Resumo Auto Barca Do Inferno 556eu

AUTO DA BARCA DO INFERNO de Gil Vicente

Sátira Social O Auto da Barca do Inferno é exemplo acabado da sátira de Gil Vicente aos usos e (maus) costumes do seu tempo, em especial ao poder corruptor do dinheiro e ao desregramento sexual. Ele faz desfilar os representantes da nobreza, do clero, da magistratura, da burguesia e do povo com os seus vícios (e virtudes, alguns), perante o juízo do Anjo e do Diabo, que os vão condenando ou absolvendo, de acordo com o padrão oficial de conduta moral. Contexto dramático Pondo na praia do Purgatório duas barcas, uma com arrais para o Paraíso e outra com arrais para o Inferno, Gil Vicente faz chegar a essa praia, um a um, num desfile trágico, vários tipos sociais em trânsito para o seu destino, que todos crêem ser o Paraíso. O trágico está, porém, em que pelo contrário, o destino que lhes está reservado é o do Inferno. Assiste-se então ao desmontar da vida de cada um, pela análise do mérito das acções cometidas, através de despique dialéctico entre culpados (os viajantes) e os julgadores (os arrais), o qual termina com o embarque na barca do Inferno. Porque os personagens, como tipos que são, permanecem fieis a si próprios, mesmo perante a decepção de lhes ter saído errado o cálculo feito, aceitando a entrada na barca do Inferno sem evidente arrependimento (apenas o Fidalgo e o Onzeneiro têm um rebate de consciência) o drama não existe neles, mas antes em nós como assistentes do seu destino irremediável. Na barca do Paraíso apenas entram, sem qualquer julgamento, quatro cavaleiros mortos nas pelejas de África, redimidos pela sua própria morte. Também entra o Parvo, após algum tempo de espera na praia (Purgatório), porque, como pobre de espírito, será dele o reino dos Céus. O Judeu, errante por maldição, não fica em parte alguma. Irá à toa, diz-lhe o Diabo.

Resumos e Comentários das Cenas Abertura Ancorados no rio da Morte, junto à praia do Purgatório, estão dois batéis. Num deles, o do Inferno, vai grande a azáfama de o preparar com maior espaço e maior garridice para receber os ageiros. No outro, o do Paraíso, o movimento é nulo. Comentário: cena de grande movimento e importância linguística pelo termos técnicos de marinharia. Logo no início, o Diabo, com o seu irrequietismo, marca contraste com a ividade do Anjo. Cena do Fidalgo O Fidalgo interpela o Diabo, pondo em dúvida que ele consiga ageiros para barca tão desengraçada, na qual se recusa a entrar por ter deixado na vida quem por ele rezasse. Dirige-se depois ao Anjo, invocando a sua condição de “fidalgo de solar” para a entrada na barca do Paraíso. É, porém, repelido por ter sido soberbo, tirano e de desprezar os “pequenos”. Volta à barca do Inferno e, quando o Diabo o manda remar, retrai-se, dizendo que tem de voltar a terra para ver sua mulher e a amada. O Diabo informa-o de que a amada já ama outro e de que a mulher agradece a Deus ter-se visto livre dele. Entra o Fidalgo na barca do Inferno. Comentário: nesta cena temos a nobreza representada pelo Fidalgo (D. Henrique), no qual se satiriza a ostentação de grandeza, a soberba presunçosa e o desprezo pelos humildes. As acusações são feitas pelo Anjo. O Diabo apenas o ridiculariza no aspecto galante e só pela sua credulidade ante as mulheres, elas sim, acusadas de inconstantes; sarcástico, esmaga-o com as notícias que lhe dá sobre a fidelidade das duas mulheres; as últimas palavras do Diabo são de inteira aceitação do estatuto social do Fidalgo: “Ora, senhor, descansai, /eai e suspirai.” Cena do Onzeneiro Este personagem, surpreendido pela morte, quando ia recolher dinheiro, nem uma moeda trazia para o barqueiro. Insiste o Diabo que entre na sua barca, mas, sabendo-a do inferno, recusa-se o Onzeneiro a entrar nela, dirigindo-se à do Paraíso. Aí, o Anjo recusa-o por ter o coração cheio de usura, observando o Diabo que ele cobrara juros excessivos. O Onzeneiro pretende voltar à terra para buscar o transporte. O Diabo insiste para que entre e reme, pois iria servir Satanás, que sempre o servira a ele. Comentário: cena curta e fraca (poucos versos); temos aqui a burguesia comercial representada pelo Onzeneiro que usufrui de largos juros arrancados aos necessitados

Introdução de Joane Falecido de diarreia, Joane exorciza o Diabo, quando este o quer fazer entrar na barca do Inferno. Dirige-se à barca do Paraíso, onde o Anjo o recebe por ser um pobre de espírito, que não pa malícia nos erros que cometera. Deixa-o, porém, na praia, à espera de outros viajantes. Comentário: a curtíssima cena do Tolo serve apenas para a introdução deste como figura de apoio, como adiante se porá em relevo. A série de esconjuras que Joane profere contra o Diabo deveria então provocar mais riso do que hoje, porque seria menos tola do que nos parece, pelas referências a pessoas e factos então conhecidos. Diabo e Anjo tratam-no por tu e o Anjo, embora o ita na barca, fá-lo esperar na praia a hora de entrar. Cena do Sapateiro O Sapateiro recusa-se a entrar na barca do Inferno, porque morrera confessado. Excomungado, rectifica o Diabo, porque na confissão não contara os mil enganos que fizera e os trinta anos de roubo ao povo, com o seu mister. Dirigindo-se à barca do Paraíso, diz-lhe o Anjo que, para quem roubara na praça, a barca é a outra; se tivesse vivido direito, entraria agora no Céu. Comentário: João Anão explora os fregueses com o seu comércio, temos pois, uma crítica à burguesia comercial. E, tal como o Fidalgo supunha que lhe bastava a senhoria para entrar no Paraíso, também o Sapateiro supõe que lhe bastava ter-se confessado e comungado. Mas o diabo acusa-o frontalmente de ter falseado a confissão. Notar que o Sapateiro aceita sem qualquer arrependimento a decisão dos dois juizes. Cena do Frade Vem a dançar com uma moça (Florença) com quem vive e diz-lhe o Diabo que o levará àquele fogo ardente que em vida vivia não temera. “Como! Por ser namorado,/ e folgar co’uma mulher, / se há-de um frade perder / com tanto salmo rezado?”, pergunta o frade, descobrindo o capacete que trazia por debaixo do capuz e brandindo uma espada, com que faz demonstração de esgrima, finda a qual declara que padre com tal sabedoria não poderia ir para o Inferno. E vai à barca do Paraíso, onde o Anjo não lhe dirige a palavra, mas apenas Joane para lhe perguntar onde furtara tão bom bocado (Florença). Desnorteado, o Frade ingressa na barca do Inferno. Comentário: esta cena de grande movimento (dança, canto e esgrima), reanima a representação. Caricatura o clero regular da época, criticado pela simonia e

dissolução de costumes. Pela movimentação e extensão da cena, esta funciona como um fim de acto, a dispor bem o público.

Cena da Alcoviteira Chega a Alcoviteira, Brízida Vaz, com várias moças, referindo, a pedido do Diabo, a bagagem que trazia, toda ligada ao seu mister de enfeitiçar, mentir e encobrir, pelo qual sofrera já tantos castigos corporais que merecia antes o Paraíso que o Inferno. Dirige-se então ao Anjo, a quem, de joelhos e com falinhas mansas, pede entrada na barca, que o Anjo lhe recusou, agastado. A Alcoviteira entra na barca do Inferno, até porque pareceria mal estar tanto tempo na rua (decerto porque a sua ocupação se faria de preferência de portas para dentro). Comentário: Brízida declara, logo de entrada, o seu nome, como nenhuma outra personagem o fará. A cena é quase toda da Alcoviteira e é a mais profundamente crítica do auto; a introdução de um elemento feminino na sequência masculina revela a importância da função social que a Alcoviteira (casamenteira profissional) desempenhava na sociedade portuguesa da época. Cena do Judeu O Judeu insiste com o Diabo para que este permita a entrada do bode que traz às costas. Porém, o Diabo não consente, mesmo pagando o Judeu a agem. Apela o Judeu para os que já estavam na barca, mas sem resultado. O Diabo manda-o para o outro batel, onde Joane o escarnece, apontando os seus actos sacrílegos. Assim, o Judeu não tem entrada em nenhuma das barcas, mandando-o o Diabo ir à toa, com o bode pela trela. Comentário: é a cena mais curta e é também a mais violenta de linguagem, contracenando com o Judeu apenas o Diabo e o Tolo. O Diabo tem pelo Judeu um desprezo evidente: “Oh! Que má hora vieste!” , e não o ite na barca: “ Vós, Judeu, ireis à toa, que sois mui ruim pessoa.”. Notar que o Diabo, pela única vez, não diz que a sua barca é do Inferno. Cena do Corregedor / Procurador O Corregedor chega com um maço de processos debaixo do braço. Pergunta-lhe o Diabo como ia o Direito, ao que o Corregedor responde que, pelos processos, o saberia. Diz-lhe então o Diabo que entre na barca, negando-se o Corregedor com argumentação em latim, a que o Diabo contrapõe o seu latim macarrónico, apontando-lhe as razões da sua ida para o Inferno, onde aliás já estavam muitos escrivães e mestres de Direito. Neste ponto, chega o Procurador (bacharel doutor), que também se recusa a entrar na barca. Dirigem-se então ambos, Corregedor e Procurador, à barca do Paraíso, junto da qual travam diálogo com o Anjo e com Joane (este falando

também em latim macarrónico), e acaba o Anjo por lhes dizer que é a barca do Inferno que lhes está destinada. E a ela vão, cumprimentando-se o Juiz e Brízida Vaz, como gente conhecida das barras do tribunal. Comentário: temos aqui representada a magistratura. A cena do Corregedor e Procurador é a mais extensa e a mais trabalhada, resultando o seu cómico do latim estropiado usado pelo Diabo e pelo Tolo, em resposta às frases latinas empregadas pelos homens do Direito. Nela são referidos os dolos e injustiças praticadas pelos es da justiça e os seus acólitos, todos homens cultos (“filhos da ciência”), em desacordo com as leis que lhes competia aplicar bem. A corrupção era notória. Cena do Enforcado O Enforcado (pela justiça terrena), à pergunta do Diabo, informa-o de que um tal Garcia Moniz o convencera de que a morte na forca era o caminho certo para a bem-aventurança e que a cadeia era o lugar dos escolhidos, antes desta caminhada. Achava, portanto, que não lhe cabia a ele, o Enforcado, a barca do Inferno. Comentário: tal como o Judeu, a moça do Frade, as moças da Alcoviteira, o criado do fidalgo (meros apêndices dos poderosos), o Enforcado representa o povo que revela a ignorância e credulidade. O interesse desta curta cena está na verificação de que a justiça humana não substitui a justiça divina. Encerramento Para encerramento do auto, entram quatro Cavaleiros, mortos cativos dos Mouros, com quem batalharam por Jesus Cristo e para acrescentamento da fé católica. O Diabo interrompe a marcha destes cavaleiros que se dirigiam sem hesitação para a barca do Paraíso, um dos cavaleiros diz-lhe confiante que bastava dizerem que tinham morrido nas partes do Além, para se justificar a sua ida para a barca da Glória, onde o Anjo os saúda e os faz embarcar, porque “quem morre em tal peleja merece paz eterna” Comentário: esta cena, também ela curta, é cantada e coreografada constitui um remate agradável do auto. Contrasta com as cenas das restantes personagens, todas elas condenadas à barca do Inferno (com excepção do Tolo). É uma cena de evidente compromisso com a política oficial da expansão ultramarina da época.