corredor.
Trrriiiimmm. Ao mesmo tempo, toca a campainha do relógio-despertador colocado na parte de dentro do pequeno balcão da pequena portaria, precisamente quando os ponteiros marcam cinco horas.
Agora caminho mais devagar. - A mulher fica dormindo. Aparentando naturalidade, saio pela porta aberta e, na rua, procuro caminhar numa direção em que eu não possa mais ser visto pelo porteiro sentado atrás do pequeno balcão. - Tá a fim de um programa, bonitão? Nada respondo, apresso o o e só então me dou conta de que estou ao ar livre, caminhando por uma rua estreita ladeada de construções antigas, pequenos prédios com a mesma altura, e de que começa a amanhecer, apesar da escuridão.
A outra mulher sente frio. Depois de alguma hesitação, encaminha-se para a pequena portaria, entra e pergunta: - A Marilda ainda não entrou?
o MIST[RIO
DA
PROSTITUTA JAPON[SA &
MIMI-NASlILOIClII
.~
o quarto
do hotelzinho barato, uma escadinha de três degraus descendo para nele se entrar. Hotel de rendezvaus. A prostituta japonesa vai na minha frente. Conhece o caminho.
O quarto já é pequeno e, partindo do lado da porta, acompanhando os degraus, construíram uma parede que não chega ao alto do teto baixo do pequeno quarto. Dentro do pequeno quarto, essa parede acompanha os três degraus e termina pouco adiante de onde eles terminam. Traçando um cubículo, dentro do já cubículo que é o pequeno quarto, outra parede avança, partindo da parede oposta à parede dos três degraus. Essa parede não chega a se encontrar com o final da parede construída a partir do lado da porta de entrada do pequeno quarto. Um vão sem porta. Essas duas paredes, que não se encontram e não alcançam o teto baixo, formam um cubículo sem portas. Ocupam um pequeno espaço dentro do pequeno quarto do hotelzinho de rendez-vaus, formando um minúsculo banheiro. Diferente do piso do pequeno quarto, piso de tacos de madeira cinza muitas vezes lavado, nunca encerado, o chão do banheiro minúsculo é cimentado, pintado de vermelhão.
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Pelas dimensões do pequeno quarto, só existe uma posição possível para a baixa cama de casal, coberta pela colcha de tecido brilhante, cor vermelha: a cabeceira encostada na parede oposta ao pequeno banheiro. O que facilita - um pouco - a agem é o vão sem porta, que abre um espaço defronte à metade dos pés da baixa cama de casal. Nos dois lados da cama o espaço é um pouco maior, sobra mesmo lugar para uma mesinha-de-cabeceira, que foi colocada no lado diante dos degraus. Do outro lado da cama, não sobrou lugar para a outr,: mesinha-de-cabeceira, que deve ter sido levada para outro quarto de hotelzinho barato. A única janela do pequeno quarto fica no pequeno banheiro, exatamente frontal à abertura sem porta. Pequena janela basculante, vidros pintados com tinta branca fosca grossa. Eu não saberia reconstituir o caminho que nos conduziu da portaria do hotelzinho barato até este pequeno quarto. Muitas vezes trilhadora do labirinto, a prostituta japonesa caminha adiante de miIr pelos caminhos escuros. Por portas fechadas, um longo corredor e5' treito, um pequeno pátio mal iluminado pela noite, uma escadaria qUe sobe à esquerda, depois à direita, outro negro corredor cortado em cru: por outro corredor sem luz, uma negra sala sem portas, talvez uma V2.' randa. Como é escura esta noite sem estrelas! Um corredor de paredes sem portas e a porta do pequeno quarto. Não sei dizer para que: parte do hotelzinho barato dá esta janela basculante. Um olho pode estar à espreita. Deitado na cama, vejo diante L~::: mim, através da abertura sem porta do pequeno banheiro, a janeL basculante com falhas na pintura. Eu coloco a pequena e úmida to~.' lha de ralo tecido sobre os vidros pintados e consigo a privacidade é pequeno quarto do hotel de rendez-vous. A cabeça no edredom tan .... bém coberto com o mesmo tecido brilhante da mesma cor vermelh da colcha. Seguindo sempre adiante, com a chave na mão, a prostituta .1'c ponesa me conduziu pelo labirinto cheirando a mofo. Foi ela a pL meira a entrar no pequeno quarto às escuras e a me alertar: 186
Mesmo na escuridão, suas mãos sabiam onde encontrar o comu~ tador de luz, em forma de pêra, preso ao fio que pende do teto sobre a baixa guarda da cama. Antes, apenas a baça luminosidade atraves~ sando os vidros pintados da janela basculante tomava o pequeno quar~ to. Agora uma pouca luz amarelada, avermelhada, fraca.
Em pé, estendendo as mãos para o alto, eu posso, se quiser, al~ cançar o teto de alvenaria, sem forro, do pequeno quarto. Mas não quero. As paredes, todas as paredes do pequeno quarto e do pequeno ba~ nheiro, são pintadas, até meia altura, de cor de rosa~maravilha. Dali ao teto, a cor é verde~clara, cor de rosa~maravilha novamente no teto. Tinta fosca aguada, manchada, cobrindo não sei quantas pinturas an~ teriores. Já sem roupa, eu estou deitado por cima da colcha de teci~ do brilhante, cor vermelha. Dirijo o meu olhar para a prostituta ja~ ponesa que se lava no pequeno banheiro sem porta.
Não sei se ela fala para mim ou para ela. O chuveiro elétrico fica no espaço do pequeno banheiro visível para mim. Existe, também, uma pequena pia bem embaixo da janela basculante. A prostituta ja~ ponesa se lava utilizando a mangueirinha do chuveiro elétrico. Pas~ sa sabão entre as coxas largas, ajuntadas, e no sexo de pouca penu~ gem. Com a mangueirinha, sem chuveirinho, dirige o jato d'água para retirar o sabão, sem espuma.
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E eu é que sei? Nunca estive antes neste hotel de rendez-vous. Na parte que não posso ver do pequeno banheiro fica o vaso sanitário. Preso por um arame, o rolo de papel higiênico, estufado, molhado pelos respingos do chuveiro. Impossível de usar. Melhor apanhar o rolo que está em cima da mesinha-de-cabeceira, ao lado da cama. A prostituta japonesa já está deitada ao meu lado, na cama, por cima da colcha de tecido brilhante, cor vermelha. Cor de chá, sua pele lisa sem pêlos contrasta com a brancura do meu corpo peludo. Nem moça, nem velha. Não sei dizer. Difícil dizer a idade das mulheres orientais. Uns trinta, talvez? Talvez. Imóvel, silencioso o corpo ao meu lado, como uma fotografia. Não fosse por um lento respirar, eu diria completamente imóveL Contudo, me parece imóvel somente na superfície visíveL Eu diria que por dentro dele existe toda uma mobilidade - tranqüila? Viro o corpo para o corpo nu da prostituta japonesa. Com a mão esquerda, começo a afagar os poucos pêlos pretos macios do seu monte-de-vênus. Subo a mão até os seios. Primeiro acaricio, aperto, poma total, redonda achatada como em todas as mulheres orientais. Depois, só com a ponta dos dedos, acaricio o bico do seio, que sinto enrijecer. Então, beijo, sugo, somente o úmido bico, enquanto minha mão desce, acaricia novamente a parca penugem. Meu dedo busca a greta ainda seca. Por si, sem que ela o toque, meu sexo enrijece. Não estou mais beijando o seio. Eu poderia beijar seu sexo, pequeno traço de poucos pêlos, mas não. Deito sobre ela. Meu sexo encontra seu caminho sem que ela auxilie com a mão. Penetro-a. Não beijo, encosto meu rosto no dela, mordisco sua orelha. Por instantes, não sinto mais o cheiro úmido da colcha de tecido brilhante, cor vermelha. O gozo me vem rápido. Mas permaneço ainda dentro de seu corpo. Quando retiro o meu corpo, é para deitar ao lado dela, e meu travesseiro é o seu seio esquerdo. Ela não disse nem um gemido, nem uma palavra. Se houve algum gemido, na hora do gozo, foi meu, não dela. Não sei o que ela sentiu. Permaneceu, permanece 188
silenciosa e não sei para onde olha. Seu coração bate rápido e descomado. Levanto a cabeça e olho para ela. Inquieto? - Nossa, seu coração está batendo tão esquisito.
-
Verdade?
-
(iÁ.,c?J:
Não demonstrou. Será que ela diz a verdade? Fico só olhando. Eu diria que ela está completamente imóvel. Imóvel somente na superfície visível do corpo cor de chá, pele lisa sem pêlos, suave montede-vênus de parca penugem. Coração batendo forte, ela olha não sei para onde. Quanto tempo ficamos assim, eu não sei dizer.
Agora ela lava o sexo com mais cuidado. Dirige a mangueirinha diretamente para a pequena fenda de pouca penugem. Depois de vestida, pago a ela o preço combinado. Reparo que ela não conta. Mas teria mesmo gozado? Não deu nenhuma demonstração, é difícil dizer numa mulher orientaL Não conta o dinheiro, põe as notas dobradas na bolsa. Eu é quem falo: - Vamos embora? A luz do pequeno quarto fica acesa, a porta aberta. A prostituta japonesa segue ria frente, conhecedora dos caminhos, corredores, escadas, pátios e terraços que levam de volta à portaria do hotelzinho barato.
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o
chinês - é um chinês? - de óculos da portaria nada responde, apenas entrega uma nota amassada à prostituta japonesa. É dinheiro meu, parte do que paguei pelo pequeno quarto. A comissão por ela ter trazido um freguês para este hotel, e não para o da frente, nem para o do lado. Será mesmo que ela sentiu prazer? Uma prostituta? Ou disse aquilo apenas para me agradar, para conquistar um freguês? Para que eu volte outras vezes? Sou limpo, de pouca conversa, não reclamei do quarto, gozei rápido. Um bom freguês. Não é comum uma prostituta sentir prazer com um freguês. Algumas fingem, ela não deu demonstração de nada. Se for verdade que ela gozou, quero possuí-la mais e mais vezes. Estamos fora, na rua em frente à porta de entrada do hotelzinho barato. Eu quero ficar mais tempo com ela: - Escuta.
- Quer tomar alguma coisa? Vamos num barzinho aqui por perto? Antes da resposta, sai sozinha do hotel outra prostituta. Não é japonesa. Tem mais jeito de turca, síria, qualquer coisa assim. Meio velhusca, formas roliças, peitos, barrigas e nádegas querendo romper o vestido justo. Cabelos amarelos, pintados de amarelo. O freguês dela, um velho de camisa florida, tipo havaiana, se demora na portaria discutindo com o chinês de óculos. As duas se conhecem, devem ser muito amigas. Riem, se tocam e falam rapidamente, risos, a voz de uma encobrindo a da outra. Nem dá para entender o que elas conversam e riem, na porta do hotelzinho barato. Mas interrompo: -Vamos?
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Fica para outra vez ...
Riem muito as duas. A prostituta japonesa a a mão no meu rosto. Afaga meu rosto, como uma despedida. Já se afastam as duas. Ainda estendo minha mão aberta.
Um gesto. Penso em alcançá-Ias. Quero segui-Ias, mas elas já tomam um táxi que a pela rua. Entram rindo. Essa foi a última vez que ... O freguês da outra prostituta sai agora do hotel, afobado à cata de um táxi. Sai gesticulando, nervoso, falando sozinho. Parece querer ir embora logo deste lugar. Entra num táxi e some de vista. Eu fico perto da porta do hotel, parado, pensando. Será que ela gozou mesmo? Eu voltarei outras vezes. Caminharei tantas vezes por esta mesma rua, este mesmo bairro de prostituição. Quantas vezes sentirei na boca o gosto oleoso do gim que vendem por aqui. Algumas vezes fumarei haxixe, três ou quatro vezes deitarei num catre e acenderei o cachimbo de ópio. Uma vez comprei cocaína, não para meu uso, mas para conseguir do traficante uma informação que, conseguida, mostrou-se sem proveito. Muitas vezes dormi com outras prostitutas no mesmo pequeno quarto do hotelzinho barato, mas sei que nunca mais verei a prostituta japonesa, nem saberei se ela sentiu prazer comigo naquela noite escura. Às vezes, penso que sim; às vezes, penso que não. Nunca encontrarei uma resposta que me satisfaça.
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MIMI-NASIII-OICIII
-
E você teve medo?
- Oichi, o monge sem orelhas. O jovem noviço, Oi~ chi, pobrezinho, cego, ficou famoso como contador de histórias que contava se acompanhando do biwa. - O que é biwa? - ...uma espécie de violão japonês, instrumento muito antigo ... como vou te explicar? ..
...contava histórias, acompanhando os versos ao som do biwa. Di~ zem que à sua palavra e à sua música todos faziam silêncio e, quan~ do o canto era triste, os olhos não seguravam as lágrimas. Numa noi~ te de inverno, Oichi meditava no jardim do mosteiro quando escuta uma voz dizer: "Ouvimos falar de seu talento como cantador de histórias ... ". "Hai." "...Meus nobres amos sabem de sua fama e ficariam muito honrados se o senhor fosse contar para eles a triste história da batalha de Dan-No-Ura, esta noite." 195
Nesta noite ninguém pode dormir: Lua cheia.
os -
Oichi não pôde recusar o convite. Tomou seu biwa e seguiu os daquela voz desconhecida. Ele era cego de nascença? Sim. Na noite escura não sabia para onde estava sendo levado. Eu li uma vez que os cegos não enxergam tudo preto.
Minha mão, uma nuvem pousada no teu seio, redondo como a Lua.
- O que eles enxergam é uma mancha esbranquiçada. Como na televisão. Já reparou que o preto da televisão nunca é preto, é nuvem branca? Branco-cinza? - Oichi ia seguindo os os. os pesados metálicos, como os de um samurai vestindo sua armadura de guerra. Depois de muito caminhar, bem longe estavam do mosteiro. Quando chegaram, Oichi imaginou que devia ser um lugar bem grande. - Um palácio? - Tudo fazia crer um rico palácio, porque caminharam por várias salas enormes. Apesar do silêncio reinante, Oichi sentia que muita gente estava ali. Ouvia o assobio das sedas dos quimonos. Colocado no centro do salão, começou a evocar com seu canto os tristes versos da batalha de Dan-No-Ura. - Que batalha é essa? - Das guerras do Japão medieval. Foi no século XII: no Ocidente aconteciam as cruzadas; no Japão havia entre os senhores feudais muitas lutas pelo poder. Época de guerra civil (conduz teu cavalo sobre o fio duma espada, oculta-te como puderes no meio das chamas). As
famílias rivais, Taira e Minamoto, disputavam o poder. A luta entre os dois clãs durou quase duzentos anos, banhos de sangue, batalhas 196
incontáveis. Às vezes os Taira dominavam, outras vezes os Minamo~ to venciam. Exército dos Taira estandartes vermelhos como sangue. Exército dos Minamoto estandartes brancos como aço.
-
E como foi a batalha?
- No estreito de Dan~No~Ura, a maior batalha naval que o Ja~ pão assistiu, mais de mil navios em luta. - Quem venceu, quem perdeu? - Os Taira tinham o maior número de navios, mas um senhor feudal, Shigeyoshi, seu aliado, bandeou~se para o lado dos Minamo~ to, levando seus barcos para o inimigo.
O coração vermelho de Shigeyoshi hesitava em se ar para os Minamo to, muitas obrigações ele devia aos Taira.
A batalha seguia feroz. O fogo, a fumaça dos canhões, o assobio metálico das espadas nos combates das abordagens. Os Taira ainda mantinham a esperança de vitória. Nuvens, a princípio - quando viram o branco flutuando nos céus, pensaram em nuvens. Quando per~ ceberam que o branco estandarte do inimigo tremulava nos mastros de seus próprios navios, veio a certeza da derrota. - Acende o meu cigarro. - O choro, o canto fúnebre tomou conta dos navios dos Taira. Pela vergonha da derrota, para não cair nas mãos do inimigo, seus guerreiros se atiram nas águas, afundando com o peso das armaduras. Os comandantes se amarram nas âncoras de seus barcos e soltam as correntes. Os que não têm coragem de cometer suicídio são mortos pelos companheiros de armas. Os tombadilhos das embarcações tor~ 197
nam-se rubros de sangue. Os marinheiros, os servos, os cortesãos, todos em lágrimas, buscam a morte. Sem ter quem as governe, as velas dos navios explodem ao vento. - Não sobrou ninguém? Teu corpo nu Agora flutua no lençol transparente como água Sal.
- Nem mesmo o menino imperador, Antoku-Tennô, de sete anos. A avó tomou-o nos braços e com ele se encaminhou para a amurada ... -
Como teu corpo é bom.
Aonde me levas, vovó? Pequeno Antoku- Tennô, é pequeno como um
O Japão
grão de arroz e agora é um imenso vale de miséria Mais abaixo das ondas há outro país onde não existe a tristeza É para lá que te levo.
- ...Com o menino nos braços, a avó se atira no mar tinto de sangue e salgado de lágrimas. - Teu corpo é água onde me sustento. - Quando Oichi termina de contar os últimos versos, só escuta o silêncio de lágrimas pressentidas. Depois de muito silêncio, a voz de uma velha aia: "De tua fama sabíamos, Oichi, da beleza de teu canto sequer podíamos suspeitar. Em todo o Japão não existe artista tão perfeito. Meu amo pede que, durante o tempo em que ele permanecer aqui, por mais seis noites, venhas repetir o canto da batalha de Dan-No-Ura. O mesmo samurai que te trouxe aqui esta noite irá te 198
pegar. Mas meu amo viaja em segredo e ordena que não contes nada a ninguém. Nunca ... E, agora, és livre para partir". Quando Oichi voltou ao templo, pela manhã, encontrou os monges aflitos com sua ausência. O abade o interrogou, mas ele respondeu com reticências e nada revelou sobre onde estivera. Exausto, dormiu o dia inteiro, esquecido de suas obrigações. Sobre o sino do templo repousa e dorme a borboleta noturna.
Na noite seguinte, sem que ninguém veja, o mesmo samurai vem buscar Oichi, e novamente ele canta a batalha de Dan-No-Ura para a silenciosa platéia. O abade, notando que Oichi não está em sua cela, manda que os monges o procurem. Uma longa noite de buscas. Já pela madrugada, voltando para o templo, os monges escutam os acordes do biwa e a voz de Oichi. Primeira neve. Bastante para vergar as folhas dos junquilhos .
Aterrorizados, os monges vêem Oichi, sem sentir a neve que começava a cair, sentado diante da tumba em memória do pequeno imperador Antoku-Tennô, no cemitério de Amidaji, cantar exaltado a história da derrota dos Taira. Por sobre as outras tumbas, as chamas espectrais dos fogos-fátuos, como espectadoras do canto triste. No cemitério de Amidaji estão sepultados os derrotados da batalha de DanNo-Ura. Envolvido em seu cantar, Oichi não parece sentir a neve, nem ouvir os gritos dos monges, que têm de arrancá-Io do lugar onde está. Oichi reclama: Como ousam interromper meu canto para tão nobres senhores?!". Arrastado de volta ao templo, Oichi é levado à presença do abade, que lhe revela a verdade: "Oichi, pobre Oichi, corres grande peri199
go. Aproveitando~se de tua cegueira, os fantasmas dos mortos na ba~ talha de Dan~No~Ura lançaram encantamentos sobre ti. Te enfeitiça~ ram. Por duas noites, levaste teu canto para os mortos e eles agora são donos de ti. Ao final da sétima noite, eles te matarão, despedaçarão teu corpo e tu arás a penar por toda a eternidade, como um fan~ tasma, escravo dos demônios". Dos olhos cegos de Oichi correm lágrimas de medo. O abade pros~ segue: "Precisamos quebrar o encantamento. Esta noite, não pode~ mos ficar no templo para te vigiar, temos de atender um serviço re~ ligioso na aldeia. Mas, antes de ir, protegerei teu corpo com os textos de Buda, que te farão invisível aos demônios". Os monges tiram a roupa de Oichi e, no corpo nu, o abade escreve com pincel os sagrados textos do Prajna- Paramita. Tudo é mutável, tudo aparece e desaparece; só poderá haver a bem~aventurada
paz
quando se puder escapar da agonia da vida e da morte.
Todo o corpo de Oichi foi coberto com as palavras de Buda, que o tornariam invisível aos demônios. Os monges partiram. Sentindo~ se protegido, Oichi sentou~se no pórtico do templo, o biwa ao seu lado, e esperou meditando sobre a vida e a morte. Esta estrada sem ninguém nela. Escuridão de outono.
os pesados, da escuridão da noite surge a voz profunda, metálica, chamando: "Oichi! Oichi!". Não obtém resposta: "Oichi! Oi~ chi!". A voz, agora, é de ira, de ódio: "Oichi! Oichi!". A mudez de Oichi como resposta, o samurai-fantasma não encontra o que veio 200
buscar: "Vejo um biwa abandonado e não encontro o trovador. Muitas vezes chamei Oichi e ele não me respondeu, não está aqui, conforme o combinado. Vejo somente suas orelhas e vou levá-Ias para provar ao meu amo que aqui estive cumprindo minha missão". As mãos enluvadas de ferro do fantasma agarram as orelhas de Oichi e puxam ferozmente. O sangue escorre. Oichi reza para não gritar de dor e revelar sua presença. Suas orelhas são arrancadas e o samurai-fantasma sai carregando-as, seus os perdendo-se na noite em direção ao cemitério de Amidaji.
Ao cobrir o corpo de Oichi com os textos sagrados, o abade esqueceu das orelhas, foi só o que o fantasma viu e carregou para o mundo dos mortos: duas orelhas. Quando os monges voltaram, encontram Oichi se esvaindo em sangue, mas vivo. Foi medicado e se salvou, ficou livre para sempre dos demônios. Tornou-se monge e viveu ain201
da muitos anos para poder cantar em versos sua desventura. Desde aquela noite, o cantador cego ficou conhecido como Mimi~Nashi~Oi~ chi, Oichi, o Sem Orelhas. - E você teve medo? - Não, medo não. Eu era muito pequena quando minha avó con~ tou a história de Mimi~Nashi~Oichi, naquela noite chuvosa. Medo eu não tive, mas me deu uma tristeza grande. Ah, o ado. O tempo onde se acumularam os dias lentos - Medo não tive, tristeza. Tristeza grande, era uma noite tão fria, que acho que até chorei, lágrimas. Orvalho deste mundo orvalho deste mundo. Sim, sem dúvida, e no entanto ...
202
13
mistéri<.)s
+
() mistéri<.) da p<.)rta aberta
para quem foi Marlene e para Josely Vianna Baptista e Cláudio Lacerda
Uma mentira minha vale por dez verdades tuas. Dito por um criminoso no programa do Algaci Túlio
SUMÁRIO
o mistério
da porta aberta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 211
Mistério números
219
Mercúrio mistério. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 227 Os fantasmas do fundo de quintal-
Um mistério
.....
233
O mistério teu, Sônia
241
O mistério da Sonâmbula
247
Mistério do menino morto
253
O mistério do gato preto e da gata gorda . . . . . . . . . . . .. 259 O misterioso homem-macaco -
Como tudo começou
.. 265
Mistério mágico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 273 A cadeira do diabo - Um mistério
281
Um mistério no trem-fantasma
293
Mistério Sapho -
305
O amor entre as mulheres
O mistério dos sinais da agem de Curitiba
DELE
pela cidade 317
() mistério da porta aberta
...na verdade entreaberta. Mas muito ou pouco aberta uma porta, fechada ela não está. Portanto, está aberta. Sendo assim, uma porta entreaberta sempre será uma porta aberta. Observe pelo tempo que julgar necessário a porta mostrada abaixo:
Pode-se argumentar que uma porta aberta não apresenta mistério algum, nenhuma visão de perigo que nos possa causar medo, ou mesmo pânico. Através de uma porta aberta, por menor que seja a abertura, sempre conseguiremos ver o interior para o qual ela se abre. Se ali percebermos qualquer coisa estranha, simplesmente não entraremos. Até certo ponto essa argumentação é válida, porém sem muita consistência. Uma porta pode estar aberta para um recinto às escuras. Nada podemos ver em seu interior. O que nos espera lá dentro? Sentiremos medo, pois a escuridão sempre nos sugere um mistério que precisa ser aclarado, antes de criarmos a necessária coragem para entrar. Às vezes um mistério exasperadamente simples como a localização dos móveis. No escuro desconhecido nunca sabemos onde se encontram as cadeiras, as poltronas, as mesinhas de centro e podemos tropeçar nelas, nos machucando. Nem mesmo num recinto bastante conhecido ousamos penetrar sem antes apertar o comutador da luz. Outra hipótese: a porta se abre para um ambiente iluminado. Vi213
sível uma ampla sala muito bem mobiliada. Sofás, poltronas, aparador, mesa de centro, uma pequena lareira de mármore, grandes vasos com plantas, tapetes pelo chão brilhante; nas paredes, em grandes molduras douradas, quadros representando paisagens, e nos janelões, cortinas de veludo. Bem ao fundo, junto à lareira, apoiado em suas patas dianteiras se posta um enorme cão, um buldogue, animal conhecido por sua ferocidade - em inglês bull-dogsignifica cão-touro. Como ele nos receberá quando entrarmos na sala? Avançará sobre nós e seremos estraçalhados por suas presas afiadas, sem tempo de fugir? Temos medo. Porém, talvez não seja um cão de carne, sangue e ossos. Talvez seja uma dessas estátuas de porcelana habilmente pintadas, reproduzindo com fidelidade a imagem do animal. A riqueza do mobiliário, a imobilidade pétrea do cão, tudo nos leva a crer que se trata de um expensivo objeto decorativo. E se for mesmo um cão feroz, imóvel, vigilante, pronto para atacar o primeiro estranho que ouse penetrar na sala? É um mistério que precisaremos resolver se quisermos entrar sem riscos na sala aconchegada. Eu estou sentado numa cadeira contemplando a porta aberta (entreaberta) para a escuridão. Vejo claramente as três velas. Uma na parte de baixo da porta, com sua chama derivando para a esquerda. Outra no meio, mais ou menos na altura da maçaneta, com a chama queimando normal para o alto. Na parte de cima, perto da moldura, a terceira vela, com a chama levemente inclinada para a direita - adentrando, sem contudo aclarar a escuridão do local desconhecido para onde a porta se entreabre. Atrás de mim outra porta que dá para a rua. Esta, sim, fechada. Me assusto com barulhos fortes e continuados na porta da rua às minhas costas. Barulhos, assim como se alguém estivesse forçando a porta para invadir a casa, com sabe-se lá qual intenção. Como é noite e estou sozinho nesta casa, é possível que seja alguém querendo me assaltar, e até mesmo tirar minha vida. Não tenho inimigos. Não tenho inimigos? Nestes tempos de agora nunca se sabe do que as pessoas são capazes. O barulho ritmado da folha da porta da rua chocando-se violentamente contra o caixilho me assusta, e me faz medo. Barulho cadenciado como o soar de tambores. A porta da rua fica exatamente defronte da porta das três velas. Entre as duas, uma distância de quatro a cinco metros. Estou sentado a meio caminho e, neste ponto do vestíbulo da casa, sinto uma forte corrente de ar circulando entre as duas portas. Por certo, a força desse 214
vento é que faz a porta da rua sacudir violentamente, dando a impressão de alguém tentando arrombá-Ia. Quando me apercebo disso, tenho uma explicação racional - científica, até - para os estranhos barulhos. Desfaz-se este mistério e perco o medo dos golpes. Apesar de ser difícil alguém se mostrar calmo com esse soar de atabaques, perco o medo. Mas e a porta das três velas? A descoberta de uma forte corrente de ar, vinda da porta entreaberta, aumenta para mim seu mistério. Se o sopro gelado oriundo da escuridão a por mim para se chocar violento contra a porta da rua, logicamente as chamas das três velas deveriam estar todas voltadas em minha direção ou, então, apagadas pela força do vento. Porém não é isso o que acontece. Observe novamente as três chamas: uma se volta para a esquerda, outra para o alto, outra para a direita. Não comprendo. E tenho medo daquilo que não posso compreender. Desde tempos imemoriais, a colocação de portas obedece a um princípio imutável: as portas sempre se abrem para o lado de dentro! A porta de uma casa sempre se abre para seu interior, nunca para a rua. A de um quarto nunca se abre para o corredor, mas sempre para dentro. É como se, aberta uma porta, ela estivesse indicando a alguém indeciso qual o rumo a tomar. Ou estivesse dando a ordem: entre! A exceção a essa regra universalmente estabelecida se encontra no cinema, no teatro e na televisão, artes da representação. Para esconder o fundo, evitando a construção de novos cenários, ou para facilitar o deslocamento dos atores e das câmeras, muitas vezes as portas dos cenários se abrem para fora. Isso somente no mundo da fantasia, na vida imaginária. A vida real, contudo, segue a regra estabelecida: as portas se abrem sempre para o lado de dentro, num convite para entrarmos. Tenho medo de atravessar a porta das três velas e penetrar na escuridão. O forte sopro de ar vindo da porta das três velas me provoca calafrios. Não é normal. Como também não é normal as três chamas tomarem direções diferentes. Todas deveriam estar queimando para o alto. Quando não há vento, a chama de uma vela queima para cima, sempre. E não poderia haver correntes de ar neste vestíbulo, a porta da rua está fechada à chave; as vidraças dajanela estão fechadas, e também as venezianas do lado de fora, e as cortinas no interior. 215
Quando se planeja a construção de uma casa, evita-se que janelas e portas se localizem em pontos que possam formar correntes de ar, o que afugentaria possíveis inquilinos; isso não é segredo para ninguém. O mistério é como três correntes de ar vindas do mesmo lugar - a escuridão atrás da porta entreaberta - podem tomar três direções distintas. Talvez esse mistério das três chamas possa ser explicado por alguma lei física que eu e você desconhecemos. Algo relacionado com a pressão atmosférica, ou com os gases gerados pela combustão das velas. Não sei. Não estamos, nem eu nem você, familiarizados com os mistérios da física. A própria posição das velas flutuando no ar já é um mistério em si. A vela de baixo parece ser a única assentada. Porém uma observação mais atenta nos mostra que ela se eleva uns dois ou três dedos acima do chão. O que sustém as três velas no ar? Certamente, nenhuma lei física explica isso. Como estão todas quase encostadas na folha direita da porta, podemos até pensar em algum truque. Imagino que um estilete de ferro ou arame grosso fixado no centro da vela funcionaria como haste. Escondida atrás da folha direita da porta, uma pessoa de mão firme sustentaria a haste dando-nos a ilusão de que a vela se mantém flutuando no ar. Nem precisaria ter alguém segurando: um prego afixado na sambladura da porta serviria como haste. É lógico que prego, arame ou estilete deveriam estar camuflados com tinta fosca preta, para não se tornarem visíveis e se confundirem com a escuridão. É de se notar que em circos, teatros ou em qualquer casa de espetáculos, os números de mágica são apresentados sempre com uma cortina preta ou de cor escura ao fundo. Isso muito ajuda a dissimular a aparelhagem e os fios utilizados nos truques. Um truque mágico pressupõe a existência de alguém capaz de imaginá-Io e executá-Io. Caso haja algum truque com as três velas, duas perguntas surgem. Quem? Por quê? Para respondermos a primeira, precisaríamos ter a resposta da segunda: por quê? Me assustar? Fazer alguma brama comigo? Induzir-me a participar involuntariamente de alguma cerimônia mágica? Etc. etc. etc.? E para respondermos a segunda pergunta, seria preciso ter a resposta da primeira. Algum amigo faria essa burla de mau gosto comigo? Para me assustar, um inimigo certamente arquitetaria algo semelhante - um susto é capaz de matar quem sofra do coração. Sem dúvida nenhuma, um estranho ligado a alguma seita ou religião aleivosa teria a ousadia de me enredar num maligno ritual 216
à luz de velas. Em sua mente doentia, um louco encontraria razões suficientes para invadir minha casa e armar este estranho altar. Seja o que for, me parece que o propósito maior é impedir ou retardar a minha agem pela porta aberta (entreaberta). Assim, nem eu nem ninguém ousaria entrar. E se eu ousar? Conseguirei ar com vida pela porta das três velas? E o que encontrarei na escuridão lá dentro? Preciso de respostas para essas perguntas. Outra coisa me inquieta. Já estou aqui há algum tempo e o tamanho das velas mantém-se o mesmo. As chamas não consomem as velas. Talvez haja uma explicação bem simples para isso: são velas artificiais. Tubos metálicos sem pavio, pintados de branco, contendo o gás que alimenta as chamas. Velas artificiais, como se usam agora nos velórios. Mas e se não forem? Não sinto cheiro de gás. Por vezes, parece-me sentir um cheiro agridoce, como de ervas se queimando. Incenso, talvez, e o cheiro quente, enjoativo, persistente, de velas se queimando. As três velas são o bastante para provocar este odor característico de câmara mortuária. Como explicar, porém, o pegajoso cheiro de ervas queimando? Durante o tempo que estou aqui não acendi nenhum cigarro. Desnecessário olhar à minha volta para ver que a única coisa em combustão, nesta parte da casa, são as três velas. Talvez da escuridão atrás da porta entreaberta se origine esse cheiro nauseante. Sei, e você sabe, que em algumas cerimônias religiosas primitivas costumam queimar incenso e estranhas ervas. A fumaça embriagante e fétida assim expelida força o transe místico dos celebrantes e apressa sua comunicação com os espíritos. Mas quem e com qual intenção poderia estar oficiando um ritual mágico na escuridão por trás da porta entreaberta? E eu? Como posso exorcizar o desconhecido? O vento parou de repente. Não posso afirmar quando, assim como não sei dizer quando começou. Velas queimando ajudam a medir o tempo pelo seu lento mas inexorável desgaste. Porém as três velas acesas à minha frente mantêm-se intactas. É como se o tempo não asse. O vento parou de repente, mas isso não interfere na posição das chamas, que continuam queimando em diferentes direções. Sinto seu calor tomando conta desta peça da casa. Sinto-o em torno de mim, me abraçando entre meu corpo e minhas roupas. Pegajoso como o calor abafado que sentimos em ambientes fechados com velas acesas, calor de decomposição. 217
Contudo, não estou num velório. Tampouco me encontro num templo de cultos primitivos. Esta é minha casa, na qual eu quis entrar e entrei. Que sempre encontro ajuizada, sem mistérios. Cuja chave trago sempre no bolso. Abri a porta da rua sabendo o que ia encontrar, a casa que me acolhe sempre. A mesma disposição das peças, os mesmos móveis, os mesmos ambientes familiares dos quais faço parte. De dia, de noite, à hora que eu chegasse e abrisse a porta da rua esta casa me acolhia. Sem novidades, sempre a mesma, à minha espera. Inanimada, tomando vida somente com a minha chegada. Não foi o que aconteceu hoje. Ao abrir a porta e adentrar neste vestíbulo, a casa me recebeu como a um estranho. Quando me deparei com a porta entreaberta das três velas, cheguei a dar três os para trás, de volta à rua. E olhei bem para confirmar se eu estava na mesma rua, na mesma casa. Somente eu carrego a chave da casa. Ninguém, ninguém poderia ter entrado e armado esse altar, truque, broma ou seja lá o for esta invasão das três velas ardentes. No entanto aí está, dentro da minha casa, esse mistério. E eu tenho de resolvê-Io. Você não pode me ajudar. Pode? Memória da infância. Se eu me levantar desta cadeira, posso jazer como jazia quando menino: umedecer com a língua a ponta do polegar e do indicador e, com eles, apertar as chamas, apagando-as. Ou, sem dar atenção às velas, posso penetrar na escuridão e buscar o comutador da luz, do lado direito - gesto tantas vezes repetido.
Com um pontapé posso abrir a porta entreaberta, arrombando-a, derrubando pelo chão as velas e tudo o mais que tiver. Posso, então, acender o isqueiro que trago no bolso e aclarar a escuridão. Muitas coisas posso fazer para resolver este mistério idiota. Posso e devo. Esta é a minha casa. Não é uma casa de loucos, barraca de feira, tenda de culto ou coisa que o valha. Nem sou eu um alienado espectador, basbaque deslumbrado, aleijado. Sou o que sou. Eu sou eu. Posso, devo e vou fazer alguma coisa. Tenho. Para isso, preciso me levantar desta cadeira imóvel. Para isso, devo largar a caneta e o papel. Devo deixar de me comunicar com você que, já vi, em nada pode me ajudar. Sozinho tenho que aclarar este mistério. Depois, sim, posso retomar a caneta e o papel, e descrever para você aquilo que aconteceu, quando eu me levantar desta cadeira e me encaminhar em direção da porta entreaberta das três velas. Depois. 218
Mistério ~ numeros
1 2 3 4
é o estábulo santo deJerusalém onde Jesus Cristo nasceu são as duas tábuas em que Moisés recebeu a lei que nos governa são os três cravos que cravaram Jesus Cristo na cruz são os quatro evangelhos: São João, São Mateus, São Marcos e São
Lucas 5 são 6 são 7 são jas da Ásia 8 são 9 são 10 são
as cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo os primeiros selos que o Cordeiro abriu no Apocalipse as sete cartas que, no Apocalipse, São João escreveu às sete igreas oito primeiras epístolas de São João Apóstolo os nove coros de anjos que para o céu subiram os dez mandamentos da Lei de Deus
11 são as onze mil virgens que desfrutam a companhia de Nosso Senhor Jesus Cristo
12 eu não contei direito mas me parece que eram umas doze pessoas que se postavam diante do altar de Nossa Senhora das Dores, que fica do lado direito, logo que se entra na igreja. Seriam dez ou doze pessoas diante do altar. Umas são mulheres, outras são homens e três ou quatro são crianças. Nem todas estão olhando para a imagem que encima o altar, em tamanho natural, de Nossa Senhora das Dores. Umas olham para cima, outras para baixo, algumas olham para o lado. Umas trazem os olhos abertos, algumas entreabertos, outras mantêm os olhos fechados. Umas entoam cantos alegres, outras rezam tristes e algumas gemem e soluçam. Lá no alto, em cima do altar, uma mulher está abraçada à imagem em tamanho natural de Nossa Senhora das Dores. É uma mulher nem muito moça, nem muito velha. Como as outras mulheres do campo nesta região do Paraná, traja um vestido comprido de tecido grosseiro acinzentado, com gola, abotoado. Usa grossas meias longas de lã cinza, e calça rústicas botinas de couro cru para homens. Na cabeça tem como touca um pano branco que esconde a cor de seus cabelos. Agarrada firme na imagem de Nossa Senhora das Dores, a mulher. Corpo colado com o da santa, abraça-a para não cair, pernas trançadas na parte inferior da imagem. Sem soltar as mãos, agarra-se firme não só para não cair, como também para demonstrar toda a sua fé, respeito e procura de intimidade com Nossa Senhora das Dores. Beija repetidas vezes a face da imagem. Reza a santa reza: Abraçada estou em vós, Maria Santíssima, Virgem Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amparada estou em vós, Nossa Senhora das Dores, que tivestes o vosso 221
puro coração transado sete vezes por sete espadas. Sete dores mortificaram vosso corpo virgem e santo. Sete vezes vos peço, Nossa Senhora das Dores, guardai-me das investidas de Satanás. Guardai-me de seus agentes, visíveis ou invisíveis, que, em qualquer lugar, em qualquer hora do dia ou da noite, possam atentar em causarme mal, em minha pessoa, em meus parentes ou em meus bens. Em aflição vos peço: Vigiai minha casa, protegei-me, a mim e à minha família. Imploro vossa proteção contra quaisquer maleJícios, bruxedos, invocações, nigromancias, bruxos ou bruxas e adivinhos, homens e mulheres que sejam. Em meu socorro vinde, ó minha protetora
Eu da cena me desinteressei e Em meu auxílio vinde, ó Rainha dos Anjos
vou caminhando
em direção ao altar central
Em minha defesa acorrei, ó Esposa de Deus
desta igreja bastante grande e suntuosa demais para uma cidadezinha do interior como esta. Há bastante gente nos bancos, uns sentados, outros ajoelhados e alguns em pé. Atravesso por uma fileira vazia e chego ao corredor central. Apesar de não ser dessas coisas, em sinal de respeito faço o sinalda-cruz e vou me encaminhando para o altar-mar. Nem precisava ter feito o sinal-da-cruz, pois ninguém aqui parece se interessar pelo que sou e pelo que faço. Perto dos primeiros bancos, no espaço em frente do altar-mar, se eleva um caixão de defunto apoiado sobre um estrado de madeira que não se vê, encoberto que está por panos roxos. É caixão de certo luxo, madeira escura envernizada, aparadores de brilhante metal prateado. A tampa de madeira entalhada está apoiada num dos cantos do cadafalso, que fica ladeado por quatro candelabros de prata e tem na cabeceira um grande crucifixo também de prata. Me aproximo curioso para olhar o morto, que, pelo aparato ao seu redor, parece ter sido pessoa rica e influente. Em torno do esquife, algumas pessoas, circunspectas, pranteiam o falecido. Chego mais perto e ergo a cabeça para ver melhor. Pela roupa o defunto era algum tipo de militar, veste o que parece ser uma espécie de uniforme, não dá para perceber direito, tal a quantidade de flores que cobrem seu corpo, em meio a panos roxos e tecidos rendados nas paredes internas do caixão. Olhando bem, não me parece ser uma pessoa que está ali sendo velada, parece um boneco. Cabeça branca e redonda de pano branco, sem orelhas nem marcas de olhos e nariz. Apenas uma peru222
ca encanecida dá alguma aparência humana a essa cabeça. Saindo das mangas do uniforme, duas luvas brancas pousadas no ventre do defunto. Duas luvas brancas, dedos entrecruzados, tresados por um rosário de contas pretas. Pode-se presumir que não seriam mãos que enchem as luvas, pois uns dedos são mais grossos que os outros, e calombos irregulares nas mãos revelam um mal executado enchimento com algodão, serragem ou outro material qualquer. É de muito respeito a atitude das pessoas que, em pé, velam em torno do caixão. Algumas rezam parecendo puxar um terço em voz baixa. Desde que entrei nesta igreja, ninguém parece ter tomado conhecimento de minha pessoa. Vagarosamente, caminhando com muita dificuldade, amparado por dois homens que suponho serem seus filhos, um velho de cor cinza se aproxima do caixão. Depois de alguns instantes parado, como que para recuperar o fôlego, o velho põe as mãos sobre as daquele que está no caixão e com voz rouquenha, doentia, quase inaudível, inicia uma oração: Já que estás partindo para outro mundo, mundo das sombras, sem retorno, já que estás indo embora para sempre, leva contigo esta minha doença, este meu câncer que por dentro me corroe. Leva contigo para que eu delefique livre e nunca mais volte a sofrer com ele ou com outra doença parecida.
O esforço para dizer essas poucas palavras foi muito para o velho, e seus filhos têm de arrastá-lo para que ele se deixe cair no banco mais próximo e ali repouse ofegante. Começo a achar tudo isso meio sem sentido e até engraçado, esse velho doente pedir a um defunto, que nem sei se é mesmo um defunto, para que leve aos céus ou infernos seu câncer, doença que me parece vai matá-lo logo logo. Tenho vontade de rir. - Vivente ... mais respeito ... Uma espada aponta em minha direção. - Está zombando de coisa séria! Ameaçador, um anjo aponta sua espada dourada contra mim. - Este é um lugar sagrado! É uma menina de cabelo comprido e loiro, túnica longa e branca que deixa à mostra apenas seus pequenos pés descalços. Tem nas costas duas asas de papelão com penas brancas coladas. A espada que aponta para mim também deve ser de papelão recoberto com papel laminado dourado. - Não se deve zombar daquilo que acontece em solo sagrado! Muito loira de olhos bem azuis, a menina-anjo. Batom vermelho 223
carregado nos lábios finos. No rosto, gotas de purpurina vermelha que rebrilham à luz bruxuleante das velas. As sobrancelhas e os cílios fortemente marcados de preto e sombra verde em torno dos olhos azuis cor do céu. A túnica é de diáfano tecido acetinado e quase antevejo, na pequena elevação, os róseos biquinhos de seus peitinhos. Como as dos seus pés, as unhas da mão que empunham a espada estão pintadas de vermelho vivo. Há dias que estou de viagem pelo interior, longe de casa desde ontem nesta cidade. Não sou casado e mesmo na capital, onde moro, não tenho companheira fixa. Há dias que estou sem mulher. Talvez seja por isso, talvez pelo calor aqui dentro, não sei explicar bem por que mas a visão da menina-anjo me excita. Sinto desejos por ela, a espada toma então outro rumo. Deixa de apontar para mim, conduzida pela mão do anjo movimenta-se lentamente em direção à sacristia. Pela porta da sacristia surge um padre e se encaminha para onde estou. É um padre jovem, todo paramentado de veste litúrgica branca e dourada, como se fosse rezar uma missa imponente. Compenetrado, dirige-se a mim sem cuidados: -Aqui são todos bem-vindos ... As portas da Casa de Deus têm de estar sempre abertas a todos ... A menina-anjo se desfaz de sua expressão séria e sorri. - ...mas existem coisas que não gostamos. Que ofendem ao Senhor Nosso Deus ... Sei onde ele quer chegar e poupo suas palavras: - Eu estava mesmo de saída. - Em outra ocasião o senhor será bem-vindo aqui. - Com sua licença, padre. E me afasto caminhando pelo tapete vermelho do corredor central em direção à porta de entrada. Silêncio Silêncio Olhai o Sacrário
O canto do coro da igreja vem lá do alto. Silêncio Silêncio Olhai o Sacrário
A menina-anjo me segue, talvez para ver se estou mesmo indo embora. Silêncio Silêncio Olhai o Sacrário 224
A mulher continua pendurada Dores.
na imagem de Nossa Senhora das
Silêncio Silêncio Olhai o Sacrário É a menina-anjo quem fecha as pesadas portas de madeira escura às minhas costas. - Uma esmolinha pelo amor de Deus! Apesar da noite escura cobrindo a praça deserta, um mendigo estende o chapéu para mim na escadaria da igreja. Procuro no bolso uma moeda ou nota de menor valor para dar de esmola. Acabo encontrando a nota fiscal de uma com pra que fiz na farmácia - N ovalgina para uma dor de cabeça que eu estava - e jogo no chapéu do mendigo: além de aleijado das pernas, ele é cego. - Deus lhe pague. , Com poucos os chego na pensão onde me hospedo. E a única da cidade, modesta construção térrea de madeira. Procuro pelo dono, que não está na portaria. Onde andará? Se quiser, posso apanhar a chave do meu quarto pendurada no quadro. Número nove, todas as doze chaves dos doze quartos estão no quadro. Sou o único hóspede. Posso pegar minha chave, não preciso esperar o dono da pensão. Nem mesmo preciso pedir que ele me acorde um pouco antes das seis, quando o único posto da cidade estará aberto e terei gasolina para seguir viagem. Não vai ser preciso, a sujeira, os mosquitos, o calor e o abafamento do quarto não me deixarão dormir direito e estarei acordado bem antes das seis. Não preciso esperar o dono, não mesmo, preciso talvez é ter alguém com quem conversar. Ele surge da porta que dá para a área interna, vem ajeitando as calças. Com toda a certeza estava na privada, na casinha de madeira no pátio interno, no migué, como se costuma dizer. É um velho gordo sem dentes, arrasta uma perna. Vem sorrindo - está sempre sorrindo - como se fosse muito engraçado aliviar-se no meio da noite na privada escura e suja no meio do negro pátio. - Posso pegar minha chave? E dá para o senhor me acordar amanhã às cinco e meia? O velho responde como se estivesse zombando de mim, parece não levar muito a sério o que diz: - A essa hora ainda não temos café feito. A mocinha só chega depois das seis. - Tem importância não, tomo na estrada. 225
Estou com a chave do quarto na mão, mas nem penso em arredar o pé dali. Ainda com jeito de zombaria, o velho me pergunta: - Esteve eando pela nossa bela cidade? Diz isso como quem diz: Então andou vendo que bela porcaria que é este buraco? - É, estive dando uma volta. Vi a igreja grande que vocês têm aqui,
muito bonita. - Acho uma feiúra, desperdício de dinheiro numa construção daquelas: só para entronchar o cu dos padres. E ri sem dentes, satisfeito com a grossura que disse, e segue falando: - Porcaria duma igreja numa cidade que nem hospital tem, se alguém fica doente tem que andar trinta quilômetros até achar um médico. - É, sei lá, entrei porque não tinha outro lugar para ir. O velho perde o ar de gozação, não está mais achando graça: - O senhor entrou na igreja?
-É.
Fica me olhando sério por algum tempo: - Então o senhor entrou na nossa igreja?! Quer saber duma coisa? Me olha fixo: - Deus ... Deus, nós sabemos, é uno e indivisível. Mas também é onipresente. Está em toda parte, em todos os lugares ao mesmo tempo, quieto sem dizer nada. Até mesmo aqui e agora nesta nossa conversa, ele está aqui nos escutando. Mas ... e o Diabo? Onde fica o tempo todo? Onde encontrar o Diabo? Demoro bastante para responder: - É, não sei não. E o senhor sabe? - Também não, acho que ninguém sabe.
226
Mercúrio . ". mlsterlo
Em setembro de 1879, irmã Eglantine, do Pensionnat des Religieuses du Sacré-Coeur de jésus, em Bois L'Evêque, Liege, Bélgica, recebeu o livro Pierre et Metaux, um moderno tratado escrito pelo professor Arthur Mangin, químico renomado. No livro, irmã Eglantine reencontrou conceitos que não só conhecia, como já transmitira às suas alunas durante o transcorrer de longos anos de educadora Saudações, ó Rei dos Metais, objeto de culto servil de uns e do desprezo suspeito de outros. Ouro, o metal o mais brilhante, o mais pesado e o mais imutável entre todos os metais. O ouro não é A RIQUEZA, mas, incontestavelmente, é UMA RIQUEZA. E não se pode transferir a qualquer outro metal o honorável papel de representar, de medir e de simbolizar o VALOR irmã Eglantine bem compreendeu que o autor aqui se refe-
ria somente ao valor econômico e não aos valores morais. Pacientemente, ou por cima de informações bastante óbvias para ela, e mesmo para suas alunas Ordinariamente, o ouro é um metal opaco e amarelo porém não pôde deixar de se irar quando leu o que muita gente não sabe é que reduzido a lâminas extremamente delgadas o ouro torna-se transparente, verde por propagação e vermelho por reflexão sentiu vontade de ter
nas mãos uma fina folha de ouro para ver se realmente ela tomaria a cor verde, ali no jardim do pensionato de verde relvado e árvores com ramagens verdes-cinza, naquele início de outono. Pensou no prazer que sentiria ao levantar entre os dedos a fina placa de ouro e, através dela, observar o esmaecido sol da tarde para sentir a transparência do metal e vê-lo enrubescer como um rubi e não é nada estranho que um metal tão precioso como o ouro tenha sido objeto de experiências as mais perseverantes por parte dos alquimistas, que sempre sejactaram de possuir o poder de criá-lo em seus laboratórios e com ele obter uma panacéia universal o assunto interessava sobremaneira à irmã Eglanti-
ne, que, por segundos, suspendeu a leitura e pensativa deitou os olhos no pátio deserto ao seu redor: certamente não era este um tema para levar ao conhecimento de suas alunas pour les médecins arabes e os adeptos na Idade Média, o ouro ou o SOL possuíam propriedades sobrenaturais. Com o ouro fabricavam amuletos para fazer voltar a alegria aos melancólicos, e preservativos contra a lepra. A simples imersão do metal vermelho em brasa nas tisanas era o suficiente para transformá-las em fortificante peitoral. Para restaurar os doentes esgotados, eles prescreviam o famoso Bouillon d 'Or, que consistia em cozinhar uma moeda de 1 ducado de ouro juntamente com uma galinha velha, ou um galo velho. Ou, simplesmente, polvilhavam os alimentos dos enfermos com pó de ouro pequenas liberdades consentidas que irmã 229
Eglantine se acha no direito de tomar, depois de tantos anos servindo a Deus no Pensionnat des Religeuses du Sacré-Coeur deJésus: antes de dormir, mesmo ada a hora de se recolher, toma chocolate com leite na cozinha deserta. A irmã despenseira lhe deixou a chocolateira esquentando sobre a adormecida chapa brilhante do grande fogão a lenha. Un, deux, trois, quatre et pourquoi pas cinq tablettes de sucre? Bem adoçado, o chocolate ao leite torna-se mais saboroso e aquece muito mais o corpo. Nesta hora de silêncio no pensionato, irmã Eglantine reina solitária na cozinha. A vela alumia o livro O mercúrio é o único metal que existe naturalmente em forma líquida e conserva esse estado mesmo a baixas temperaturas, pois que somente se solidifica a quarenta graus negativos. Esta singular propriedade, somada à sua alvura e ao seu brilho cintilante, sempre impressionou vivamente a imaginação das pessoas e fez considerar o mercúrio como um metal privilegiado, quase uma substância sobrenatural. Sobretudo na Idade Média, nas teorias místicas dos alquimistas, quando se vê o mercúrio tomar uma singular importância e desempenhar um papel extraordinário. Para eles o mercúrio era a Água Divina, o princípio e a essência de todos os metais, a escuma de todas as formas. Eles o chamavam também, às vezes, bizarramente, de Bile do Dragão e Leite de Uma Vaca Negra bem doce,
o chocolate ao leite esquenta e relaxa o corpo. Faz frio, mãos fora das cobertas, irmã Eglantine prossegue a cativante leitura. A pouca mobília torna a cela ainda mais fria. É necessário enrolar o xale negro nas mãos brancas que seguram o livro. Somente mais tarde fará as orações da noite O químico árabe Gerber (Yabar-Al-Koufi), que viveu no século XVIII, escreveu em seu Soma da Perfeição do Magistério: "O mercúrio se encontra nas entranhas da terra. Não adere às superfícies, sobre as quais flui livremente. Os metais a que melhor adere são o chumbo, o estanho e o ouro. Ele se amalgama igualmente com a prata e, muito dificilmente, com o cobre. Quanto ao ferro, a este adere somente por um artifício que é o grande segredo da Arte. Todos os metais nadam sobre o mercúrio, exceto o ouro, que tomba ao fundo". Essas descrições são exatas e a química moderna
nada mais fez do que complementá-Ias. No cesto o patê, o queijo de leite de cabra, o pão e os biscoitos - todos produtos do pensionato. Fraldas confeccionadas com esgarcidos lençóis sem uso completam a esmola piedosa. Longa é a caminhada e irmã Eglantine aperta o o. O cesto quem leva é Anne Marie, jovem noviça para todo o serviço no pensionato: preparar-se espiritualmente para o matrimônio com Jesus Cristo, varrer lavar, esfregar arear, limpar polir, lavar ar, cozinhar servir, costurar cerzir, 230
plantar colher, ouvir e rezar; vigiar e repreender as alunas e, às vezes, acompanhar irmã Eglantine em seus pequenos eios e visitas de caridade. O cesto com oferendas servirá para mitigar a miséria do casal Philipot. Contra a vontade dos pais, Germaine Garnier casou-se com o jovem Paul Philipot, camponês que não tem onde cair morto nós já o dissemos, o mercúrio é dotado de um brilho cintilante e se parece bastante com a prata, se bem que tenha um leve reflexo azulado. O mercúrio não parece existir em grande abundância na natureza os Philipot vivem isolados,
quase como um favor, numa cabana em partes afastadas das terras do barão de Montpellier, à beira da floresta. Ajovem esposa Philipot, prestes a dar à luz, desprotegida pelo marido sem trabalho, desamparada pelos parentes, justifica a longa caminhada para a visita de caridade. A cabana dos Philipot assenta-se em meio a árvores limpas, quase um apêndice da floresta ao lado, reinado dos javalis, dos lobos e das serpentes. A porta está aberta mas as janelas permanecem fechadas com tábuas. Irmã Eglantine pega o cesto com Anne Marie e entram as duas na cabana escura. Nu da cintura para cima, de pé estático, estátua de sombras, o homem Philipot. A mesa alta impede a visão do resto de seu corpo. Como para encobrir aquela visão, irmã Eglantine posta-se na frente de Anne Marie. Não está a futura mamãe em casa? Não. E não são dadas maiores explicações. Talvez ela tenha ido dar à luz em outro lugar que não aquele. Como, sozinha? Talvez. Talvez tenha sido levada. Talvez o bebê já tenha nascido. Talvez. Mas o senhor não se interessa? Não se interessa em conhecer seu filho? E sua mulher, onde está ela, afinal? Lentamente, Philipot sai de trás da mesa e vem à frente, como para melhor se posicionar e ver Anne Marie, até então oculta pelo negror da cabana e por irmã Eglantine. Monsieur?! Trapos sujos cobrem-lhe o sexo. Imoral! Imoral! Como se apenas esperasse ouvir essas palavras para agir, Philipot agiliza os movimentos. Agarra a freira pelo hábito, puxa-a violentamente contra seu corpo, domina-a. Arranca rasga suas vestes de religiosa. Nua, somente com a coifa, asas a se agitarem na cabeça, irmã Eglantine grita, grita sem que nenhum som escape de sua garganta. Sem largá-Ia, Philipot estende a mão livre e toma uma faca de cima da mesa. O golpe dado no ventre é tão forte que penetram faca, mão, punho e metade da metade do braço. A dor rasgante da facada só é sentida por um segundo, substituída em seguida por um amortecimento suave. Formigamento. Não a faca: o que irmã Eglantine sente agora é a mão punho de Philipot revolvendo suas en231
tranhas. A cada tentativa dela de se afastar, o braço se deixa sair um pouco e já lhe penetra novamente o ventre. Sai em parte e volta, sai em parte e volta ... Mesmo quando caem e rolam os dois pelo chão de pedra, ela nem sente o peso do corpo nu de Philipot sobre seu corpo nu. Sente apenas o retorcer gosmoso entrar e sair da mão punho em seu ventre líquido: Aiiiiii, vou morrer! Quando Philipot retira a mão e o punho, retira mão e punho vivos de um corpo já morto. Morta irmã Eglantine, Anne Marie prepara-se para o sacrifício. Desveste o hábito de noviça e, deitada no chão, o corpo nu, espera, longos cabelos loiros espalhados sobre a áspera superfície de pedras. Posse silenciosa. Saindo do corpo da moça, Philipot mantém-se de joelhos e, inclinando-se, limpa com beijos, boca e barba o sangue do sexo impúbere loiro de Anne Marie. Onde ele arranjou tantas moedas de ouro? Ainda ajoelhado, Philipot cobre com um ducado de ouro o sexo profanado de Anne Marie, pequena fenda agora selada com ouro. Outra moeda sobre o bico róseo do seio esquerdo, outra mais sobre o direito. Deposita uma moeda sobre o lábio de sorriso curto e uma em cada pálpebra semicerrada da moça. Apesar de morta, irmã Eglantine está atenta e observa a cena. Philipot pouco se importa com os olhares da freira. Por que se preocupar com uma freira morta, olhos esgazeados? Há mais o que fazer. Philipot retira a moeda de ouro que cobre o sexo de Anne Marie e, com as mãos em concha, lenta e cuidadosamente despeja mercúrio na pequena fenda oferta. O mercúrio se liberta célere pelos vãos dos dedos. Branco filete líquido oleoso que não adere às bordas róseas da carne e penetra doce e ágil no interior do pequeno mistério da fenda escura. Do fundo da garganta de irmã Eglantine vem um suspiro silencioso, prolongado e rouquenho. No mês seguinte, outubro de 1879, irmã Eglantine sugere à madre superiora a indicação do livro Pierre et Metaux, como prêmio de aplicação para as alunas que, por mérito próprio, tenham alcançado as melhores notas nas aulas de instrução religiosa dos cursos do Pensionnat des Religieuses du Sacré-Coeur de jésus, em Bois L'Évêque, Liege, Bélgica. Em outubro de 1989, na Feira dos Livros Usados, sebo de propriedade de Irajá Reis, situado na rua Emiliano Perneta 325, em Curitiba, foi vendido um exemplar de Pierre et Metaux, encadernado e em perfeito estado de conservação. 232
()s fantasmas do fundo de quintal
Um mistério
Ao longe o cantar abafado dos galos, Os telhados vão amanhecer branquinhos de geada. Na noite fria há os que dormem protegidos pelo escudo do sono Sonham? Talvez. Há os que não. Presas da insônia, da falta de ar, de urina solta, dos gases intestinais, das dores reumáticas, das tosses noturnas, da bronquite, do remorso, do medo. Atravessam as noites acordados, vítimas fáceis dos demônios do quintal dos fundos, de onde não se vê a rua. No limitado triângulo o Fantasma dos Quintais caminha pela calçadinha cimentada. Não tem perigo dele pisar no canteiro e amassar os pés de alface, as cebolinhas e os rabanetes: Que economia trazem para a casa! Sentado na cama em ângulo reto, olhos abertos no escuro fitando o nada, o Velho não luta contra o esquecimento: apenas quer lembrar e não consegue se lembrar do que quer lembrar. Os olhos sem imagens, ocos, abertos para o vazio do quarto escuro. Que tristeza! Milagre: o enorme lençol branco sobrevive no varal! Não se pode deixar roupa dependurada que os ladrões roubam tudo. Os cachorros se esquentam enrodilhados em seus sonhos. Ainda está longe o dia, ninguém vê mas o Fantasma do Quintal está ali, atento, preparando suas maldades. Ninguém pode se livrar do mal, homem! Revolto na cama, 235
o Homem não pode se livrar da memória, sem dormir sonha agitado com a Outra, que largou dele para sempre. Cai num sonho nervoso. Mais tarde - vocês vão ver - ao acordar, terá a imagem dela diante dos olhos para sempre. Não adianta: ela não quer saber mais dele. Inútil insistir. Mas vá falar disso para um homem apaixonado! Não sei, sempre há uma esperança, falsa ou verdadeira. É disso que o Fantasma do Quintal se aproveita Ainda está longe o dia e a geadajá começa a cobrir a grama. Ainda bem que não está ventando. Na interminável noite, esperando a hora de levantar e fazer café, a Mãe insone reza pelo filho. Tanto ela tem feito para que ele e essa fase ruim em que está e volte a ser o que era antes: um homem alegre, trabalhador. Ele está se acabando, se con tin ua assim não sei o que será dele. Eu tenho rezado tanto pelo meu filhinho! O pior é que a Mãe não sabe por que ele está assim. Se soubesse talvez pudesse ajudar. Deve ser coisa de alguma mulher. Botaram feitiço nele. Não há como se livrar disso. Pela tessitura das cercas, os quintais do fundo se ligam com os quintais de outras casas. Pelo vão da cerca a ameixeira derrama seus melhores galhos para o lado do vizinho. As galinhas vêm ciscar na horta alheia, lá do quintal dela a Enxerida espiona tudo, o gato da Velha mija fedido na varandinha da casa nova, 236
a valeta vaza suas águas fétidas para o lado de cá, vozes indesejadas atravessam as cercas de madeira. Isso durante o dia: dentro da noite é esse o território dos fantasmas dos quintais. A Outra dorme aninhada em seu novo namorado, quentinha, protegida, longe dali. Pensar que o Homem pensou até em matar: Se ela não é minha não será de ninguém, na morte será minha! Se a Mãe soubesse que o filho criado com tanto carinho quis tirar a vida de alguém, matou alguém. Na sua brancura o Fantasma entreabre um sorriso de dentes amarelos. Ahhhh, as noites frias! Debaixo do lençol úmido a Mocinha dorme seu sono solitário. Sem sair do quintal o Fantasma - que demônio! já está na cama agarrando a Mocinha por detrás. Sua mão gelada de fantasma acaricia o ventre liso dela, depois escorrega a mão até a gretazinha miúda pulsante, calorzinho tão bom! Suspiro prolongado e um ai, a Mocinha agora dorme tranqüila debaixo do lençol seco. Coitada, uma criança ainda! Isso não se faz ... Ela vai ser uma perdida na vida! Na sala o gato preto dorme em cima da televisão. Pé ante pé, sem fazer barulho, a sombra do Fantasma entra no quarto e observa o sonho da Mulher para ver se ela dorme calma sem saber das coisas que o marido aprontou. O canalha! A madrugada vai alta, ao longe a o ruído de um automóvel tardio. Ninguém nas ruas. Os ladrões da noite não procuram casas com fantasmas no quintal. Com inhos macios, o tatu busca sua toca no terreno baldio sem cercas dentro da noite. 237
Horrível! O grito de alguém morrendo. Na agonia da morte uma criança, o grito apertado, choro prolongado de um bebê - que mortalha pode cobrir um bebê morto? Na noite escura só o Homem escuta o grito só para ele, um grito dele. E desperta dentro de um pesadelo, olhos esbugalhados que não vêem mais a imagem da Outra. A imagem é outra: o rosto esborrachado do bebê morto. O filho dele. Olhando a barriguinha da Outra ninguém diria que estava de seis meses. Dias e dias atrás do dinheiro e de um médico que aceitasse fazer o aborto. Com seis meses já está vivo, dá pontapés na barriga da mãe. Tirar agora é matar uma vida. O médico aceitou mas fez uma exigência: tirar eu tiro, mas vocês é que vão ter de enterrar. O Homem não tinha levado nada para cavucar. O fusca parado num terreno pantanoso, ao longe se vê a estrada de pouco movimento. Fez um buraco com a chave da roda e com as mãos sujas de lama preta. Trouxe o feto embrulhado em plástico transparente. Pela cor plúmbea, textura lisa talhada, dura gelatina, parecia um grande pedaço de fígado, rins pelas dobras prenunciando membros, nariz, orelhas e olhos. O rosto que ele agora tinha nos olhos. Se parecia com a mãe? A Outra se recuperava na clínica clandestina. Não sabia rezar, quando precisava pedia para a Mãe. O Homem cobriu de terra, pensou em fazer uma pequena cruz. Não! Alguém vai desconfiar. Como pôde limpou a mão numa estopa. Depois eu limpo direito. 238
Patinando na lama o fusca voltou para a estrada. O Homem não conseguia mais ficar deitado, levanta com cuidado para não acordar a mulher, que dorme calma ao seu lado e tem um ligeiro despertar: aonde você vai? Mais uma mentira das muitas: vou no banheiro. O rosto afundado no travesseiro, a mulher volta ao sono. O Homem abre a porta que dá para o quintal, o frio da madrugada arrepia seus pêlos. Dá três os e o grande susto: o Cão Negro, pêlos eriçados, dentes arreganhados, latindo avança nele. Não de frio, o Homem treme de medo, uma eternidade de medo antes de conseguir gritar: a, Sultão! Guapeca vagabundo, se fosse um ladrão não acordava. Não vê que sou eu?! No escuro, o cão recua ainda rosnando e depois se cala. Os cães do bairro respondem num enrodilhar de latidos. Não sei se foi o medo, o Homem não está mais dentro do seu corpo, desassinalado, como se não existente, se enxerga parado no meio do quintal, no meio da noite. Tem agora toda a memória do mundo e o dia não vai nascer, nunca mais. E o amor, para que serviu? Não poder dormir nunca mais. Nos seus olhos a imagem da Outra se mistura com o rosto mongol do bebê. Do Homem sai um grito silencioso, longo. Ninguém vai ouvir seu grito, nem os cães nos quintais. Então percebe com horror: O Fantasma do Quintal sou eu! a a mão nos olhos, com as lágrimas lava a lama preta das mãos e vai procurar outros quintais, outros mundos. 239
. ~. ()mlsterlo
teu,
Sônia
COISAS DA VIDA . • • (EPISODIO
o
amigo· A SAUDE DA MULHER fará o mi· logre· é o grande remedio pora 0$ incommodo$ vidro hoje
felicidade Elle _ Santas meira
dos senhoras. mesmo. Levarós
Compro um com elJe o
de regresso ao teu lar.
palavras! phormocial
Vou
voando
é
pri-
N.' 2)
Ello - Lembras-te, querido? Foz hoje um onno que brigá mos pelo ultimo vez .. , EJle - Mósinhal
ElIa • Para lHER,
Para
que
recordar?
abençoarmos a SAUDE DA MU· que me restituiu 00 teu omor!. ..
A SAUDE DA MULHER O
GRANDE
REMEDIO DAS DOENÇAS DE SENHORAS
o ESTADO
GERAL DO CARRO
Bom. Um exame mais do que superficial mostra que o carro, lançado há dois anos pela fábrica, ainda se encontra em bom estado. Nenhum amassado na carroceria, a pintura vermelha não está descascada, a lataria sem pontos de ferrugem e os pneus são novos. O único sinal da viagem que acaba de fazer é a camada de pó pegajosa e leve que aderiu principalmente nas partes laterais e nos pára-lamas, o que atesta ter ele rodado em estradas de terra.
A SAÚDE DA MULHER
Seriam, seguramente, entre duas e quatro horas da madrugada. Mais certo dizer que perto das três e meia. Por essa hora o carro entrou na cidade, vindo do Sul. As regras apareceram por volta das oito, oito e meia da noite anterior, e como a Mulher não tivesse modess em casa e se avexasse de mandar alguém buscar na farmácia do seu Benedito, improvisou uma toalha higiênica com um grande guardanapo branco de boa qualidade. É uma cidade de tamanho médio, mais para pequeno, calçamento apenas no centro e em algumas avenidas periféricas. Seguindo a entrada sul em linha reta, dobrando à esquerda no largo do colégio das irmãs e, mais adiante, entrando novamente pela avenida xv de Novembro, chega-se à praça da Matriz, no centro. O marido, que também dorme, tem entre os vãos dos dedos do pé chumaços de algodão embebidos em Vodol, para controlar as frieiras que muito o afligem nesta época do ano. Como o carro é de modelo recente seu motor é silencioso, não perturbando, portanto, o sono dos habitantes da cidade. E as ruas de traçado antigo, estreitas e curtas, obrigam que o Homem de Olhos Azuis conduza o carro em baixa velocidade, o que diminui ainda mais o barulho do motor. No momento não podemos ver, porque no sono ela mantém as pálpebras cerradas, mas a Mulher tem uma mancha preta no branco do olho esquerdo. Longe de ser um defeito desagradável ao olhar, esse sinal de nascença, apesar de grande, dá um certo atrativo à beleza da Mulher. Traz, como se diz, um certo it aos olhos esverdeados dela. O que procura o Homem de Olhos Azuis àquela hora naquela ci243
dade? Seja o que for, dificilmente encontrará. Ninguém pelas ruas para dar qualquer informação. E não será fácil achar o único hotel da cidade, o Central, pois já apagou a pequena lâmpada que alumiava sua pequena placa e fechou a porta de entrada. Até a delegacia de polícia mantém a porta fechada e as luzes apagadas. E nenhum estabelecimento comercial funciona até essa hora. O que fecha mais tarde, a farmácia, dependendo do dia fecha às nove, nove e meia da noite, mas geralmente funciona só até as oito. ou disso é preciso tocar a campainha para chamar o farmacêutico. Precavida, a Mulher tem sempre em casa um vidro de A Saúde da Mulher, remédio antigo mas de comprovada eficácia. Foi comprado na farmácia do seu Benedito e guardado no armarinho de medicamentos até a chegada da menstruação. Ontem à noite, logo que desceram as regras, ela tomou uma colher das de sopa do remédio, dissolvido num copo de água açucarada.
DA MULHER contém substâncias de ação sedativa e antiespasmódica nas cólicas menstruais. Não tem contra-indicações e não prejudica a amamentação. Por suas propriedades terapêuticas acentuadas, às vezes, A SAÚDE DA MULHER determina ligeiro abalo no organismo. Não deve haver preocupação com isso porque está agindo beneficamente. Prossiga com o tratamento, ou, no máximo, diminua a dose. A SAÚDE
São ruas curtas que desembocam em outras ruas curtas e trazem a indagação: para que lado seguir agora? As casas, quase todas pinta244
das de amarelo, foram construídas quase na mesma época, nos tempos em que a cidade florescia. A iluminação pública é bastante ruim. A obscuridade vista pelos faróis do carro dá ao Homem de Olhos Azuis a impressão de estar sempre andando em círculos pelas mesmas ruas, sem encontrar saída. É agitado o sono da Mulher. Ela a por suores frios e ondas de calor que, se não chegam a acordá-Ia, fazem-na gemer e revirar-se incessantemente na cama. É claro que não se pode adivinhar que tipos de pesadelo o mal-estar traz a ela nesta madrugada nem quente nem fria, as portas do quarto fechadas na velha casa abafada. O Homem de Olhos Azuis no carro vermelho não tem sono. Ou talvez tenha, mas por se manter atento em achar o caminho por ruas calçadas de paralelepípedos que parecem sempre as mesmas, entre casas amarelas que se assemelham iguais, a concentração e a excitação espantaram seu sono. Uma leve neblina envolve a cidade, um cachorro late aqui, outros respondem lá longe, depois de algum tempo param de latir e vão recomeçar mais tarde. Fosse daqui a uma hora, talvez já se visse algum ante andando, não pela calçada, mas apressado pelo meio da rua como todos os que caminham pela madrugada. Alguém que um compromisso ou um trabalho urgente tirou da cama mais cedo. Se encontrasse alguém, o Homem de Olhos Azuis pararia o carro e pediria informação, e talvez pudesse localizar aquilo que veio procurar nesta cidade que não conhece. Seja o que for, não irá encontrar nesta hora em que todos dormem. Em seu sono agitado, seja o que estiver sonhando, sonho bom ou sonho mau, a Mulher pronuncia o nome de alguém. Quase inaudível, como são as falas do sono. Mesmo se o Marido, ao lado dela na cama, não estivesse dormindo roncando, teria dificuldade para identificar o nome que ela diz. Às vezes, as luzes dos faróis do carro vermelho atravessam por entre as frinchas das venezianas fechadas e relampejam no escuro do quarto abafado. Tem o carro gasolina suficiente para continuar rodando pela cidade adormecida? Não poderá acontecer que, de repente, pare por falta de combustível e tenha de esperar até as sete horas, quando abre o único posto da cidade? E, então, seja o que for que o Homem de Olhos Azuis esperava encontrar na madrugada desta cidade, não terá sido achado. 245
Mesmo durante o sono, o sangue menstrual continuará sendo expelido em grandes fluxos, sujando o pano branco e marcando de vermelho os sedosos, longos e pretos pêlos púbicos da Mulher.
o OBSERVADOR o
PRIVILEGIADO
que aconteceu depois? Em relação a você, eu sou um observador privilegiado, pois participei do início dos acontecimentos daquela madrugada, e tudo o que eu escrever aqui, mesmo que seja inventado, você tomará como o acontecido. Por exemplo: eu posso escrever que o Homem de Olhos Azuis cansou de procurar e, finalmente, encontrou a saída da cidade. Acelerou o carro vermelho, seguiu os treze quilômetros pela estrada de terra até alcançar a rodovia asfaltada e pegou o caminho de casa, desistindo, seja lá o que for, do que tinha vindo procurar naquela cidadezinha pela madrugada. Posso dizer também que, no momento em que ele partia, a Mulher despertou do seu agitado sono gritando o nome do Homem de Olhos Azuis. Que seus gritos acordaram o Marido, que dormia roncando ao lado dela. E que o Marido, voltando do sono, descobre com pavor que a Mulher ainda guardava no coração o nome de outro homem. Tudo o que eu disser será verdade para você. Porém, tenho eu o direito de indicar finais possíveis para os acontecimentos reais que comecei a contar? Por acaso sou um deus com o poder de determinar o destino das pessoas? A resposta é não. Por isso, é melhor que eu me cale e deixe somente com você a tarefa de deduzir o que aconteceu depois com o Homem de Olhos Azuis, a Mulher e o Marido.
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() mistério da Sonâmbula
Nada de gestos arrebatados, duros. Seu caminhar, eu diria, é mais um deslizar suave. Pela noite, a Sonâmbula caminha sem se chocar com os móveis da sala. Como ninguém da casa ainda a percebeu em seu sonho de sonâmbula, não se pode dizer se ela caminha de olhos fechados ou abertos ou de que maneira ela evita, no escuro, o embate com os móveis: a mesa ovalada com seis cadeiras, a cristaleira antiga que veio da fazenda, a cadeira de balanço com armação de palhinha, o sofá e as três poltronas de veludo vermelho, a mesinha de centro e o pequeno móvel com assento que abriga o telefone. O marido dorme no quarto do casal um sono pesado, ligeiramente alcoolizado. A irmã tem seu quarto longe da sala, no fundo do corredor. O irmão mais moço não se encontra na casa, viaja em férias escolares. A velha mãe, a mesma que se queixa de nunca conseguir dormir à noite, ressona em seu quarto de portas fechadas a sete chaves. Na parte de baixo, a empregada dorme em seu quartinho e continuará dormindo mesmo depois do despertador tocar as seis horas, e mesmo depois de se levantar, lavar o rosto e se vestir. A cozinheira aproveitou o dia de folga e dorme na casa da filha casada. No jardim dos fundos, as dependências da criadagem masculina estão vazias. O motorista, que, supõe-se, deveria também vigiar a propriedade durante a noite, não está. E o velho jardineiro dorme sob o efeito de sedativos, longe dali, na enfermaria do hospital. O Ladrão ainda não invadiu a casa, espera no centro da cidade que seu comparsa venha buscá-Io, conforme o combinado, no bar onde fazem ponto. A Sonâmbula, em movimentos lentos flutuantes, chegou defronte à grande porta envidraçada, limite entre a sala e o varandão. Fica ali por alguns instantes, eu não diria indecisa, pois me parece difícil denominar os atos de uma pessoa em estado de sonambulismo. Se, no meio da noite, alguém se levanta e, caminhando, vai até a porta envidraçada que liga o interior da casa com o varandão do jardim da frente, podemos deduzir que se levantou porque não conseguia dormir e, para combater a insônia, caminhou pelo corredor até a sala, silenciosa, sem acender as luzes para não perturbar o sono das outras pessoas da casa. E podemos mesmo afirmar que, se ficou em frente à grande porta envidraçada, foi por indecisão entre sair para tomar a fresca da noite ou voltar pelo corredor escuro e, no armarinho de metal, apanhar o vidrinho de comprimidos para dormir, seguir até a copa, só então acender as luzes, encher o copo e, após nova 249
---------indecisão, pegar não dois mas três comprimidos e tomá-Ios com água. Muitas vezes na vida tivemos insônia e, portanto, podemos reconstituir facilmente os pensamentos e ações de quem não consegue dormir de noite. Porém o que sabemos nós das motivações de uma pessoa sonâmbula? A Sonâmbula toma uma decisão: vira-se, retorna pela sala entrando no corredor, abre a porta de seu quarto, retira da gaveta da penteadeira o estojo de maquiagem, senta-se e, contrapondo-se ao espelho, começa a se pintar no escuro, não sei se de olhos fechados ou abertos. Incomodado por alguma coisa em seu sono, o marido revira-se na cama. A três quadras dali, na casa de tijolos aparentes, o motorista sai de cima da nova empregada, abre a porta do quartinho e, nu, chega até a borda da piscina e mija na água. Debruçada na cama, a nova empregada tudo vê e reclama quando ele volta: - Ficou louco, alguém pode te ver! - Teus patrões dormem cedo. Nunca me viram. - Nunca te viram, é?! Então você já veio aqui antes, seu sem-vergonho?! Não foi desta vez. Há algum tempo atrás, a Sonâmbula fritou ovos na cozinha durante a noite. Na manhã seguinte, enquanto servia o café a cozinheira interrogou: - Dona Rejane, foi a senhora que fritou dois ovos ontem de noite? - Eu não, Cacilda, que idéia! - Acordei hoje e encontrei a cozinha toda bagunçada. Alguém andou fritando ovo e deixou tudo sujo. O marido intervém: - O que é isso, Rê? Comendo escondida de noite? Por isso essa barriguinha? A Sonâmbula pensou logo na sua velha mãe, cheia de manias. Pensou e calou-se. A coisa ficou por isso mesmo, nem Rejane nem ninguém ficou sabendo que havia uma pessoa sonâmbula na casa. Era isso o combinado: o Ladrão pulou sozinho o muro da casa, seu companheiro ficou no carro vigiando, pronto a dar sinal caso notasse alguma coisa estranha. Ficou com a parte mais fácil, prerrogativa de quem levantou o serviço, espiou a casa durante vários dias, desvendou a disposição dos quartos, indicou o que deveriam apanhar e ainda trouxe o carro roubado. A Sonâmbula agora penteia os longos cabelos negros. Antes, com 250
a tampinha do frasco ou perfume nos sovacos, atrás da orelha e nos seios livres soltos cobertos pela camisola transparente, muito decotada. a sangue pegajoso escorre pelas suas pernas abertas. a Ladrão é moço, ágil, e tem a coragem de dois cigarrinhos fumados há pouco. De acordo com as instruções do companheiro, sabe que o melhor será subir pelo varandão e arrombar a grande porta envidraçada. É apenas um menino. Tem o quê? Doze anos? Sentado na cama da enfermaria, balançando as pernas que não alcançam o chão seboso, olha e pensa no velho jardineiro deitado na cama ao lado, respiração gorgolejante. Está cada vez pior, parece que nem consegue mais respirar, o ar só sai, não entra. Ele vai morrer. Esta noite, será? Ladrão não se assusta com a estátua, quase gente, no jardim, no meio das árvores, no gramado. A cozinheira deitada ao lado da filha e do netinho na única cama genro já saiu faz tempo da meia-água não consegue pegar no sono. para seu serviço de vigilante noturno; desta vez, saiu bem alimentado com as comidas trazidas pela sogra da casa dos patrões, coisa fina. A cozinheira incomoda-se com aranhas, por isso não consegue dormir. Pensa na última vez que veio pousar na casa da filha, quando foi abrir a porta no escuro para ir na privada, meteu a mão numa aranhona caranguejeira que estava na maçaneta. Susto tão grande que precisou tomar água com açúcar para se acalmar. Tenta rezar para ver se dorme. Ladrão experimenta a grande porta envidraçada, já sabe que não tem alarme na casa, e com a faca começa a forçá-Ia, quando vê do lado de dentro no escuro um vulto branco quase como a estátua dojardim. A cozinheira reza para que o genro arrume um emprego melhor, de dia. Para que o netinho sare logo daquelas grosseiras que tem no rosto, tadinho. Para que a filha não seja tão luxenta, não implique tanto com o marido, homem trabalhador mas sem sorte, preto mas bom homem. A velha mãe acorda agoniada e suspira: Ai, meu pai! Meu querido paizinho! Vira de lado e continua a dormir. companheiro se assusta com o Ladrão pulando o muro de volta: - Que que é isso? Que sangue é esse? - Vamos embora. - Deu pra pegar alguma coisa?
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- Deu crepe, vambora! _ Tá cheio de sangue na cara, olha a tua roupa. Te pegaram? -Nada. - Não me põe em fria. Matou alguém? - Abre essa porra de carro de uma vez! - Senta no jornal senão suja tudo. - Você não vai acreditar. _ Não quero ter nada a ver com essa história. Sabe como anda a minha barra com os home. - Me dá um cigarro. Me dá um cigarro. - Você matou alguém? Deixou a faca lá? _ Não dá para acreditar. Tô lá na porta que você falou, aí a porta abre e me aparece uma puta duma mulher, uma morenaça de camisola transparente. Eu ia pular em cima, apagar ela. Ela me olhando quieta e aí levanta a camisola, mesmo no escuro deu para perceber que estava sem calcinha, se oferecendo. Com ela ali o roubo já estava perdido mesmo. Juntei ela ali de pé mesmo. Mas aí na hora do gozo ela me dá o maior grito. Me assustei, pulei fora e corri, um grito que veio assim como lá de dentro: Aaaaiiii ... Em seu sonho, a Sonâmbula se vê deitada na banheira e sente a água morna, quente, penetrando seu corpo adentro. Água oleosa, quentura esponjosa que vai pegando forma, entrando e saindo sem nunca se largar de dentro, tomando conta de tudo, carnosa, quente, viva. No sonho, a Sonâmbula geme alto: Aaaaiiii ... - E o sangue? Onde você arranjou essa sangueira toda?
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Mistério do menino morto
Quando alguém está se afogando vê ar, rapidamente como num filme, toda a sua vida. E não é só quem morre afogado, dizem que nos segundos que antecedem a morte o mundo todo vê sua vida ar, imagens já nem pensadas mais ou nunca registradas pela memória, da hora da saída do ventre materno ao indesejado instante final, tudo é lembrado. Coisas tão desimportantes quanto o sonolento vôo de uma mosca na sala de aula, imagens sempre revividas como o lento entreabrir dos ofegantes lábios úmidos da mulher amada ao dizer eu te amo, logo depois do primeiro beijo. Sem explicação, imagens de toda uma vida no instante mesmo da morte: não se esquece jamais e não importa mais. Fotografei o menino quando ele ainda estava vivo. Eram gansos, o avô dele tinha uma criação bem-sucedida, usava métodos próprios muito eficientes. Quando vi aquele menino, bonito, loiro de olhinhos vivos bem azuis, achei o que eu estava precisando: o instantâneo de uma criança dando de comer aos gansos. O loirinho carregando braçadas de grandes folhas de couve e a gansaria toda correndo atrás e grasnando. Deu uma bela foto, bem nítida, de cores brilhantes: em primeiro plano, o menino sorrindo mas meio assustado, cercado pelos gansos brancos de longos pescoços, quase maiores do que ele. Fui muito feliz nessa foto. ou nem um mês e a mãe dele vem me procurar - o pai eu não cheguei a ver quando estive no sítio fotografando -, ela queria uma foto: - Deve ter ficado bem bonita. Não temos nenhuma fotografia dele ... Ele morreu. Disse isso como quem diz ele está bem. Quem sabe o que pensa uma mãe? - Mas como? Ele ... - Foi três dias depois que o senhor esteve lá fotografando. Foi de meningite, deu assim de repente. Em poucas horas estava morto. A mulher ficou esperando que eu dissesse alguma coisa. Eu não sabia o que dizer, nunca sei nessas horas. Eu disse: - Meus pêsames. - Obrigada ... Era uma mulher bonita, meio judiada mas ainda inteira. Eu continuava sem saber o que falar. Ela não: - ...Ele tinha só cinco aninhos, por isso mesmo queremos a foto, nunca pensamos em mandar tirar. 255
Fiz a ampliação e mandei, nem cobrei nada, é claro. Olha como ficou bonita:
816 357 492 Antes de mandar entregar, eu ficava olhando a foto: coitado do guri. No que ele estava pensando quando morreu? Será que é igual a gente grande? Será que também reou a vida dele - vidinha curta - na hora da morte? E será que tudo ou com o mesmo peso de tempo? A dor forte na nuca - palavra que talvez uma criança de cinco anos nem saiba dizer, para ele devia ser atrás do pescoço. A parte da dor, da febre alta, teve a mesma duração daquela manhã dourada? Quando ele, aninhado na cama materna, naquela manhã de verão, a mãe rodava nos dedos uma bolinha de vidro azul e encostava nos olhinhos do menino, então ele via o mundo através do azul luminoso girante. Depois a mãe esticava bem o braço, a bolinha azul brilhando lá longe, reflexos dourados do sol. Lembrou o menino daquela história do Pedra Malazartes que a mãe contou então? Aquela do Malazartes que de preguiça não comia nada e estava morrendo de fome. Já iam carregando com ele para o cemitério, aí a um homem vendendo banana. "Está descascada?", pergunta o preguiçoso Malazartes lá do caixão. "Não tá não", responde o vendedor, e Malazartes ordena: "Então toca o enterro!". Na hora da morte o menino riu novamente dessa história? Na relembrança, a alegria assustada de dar comida aos gansos durou o mesmo tempo da imagem sem contornos, da emoção indefinÍvel da256
quela noite na varanda ao luar, quando a moça de cabelo preto quem era ela? - apontava as estrelas, contava coisas da lua de São Jorge brilhante lá longe no negro céu azul do sonho? No rear de sua vida, o menino ficou sabendo onde é que foi parar a bolinha de borracha vermelha, perdida e nunca mais achada? Difícil dizer. Na morte o menino levou a memória junto. Não pude evitar, comecei a pensar na minha própria morte. Como será? Vai acontecer rapidamente num desastre de carro, eu dirigindo? Ou na longa dor da desagregação do corpo, a podridão em vida, como a lenta agonia de meu pai? O câncer roendo pedaços dos lábios dele que iam soltando quando se ava algodão molhado para mitigar sua sede. Nem água ele agüentava mais tomar. E que lembranças vou reter na minha hora? Talvez então me venham com clareza momentos ados desapercebidos da primeira vez que tive você nos meus braços. Não que eu tenha esquecido cada instante, mas quero ver uma vez mais o gemido que escapou dos seus lábios entreabertos, sentir a cor do seu corpo colado no meu pela gosma do seu gozo, ouvir o cheiro doce que se espalha de seu prazer. E será bom lembrar. No relembrar, será que experimentarei outras vezes o prazer que tantas vezes sinto no seu corpo? Então o estar morrendo valerá a pena? Agora você está ao meu lado, acabamos de fazer amor. Nossos corpos colados, o mesmo corpo, você diz todas as letras do meu nome (como se chamava o menino morto?) e eu sinto a extensão do prazer, um espaço infinito no tempo da minha vida: como se fosse sempre assim e assim sempre será. É este o sentido da minha vida, o prazer que você me dá? Você já existia quando eu nem conhecia você? Quando o menino via o mundo no alumbramento azul da bolinha de vidro nas mãos da mãe, você já existia? Ou seria amarela e não azul? Não sei. Só saberei de fato quando, como num filme, as imagens da minha vida desfilarem nos meus olhos, na hora da minha morte. E você desaparecerá comigo para todo o sempre.
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() mistério do gato preto e da gata gorda
Eu sou um homem. Ao contrário do homem, o gato, igual a qualquer outro animal,já nasce com o destino traçado. Vida sem surpresas. A primeira coisa que chama a atenção nela são os cabelos cortados bem curtinhos, e eu brincava: "Parece um hominho". No cangote, uma mecha mais comprida descendo um pouquinho pelo pescoço, um rabinho como o de um gatinho. Gatos costumam ser altivos por natureza, não se entregam fácil. Disfarçados como eles só, querem agrado mas fingem não querer, as coisas têm de ser do jeito que eles determinam. Não é qualquer pessoa que consegue lidar com gatos. Ela também era assim, queria se entregar a mim - e como queria - mas não dava o braço a torcer, escondia o que sentia, inventava mil pretextos, mil desculpas, dizia mil coisas: ''Você é um louco!". Não era a palavra que mais saía de sua boca. A noite é território dos gatos. Mais do que as dos homens, as pupilas dos gatos se dilatam no escuro. Mais do que os homens, os gatos sabem ver o que se esconde no negror da noite. Debaixo das grossas sobrancelhas pretas, os negros olhos dela são redondos como olhos de gato. Cara branca redonda como a de uma gata, com grandes olhos bem pretos, bem redondos, como que para ver no escuro. Só gatas tem pêlos de três cores, gatos não. Gatos com pêlos de uma ou duas cores - preto e amarelo, por exemplo - tanto podem ser machos como fêmeas. Porém, se os pêlos tiverem três cores só podem ser fêmeas. Coisas da raça. Os bicos róseos dos seios dela são rodeados de parcos pêlos pretos. Da primeira vez que os beijei, que chupei, a luz estava apagada e eu pensei que eram do cobertor lanhudo - fazia bastante frio naquela noite. Foi a segunda mulher que conheci com pêlos no peito, a outra foi uma namorada que tive quando garotão, a Danielle, uma sinha. Alguns animais têm pêlos ásperos, espalhados, gatos não, seus pêlos são bem macios, fininhos, lisos, e correm todos na mesma direção. Não que ela fosse peluda, porém tinha pêlos bem pretos espalhados pelo corpo bem branco, firme, pêlos macios, curtos, esparsos. Antes de vê-Ia nua eu imaginava que teria uma vasta pentelheira de pêlos compridos espalhados em várias direções, como vi em outras mulheres. 261
Que nada! Era uma pequena moita de poucos pêlos curtos bem macios correndo em direção à sua fenda. Na hora de beijá-Ia, eu gostava de ar minha língua no pequeno buço que encimava seus rosados lábios carnudos, estriados. Buço ralo que mesmo assim ela descoloria, vaidosa que é. Só tem um jeito da gente dominar um gato: acariciar forte a espinha dele na região entre as omoplatas nas patas dianteiras. O gato fica sem ação, entregue, irritado mas sem coragem de se libertar. A primeira parte do corpo dela que toquei foram os cabelos curtos bem pretos. Acariciei ao contrário do sentido em que eles corriam. Mulher que não se entrega, disfarçada, ela fingia que não estava gostando. E era tão bom! Como acariciar um gato, gato preto, pêlos quentes. O desejo me corria pela ponta dos dedos, pela palma da mão. Gatos não gostam que a gente revire o pêlo deles. O único lugar onde você pode acariciar um gato no contrapelo é a barriga, e somente quando estão deitados de dorso, dengosos, se oferecendo para agrados. Com os dedos, com os dentes, eu revirava seus pentelhos. Ela ficava louca de raiva quando, na cama, eu a chamava de gatona gorda. Não era gorda, era rechonchuda, e nada de carnes moles, rija debaixo da pele branca como nunca vi igual. Minha gatona gorda. Eu não sou gata, não sou gorda e não sou tua! E de raiva enfiava fundo as unhas nas minhas costas, às vezes tirava sangue. Aquilo doía de gozo. Fingindo vingança, eu mordia as coxas dela no meio das pernas, perto do sexo. Ela sentia grande prazer com isso, eu sei, mas fingia raiva, empurrava minha cabeça, puxava de volta, empurrava, puxava de volta. Eu sentia um grande prazer em morder as coxas dela e vê-Ia renegar o gozo que fingia não sentir. Na coxa macia de pele branca, sensível, ficava a marca dos meus dentes bastante tempo, primeiro roxa depois preta, depois amarela. Na hora do gozo ela exalava um cheiro tão bom, cheiro de limão e suor quente. Como gata no cio, parecia que ela gozava muitas vezes o mesmo gozo. Parecia estar gozando quando eu beijava sua boca, quando sugava seus seios, quando minha língua acariciava seu sexo, quando meu sexo estava dentro dela e quando, no gozo, nossas gosmas se colavam. Depois de fazer amor, ela se vestia sem se lavar. Numa das poucas vezes que falou coisas carinhosas para mim, disse que fazia isso para ficar mais tempo com o meu cheiro no corpo. Eu também mantinha o 262
cheiro do gozo dela comigo, nem as mãos eu lavava. De noite, na cama, ao lado da minha mulher dormindo, eu ainda sentia o cheiro do prazer da minha gata gorda. Gatos são animais estranhos, não gostam de mostrar dependência. Quando se entregam, pode reparar, chegam de mansinho, vêm como se fossem para outra direção, não nos olham nos olhos, se instalam no nosso colo, como se ali não estivessem ou não quisessem estar. Mas se deixam ficar e sonham sonhos bem quentinhos. Um dia, depois de fazer amor, estávamos abraçados, ela me apertou forte e disse: "Eu nunca tinha gozado antes. Você foi o primeiro homem que me fez gozar. Antes de você só tive o meu marido e com ele eu nunca senti nada". Desvencilhou-se dos meus braços e beijou meu sexo. Eu não sabia o que pensar, ela não era de fazer confidências, nem de falar coisas de amor, mas também não era de mentir. Levantou-se da cama e eu continuei deitado pensando no que ela tinha dito, se fosse verdade eu amava aquela mulher, e ela me amava. Ela veio com uma faca e enfiou na minha barriga com toda a força que tinha. Soltei um grito fraco da dor rasgada que senti. Com as duas mãos empurrando a faca, elajoga o peso do corpo sobre mim e a faca penetra mais fundo. O sangue mancha a mim e a ela. De dor abro a boca para engolir o ar, mas é um gemido arrastado com gosto de sangue que desce pela minha garganta. Meu coração pára de bater. Não sinto mais a dor. Imóvel. Não consigo me mexer. A morte toma conta de mim. Meu rosto toma a forma da morte: olhos cavos, abertos, à espera de quem venha fechá-Ios, perdem o brilho. Sobre eles se cria como que uma tela viscosa, quebradiça, eu nada vejo. A respiração abandona meus pulmões secos. As marcas do cadáver: meu nariz torna-se mais pontiagudo do que era, com uma orla enegrada, os pêlos das narinas cobertos de uma poeira esbranquiçada. Não sentirei mais o cheiro da mulher amada e não tenho querer. Meus lábios pendem, a boca se abre e não se fechará mais, minha voz não se fará ouvir e eu nada escutarei. O sangue não circula mais nas minhas veias, o calor do meu corpo se esvai para sempre. Minha pele seca e toma a cor cinza, fica desagradável ao tato: mas quem vai querer me tocar? Pelo sangue escorrido, manchas negras cobrem minha pele. 263
Os músculos começam a enrijecer, o que vaI dificultar quando forem vestir meu corpo. Meu cérebro não pensa mais. Pensa no nada. o nada nada ada da a
264
() misterioso homem ..macaco
Como tudo comecou •
Eu ia sozinho cantando:
~ i
Ta-tu Peba Tatu Pe-reba Ta-tu bola Tatu en-rola
Eu ia sozinho mais o cão. Segurava uma 28 de chumbo e nas costas uma Winchester 22, também pendurado o bornal com os cartuchos dos dois calibres, a garrafa com café adoçado e pão de milho para mim e o Divino, bom veadeiro, mas também de muita serventia para outras caças, prestimoso que era. De vez em quando puxava o facão da bainha presa na cinta para abrir caminho na mata densa, fechada. Mata escura, sombreada pelas copas de muitas árvores tapadoras, de raro deixando entrever uma nesga de céu muito azul sem nuvens. Já ia por volta das desoras e eu ainda não tinha caçado nada. Calorão da mata, a língua do Divino sempre de fora, também eu suava, camisa molhada grudada no corpo. Mais de uma vez tive de atorar cipó com o facão para beber a água de dentro dele e dar para o cão, tanta a sede de nós dois. Meu rosto preto daquelas abelhinhas miúdas, pretas que nem mosca. Ao cão não incomodavam por causa do pêlo, mas em mim, que não usava barba naquele tempo, me cobriam a cara sugando meu suor pegajoso, tirando dele alimento para fazer seu mel azedo. Não adiantava espantar as bichinhas, se não picavam, também não arredavam dali, máscara preta cobrindo minha cara e fazendo aumentar o calor sentido. Depois de muito andar chego numa clareira, que refrigério! Me sento num toco e vou tirando a garrafa do bornal, quando ouço uns guinchos ardidos. Era um bando de macacos que, lá no alto, faziam a travessia de uma peroba para um ipê vizinho. Coisa até interessante de se ver, iam caminhando pelo galho pelado da peroba bem até a pontinha, e dali um de cada vez dava um salto, braços levantados, até o ipê. Pendurado pelo rabo num galho mais alto do ipê, um deles apanhava o companheiro no ar e, balangando-o, atirava-o são e salvo num galhão grosso do ipê, de donde seguiam caminho. Se um errasse o salto, ou se o outro não o agarrasse em tempo, ele caía e ia se esborrachar no chão lá embaixo. Bicho danado de engenhoso, o macaco, nisso até se parece com gente. Não sou chegado a carne de macaco, acho muito seca, musculosa, sabor azedo, mas como eu não tinha comido nada até aquela hora, 267
catei a Winchester e me levanteijá apontando para o alto. Divino nem reparou na cena, entretido que estava com o seu descanso. Cachorro é bicho mais preocupado com as coisas da terra, o que se a lá em cima não lhe interessa, senão já estaria latindo feito um condenado. Já o macaco, lá no alto, sempre se preocupa com aquilo que se a no chão. Quando apontei a arma quase todos já tinham ado, sobrava só um retardatário no galho da peroba. Aquele outro que estava pendurado pelo rabo no ipê, quando me viu, num átimo pulou para o meio das folhagens e sumiu da minha vista. Mirei então o retardatário, sem o companheiro que fugira não tinha como pular para o ipê. No comprido galho onde estava não tinha ramagem para se esconder, e o tempo era pouco para ele correr até um lugar mais coberto: eu atirava antes. O que fez ele quando se viu perdido? Se meteu a gritar e pular de desespero. Não morreu ali na hora porque não atirei logo, me distraí, rindo que estava de suas macaquices. Quando o bicho se tocou de que eu ia mesmo atirar, pegou das costas um macaquinho bem pequeninho e o levantou nos braços para me mostrar. Vi logo que era uma fêmea com sua cria recém-nascida. Gritou, se ajoelhou e se pôs a chorar - macaco é quase como gente -, uma mãe me pedindo para eu não matar seu filho. A gente faz muita maldade na vida, e na hora não percebe. Eu, ali, fiz uma que fui pagar bem caro depois, caro demais. Mas na ocasião não pensei em nada, e dei com o dedo no gatilho da Winchester, Bang. O que voou de pássaro com o barulho! Tiro certeiro: a macaca despencou lá de cima - queda demorada de tão alta - e veio se estatelar no chão da clareira. Só então o Divino se deu conta e correu latindo para a caça estendida, morta. Corri junto, queria ver. Cheguei antes, e foi bom porque salvei a presa que o cão ia comer. Coisas de mãe que só Deus explica: não é que mesmo morta a macaca deu um jeito de proteger a cria?! Ela caiu segurando o filho e, quando bateram no chão, o corpo dela amorteceu a queda. Morreu bem mortinha, mas salvou o filho. Quando percebi que o cão, nervoso, rosnando, ia abocanhar o filhote, dei um pontapé no focinho, a, Divino!, e protegi o bichinho com as minhas mãos. O cão perdeu o filho mas ganhou a mãe, e aí abriu a bocarra e, numa sentada, devorou o cadáver morto da macaca, só deixou pele peluda e osso grande, o resto mandou para as tripas e ainda ficou lambendo o sangue do chão. 268
o macaquinho
tremia e chorava nas minhas mãos. Magrinho e miudinho, pensei, mas vai me servir de janta. Coloquei o bichinho dentro do bornal e com o calorzinho ele parou de tremer, aos poucos se acalmou, acho que até dormiu quieto, esquecido da morte da mãe. E eu peguei o caminho de casa. Na volta perdi o Divino. Caminhou uns tempos ao meu lado, normal, depois parou e devolveu tudo o que tinha comido, vômito verde, fedido. Aí ou a caminhar inquieto, parando a toda hora para se mijar, sem levantar a pata, que nem uma cadela. Todo nervoso, começou a latir e a correr em roda tentando morder o próprio rabo. De repente, deu uma guinada e disparou ganindo, e sumiu no mato. Chamei, chamei, mas ele não voltou; ainda pensei em correr atrás dele, mas a mata era muito fechada e desisti. Nessa hora o macaquinho pôs a cabecinha para fora do bornal e espiou, olhinhos bem abertos, a mim me pareceu que ele até estava dando risada. Percebi então que a queda não o tinha afetado. Chegado ao rancho, contei a caçada pra minha mulher e mostrei o macaquinho. Seu malvado, ela me repreendeu. Isso não é coisa de cristão fazer. Achou bonito o bichinho: Tadinho, deve estar com fome, o pequeno órfão!. E se tomou de dores pelo macaquinho. Foi tirar leite da cabra, e de um vidrinho com um chumaço de pano no gargalo aprontou uma mamadeira. O danadinho se achou! Era até bonito de ver aquele toquinho feioso, agarrado aos peitões da minha mulher, tomando seu leitinho adoçado com rapadura, chupando a mamadeira. E como mamava, o desgraçadinho! Não havia leite que chegasse. Não fosse, um dia depois, o cabritinho ter morrido de picada de cobra, não sei se a cabra ia ter leite suficiente para o sustento dos dois. Mamava tanto que dali a uns dias já estava forte e grandinho. Não sei se foi pelo leite de cabra, mais forte do que o leite da macaca sua mãe, ou se foi pelo fortume do açúcar de rapadura, só sei que lhe caiu quase todo o pêlo, deixando à vista sua pele enrugadinha, parda, mosqueada. E daí ficou ainda mais parecido com gente humana. Minha mulher andava com ele para cima e para baixo, se tomou de amores pelo bichinho. Não largava dele nem para cozinhar, enquanto segurava o danadinho com uma das mãos, mexia nas as com a outra. Para cuidar da criação e trabalhar na roça, levava o macaquinho atado nas costas. Ele bem que gostava, ficava o tempo todo agarrado à minha mulher, como se ela fosse a mãe dele, a falecida. Dormia na nossa cama, os dois abraçados como mãe e filho. 269
Tinha um pintão enorme, cabeça de prego, e para esconder essa vergonha minha mulher até fez umas fraldas, que trocava sempre que molhadas. Era muito dengue para uma criaturinha da mata, mas eu não ligava. Nossa filha já andava com doze anos, viçosa, bonita, carregava as tristezas próprias da idade, vivia ensimesmada, já não era companhia para a mãe. Nosso filho, Pedro, naquele tempo andava buscando ganhar a vida na cidade e quase nunca vinha nos visitar. Mulher é bicho diferente, tem suas coisas, suas manias, e desde que não incomode os outros o melhor é deixar. O carinho dela pelo macaquinho não perturbava ninguém, nem a mim nem à nossa filha. Se isso trazia alegria para ela, se diminuía sua solitude naquele rancho perdido no meio do mato, por que se incomodar, se existem tantas outras coisas para a gente se preocupar nesta vida que Deus nos deu? Não é mesmo?
Assim foi indo até aquela noite da tempestade. Foi logo depois da janta,já muito escuro começou um vento forte, assobiador, e despencou uma chuvarada forte como nunca se viu antes, um verdadeiro dilúvio. Um frio úmido começou tão de repente que tive que me enrolar no cobertor. Era um relâmpago atrás do outro. A mulher queimou as palmas bentas e rezava assustada para Santa Bárbara. A menina tinha pavor de raio, se abraçou a mim fechando os olhos contra o meu peito, e assim ficou. Só o macaquinho parecia não se incomodar com o temporal, dormia o sono dos justos bem grudadinho na minha mulher. Foi a noite do cão. O medo não deixava ninguém dormir, nem sei como as águas não levaram embora o meu rancho, as horas foram ando e nada da chuva querer diminuir. Até que se deu o acontecido: na madrugada, nós três ainda acordados, assustados, molhados até os ossos pela chuva que caía pelos buracos do teto, e não é que de repente o macaquinho acorda, abre os olhinhos, se levanta, caminhando vai até o fogão, risca um fósforo e acende a lamparina? Na hora até que a gente não estranhou esse seu ato. Afinal, macaco é bicho esperto, achamos que o que ele fez não tinha sido nada mais do que imitar um gesto que tantas vezes nos viu fazer. O de causar espanto era ver a chama da lamparina, que, naquela ventania toda, se mantinha reta, firme, bem luminosa. O macaquinho veio se chegando perto de nós trazendo a lamparina acesa, nos olhos, bem nos olhos, e falou com um vozelrao grosso: - Eu me chamo João da Silva! Cruz credo, Ave Maria, te esconjuro! Já vi muito animal inteligente, 270
mas nunca dantes nem eu, nem ninguém, viu bicho falar, ainda mais macaco. Foi um susto só: a menina começou a chorar de medo, o queixo da mulher caiu lá embaixo, os olhos arregalados, nem sei se de espanto ou terror. - Eu me chamo João da Silva! Dito isso, tirou o pinto para fora da fralda e, rindo de gargalhar, mijou quase ao pé da gente no chão de terra batida, mijou tão forte que abriu um buracão. No exato momento da mijada, caiu um raio tão forte, tão estrondoso que alumiou o mundo todo. Tão forte que a noite clareou como dia e derrubou o flamboyant que meu avô plantara na frente do rancho, queimando num fogo que nem a chuva conseguiu apagar, aquilo que talvez fosse a única beleza daquela terra. Eu me chamo João da Silva... foi assim que tudo começou. Foi nessa noite amaldiçoada que ele se revelou, que se fez homem aquele macaco amaldiçoado que em maldita hora eu fui trazer para dentro da minha casa. Esse macaco que fez o padre enlouquecer no dia do seu batizado. Que na escola onde foi aprender as primeiras letras atazanou tanto a professorinha que ela, coitada, abortou. Esse macaco que sempre tratei como filho e que abusou da inocência da minha filha, sua enteada, e fez mal para ela, matando minha mulher de desgosto. Que, com suas artimanhas diabólicas, fez meu filho Pedra pagar por ele, até hoje cumprindo pena na cadeia por um crime que o macaco cometeu. Que de tanto me judiar, me transformou no velho aleijado que hoje eu sou. Tanta sacanagem, tanta maldade, tanta coisa ruim esse João da Silva fez, e ainda faz em suas andanças pelo mundo, que se eu fosse contar levava a vida inteira e ainda não chegava ao fim. Não gosto nem de lembrar dos crimes hediondos que esse ser maligno cometeu. Mas, se você não tiver medo de ouvir e, para se precaver, quiser saber de toda a verdade sobre esse homem-macaco, um dia eu me armo de coragem e te conto tudo.
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Mistério ~
.
maglco
Olhem fixamente esta carta!
Viram bem? É um sete de paus! Correto?
Errado! É um rei de ouros.
de surpresa e espanto e mesmo alguns risos nervosos. Somente algum tempo depois é que os espectadores começaram a bater palmas assombrados: Eu via um sete e ele se transformou num rei, na frente dos meus olhos!. O Mágico domina sua platéia e não lhe dá folga para pensar, num gesto rápido desvira o Rei de Ouros, que tem seguro pelo polegar e o indicador, e atira-o em direção das mesas onde estão os espectadores sentados. Da ponta de seus dedos, do nada, vão surgindo outras cartas que ele vai atirando: noves, setes, três, reis, damas, valetes ... Cartas de todos os naipes. Óóóós
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o Mágico domina, esbelto, rosto anguloso, bigodinho preto bemcuidado, cabelos pretos bem curtos esticados por brilhantina, formando um pequeno bico no meio da testa. Impecavelmente vestido em sua casaca preta brilhante, justa no corpo, mais elegante que muitos dos espectadores em seus smokings, summers e uniformes de gala. O pianista tenta acelerar a música que toca, "Caravan" de Duke Ellington, para colocá-Ia no ritmo em que as cartas vão surgindo das mãos do Mágico: cravo branco na lapela de cetim da casaca preta brilhante, peitilho engomado liso branco brilhante, abotoaduras de ouro maciço, gravata-borboleta do mesmo cetim preto brilhante da lapela, meias pretas de seda, sapatos pretos de verniz brilhante, o rosto branco cortado em cima dos lábios por um bigodinho reto preto. Cortina preta brilhante ao fundo do pequeno palco. As luzes de cena criam uma aura branca brilhante em torno da figura esguia do Mágico e ofuscam a vista dos espectadores enlevados, surpresos, encantados, olhos fixos na ponta dos seus dedos, de onde as cartas surgem do nada. O chão do pequeno palco e parte do salão onde estão as mesas se cobrem de cartas: setes, três, reis ... O palco em semicírculo é uma pequena elevação ao fundo do salão. Na obscuridade, algumas mulheres ousam desviar os olhos da ponta dos dedos do Mágico para se fixar na assistente vestida de odalisca, coberta de jóias douradas como o ouro do seu cabelo comprido solto, loiro natural. Que idade terá ela?, a pergunta mais perguntada. As brilhantes luzes do palco em seu corpo bem torneado quase despido na fantasia de odalisca, pernas longas, pele sem nódoas; a boca carnuda bem traçada coberta de batom vermelho, a maquiagem acentuada, o traçado do rosto, o porte esbelto, fazem dela a mulher mais formosa no salão. Talvez, fora das luzes brilhantes do palco, de roupa comum, sem os sapatos de salto alto bem fino, talvez não seja tão alta, nem tão moça, nem tão formosa. Talvez se iguale em beleza às mulheres que a invejam, que assistem ao espetáculo nas mesas do salão, toalhas de linho. Algumas moças, algumas velhas, todas em seus vestidos de noite decotados, algumas com chapéus, algumas cobertas de peles legítimas, algumas com luvas. Umas ao lado dos maridos, algumas ao lado dos parentes, outras ao lado dos amantes. Figuras da sociedade, damas de caridade, debutantes, personalidades do mundo das artes, embaixadores, industriais, oficiais das três armas, membros do governo ... Enquanto as palmas ainda ecoam pelo número das cartas, a odalisca traz um grande aquário redondo e o coloca sobre a mesinha de 276
longos pés de metal brilhante, no centro do palco. Três peixes dourados de longas barbatanas, caudas transparentes douradas, intranqüilos na água agitada do grande aquário redondo. Na pequena pausa, enquanto o Mágico cobre o aquário com um pano preto brilhante, decorado com aplicações de meias-luas e estrelas de lantejoulas prateadas, garçons solícitos, em suas calças pretas paletós brancos gravatas-borboleta vermelhas, aproveitam para servir champanhe francês trazido em baldes de metal branco brilhante e, para algumas mesas, litros de uísque escocês e sifões em garrafas bojudas de vidro opaco, trançado com finos fios de metal prateado. O Mágico faz gestos ondulantes com sua vare ta fina preta. Depois, entrega-a para a assistente e com as mãos suspende o aquário envolto com o pano preto. Caminha lento para a platéia, com muito cuidado para não entornar a água do aquário coberto, e, subitamente, num gesto brusco atira a forma do aquário que tem nas mãos em direção aos espectadores. Com o susto, todos jogam o corpo para trás, com medo de se molhar: o Mágico tem nas mãos apenas o pano preto decorado com estrelas e meias-luas prateadas, o aquário desapareceu. Depois do susto, as palmas da platéia. O Mágico não dá tempo para a platéia respirar, ainda em meio às palmas a bela assistente loira vestida de odalisca traz sobre uma mesinha com rodas uma grande caixa dourada. Pela frente, o Mágico abre a caixa puxando uma tampa presa por dobradiças na parte de cima. Ajuda a assistente a subir e a entrar agachada na caixa, fecha-a e a em volta uma corrente de metal dourado, lacrando-a com um cadeado dourado cuja chave guarda no bolso. O Filho do Presidente comenta com um rapaz que está ao seu lado: Já sei com quem ele se parece, com o Mandrake do gibi!
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Ao lado do Filho do Presidente, a Modelo de Capa de Revista ouve e não entende a piada. O Mágico agora segura sete espadas brilhantes e, com elas, transa a caixa dourada onde está presa sua assistente. Antes, joga para cima sete véus de tule de sete cores e corta-os ainda no ar, para mostrar que as espadas estão bem afiadas. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, enfia as espadas na caixa, com cuidado e muita força, fazendo as pontas saírem do outro lado. Chegou a vez da sétima espada, a caixa está toda transada. Se a assistente ainda está lá dentro, já estará morta rasgada por seis pontudas lâminas afiadas. Quando a ponta da sétimla espada surge na frente da caixa dourada,já vem suja de sangue vermelho pegajoso quente. O Mágico, que se acha atrás da caixa dourada, não vê o sangue que começa a escorrer através do buraco aberto pela espada: é pelo burburinho da platéia assustada que ele percebe que alguma coisa saiu errada no truque. Alguns espectadores nervosos se levantam e procuram chegar mais perto do palco. A música parou, o pianista também se levanta para ver o que está acontecendo. Percebendo a agitação, o Mágico vai para a frente da caixa dourada e, assustado, toca com a mão direita no sangue, que agora corre abundantemente. Incapaz de esboçar qualquer reação, olha horrorizado para sua mão manchada de sangue e, como um autômato, dirige-se com os inseguros para a platéia, que agora está toda em pé, sem saber o que fazer. Em seu andar cego, o Mágico choca-se com o Filho do Presidente, deixando impressa uma mão de sangue no peitilho branco, impecavelmente gomado, de sua camisa. Nem o rapaz nem seus guarda-costas sabem como reagir. É o próprio Mágico quem resolve a situação, voltando ligeiro para o palco. Toma a chave dourada do bolso, abre rápido o cadeado, retira a corrente e abre a caixa dourada, que estaria vazia não fosse um véu azul transparente caído no chão, resto da fantasia da odalisca. A música recomeça, o Mágico retorna rápido para a platéia e põe o véu azul sobre a mancha de sangue no peitilho da camisa do Filho do Presidente. Alguns gestos circulares com a vare ta mágica, e quando ele puxa o véu azul a iração é geral: a mancha de sangue desapareceu como por encanto ante os olhos de todos. Sorrindo, o Mágico mostra a sua mão também limpa. A platéia compreende tudo, foi apenas mais um truque, mas como ele fez isso?, e entre exclamações de iração, estrugem palmas que 278
o Mágico agradece curvando-se num gesto de humildade, para em seguida recolher-se aos bastidores. Os espectadores sentam-se novamente, os garçons retomam o serviço trazendo bebidas, o conjunto musical assume rapidamente seu lugar no palco e começa a tocar música de dança. Alguns pares se encaminham para dançar na pequena pista, entre eles o Filho do Presidente com a Modelo, sua companheira de mesa. O comentário geral é sobre as habilidades do Mágico, nunca ninguém havia visto truques tão assombrosos. Porém, ninguém notou que a assistente vestida de odalisca não reapareceu para agradecer os aplausos. Foi vista pela última vez quando entrou na caixa dourada e se pôs de cócoras, enquanto o Mágico fechava a tampa. O Mágico dirige-se agora para o corredor no fundo do palco, onde há quatro camarins, todos do lado direito, todos com uma estrela dourada na porta e identificados pelos números 1, 2,3 e 3A. Ele precisa saber, com certeza, qual das portas abrir. Uma delas se encontra chaveada, é a do camarim onde o cantor francês, que entrará em cena logo mais, aspira cocaína. Outra fecha um camarim às escuras que não será usado esta noite. Outra, quando aberta, mostrará a assistente de roupão, esperando a volta do Mágico para, depois de um prolongado beijo, comentarem a repercussão do show. Finalmente, abrindose a última porta encontra-se a assistente ainda vestida de odalisca, estendida num pequeno tapete azul, morta ensangüentada pelas catorze perfurações por onde entraram e saíram as pontas das setes espadas. O Mágico está parado no início do corredor. Ele hesita, sabe que tem que abrir uma única porta mas não sabe qual, tem que ser a do camarim onde a assistente está viva, à sua espera. Qualquer uma das três outras que abrir e o truque não terá dado certo, e ele terá de prestar contas àjustiça pelo assassinato. Iguais são as portas com a estrela dourada, diferenciadas apenas pelos números de 1 a 3A , e somente uma pode ser aberta, aquela que o levará aos braços da assistente. Aberta, qualquer uma das outras o conduzirá à prisão e à morte, o preço que terá de pagar por não ter sabido usar com sabedoria seus poderes mágicos. No corredor, o Mágico hesita diante de qual porta abrir. E você, sabe qual a porta certa? É uma mágica. Não posso reveláIa porque fere a ética - é vedado a um mágico revelar seus truques, pois prejudicaria os colegas: que graça teria um truque que já se sabe como foi feito? 279
Ao executar a mágica destas páginas, eu ei a você todas as informações para abrir a porta certa: a 1, a 2, a 3 ou a 3A. É um truque entre eu e você. A da vida ou a da morte? Você tem que saber. De minha parte, executei o truque bem devagar, bem à sua vista, com exagerado excesso de detalhes. Fiz questão de dar indicações para que você percebesse, claramente, onde está a chave do segredo. Vamos, você tem todas as condições de abrir a porta certa: pense, escolha, abra.
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A cadeira do diaho - Um mistério
Não vejo como isto possa interessar a você.
A cena representa um laboratório de alquimista. À direita, um armário baixo de portas envidraçadas com muitos livros velhos encadernados, tratados de magia alquímica, papéis amarelecidos com encantamentos, exorcismos e pentagramas desenhados, retortas, provetas, alambiques, filtros, esferas de vidro azul e outros utensílios mágicos. Ao lado desse armário, pendurada na parede do fundo, uma panóplia com algumas armas brancas, espadas e punhais remontadas por um elmo. À esquerda, meio voltada para a platéia, uma cadeira de espaldar com braços, estofada de veludo vermelho.
Mas como pode, alguém que vive nos dias de hoje, num país preocupado com os terríveis problemas sociais pelos quais atravessamos, se interessar por um mistério levantado pelo célebreAlexander Hermann (e, segundo alguns autores, pelo não menos famoso Steward Chamberlain) em Portugal, na cidade do Porto, em 1887?
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Alguém bate à porta do gabinete. O Alquimista, vasta barba branca, vestido com uma longa túnica azul cerúleo brilhante onde vemos, bordados a ouro, rodeados por estrelas prateadas, todos os planetas conhecidos até então, a cabeça calva coberta por comprida e cônica mitra, das que usavam os antigos sacerdotes caldeus, abre a porta e faz o Visitante entrar. Homem de uns trinta anos, cerrada barba preta, olhos pretos perscrutadores, o Visitante revela-lhe a causa que o traz ali, àquele obscuro gabinete: a busca de uma resposta, que não encontrou até agora, para um angustiante problema de ordem pessoal que muito o aflige.
Não entendo como alguém acostumado comfrases curtas, de textos ligeiros, consegue ainda se concentrar e acompanhar longas orações que reportam feitos ados acontecidos com personagens inomináveis, dos quais a história não guardou registro algum e que não têm interesse aparente para os dias atuais. Você não se inclui nesse caso, não é?
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o Alquimista,
sabendo que o Visitante carrega nos bolsos uma grande quantidade de dinheiro, maliciosamente procura logo convencê-Io a descansar e assentar-se na cadeira estofada, a fim de observar uma grandiosa e maravilhosa experiência científica que abrirá sua mente para a compreensão de arcanos herméticos que muito o ajudarão na solução dos problemas que o afligem. Tão logo o Visitante se acomoda na cadeira estofada, o Alquimista degola-o com uma aguçada espada que tomou da panóplia na parede.
Estarão todos acostumados a escritores de vocabulário parco ou a jornais e revistas ilustradas com textos breves de palavras fáceis? Será difícil entender o significado de certas palavras usadas para descrever objetos de um mundo ao qual não se pertence? Uma ajuda: panóplias são aqueles escudos nos quais se colocam diferentes armas e com os quais se adornam as paredes.
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Após a degolação, enquanto o ensangüentado corpo decapitado ainda perneia, o Alquimista toma a cabeça cortada e coloca-a em cima do armário baixo de portas envidraçadas e volta para revirar os bolsos e roubar o dinheiro do Visitante assassinado. Nesse momento, a Cabeça Cortada põe-se a vociferar, angustiada e revoltada, contra o Alquimista, seu assassino e ladrão. É bom ressaltar que, antes de consumar o odioso crime, o Alquimista, sob o pretexto de protegê-Io das emanações dos produtos químicos utilizados na maravilhosa experiência que mostraria dali a instantes, cobriu a roupa do Visitante com uma grande toalha branca e colocou-lhe na cabeça um elmo medieval, que também retirou da panóplia. Na verdade, a toalha serviu para recolher o sangue derramado; o elmo, viseira cerrada, para marcar o lugar certo do corte e impedir a vítima de pressentir o golpe. De cima do armário, a voz irada da Cabeça Cortada roga pragas contra o criminoso Alquimista. .b
Não sei como pode alguém, habituado a textos jornalísticos que exaltam personagens reais destes tempos de crise (povos em luta, líderes políticos, chefes de Estado, homens de negócios, artistas ... ) e acostumado a ver a imagem deles movendo-se nas telas da televisão ou fixada em fotos coloridas nos jornais e revistas de grande circulação, não sei como pode ainda se emocionar com uma sangrenta ocorrência entre um falso mago e seu ingênuo cliente, acontecida há mais de um século num outro país. 286
o
Alquimista arranca dos bolsos do ensangüentado decapitado notas e moedas de ouro. Ao ver a alegria feroz com que o assassino saboreia o êxito de sua criminosa aventura, a Cabeça Cortada, pele pálida graças à perda de sangue contrastando com a barba negra, lábios roxos da morte, vermelhos olhos abertos, exclama com voz rouquenha, quase sem forças, de ódio: Que Satã te carregue para o mais negro dos infernos!
Nesse momento, de súbito, numa estrondosa explosão de fumaça, uma grande chama negra surge do chão. Nela aparece um terrÍvel demônio com chifres, vestido com sua infernal roupa vermelha, e, abraçando-se ao Alquimista, some com ele pelo solo, ao som de sua estrepitosa gargalhada. Enquanto isso, o pano cai vagarosamente.
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Quem está acostumado a encontrar explicações científicas sobre o que leu, em poucas linhas, segundo a dialética do pensamento dominante, talvez espere que eu proceda de maneira semelhante aos autores de sua predileção, que não só explicam os acontecimentos com palavras claras, como ainda acrescentam às explicações respostas para os angustiantes problemas que afligem a humanidade. Confesso que minhas capacidades não chegam aos pés desses autores. Não vou, é claro, recomendar a leitura de A propos de Ia sugestion mentale, de Charles Richet, ou Sur les mouvements musculaires inconscients en rapport les images, de Gley, ambos editados pela Société de Biologie, respectivamente em maio ejunho de 1884; e nem mesmo A cadeira de Satã, de David de Castro, editado em português por Lugand e Geneloux, em 1888, por serem obras há muito esgotadas e, portanto, de difícil aquisição nos dias de hoje. Pretendo, isto sim, resolver - espero eu - alguns problemas técnicos que expliquem os misteriosos fatos acontecidos entre o Alquimista e seu malfadado Visitante, como se verá adiante.
Para o perfeito entendimento de A cadeira do Diabo, torna-se necessário: lº) Uma cadeira de espaldar cujas portas devem ser furadas da forma que se vê no desenho abaixo.
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Esta cadeira tem externamente as costas forradas de tecido elástico pintado, a imitar o padrão do estofo geral. As costas da cadeira assim constituídas muito auxiliam o comparsa quando precisar ocultar a cabeça na cavidade, a qual deve ser coberta por uma tênue tabuinha apenas suspensa pela extremidade superior e igualmente pintada à imitação do estofo.
A cadeira, aparentemente, aCIma.
deve mostrar o aspecto do desenho
2º) Uma espada.
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3º) Uma esponja embebida em tinta vermelha para simular sangue. 4º) Uma toalha branca grande. 5º) Pólvora seca. 6º) Dois homens parecidos (comparsas), semelhantes por natureza ou por artifício. 7º) Um terceiro homem para vestir a fantasia vermelha de diabo. 8º) Uma bela mulher alta de lindos cabelos cor de mel; ralos pêlos púbicos num tão volumoso monte de Vênus que só se lhe possam acariciar com as duas mãos em concha; boca carnuda; olhos glaucos; ancas anchas; seios bastos com bicos róseos; e pele clara. Que tão exata seja que, caso se lhe traçasse uma linha reta ao meio de seu formoso corpo, as duas partes, a esquerda e a direita, fossem simétricas tanto que uma igual à outra seria, em sua perfeição. 9º) Um elmo aberto na parte de trás, tal como mostra o desenho, e cujo gancho serve para engatar no bordo superior das costas da cadeira, quando estiver ele enfiado na cabeça do visitante. Este elmo deve ser sempre mostrado de frente, para que ninguém veja a abertura e o gancho que tem atrás.
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lOº) Um armário com portas envidraçadas (p) e aparência regular, mas encerrando ao centro um ângulo de espelhos (g), conforme planta reproduzida abaixo, que deixa na parte de trás (H) espaço folgado o suficiente para esconder, desde o começo, um comparsa parecido com o visitante. O ângulo de espelhos reflete as prateleiras e os lados internos (K) do armário, pintados de negro de modo a manter ao olhar a ilusão de profundidade, e não pode ser descoberto, em virtude da distância de quem o vê, dos muitos aparelhos (frascos, retortas, esferas de metal etc.) que as prateleiras contêm e da obscuridade reinante no gabinete do Alquimista.
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Agora pratiquemos. Quando sobe o pano, o Alquimista está absorto em seus estudos necrológicos. Batem à porta e entra o Visitante. O Alquimista convence-o a se sentar na cadeira mecânica, introduz-lhe na cabeça o elmo adrede preparado e estende a toalha sobre o corpo dele. Em seguida, cerra a viseira e busca uma espada na panóplia de onde havia tirado o elmo. É nesse instante que o comparsa que faz as vezes do Visitante se empurra contra o pano elástico da cadeira e enfia a cabeça pelo alçapão (cuja portinhola, pelo seu peso, volta a ficar vertical), deixando-o visível apenas do pescoço (coberto pela toalha) para baixo: como o elmo está com a viseira cerrada, imagina-se que a cabeça ainda está ali dentro. Então, o Alquimista põe a mão esquerda na beira do elmo e aplica com a direita o golpe fatal, ZÁS!, e era uma vez o Visitante. Usando a mão esquerda, o Alquimista espreme a esponja, que esguicha sobre a toalha como um jorro de sangue, enquanto o Visitante finge os estertores da morte. Em seguida, o Alquimista atira a espada ensangüentada no chão e, trêmulo, vai colocar o elmo em cima do armário. Escusado dizer que o segundo comparsa, que já estava escondido dentro do armário, enfia a cabeça pelo alçapão apenas o Alquimista pousa o elmo ali. Junto ao cadáver decapitado, o Alquimista, exultando de contentamento com o dinheiro que roubou, é de súbito horrorizado pelas ameaças que a cabeça, de cima do armário, cavernosamente lhe dirige. Então, através da fumaça e das chamas provocadas pela explosão da pólvora seca - tal como o leitor já deve ter visto nas cerimônias de umbanda -, surge, pelo alçapão do palco, o terceiro comparsa fantasiado de demônio, e, com gargalhadas sinistras, arrasta o Alquimista pelo mesmo alçapão. As cortinas se fecham, encerrando o espetáculo. É o fim de tudo. FIM
E quanto ao sentido do que foi narrado, à mensagem, ao "o que quer dizer isso?". Eu, que talvez nem mesmo saiba o sentido do que escrevi, tenho que deixar ao paciente leitor a tarefa de achar um sentido para a vida e a morte também dos personagens desta história.
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Um mistério no trem ..f antasma
o fato aconteceu na fria noite de sábado no Parque de Diversões Alvorada, na mesma noite em que o homem chegou na Lua, 19 de julho de 1969. Por volta das dez e quinze da noite, ajovemJucélia Ramos, de 16 anos de idade, embarcou no trem-fantasma em companhia de Astolfo Dagoda, 17 anos, a quem conhecera naquela tarde no eio PÚblico. Quarenta e cinco segundos depois, o carrinho deixava o negro túnel trazendo apenas Astolfo Dagoda: sua companheira havia desaparecido misteriosamente durante o percurso. Jucélia Ramos nunca mais foi encontrada, nem foi encontrada nenhuma explicação razoável para seu desaparecimento, constituindo o fato, até hoje, um dos grandes casos insolúveis de nossos arquivos policiais. Além da polícia, que realizou profundas investigações, seguindo exaustivamente todas as pistas levantadas, particulares, a imprensa, entidades estudiosas de fenômenos paranormais e segundo alguns o próprio Serviço de Informações do Exército estudaram o caso, não chegando a nenhuma conclusão . ..tiS-
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Retrato falado de Jucélia Ramos Voc~ conhece esta mo7a? 295
Desde os anos 50 que o Parque de Diversões Alvorada está montado no início da avenida João Gualberto, em frente do eio PÚblico de Curitiba. O trem-fantasma é uma construção retangular de vinte metros de frente por dez metros de fundo. Sua fachada, imitando uma estação ferroviária, ostenta grosseiras pinturas cujo colorido berrante representa cenas macabras: loiras semidespidas sendo atacadas por vampiros, lobisomens, múmias e outros monstros. Do tamanho de um homem e vestido de ferroviário, um boneco mecânico de cera toca uma sineta de bronze sinalizando a partida dos carrinhos de ferro, que fazem as vezes do trem e carregam dois ageiros cada. O trem parte, entra na escuridão das paredes de madeira pintadas de preto e logo já vira, entrando veloz por um túnel reto em direção à parede do fundo, onde faz uma inesperada curva de noventa graus e arranca gritos de susto dos ageiros, já fazendo uma nova curva e entrando em outro túnel na direção da parede da frente. Essas curvas são a graça do negócio, pois aumentam a sensação de desequilíbrio e velocidade. Os carrinhos circulam num monotrilho preso ao chão. Em seu trajeto, vão acionando as diversas figuras fantasmagóri296
cas e ligando, por instantes, umas pequenas luzes que iluminam essas cenas macabras, nas quais aparecem bonecos de cera em forma de caveiras, enforcados, múmias e monstros de vários tipos, dando a impressão de que o trem vai se espatifar contra eles. Numa das paredes do fundo há uma teia com uma enorme e repulsiva aranha negra. No túnel desta cena ficam suspensos no escuro vários fios de linha e aranhas de borracha, bem na altura da cabeça dos ageiros. Isso traz a desagradável sensação de que estamos rompendo enormes teias com aranhas que se enroscam em nossos cabelos. Num pequeno trecho do percurso o carrinho sai do túnel, ficando por instantes à vista do público antes de mergulhar novamente na escuridão. O trem-fantasma sempre atrai um grande número de curiosos, que vibram ao ver a expressão assustada dos ageiros e ao ouvir seus gritos, que mesmo o barulho dos carrinhos correndo nos trilhos não consegue encobrir. Uniformizado de chefe da estação, apenas um funcionário do parque se encarrega de todo o serviço: recolher os bilhetes, colocar os ageiros no trem, e fixar a barra de segurança que os impede de cair do veículo em movimento. Empurra o carrinho para dar o impulso inicial e, terminado o tr~eto, aciona a trava que o faz parar e liberta os ageiros. Mesmo nas horas de maior movimento, nos fins de semana, o "chefe do trem" solta apenas um carrinho de cada vez, nunca deixando mais de dois circulando no tr~eto, o que poria em risco a segurança dos ageiros. Os 45 segundos desta viagem confiável, porém cheia de sustos, sempre serão uma das maiores atrações de um parque de diversões de qualidade. Conforme o depoimento de Astolfo Dagoda (inquérito nº 365/69 da SSP-PR), na tarde de sábado, 19 de julho de 1969, por volta das quatro da tarde, ele entrara no eio Público com a finalidade de se distrair e, talvez, conquistar uma namorada. Na ocasião o depoente era auxiliar de panificação, "padeirinho", na Padaria Aurora, sita na rua Atílio Bório 1313. Ficara olhando os animais do eio, detendo-se a maior parte do tempo junto da jaula dos macacos, bichinhos que lhe interessavam bastante. Por volta das seis, seis e meia, trava conhecimento com uma moça que lhe pareceu bonita e ajeitada. A princípio a moça, que estava sozinha, procurou afastá-lo: "Estou esperando meu namorado. Vê se cai fora!". 297
Atraído pelas maneiras dela, Astolfo insistiu e, segundo ele, aos poucos ela foi cedendo à sua "boa conversa" e começaram a ear juntos pelo parque. Ela lhe disse chamar-se Jucélia, Jucélia Ramos. Primeiro afirmou ser estudante mas depois confessou ser doméstica, trabalhando para um família no rico bairro do Batel. Conversaram então sobre vários assuntos; ela adorava música e disse estar vindo do auditório da TV Paraná, onde fora assistir ao programa Ponto 6, para ver e ouvir o conjunto Os Vondas, de que gosta muito, principalmente quando eles tocam aquela música dos Beatles "Hey,Jude". Astolfo Dagoda afirma que pagou para ela primeiro uma paçoquinha e depois uma maçã do amor, que ela trincou com seus dentes perfeitos bem branquinhos. Abraçados, tiraram uma foto num lambelambe do eio Público (atente para este detalhe); ele pagou adiantado e ficaram de pegar as cópias meia hora depois, mas esqueceram, entretidos que estavam um com o outro. Escurecia rápido e havia esfriado bastante. Astolfo tirou seu pulôver azul-marinho e fez que ela o vestisse por cima do vestido branco de mangas curtas, pois não trouxera agasalho. Segundo ele: Foi nesse momento que senti que eu gostava dela, e ela de mim. Depois que ela vestiu o pulôver, eu segurei a mão dela e disse: Nossa! Como você está com a mão fria. Ela riu e me disse: "Mão fria, coração quente!". E tirou suas mãozinhas da minha. Ela falava sempre sem tirar os olhos dos meus e eu sempre olhando para a boca, para os lábios dela, finos cobertos de batom bem vermelho.
Segundo Astolfo, quando ela sentiu fome comeram um espetinho de um churrasqueiro que estava com o carrinho em frente ao Parque de Diversões Alvorada. Ele lembra que a fumaça do braseiro se juntava com a neblina, que ia forte naquela hora. Nem sinal da Lua, nébuIa, noite escura. Ela falou com tristeza dos astronautas que iam descer na Lua naquela noite: "Imagine se lá tiver uma neblina assim, naquele gelado". Falou ainda que os patrões delajá estavam com a televisão ligada, que ia mostrar tudo quando eles chegassem na Lua. Aí eu, Astolfo Dagoda, falei: Não preciso subir tão alto, a Lua está comigo aqui, agora. Falei isso e ela me sorriu, de um jeito tão bonito. Não sei nem quanto tempo ficamos no parque de diversões. Atiramos no tiro ao alvo, não derrubei nenhum maço de cigarros, eles limam a mira das espingardinhas de ar comprimido e a gente não acerta uma. Não, não fumo, não senhor. Entramos no palácio dos espelhos, fica tão engraçado a gente se ver deformado daquele jeito. Teve uma hora que reparei que tinha um cara 298
nos seguindo, olhando muito para nós. Foi ela quem me chamou a atenção. O que ele queria? Era bem maior que eu, mas cheguei nele efalei: Que é, cara? Qual é a tua, Ô meu? Tá invocando com a minha cara?! Tá me achando bonito, é? O cara mixou e deu no pé. Não sei bem a hora, depois fiquei sabendo que era lá pelas dez, resolvemos dar uma volta no tremlantasma para matar o tempo, pois tínhamos acertado de ir no baile da Estrela da Manhã, que começa às dez e meia. Até ali eu não tinha tocado nela e achei que na escuridão do tremlantasma era a ocasião de sapecar um beijinho nela. Comprei as duas entradas, 20 centavos cada, e entramos. Aí aconteceu ...
Os depoimentos são todos muito desencontrados. O padeirinho Astolfo Dagoda insiste em afirmar que entrou no trem-fantasma junto comJucélia Ramos e que ela desapareceu na escuridão durante o trajeto, não sabe explicar como. Entretido que estava com as assombrações no escuro, só veio a notar o desaparecimento dela quando o carrinho completou a viagem. Angenor de Oliveira, alcunhado Caveirinha, na ocasião encarregado do trem-fantasma, disse que havia algum movimento naquela hora e não põde precisar se Astolfo Dagoda entrou sozinho ou acompanhado. Porém se lembra muito bem que, quando travou o carrinho, Astolfo muito pálido - ele pensou que era de medo pela viagem _ perguntou aflito pela moça que estava com ele. Em vista da agitação e estranhando o desaparecimento, coisa que nunca acontecera desde que ali trabalhava, Angenor de Oliveira cortou a corrente elétrica e, com uma lanterna de mão, entrou nos túneis acompanhado de Astolfo Dagoda para ver se achavam a moça desaparecida. Percorreram todo o trajeto, examinaram tudo e nada encontraram de anormal. Ele, Angenor de Oliveira, não acreditava que a moça tivesse pulado ou caído do carrinho em movimento. Se isso tivesse acontecido, ela fatalmente teria sido atropelada pelo carrinho seguinte e haveria manchas de sangue pelo chão, além do cadáver, é claro. Muitos curiosos se aglomeraram no local. Angenor fez nova vistoria, desta vez acompanhado não só de Astolfo, mas de outras pessoas alarmadas pelo mistério. Novamente nada foi encontrado. Constatou-se que se a moça tivesse caído ou pulado e tivesse escapado com vida do atropelamento, não poderia ter saído por nenhuma das paredes, que se encontravam intactas; se tivesse saído por uma das bocas dos túneis, certamente teria sido vista. Disse Angenor que, ainda naquela noite, voltara a verificar o interior do trem-fantasma junto com o guarda299
civil que viera atender a ocorrência, e, mais uma vez, nada encontraram de anormal. Afirmou ainda não acreditar em fantasmas e em almas do outro mundo. Já a depoente Cremilda Gomes, parda, 20 anos, solteira, doméstica, testemunhou que, quando o carrinho com o casal saiu para o claro, ela viu nitidamente o rapaz abraçado com a moça e que, de repente, ela sumiu como se tivesse evaporado.
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Que foi tudo tão rápido, e logo o carrinho entrou de novo no túnel, e ela não deu na ocasião muita importância ao fato, pensou que fizesse parte dos truques do trem-fantasma para atrair freguesia. Essa testemunha, que muita gente considera importante, não mais se apresentou, e o endereço por ela fornecido durante seu depoimento na Delegacia Central não foi localizado. O guarda-civil nº 067, em serviço naquela noite no Parque de Diversões Alvorada, nada acrescentou de importante, pois fora chamado somente depois do fato ter acontecido. Nada achou de anormal quando do exame do local, porém, em vista da aglomeração de pessoas e da polêmica que o fato estava causando, encaminhou Astolfo Dagoda para apresentar queixa na Central. Com ele foram as testemunhas Cremilda Gomes e um rapaz que não declarou o nome e disse saber tudo sobre o desaparecimento de jucélia, mas que só falaria na presença do delegado, pois eram revelações sigilosas. No entanto esse rapaz nem chegou a depor: enquanto os outros entravam na Delegacia Central, alegando que ia pagar a corrida ele entrou no táxi e partiu para não mais ser visto. O estranho comportamento de outra testemunha, Karel Stephanovich, trouxe mais contradições ao inquérito policial. Retratista do eio Público, no domingo à tarde Karel foi procurado pela polícia, que trazia Astolfo Dagoda - o rapaz pernoitara encarcerado na Central, até a chegada do delegado Miguel Zacarias no domingo pela manhã. O comportamento de Karel Stephanovich foi contraditório: primeiro disse que não se lembrava de nada; depois disse que lembrava e entrou na sua barraca para buscar as fotos que o casal esquecera de pegar. Demorou lá dentro e, quando os policiais já demonstravam impaciência, voltou muito pálido, dizendo que se enganara, que não tinha tirado nenhum retrato e que nada sabia da história. Irritado, Astolfo Dagoda gritou que ele estava mentindo e que escondia alguma coisa. Os policiais acalmaram o rapaz e intimaram o fotógrafo a prestar depoimento na Central, segunda-feira à tarde. Contudo, segunda pela manhã Karel vendeu seu negócio a toque de caixa e saiu da cidade, mudando-se para lugar incerto e não sabido. Ao que consta, nunca mais retornou a Curitiba. A imprensa já fazia grande estardalhaço sobre o desaparecimento da moça, quando na terça-feira a polícia técnica realizou exames no trem-fantasma. Foi encontrado um pedaço de tecido branco que, a princípio, pensou-se ser um rasgão do vestido da desaparecida; sub301
metido a exames de laboratório, constatou-se ser parte da atadura da múmia. O Diário do Paraná,jornal dos hoje extintos Diários Associados de Assis Chateaubriand, levantou a hipótese de que jucélia teria descido do trem e se escondera num dos caixões de defunto que, acionados pela agem do carrinho, se abrem, deles se erguendo os bonecos ameaçadores. jucélia teria ficado ali até as buscas terminarem e depois saíra tranqüilamente. Como a hipótese parecesse plausível, a polícia técnica levou os caixões para exame. Ficou constatado serem muito pequenos para acomodar outra pessoa além dos bonecos de cera, e estavam tão cobertos de poeira que qualquer anormalidade teria ali deixado marcas. já o jornal O Estado do Paraná, do então governador Paulo Pimentel, trouxe de São Paulo um grupo do Centro de Pesquisas Paranormais e Fenômenos Extraterrenos, chefiado pelo frei Albino Aresi, parapsicólogo de renome. Frei Albino lançou a teoria de que a jovem teria sido raptada por seres extraterrestres. A coincidência do horário do desaparecimento de jucélia com o da descida dos astronautas na Lua comprovaria sua teoria. Nada foi publicado nos jornais, na época submetidos à rígida censura imposta pelos governos militares, mas em Curitiba corria o boato de que o desaparecimento de jucélia Ramos estaria ligado às atividades da guerrilha do MR-8 no Paraná. Esses boatos aumentaram com a prisão do chefe guerrilheiro cognominado O Bom Burguês e com o desbaratamento do MR-8 alguns dias depois em Apucarana. Contudo, sem conseguir novas pistas, a polícia começou a pressionar Astolfo Dagoda, achando tudo um embuste, coisa de um louco para chamar atenção sobre sua insignificante figura. Ou coisa pior: ele matarajucélia após violentá-Ia, crime sexual que ele procurara esconder inventando aquela história toda. O padeirinho foi detido para interrogatórios e, apesar de estar preso e incomunicável, consta que manteve essa versão dos fatos. O Diário do Paraná descobriu sua prisão, que considerava ilegal, e acusou a polícia de torturar o rapaz no pau-de-arara, de lhe aplicar choques elétricos para obrigá-Io a confessar, exigindo portanto sua imediata libertação. Quase um mês depois do desaparecimento surge uma nova pista: Almério da Silva, servente do eio Público, encontrou no lago daquele logradouro um pulôver azul que seria o mesmo usado por jucélia naquele sábado trágico. Imediatamente o delegado Miguel Za302
carias procurou Astolfo Dagoda para que ele fizesse a identificação. O jovem não foi encontrado, mas seu patrão, o padeiro Lidislau Pierko, afirmou que Astolfo, muito assustado e aborrecido com sua prisão e "tortura" (entre aspas porque nada foi comprovado), pedira a conta e deixara Curitiba para recomeçar a vida num lugar onde não fosse conhecido. Quanto aJucélia Ramos, nunca mais foi encontrada. Por mais que se procurasse alguém que trouxesse alguma luz capaz de aclarar o desaparecimento, ninguém apareceu: nem familiares, nem patrões, nem amigos ou conhecidos. Era como se ela nunca tivesse existido, ou como se sua existência nunca tivesse sido percebida pelos habitantes de Curitiba.
Hoje, ado tanto tempo, permanece o mistério do desaparecimento deJucé1ia Ramos. O que aconteceu naquela noite no trem-fantasma? O seqüestro de uma bela jovem para fins inconfessáveis, provavelmente um crime sexual? A ação nefasta da guerrilha do MR-8, bastante atuante no Paraná naqueles tempos? A vingança de seres extraterrestres irritados com a chegada do homem na Lua? 303
Seria o trem-fantasma um lugar assombrado e almas do outro mundo carregaramjucélia Ramos? Foi tudo uma trama da própria polícia, armada sabe-se lá por quê? Ou tudo não ou de uma farsa hedionda do padeirinho? Perguntas até hoje sem resposta. São muitas as teorias e certamente o leitor terá escolhido ou criado a sua. Talvez um dia, num futuro que esperamos não esteja muito longe, a verdade apareça. A verdade sempre aparece.
304
Mistério
Sapho
() amor entre as mulheres
o cinema paranaense continua um insólito desconhecido. Contam-se nos dedos os estudos e pesquisas sobre o nosso cinema, apesar de alguns esforços iniciados principalmente após a criação da Cinemateca do Museu Cuido Viaro, em 1975. Ali foram recuperados filmes, até então considerados perdidos, de Annibal Requião, Arthur Rogge e João Batista CrofE. A esses vem se juntar agora Crispim Carmoro, de quem acabam de ser encontradas partes do filme Sapho - O amor entre as mulheres. Foi encontrada uma cópia 35 mm com apenas quatro bobinas, as de número 1,3,5 e 8, das oito que compunham o filme. A cópia encontrada está em péssimo estado, com partes totalmente meladas, necessitando urgentes trabalhos de restauro em laboratórios especializados. Faltam diversos trechos, e a bobina 5 está inteiramente empedrada, definitivamente perdida. Somente com os serviços de restauração será possível a feitura de um novo negativo, permitindo a confecção de novas cópias íveis de serem projetadas. Presumivelmen te Crispim Carmoro faleceu em 1928, seis anos após ter realizado o que parece ser seu único filme. Não deixou descendentes. Consta que sua esposa, Josephina Bello Carmoro, após a morte do marido transferiu-se para Vitória do Espírito Santo, onde teria parentes. Não pudemos confirmar essa informação. O que restou de Sapho foi encontrado num galinheiro em Almirante Tamandaré. Ali ficara sob a guarda de Rodolpho Hertoso, amigo de Crispim Carmoro. Com a morte de Hertoso, aos 85 anos, seus familiares aram as latas do filme para as minhas mãos. Sapho - O amor entre as mulheres é um filme erótico. Pornográfico, se adotarmos outra nomenclatura. Desde os princípios do cinema são feitos filmes pornôs, como Dama ao banho, de Ceorge Melies, realizado em 1899. A Cinemateca do Uruguai tem em seus arquivos a maior coleção de filmes eróticos primitivos, entre eles vários de D. W. Criffith, considerado o pai da linguagem cinematográfica. Para não falarmos do agora, o cinema brasileiro tem vários exemplos de filmes eróticos ou pomôs: desde Lucíola (1916), da obra de José de Alencar, no qual a atriz Antônia de Negri aparece nua, dirigido por Antônio Tibiriçá, que faria Vício e beleza (26) e produziria Depravação (23), de Luiz de Barros, que também dirigiria Messalina (30), até as várias versões de A carne, a de 24, dirigi da por Leo Martem, e a de 26, de E. C. Kerrigan, ando pelo curioso Le film du diable (17), que, apesar do nome, é brasileiro, dirigido por Vitor Ciacchi, e com a atriz que se escondia sob o pseudônimo de Miss Ray mostrando suas carnes. Crispim Carmoro teve portanto a quem puxar. 307
Mas quem foi esse homem e o que o levou a filmar um longa-metragem erótico na provinciana Curitiba de 78968 habitantes em 1922, ano em que acontecia em São Paulo a Semana de Arte Moderna? Sabemos pouco de Crispim Carmoro, nem se era italiano ou descendente. Apareceu em Curitiba provavelmente logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-8). Aqui ou a exercer a profissão de estucador. Além das decorações em gesso, fazia pinturas decorativas. Em algumas velhas residências curitibanas encontram-se paredes com suas pinturas. Através dessa arte tornou-se conhecido, não só das famílias tradicionais da cidade mas também de pintores como Alfredo Andersen, Lange de Morretes e Waldemar Curt Freysleben. Pelo tema e letreiros de Sapho, é de se supor que mantivesse relações de amizade com Dario Vellozo, Emiliano Perneta e outros poetas do movimento simbolista, que buscavam inspiração na Grécia Antiga. Não se sabe se Crispim Carmoro tinha algum conhecimento técnico de cinema, nem quem o iniciou nos segredos da linguagem cinematográfica. Sabe-se que era amigo, ou pelo menos conhecido, de Annibal Requião, que lhe cedeu ou alugou o equipamento para as filmagens de Sapho. É certo que não lhe faltavam gosto artístico e conhecimento de fotografia, as imagens de Sapho têm momentos de rara beleza. O único nome que aparece na ficha técnica é o de Crispim Carmoro como realizador, mas talvez Sapho possa ter sido filmado por ele ou por algum dos fotógrafos atuantes em Curitiba, que preferiu não o trabalho em virtude do tema ousado do filme. Da mesma maneira que nenhuma das atrizes arriscou colocar seu nome nos créditos. O filme abre com um letreiro: PARTHENON FILMS - CURITYBA 1922. As letras estão desenhadas sobre um cartão-postal com vista fotográfica do Partenon de Atenas. Em seguida vem o título:
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E sua complementação:
O AMOR ENTRE AS MULHERES. E ainda: UMA Todos esses créditos iniciais estão emoldurados com ornamentos em estilo grego. Segue-se um longo texto explicativo dividido em duas partes. Lembrar que se trata de filme mudo, realizado por quem não dominava plenamente a linguagem do cinema. Daí a necessidade de longos letreiros para desenvolver a açao:
PELICULA CRISPIM CARMORO.
Em seu resplandescente palácio na ilha de Lesbos, protegida pelo resplendente azul do jirmamento vago, na lassidão cálida de uma noite de verão, quando o aroma de nardos, excitante e lascivo, concorre para o enlace sensual dos corpos, Sapho reune-se com suas amigas, sacerdotizas de Vénus, a Deusa do Amor.
Após esse longo texto introdutório, aparece uma vista de palácio grego, claramente uma pintura filmada, e outro letreiro: Sapho, a bella sacerdotiza pagã, para o doce sacrifício à Vénus.
de farto
sangue
quente, prepara
o altar
Aí começa propriamente a ação do filme. Vemos meio de longe a atriz que interpreta Sapho pondo incenso num turíbulo sobre um alto tripé. Há um corte para um plano mais aproximado, Sapho levanta os olhos em direção à câmera e se põe a falar (através de letreiros), como que se dirigindo aos espectadores:
o meu lugar não é em meio de vocês, Homens rudes e maus, de semblante tristonho. Não é no meio de tanta insipidez, Dum egoismo atroz, dum orgulho medonho. JV1eu lugar é aqui, de amor a gemer Entre rainhas como flor; graciosas donzelas Entre gestos e corpos que me causam prazer.
Sapho baixa a cabeça, termina de colocar incenso no turíbulo e, em meio à fumaça, inicia grotescos movimentos de dança.
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Em sua dansa, o corpo delinquente sem pudm; Sapho invoca Venus - Deusa Pagã dos amantes E conclama suas bachantes Para os embates do amor.
À medida que se desenvolve a dança, são mostradas as outras no filme só atuam mulheres - "bachantes", sempre precedidas de um letreiro que as identifica pelo nome:
Prokné - a favorita de Sapho, no seu seio Que frescura! Que olor! Que límpido gorjeio! 310
Aglaura - virgem pura, virgem bela como Vénus, Virgem de olhos glaucos e seios morenos!
Hypolita - musa pagã de basta cabeleira loura, Corpo rijo, olhos de engodo e boca sedutora!
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Euridice - angélica expressão de causas mansas, Formas tentadoras, rosto de mulher, sorriso de creança!
Fátima - escrava núbia de corpo ardente, Liso, odulante como o de uma serpente!
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Esta última é a única negra que aparece no filme. Com sua imagem termina o primeiro rolo. É de se supor que o segundo, não encontrado, prossiga com a apresentação das celebrantes em poses lascivas, seminuas, envoltas em véus e adornadas com bijuterias que simulam ser jóias de valor. Os trajes, se é que podemos chamá-Ias assim, arremedam roupagens gregas ou orientais. O cenário, representando o interior de um templo grego, não a de um cortinado escondendo as paredes e um chão coberto por tapetes. Almofadões, cadeiras de madeira entalhada, colunatas e alguns vasos de gesso imitando urnas gregas completam a cenografia. Tudo lembra os cenários de gosto duvidoso utilizados nos estúdios dos retratistas da época como fundo de suas fotografias. Não há muita ação no filme, nem cenas de sexo explícito ou de nudez total. O que vemos é a repetição constante de imagens, com a câmera estática focalizando Sapho e suas "bachantes" envoltas em véus, seios à mostra, esforçando-se para fazer poses eróticas, em geral rolando pelo chão. A bobina número 3 apresenta várias de suas partes meladas e faltam alguns trechos. Provavelmente foram cortados por alguém que, olhando os fotogramas contra a luz, queria se deliciar com as imagens das mulheres semidespidas. Essa bobina inicia-se com um letreiro: Sapho empina o ventre, arqueia o busto e num repente Elétrica se lança aos golpes tentadores, Difundindo luxúria e provocando ardores Como se a carne houvera em convulsão, fremente.
As imagens que se seguem a esse letreiro são da atriz que personifica Sapho dançando - o termo mais certo seria rebolando - entre as outras figurantes.
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Ei-la saracoteando, o corpo delinqüente Semi-velado ostenta às luzes multicores, As bachantes deliram em lúbricos jurores, Arrastam-se coleando em silvos de serpente.
Além de mostrar Sapho dançando, esta cena está entrecortada com imagens das "bachantes" sempre em poses lânguidas. Toda essa parte está tintada de vermelho pelo sistema de viragem - tintura de anilina usada para dar um tom de cor aos filmes da época. Entre uivos do instinto a cupidez atua E uníssono se escapa um grito retumbante: - Dansa outra vez, mas nua inteiramente nua!
A imagem que se seguiria a este letreiro não está na cópia encontrada. Provavelmente seria a única imagem de nu frontal do filme; deve ter sido tirada por alguém sequioso de excitar-se com a visão do belo corpo da atriz que encarna Sapho. Devemos lembrar que o filme, realizado em 1922, foi reencontrado somente em 1984: sabe-se lá em que mãos andou durante todos esses anos. Apesar de na época ser relativamente normal a exibição de filmes eróticos, nenhuma notícia da exibição de Sapho foi encontrada nos 314
jornais curitibanos. Contudo, o pesquisador Jean-Claude Bernardet, em seu Filmografia do cinema brasileiro, 1900-1935, edição do governo do estado de São Paulo (1972), menciona um filme com o título de Sapho no Cine Royal de São Paulo, em julho de 1923. O anúncio da exibição não diz a origem, nem mesmo se é brasileiro, e não faz referência à sua ficha técnica. Diz apenas: "Os escândalos de Sapho, a deusa de Lesbos, numa grandiosa mise-en-scene em oito partes". O mesmo número de partes do filme de Crispim Carmoro. O restante da bobina 3 é uma monótona repetição das atrizes improvisadas - quem seriam? - a rolar pelos tapetes ou enrolando os corpos seminus nas cortinas. Somente no final do filme, na parte oito, acontece algo mais forte: Sapho e sua favorita, Prokné, reproduzem diante da câmera sempre imóvel a ação descrita no poema mostrado no letreiro. Quero pousar meus lábios nos teus de framboeza E neles, como a abelha liba o mel na rosa em fiar, Quero beijar, sequiosa em delírio de amor acesa, Todo teu corpo de sensual calor! Prender-me nos divinos novelos, Aranhol dos teus fiavas cabelos, Tremerão nossas carnes no mesmo espasmo presas E nos confundiremos entre carícias ledas!
Após o poema, vemos as imagens de Sapho e Prokné enlaçadas se beijando, deitadas no chão de falsos tapetes persas. E tal como começou, o filme termina com um letreiro: Oh! Até que enfim em carícias felinas Teu busto gentil ligeiramente inclinas E te enrolas em mim e me mordes a boca!
A imagem da mordida não é mostrada. Em seu lugar vemos o letreiro:
fiM Assim termina SAPHO - O AMOR ENTRE AS MULHERES, mas a respeito dele ainda ficam muitas questões: quem foram suas "estrelas"? Prostitutas da rua Ratcliff (hoje Desembargador Westphalen), então a zona 315
do meretrício de Curitiba? Ou seriam mulheres da sociedade curitibana que aceitaram representar por dinheiro ou outra razão qualquer? Algum poeta curitibano escreveu o "enredo" e os poemas do filme e, pudorosamente, não quis ? Quem financiou a empreitada e o que se propunham os produtores com o filme? Lucro fácil ou algum outro objetivo escuso? Por que não teve continuidade a carreira cinematogáfica de Crispim Carmoro? Talento e capacidade não lhe faltavam.
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() mistério dos sinais da agem dele pela cidade de Curitiha
Indiscutivelmente são sinais da agem DELE. O local onde foram encontrados e fotografados é aquele grande terreno baldio no alto da rua xv, ao lado da caixa-d'água. O mesmo onde, no dia 29 de maio de 1986, foi encontrada nua, morta com uma estaca de madeira cravada na vagina, a prostituta Márcia de Tal, de 21 anos presumíveis, alcunhada de Polaca. Mais tarde descobriu-se que o assassino fora o engraxatejurandir Haus, de 48 anos, vulgo Careca, que mantinha sua cadeira instalada na praça Tiradentes. O revoltante crime teve muita repercussão na época e a Folha de Curitiba publicou fotos do cadáver na primeira página, o que provocou protestos generalizados. A Tribuna do Paraná, do dr. Paulo Pimentel, também publicou as fotos na primeira página, porém tendo o decoro de esconder com uma tarja preta o sexo da infeliz moça, onde o perverso assassino enfiara o grosso galho de árvore.
Olhando assim pode parecer que se trata de uma perfeita imitação em barro pintado, dessas vendidas pelos camelôs e usadas para pregar peças nos amigos. Falo isso porque tal qual as imitações é uma peça inteiriça - como que expelida de uma única vez -, com dez centímetros de grossura e cerca de trinta de comprimento desde a 319
ponta arredondada até a outra ponta no alto, onde se afina como uma cauda onde foi cortada pela contração do ânus. a bolo encontra-se enrodilhado, mostrando ter saído de uma só vez. E também que ELE se manteve de cócoras no mesmo lugar durante toda a defecação, caso contrário apresentaria outra forma que não a de um rolo. A cerca de um palmo à frente, uma poça redonda já seca mostra o lugar onde o jato de mijo penetrou no chão. À esquerda do bolo fecal, três pedaços amassados e sujos da Tribuna do Paraná. Provavelmente, ELE leu esse jornal enquanto defecava e depois, na falta de papel higiênico, limpou-se com os pedaços que rasgou, todos com mais ou menos quinze por quinze centímetros. Um deles é a parte da primeira página onde está a chamada para a entrevista com o ex-jogador de futebol Aladim, com a manchete O Gênio abre o jogo. E também parte da foto da mansão do milionário assaltada no bairro das Mercês. Impressas em vermelho, as letras TRI, parte do título do jornal, e mais o cabeçalho, onde se lê: Segundaleira 2 de novembro de 1987 Ano XXXII nº 9.062/24 páginas Às segundas cz$ 15,00. Do outro lado desse pedaço, está uma parte da seção Cartas dos Leitores, com as costumeiras reclamações contra os serviços públicos, e parte de um anúncio da Prefeitura Municipal de Curitiba intitulado Procura-se um fornecedor.
a outro pedaço que ELE usou para se limpar é o recorte do anúncio da Gronau na página onze, que tem no verso parte do anúncio de página inteira do Carrefour Pinhais. a terceiro pedaço usado pega parte dos anúncios das Lojas HM na página nove e de Pedroso, a Rei dos Tapetes, na página dez. Nota-se que ELE teve a preocupação não só de escolher pedaços do jornal com bastante branco - é sabido que a tinta de impressão provoca irritação no ânus -, mas também de não estragar partes que trouxessem reportagens interessantes para se ler. Examinando-se a Tribuna do Paraná daquele dia, vê-se que foi deixado inteiro o caderno de esportes, reportando com fotos em cores a sensacional vitória do Coritiba por 3 x 2 contra o São Paulo, na Copa Brasil. A página policial também não foi mexida, nada foi rasgado da reportagem sobre o assalto da mansão milionária, nem da notícia ATIROU NA RAPOSA E ACERTOU NA FILHA. Estão inteiras as notas da trágica morte do ancião atropelado por uma locomotiva, do caso do miliciano que roubou uma moto e do padeiro assaltado na saída do bailão. 320
Provavelmente, ELE leu a Tribuna do Paraná enquanto defecava e, depois, levou-a consigo para terminar a leitura. Daí o cuidado de estragar somente as partes desimportantes do jornal. Do lado direito, aparentemente jogados ao acaso, vêem-se três palitos de fósforos dobrados ao meio, formando um v sem estarem partidos em dois. Muitas pessoas têm o costume de fumar enquanto defecam, principalmente a céu aberto, porque isso ajuda a disfarçar o mau cheiro e a fumaça serve para espantar mosquitos. Porém, como os três fósforos não estão queimados e tampouco se vêem tocos de cigarros, pode-se concluir que ELE não fuma. Tem, isso sim, um caco ete: o de dobrar palitos de fósforos ao meio, sem parti-Ios. Durante o tempo que levou para defecar no terreno baldio dobrou três palitos. Soubéssemos nós o tempo que ELE leva para dobrar cada um, e o intervalo entre um palito e outro, poderíamos determinar com precisão durante quantos minutos - pois não acredito ter chegado a horas - ELE esteve defecando no terreno baldio, naquele dia de Finados. Examinando a fotografia com os sinais que comprovam ter ELE estado em Curitiba no dia 2 de novembro de 1987, chegamos a uma série de conclusões: ELE usa o corpo de um homem; fosse o de uma mulher, a marca da poça de urina estaria mais junto do bolo fecal - a vagina fica mais perto do orifício anal do que fica o pênis. ELE não é muito alto e pesa pouco: apesar do solo arenoso do terreno baldio ser bastante duro e ressecado, fosse ELE alto e pesado certamente suas pegadas seriam mais profundas, o que não acontece. Tem ELE o estômago em bom funcionamento, ou pelo menos não sofre de diarréia. ELE tem o hábito de ler enquanto defeca, e é leitor da Tribuna do Paraná - se bem que esta última afirmação seja discutível, podendo-se argumentar que foi o único jornal encontrado na banca. No jornal prefere o "noticiário esportivo e o policial. ELE não fuma, porém carrega fósforos e tem o sestro de, a intervalos regulares, apoiar um palito nos dedos indicador e médio para, em seguida, pressioná-Io com o polegar, quebrando-o ao meio sem contudo parti-Io. Porém, essas são observações rápidas e superficiais. Você mesmo deve ter analisado o que viu na foto e certamente teria outras ponderações a fazer. E exames mais acurados da agem DELE nos darão informações cada vez mais preciosas. Pode parecer escusado, porém quanto mais dados tivermos sobre seu comportamento, mais aptos estaremos a saber como ELE é na realidade, tanto física quanto espiritualmente. É terrível dizer, mas não 321
sabemos com qual semblante ELE se mostra ao mundo: se algum dia estivermos na frente DELE, não saberemos reconhecê-Io e certamente ELE não se revelará a nós. Por esse motivo, quando surge uma oportunidade como esta não podemos deixá-Ia escapar, temos que nos debruçar atentos sobre cada sinal da agem DELE sobre a Terra e estudá-Io incansavelmente. Somente agindo assim é que seremos capazes um dia - que espero não esteja longe - de o conhecermos na plena complexidade do seu ser e da sua obra.
Corruptio unius generatio est alterius PUTRE
factio
322
NOTA BIBLIOGRÁFICA
o mez da grippe. Novella.
Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba, 1981.
Maciste no inferno. Raconto. Curitiba, Criar, 1983.
o minotauro.
Novela. Curitiba, Logos, 1985.
o mistério da prostituta
japonesa
& Mimi-Nashi-Oichi. Curitiba, Gráfica
& Editora
Módulo 3, 1986. A ação de O mistério da prostituta japonesa se a em São Paulo, no bairro da Liberdade. A escrita japonesa e a planta do quarto são de autoria de Sônia Yamanouchi. A primeira versão desse conto foi publicada no nº 117 da revista Quem, de Curitiba, em agosto de 1984. O segundo conto, Mimi-Nashi-Oichi, a-se num apartamento em Curitiba e teve uma primeira versão publicada no nº 150 de Quem, em maio de 1986. Os haicais "Nesta noite ...", "Primeira neve " e "Esta estrada ..." são de Bashô; "Sob o sino do templo ..." e "Ah, o ado " são de Buson; "Orvalho deste mundo ..." é de Isa. O poema "Tanto sonhei contigo ..." é de Robert Desnos e, como os haicais, foi traduzido por Valêncio Xavier. "Conduz teu cavalo ..." e "Tudo é mutável. .." são trechos de A doutrina de Buda, edição em língua portuguesa de Bukkyo Dendo Kyotai, Tóquio, 1982. "Tocador de biwa" é um desenho anônimo japonês do século XIX. A "Mão com poema de Desnos" foi desenhada por Cláudia Suemi Hamasaki. 13 Mistérios + O mistério da porta aberta. Contos publicados na revista Quem:
"Um mistério no trem-fantasma", nº 94, agosto de 1983; "O mistério da porta aberta", nº 113, agosto de 1984; "Mercúrio mistério", nº 116, outubro de 1984; "Mistério Sapho - O amor entre as mulheres", nº 118, novembro de 1984; 323
"Mistério mágico", nº 152, junho de 1986; "O misterioso homem-macaco Como tudo começou", nº 154, julho de 1986; "O mistério da Sonâmbula", nº 160, agosto de 1986. No jornal O Estado do Paraná foram publicados dois contos: "Mistério do menino morto", 18 de junho de 1985, e "Os fantasmas do fundo de quintal - Um mistério", 22 de julho de 1990. O conto "Mistério números" foi publicado no nº 334 da revista Panorama, de Curitiba, emjaneiro de 1984.
OUTRAS OBRAS DO AUTOR Desembrulhando as balas Zéquinha. Estudo. Curitiba, Payol, 1973. 7 de amor e violência. Antologia de contos com outros autores. Curitiba, Edições
KM, 1964. Segunda edição: Curitiba, Criar, 1986. Curitiba, de nós. Memória com Poty. Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba,
1975. Segunda edição: Curitiba, Nutrimental, 1989. A propósito dejignrinhas. Crônicas com Poty. Curitiba, Studio Krieger, 1986. Poty, trilhos, trilhas e traços. Biografia. Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba,
1994. Meu 7º dia. Novela-rebus. São Paulo, Edições Ciências do Acidente, 1998.
Valêncio Xavier Niculitcheff nasceu em São Paulo, em 1933, e está radicado em Curitiba. Além dos livros mencionados, publicou inúmeras narrativas em jornais e revistas (Nicolau, Quem, Panorama e Revista da USP, entre outros). Como cineasta, recebeu na IX Jornada Brasileira de Curta-Metragem o prêmio de melhor filme de ficção, por Caro signore Feline. Realizou, entre outros vídeos, O pão negro - Um episódio da colônia Cecília e Os 11 de Curitiba, todos nós. É consultor de imagem em cinema e roteirista e diretor de TV. 324
BSP LIV
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