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Introdução 1. Idéia - story-line - argumento ou sinopse: três fases anteriores ao roteiro
A idéia: o primeiro chute na bola Como encontrá-Ia: a agulha no palheiro Qual é seu gênero ficcional preferido? Surge a idéia: c agora? Story-line: Shakespearc pode ajudar O argumento: o bolo começa a crescer Idéia, story-line e argumento 2. Antes de levar o argumento ao forno, confira: localização - época - destinação - mensagem
Localização e época O público a que se dirige: sucesso ou qualidade? E aquela história de mensagem? A moral da fábula O que já foi dito, redito rapidinho 3.
Sobre o que não deve haver dúvidas: gêneros
plot- narrativa - ingredientes e temperos A escolha do gênero: apenas uma questão de rótulo O plot Quem conta a história: você ou ele? Ingredientes: sempre falta alguma coisa 4. Os personagens: às vezes eles são a própria história -
A entrevista: não responda por ele, deixe-o falar Tipos e protótipos 5. O roteiro: comece assim ... O diretor precisa saber Não esqueça as rubricas 6. Diálogo: mais arte que técnica Não olhe para a tela Solilóquio: para cômicos e doidos O diálogo c suas modulações O subtcxto: o invisivcl intcligcnte Diálogos adicionais Personagens do "alô qucm fala?" A ameaça dos dialoguistas 7. A imagem: os planos, cortes e flashback Cenas e suas subdivisões Os planos: enquanto assiste a um filme, classifique-os O inicio e o final das cenas Flashhack: o ado explicando o presente Inserts
8. O roteirista e quem paga a conta 9. Adaptação: a quase impossibilidade do aplauso unânime Aqui também o bom-senso é mais importante que qualquer regra Uma adaptação infanto-juvenil 10. Entrevista (ou mero papo): o aprendiz de roteirista faz perguntas ao
veterano 11. Memorial ainda não-computadorizado O rádio: a primeira escola de roteiristas O telerrádio: a imagem como simples decoração O teipe muda tudo E depois? _ 12. Trechos contínuos de um roteiro para televisão Uma auto-adaptação 13.. A Moreninha na tevê 14. Vocabulário crítico
Introdução
Sei que seria mais direto c aparentemente mais didático reunir neste livro uma seqüência de fórmulas como os norte-americanos fazem, com incomparável habilidade, quando transmitem conhecimentos práticos. Em seus Do it yourself, sempre de grande vendagem, o leitor pode até sentir sobre a sua a mão do autor, emprestandolhe músculos, tendões e experiência para produzir deleitosos objetos de fim de semana: de um portaretrato a uma estante sofisticada ou como transformar um liqüidificador quebradq num brinquedo espacial para o caçulinha. Mas - lamentavelmente - o Siga as Instruções, com seus desenhos milimetrados, setas e linhas pontilhadas, não funciona com igual segurança quando o material de trabalho são as palavras e o objeto a ser produzido é um roteiro para cinema ou tevê. Fazendo esse tipo de ponderação, que revela minha incapacidade para criar fórmulas mágicas, optei nesta empreitada, além de certas normas, pela transmissão de experiências pessoais, o que aprendi e o que tive de desaprender: estradas, atalhos e becos sem saída duma carreira que ao longo de algumas décadas somou sucessos e fracassos - estes sempre mais 11. úteis - como roteirista de cinema, tevê e rádio. Além do mais, rebelar-se contra regras fixas, à procura dum caminho pessoal, é no geral a melhor manifestação de talento dum aprendiz de qualquer ofício. Não pretendo ensinar como se prepara drinques. No máximo você aprenderá selecionar bebidas e sacudir com time profissional a coqueteleira.
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Idéia - story-line argumento ou sinopse: três fases anteriores ao roteiro A idéia: o primeiro chute na bola A idéia é o átomo. Você quer fazer um roteiro de cinema ou tevê, não? Ouviu dizer que se paga bem e que se pode escrevê-Io em casa, livre do relógio de ponto e da condução. Mas é preciso partir de alguma coisa, de alguma idéia. Que tal a história dum homem e duma mulher que se conhecem em Paris, pouco antes da chegada dos nazistas, apaixonam-se perdidamente, e no dia da entrada dos alemães na cidade marcam um encontro numa estação ferroviária, ao qual ela não comparece. Desiludido, ele foge com um pianista negro para o norte da África, abre uma boate, e, quando menos espera, sua amada ressurge com o ... Desista. Isso já foi feito. Chama-se Casablanca. Afinal, você tem ou não uma idéia?
Como encontrá-Ia: a agulha no palheiro Dizem que a melhor forma de se encontrar uma agulha num palheiro é sentando-se nele. Se sentir a picada, encontrou a agulha. Nada vem do nada. E muito menos as idéias, produtos de três vertentes: vivência, leitura e imaginação.
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Vivência: Graciliano Ramos não teria escrito Memórias do cárcere se não tivesse sido preso na ditadura Vargas. Dostoievski, em certo período da vida, viciou-se na roleta: escreveu O jogador. Knut Hansun vagou pela Europa inteira sem ter o que comer, antes de escrever sua obra-prima, Fome. Máximo Gorki viveu anos perseguido pelos agentes da polícia política, daí ter escrito com êxito O espião. Hemingway não teria publicado Por quem os sinos dobram, se não tivesse participado ativamente da guerra civil espanhola. Você também deve ter vivido uma experiência que lhe deixou sua marca ou cicatriz mesmo sem ter se metido em grandes aventuras. Xavier de Maistre não escreveu Viagens ao redor de meu quarto? Procure na infância, sempre rica de sugestões. Quem sabe um dos amores da juventude? Guerras conjugais, choques com os patrões, doenças, ideais políticos? Não se preocupe muito com originalidade; qualquer idéia, mesmo muito
usada, pode ter suas impressões digitais, diferençando-se do que já foi feito. Às vezes a idéia não nasce de fatos que você viveu, mas que aconteceram a pessoas do seu meio, parentes, amigos ou conhecidos. Acontecimentos que o impressionaram. O que a memória retém sempre dá história. Leitura: o bom rotemsta normalmente é o que leu muito e que continua atualizado com a literatura, a grande fonte para qualquer gênero ou formato de ficção. Claro que as técnicas do romance nada têm a ver com as do cinema e tevê, mas aí o que interessa 'é o conteúdo, a criação de personagens, o clima e a dialogação. A literatura dá a base, o brilho, a ambição. Ainda não conheci um bom roteirista que não fosse um viciado consumidor de romances, tanto que a grande maioria dos filmes estrangeiros são baseados em
contos, romances e peças teatrais. No Brasil, onde se lê pouco, os produtores não exploraram suficientemente essa fonte. Notáveis contistas e romancistas nacionais nunca foram adaptados. Mas adaptação é tema do qual trataremos mais tarde. O que quero dizer por enquanto é que a leitura revigora e abre as possibilidades dum roteirista. Imaginação: é a mais contestável propulsora de idéias, a menos confiável. Muitas vezes o que se supõe uma bolação de momento não a duma lembrança transfigurada. Algo que se leu ou
que se viu no cinema ressurgindo com a força duma criação original. Certamente Júlio Verne e H. G. Wells foram autores muito imaginativos, porém ao escrever Dom Casmurro, Maehado de Assis, narrando um simples caso de adultério, não recorreu muito a ela. O que se conclui é que não é necessário descobrir uma pedra rara, única, para resultar num bom roteiro. Mesmo o lugar-comum, quando recriado, personalizado, corretamente desenvolvido, tornase um trabalho de qualidade, e imaginativo.
Qual é seu gênero ficcional preferido? Sua idéia virá atrelada a um gênero de ficção. Será comédia, drama, policial ou o quê? Atente para suas tendências naturais. Se detesta comédias não será por aí que irá procurar sua idéia. Saber o que não se vai fazer já é um o à frente. Concentre-se. O que mais o preocupa ou o encanta? O que mais você odeia? O ódio também é uma força criativa. Não o dispense. Cervantes não ava os romances sobre cavaleiros andantes e decidiu acabar com eles, em seu Dom Quixote. Voltaire era outro que escrevia rangendo os dentes. Depois de ver bem claro o gênero de sua preferência, a idéia pode tornar-se um parto indolor. Mas não se desespere se a idéia não sair. Justamente por estar próxima às vezes é menos visível.
Surge a idéia: e agora? Ótimo que já tenha a idéia, mas, cuidado. Registre-a logo na SBAT, Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, ou a mantenha em segredo. No meio pululam os salteadores de idéias que, quando flagrados, costumam dizer que o importante não é a história, porém seu tratamento. As maiores vítimas, no entanto, são os autores consagrados, com direitos autorais prescritos. Roubam tudo dos falecidos, principalmente os dentes de ouro. E agora? Precisa testar a idéia, verificar se ela pára de pé, se tem consistência, contextura. É a hora da story-line.
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Story-line: Shal<espeare pode ajudar Story-line é a linha da história, o resumo. Mas resumo resumido. Vá à máquina e escreva. Po rém não e de seis linhas. Se não conseguir resumir, algo está errado. Você ainda não está vendo a idéia claramente. Não a digeriu. Ela está crua, indigesta, dura de roer. E não venha dizer que a tarefa é impossível em seis linhas. Lembre-se de Shakespeare e confira como é fácil resumir o Romeu e Julieta e o Hamlet em poucas palavras. Mais simples ainda é a história daquele homem que foi dormir e no dia seguinte acordou metamorfoseado num inseto gigantesco. Está aí um bom exercício para iniciantes: resumir num punhado de linhas romances, filmes e peças teatrais famosos. Não foi Cecil B. de Mille quem escreveu a Bíblia mas suas histórias são esplendidamente resumidas. Por isso, certamente, mesmo entre gerações e gerações de analfabetos, aram de pai a filho. Antes de lançar-se à próxima etapa, releia a story-line. Ela realmente contém uma idéia, conta uma história? Ou você está confundindo story-line com mensagem filosófica ou política, informação jornalística ou lição de moral? Outro erro comum: limitar a story-line a uma cena ou aspecto do roteiro quando deve abranger a história toda, sua vista aérea, sem detalhes, claro, mas total. A próxima etapa, já.
o argumento: o bolo começa a crescer O argumento já descreve toda a ação da história, começo, meio e fim, personagens e tudo mais. É como um conto, porém objetivo, preso aos fatos, e narrado sem literatices. No caso dum roteirista iniciante, à procura de vender sua idéia, não aconselhamos um argumento longo. A preguiça de ler é um mal nacional e qualquer diretor de cinema assustase diante dum calhamaço. Por outro lado a capacidade de síntese sempre impressiona bem. Tratando-se, por exemplo, duma telenovela, a direção jamais se contenta com uma única sinopse. Sempre exige outras com no vos detalhes e definições. Algumas chegam a ter 100 páginas ou mais. Porém esse trabalhão só é solicitado quando a emissora já decidiu produzir a novela. Para cinema, lógico, o argumento nunca é tão extenso. Dez páginas bastam para contar qualquer filme. O problema é que não é fácil ser claro. E argumento ou sinopse exige como qualidade principal a clareza. Daí a necessidade de ser reescrito sempre com a intenção de eliminar o supérfluo e ressaltar o essencial. Para sc fazcr um teste de clareza ou objetividade deve-se ler o argumento em voz alta. Para isso, convoque a família. Se alguém bocejar logo a princípio, escreva tudo outra vez. Só se dê por satisfeito quando sua pequena platéia entender perfeitamente a história. Outra coisa: principalmente nessa fase seja humilde. Ouça os palpites dos que leram ou ouviram seu argumento. Entre dez bestei ras que ouvirá talvez haja alguma verdade entre elas, uma pequena observação que pode até mudar o rumo do argumento. Não são apenas os profissionais que oferecem boas sugestões. A titia também pode fazer isso. Lembro-me que escrevia uma telenovela para a Globo, já com os primeiros capítulos no ar, quando ouvi uma balconista dum shopping center dizer a uma freguesa que gostava da nova novela, mas ... - É um pouco lenta, a senhora não acha? Não sei se a freguesa achava porque não esperei pela sua resposta. Corri para casa e tratei de acelerar a ação dos capítulos, evitando cenas monótonas. O resultado logo foi acusado pelo Ibope. A balconista estava com a razão. Um argumento ou sinopse bem trabalhado facilita muito o trabalho posterior e livra o roteirista de complicações futuras. Na tevê, no entanto, fala-se de sinopse aberta, que possibilita alteração Uma empresa cinematográfica jamais lhe pedirá uma story-line, mas um argumento. A story-line po de ser transmitida pelo telefone ou numa conversa de bar. Na tevê o argumento chama-se sinopse e a story-line é a pré-sinopse. O que é o argumento? Se você entende um pouco ao menos de publicidade exemplificarei dizendo que a story-line é o rough, o desenho preliminar dum anúncio, rascunhado, sem o menor acabamento, apenas para mostrar a cara que ele terá. Depois do rough, se aprovado, vem o layout, que já é o anúncio detalhado, a ilustração definida, inclusive com as cores aproximadas. Não é o que vai ser impresso mas uma idéia bem próxima.
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de rumo, pois o teleautor sempre acaba cedendo às pressões e preferências de um colaborador anônimo, o público, que se entusiasmando por um ou outro personagem, não destacado na sinopse, ou por uma das histórias paralelas, influi decisivamente no resultado geral. Resumindo, o argumento ou sinopse, planificação equivalente à planta baixa dum arquiteto ou à fórmula dum químico, precisa englobar basicamente as seguintes qualidades: a) clareza: quem lê ou ouve deve entender sem esforço; b) objetividade: o autor não deve se perder ou se alongar em detalhes menos importantes; c) integralidade: o argumento precisa conter a totalidade da idéia abordada, incluindo o clima geral e o comportamento dos personagens.
2 Antes de levar o argumento ao forno, confira: localização época destinação - mensagem
Idéia, story-/ine e argumento A idéia é a chispa, o heureca! Pode ser concebida no chuveiro ou enquanto você faz a barba. A story-line é a idéia já posta no papel com definição de gênero. Argumento ou sinopse já é a história detalhada, embora ainda sem os diálogos e o tratamento técnico específico do veículo. O resto é fácil. Bem, era o que eu pensava. O resto é tudo.
Localização e época
Certamente desde a slory-/ine o rotcirista já se decidiu a respeito do lugar e da época em que sua história vai se desenrolar. Cidade: São Paulo. Época: atual. Tudo é mais simples quando o autor conhece bem sua cidadecenário e situa o tempo na atualidade. As pessoas refletem o mundo e a época em que vivem. Se o personagem é um paulistano não vai pensar, falar e agir como alguém que tenha ado a maior parte da vida no sertão. E aí não basta colocar em sua boca palavras e expressões regionais. A credibilidade do personagem exige mais - falo do comportamento -, mesmo que deslocado do seu meio vista roupas citadinas. Baiano não é paulista embora um deles tenha composto Sampa. Cada personagem, repetimos, deve trazer a marca de sua região ou nacionalidade, porém sem que seus traços, exagerados, derivem para a caricatura. Assisti a uma peça teatral, de muito sucesso, em que todos os personagens, italianos, falavam aos berros e cantavam. Falso. Não há tantos Carusos assim na Itália. No Brasil, judeus e árabes, principalmente, sempre surgem caricaturados. Tremendo primarismo. Carregar nas tintas revela incapacidade de dosar e a imaturidade de quem recorre a clichês já assimilados pelo público. Evite, pois, italianos que cantem ou briguem constantemente, cariocas que só falem na gíria e negros que vivam exclusivamen-
16. te para o samba. Como seria rejeitável para nós um personagem brasileiro, criado por autor estrangeiro, apenas voltado para o futebol e o carnaval. Localize sua história numa cidade que conheça bem. Não é por acaso que Jorge Amado situa seus romances na Bahia e Érico Veríssimo situava os seus no Rio Grande do Sul. José Lins do Rego, pernambucano, quando localizou um de seus romances no Rio, Eurfdice, realizou sua pior obra. Ao contrário, a certo escritor que escolheu o pantanal de Mato Grosso, perguntei se conhecia a região onde movimentara seus personagens, ouvindo esta resposta: - Tenho mais que fazer. Pantanal é pantanal. Evidentemente seu romance, baseado em informações, não dizia nada de novo sobre a região mato-grossense. Talvez tenha sido para evitar imprecisões e fugir de compromissos topográficos que Sinclair Lewis e William Faulkner inventaram as cidades-cenários de seus livros. A determinação da época é ainda mais complexa, e exige mais trabalho que o da localização do roteiro, mesmo quando ele foca o ado recente. Nos tempos atuais tudo muda em dez anos: vestuário, costumes e linguagem. Lembro que ao escrever certa novela usei palavras de gíria e expressões, para mim atuais, porém, como constatei depois, desconhecidas do público mais jovem. Uma ou outra até permaneciam com outro sentido. Para não elaborar no mesmo erro, ao escrever alguns capítulos da minissérie Memórias de um gigolô, baseada em romance de minha autoria, e que na adaptação ava-se nos anos 20, fiz longa pesquisa para introduzir nos diálogos palavras, maneirismos, máximas e pilhérias que circulavam na época, com o que suponho ter dado mais autenticidade e sabor à história. Nunca ouviram numa novela vivida no século XIX personagens dizerem: legal, bacanérrimo, paca, vai que é mole, cuca fresca? Não digo quais novelas para não dedarninguém. Não é porém apenas para questões lingüísticas que a pesquisa é importante. Já vi numa cena dois personagens comentando um romance de Machado de Assis que só quinze anos depois seria publicado. A um novelista que escrevia uma novela vivida no começo do século, envolvendo disputas e fofocas da política municipal interiorana, perguntei se sabia quem era o Governador do Estado e o Presidente da República naqueles dias. Ele não sabia. Fiz-lhe ver, então, que se pesquisasse um pouco, ou ao menos lesse alguns livros de história, poderia dar mais vigor, profundidade e realce aos personagens. Portanto, se pensa escrever roteiro para cinema ou tevê, que se e em regiões que não conheça bem ou noutras épocas, pesquise, pois gafes como aquela do romance de Machado de Assis, comentado muito antes de sua publicação, sempre expõe o autor à chacota e desmoralização da parte dos bem informados.
o público a que se dirige: sucesso ou qualidade? Quando você se prepara para escrever um roteiro já deve ter em mira o público que deseja atingir. Claro que no caso duma telenovela o objetivo é o êxito. O importante é que um grande número de telespectadores a assista, sendo a qualidade apenas um dado ório. Nenhum telenovelista perde o emprego se sua péssima novela somar muitos pontos no Ibope. Mas perderá com certeza se sua obraprima, diferente e criativa, não agradar o "publicão". Os romancistas fabricantes de best sellers se parecem muito com os novelistas de tevê porque conhecem o seu eleitorado. Sabem que seus leitores não se preocupam com estilos, inovações literárias ou verdades profundas, fascinando-se apenas pela ação e pela carga de emoção que a história possa conter. Evidentemente Joyce, ao escrever Ulysses, não estava preocupado com os aplausos da galera, mas em desbravar, abrir novos rumos para a literatura. Em todas as artes há pioneiros e seguidores. No cinema tivemos Orson Welles, que lhe deu linguagem própria, embora seus filmes nunca tenham sido êxitos de bilheteria. E seu roteiro? A que público se destina? Aos mais jovens? Aos mais intelectualizados? Ao público feminino? É importante decidir-se antes de começar. A maioria dos roteiros, sejam de cinema ou tevê, objetivam o êxito. É a exigência de quem paga. O ricaço que entra com o dinheiro nunca está interessado em obra de arte. Mas é nessa tensão de satisfazer a quase totalidade do público, gregos e troianos, que o roteirista acaba na maioria das vezes apresentando um trabalho de qualidade inferior, repleto de concessões ao mau gosto, lugares-
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comuns, clichês usados e gastos, personagens estereotipados, desagradando por fim até aos menos exigentes. Não há fórmulas seguras para o sucesso. Roteiros intimistas, difíceis, complicados, obscuros, para surpresa geral, até do roteiris ta, às vezes emplacam. Por que a crítica os endeusou? Outros, também endeusados por ela, e com mais valor, fracassam. O êxito é 10térico. Se uma fórmula dá resultado uma vez, parecendo garanti 10 definitivamente, já na segunda falha. Essas, porém, são considerações paralelas. O que o roteirista deve ter em mente é o público que deseja alcançar, a que parte dele seu trabalho se destina. versas interpretações. Os ficcionistas demasiadamente voltados à sua posição política costumam transformar a mensagem em discurso, o que é desastroso. Dashiell Hammett, romancista policial norte-americano, tantas vezes adaptado para o cinema, valorizou o próprio gênero fazendo de seus livros verdadeiros libelos contra a corrupção na justiça e polícia de seu país. Mas sem discurso, sem realces, pois se eviden ciasse demais a mensagem os romances deixariam de ser ficção, virariam jornalismo. E jornalismo é outra coisa. Portanto, cuidado com mensagens óbvias, primárias, confusas, demagógicas, piegas, ou sujeitas a prematuro envelhecimento. O que o autor quer dizer a mais deve estar embutido na história, como parte dela, não como demasia, acréscimo ou apêndice. Ah, seu roteiro não terá mensagem? Preferível assim. Seu roteiro, além de contar uma história, possui alguma proposta ou intenção? Na realidade o roteiro sempre tem uma, pois entreter também é um objetivo respeitável. O seu é mero entretenimento ou inclui-se num destes casos em que pretende: a) alertar sobre o perigo duma guerra atômica; b) difundir ideais políticos; c) estimular a defesa das riquezas naturais; d) condenar a degeneração dos costumes; e) revalorizar o romantismo; f) defender sonhos e ideais da juventude; g) ressaltar o exemplo de certas figuras históricas; h) combater injustiças sociais; h) delatar erros judiciários ou abusos da lei; i) propagar a prática de esportes; k) acusar demagogos e inimigos do povo; 1) ridicularizar falsos heróis e enganadores; m) promover esperança num futuro melhor; .n) demonstrar que o amor sempre vence. Os exemplos são infindáveis mas é bom salientar que uma boa e nobre mensagem não garante a qualidade dum roteiro. Em mui tos casos até atrapalha, quando ela não convence por ser forçada demais ou ingênua. Preocupado com a mensagem, acontece do roteirista esquecer da história e de seu tratamento. A melhor mensagem é a que não é muito evidente, capaz de suscitar discussões e di-
E aquela história de mensagem? A moral da fábula
o que já foi dito, redito rapidinho
Loca/izaçc7o - Localize seu roteiro em cidade ou região que conheça bem. Não chute. Época - Tratando-se dum roteiro de época, pesquise. Assim agem os profissionais. Destinação - Reflita sobre o público que deseja atingir. Mensagem - Só quando não for careta nem atrapalhar o desenvolvimento da história.
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3 Sobre o que não deve haver dúvidas: gêneros p/ot - narrativa ingredientes e temperos
A escolha do gênero: apenas uma questão de rótulo Há muitos gêneros de ficção e muitas vezes eles se mesclam. Quando a com-
Drama
binação é bem feita, tudo bem. Sempre há muita comédia nos dra~ mas psicológicos de Machado de Assis. Ele foi um gênio do claroescuro. Jogando com os dois gêneros revelava o lado humorístico de certos dramas e a dramaticidade de situações aparentemente cômicas. Se você a esta altura já tem seu argumento, que nasceu du~ ma story-line, que por sua vez nasceu duma idéia, tendo já determinado a cidade e a época em que tudo vai se desenvolver, certamen~ te já classificou o gênero de seu roteiro. Mesmo assim, dê uma olhada no cardápio abaixo. Alguns ro~ teiristas fazem verdadeiras saladas, confundindo tudo. Vamos lá? É um gênero e também um condimento, tempero, para qualquer outro. Suas subdivisões são inúmeras, mas numa simplificação, há os que envolvem muita ação, como Os miseráveis, de Victor Hugo, e os psicológicos, paradões, como o já citado Dom Casmurro, de Machado de Assis. O folhetim, pai da radionovela e avô da tele-
no ve la, er a m ov im en ta dí ssi m o. O s pe rs on ag en s pe ns av a m po uc o e ag ia m m uit o. A tô ni ca , te ns ão dr a
mática, levava sempre às lágrimas. Fazer chorar era a meta do drama. Do drama ao dramalhão é um pulo. Qualquer exagero leva o gênero ao ridículo. As radionovelas e as primeiras telenovelas eram todas dramáticas, não reservando o menor espaço para o humor. Envolvendo ação ou não, psicológicos ou não, o drama entre outras engloba as seguintes subdivisões: biográfico, histórico, social ou político, religioso, musical e bélico.
Comédia A comédia, rotulada de gênero leve, pode ser veículo de mensagens muito sérias. Os cartunistas sabem muito bem disso. Há as comédias ligeiras, destinadas só ao riso; as irônicas, mais intelectualizadas, que não chegam a provocar gargalhadas; e as sarcásticas, voltadas objetivamente à crítica política, social, religiosa etc. Como o drama, a comédia possui voltagens diferentes, mas sempre com a intenção de divertir, mesmo quando pretende sangrar pessoas e instituições. Além das características básicas, aludidas, a comédia pode ser romântica, policial, musical, aventuresca, histórica, de horror ou bélica.
Policial Trata-se dum gênero antigamente desqualificado pelo preconceito. Mas produziu tantas obras-primas na literatura e no cinema, no geral adaptações, que sua cotação subiu bastante. Nasceu como entretenimento de homens voltados para outras paixões literárias ou especulativas: Edgar Allan Poe, Conan Doyle, Chesterton, William lrish e outros. Possuindo elementos preponderantes de drama ou comédia, o gênero engloba subdivisões, como estas: detetivescos, que envolvem investigação poliCial, sendo o detetive o herói; histórias de crime, nas quais a participação policial é dispensável; jornalísticos, quando fundamentados em casos verídicos; de submundo, os que narram a formação de criminosos ou de quadrilhas, devido a circunstâncias sociais. O gênero policial é o pai de outro, o de espionagem, tão explorado 'pelo cinema, muitas vezes produzido com o propósito claro
19. de fazer propaganda ou contrapropaganda política. Se a espionagem é filha do gênero policial, o horror também é um parente próximo, embora com suas características definidas.
Aventura Um gênero literário que empolgou o mundo e que o cinema soube explorar muito bem. Quando a televisão nasceu, ele já era decadente no cinema. Sua mola propulsora era a exploração do desconhecido, florestas impenetráveis e misteriosas, mares dcsconhecidos, desertos e geleiras. Nenhum gênero cultuou tanto o herói, o desafiador de perigos. Porém, como a Terra se tornasse totalmente conhecida e menor que o espírito de aventura do homem, a solução foi a sondagem do espaço, que abriu um território infinito, nascendo o gênero ficção científica. Suas subdivisões: científica, histórica, romântica, bangue-bangue, ficção científica.
Horror Foi a evolução técnica do cinema que propiciou o retorno do horror, gênero cinematográfico que parecia extinto após os Frankensteins e Dráculas dos anos 30. Já o Museu de cera voltara, em terceira dimensão, nos anos 50. Atualmente as portas estão abertas para todas as formas de monstros, em filmes, desenhos e comerciais de tevê. É um gênero que combina bem com a comédia, como prova O jovem Frankenstein, de Mel Brooks.
Musical Os musicais foram o prato forte do cinema nacional nos áureos tempos da chanchada, que não subsistia sem música, sendo na maioria das vezes shows carnavalescos filmados. No rádio, quando toda emissora tinha sua orquestra, já havia roteiristas especializados em programas musicais. Em São Paulo, Júlio Nagib era um deles, um incrementador raras vezes lembrado dos musicais radiofônicos, enquanto no Rio Almirante fixava-se como respeitável enciclopedista da música popular brasileira. Porém, apenas muito mais tarde, na televisão, e depois do advento do teipe, o gênero cresceu ganhando contornos de espetáculo, geralmente caros e sofisticados, baseados em figuras literárias como Emília e o Visconde Sabugosa,
SOBRE O QUE NÃO DEVE HAVER DÚVIDAS: GÊNEROS - PLOT... 21
d e M o n t e i r o L o b a t o . E m c e l u l ó i d e o u t e i p e s u r g i r a m
os clips, fantasias musicais com a apresentação de um número, cuja criação, através de cortes, fica dividida com o editor, incumbido do ritmo e das montagens imprevistas. Algumas subdivisões: musical-revista, com ou sem unidade temática; biográfico; fantasioso; adaptação de romances e peças teatrais; desfile de sucessos musicais. Se muito em matéria de cinema e tevê aprendemos com os norteamericanos, neste setor, o musical, temos ainda muito a aprender, pois trata-se dum gênero que não deslanchou suficientemente apesar da riqueza de nossa música popular.
Infanto-juvenil Atualmente quase todas as emissoras de tevê têm seus programas infantis, não fundamentados em idéias mas em apresentadoras famosas ou a caminho do estrelato. Luxo e linearidade, tudo bem clichezado para que num dia ou dois se possa gravar todos os programas da semana. São uma calamidade cultural, feitos exclusivamente para olhos e ouvidos, o maior sintoma de robotização dos tempos atuais a serviço exclusivo da divulgação de produtos comerciais. Se a programação infantil ocupa tanto espaço, a juvenil é a grande esquecida. Os programadores ainda ignoram que há no país uma literatura juvenil, já com características nacionais, com ingresso nos colégios, que supera a adulta em número de edições c exemplares vendidos. Desconhecem que aí está um rico filão, com público garantido, que envolve aventura, mistério, romance, suspense e fantasia.
Outros Há gêneros que desaparecem como a chanchada brasileira, hoje valorizada como curiosidade cinematográfica, e a pornochanchada, imitação um tanto grosseira das comédias eróticas italianas, tornadas subitamente ingênuas pelo nu frontal da nova onda pornô. Como a chanchada, a pornochanchada teve sua importância, pois, além de servir de treinamento para uma geração de técnicos, produziu alguns filmes de qualidade, melhores, a meu ver, que muitos pornôs de luxo, assinados por diretores famosos, com os quais a crítica tem sido extremamente benevolente. Logo, podem anotar, algumas pornochanchadas serào redescobertas e suas virtudes apontadas ante um exame mais detido e menos preconceituoso.
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Encerramos aqui essa visão panorâmica com um alerta para o roteirista aprendiz no sentido de definir claramente o gênero escolhido, apesar das possíveis combinações, para que o roteiro não resulte numa mistura indefinida e confusa. Não escreva ainda, reexamine seu plot. Mas o que é plot?
o plot Toda história tem seu núcleo, seu ponto central, donde partem as demais tramas e intrigas. Plot é a ação principal, geradora de conflitos secundários. A diferença entre plot e storytine não é tão sutil como possa parecer. A story-line é o resumo do enredo. Plot é sua alavanca, o drama-mo r. No Romeu e Julieta o plot é o ódio entre Montecchios e Capuletos. Sem esse plot não existiria a história porque Romeu e Julieta poderiam se amar livremente. Não haveria mortes. É o motor da história, o que origina um conjunto de ações. E no Dom Quixote? O plot é a loucura do próprio. Um doido que arrasta um homem sensato para o caminho da aventura. A loucura de Dom Quixote provoca todas as ações do livro e suas conseqüências. Um plot fortíssimo. No Hamlet o plot é o desejo de vingança. Tire esse desejo da peça? Não fica nada porque tudo nasceu dele. E no filme Casablanca? Não sei mas o plot deve ser o encontrodesencontro-encontro. Um núcleo subdividido em três partes. O plot gera ações, porém não é obrigatoriamente uma ação e sim o gerador. Em Rebeca, livro ou filme, o plot é a presença duma morta, a falecida que parece se interpor entre seu marido e a nova esposa. Aí o plot tem a forma humana, é um personagem, embora ausente. Em Vinhas da ira, livro ou filme, o plot é um caminhão. O veículo precário que leva uma família em viagem do Atlântico ao Pacífico, nos Estados Unidos, da miséria em que vivia a uma ilusão total. A viagem, o caminhão, é o que gera os conflitos. O Pinocchio tem plot? Acho que o plot do Pinocchio é a desobediência. Se o boneco obedecesse o Gepeto nada daquilo teria acontecido. O fundo moral não está no desfecho mas em todo o decorrer da história. Parece genial isso, não acham?
O
O plot pode ser um sentimento, amor ou ódio, uma
pessoa, uma coisa ou uma série de coincidê ncias como em
Casab/a nca, encontros e desencon tros, produzin do ações. E m A
tragédia america na, de Theodore Dreiser, o plot é o desejo de subir na vida, que leva um jovem ambicios o ao êxito social e à morte na cadeira elétrica. E m Lotita, o plot é a paixão dum intelectu al maduro por uma garotinha ignorante . Ou é
esse um plot apenas aparente quando na verdade o motor da história, o núcleo, está no choque cultural e na atração dos contrastes entre europeus e americanos? Quase se pode dizer que o plot é a parte mais intelectualizada dastorytine. Mas nem sempre isso se confirma e portanto não digo. O melhor é não perder tempo com definições. E mesmo se não tiver entendido bem o que é o plot, não se preocupe. Há bons roteiristas que nunca pronunciaram essa palavra. O importante é que jamais se distancie do núcleo do seu roteiro. Quanto filme você já viu, quanto romance já leu, quanta telenovela já assistiu que, a partir de certo momento, há a impressão de que o autor se perdeu, esquecido inteiramente do conflito que apresentou no início? O plot funciona como uma espécie de bússola. Tendo-o em mente o autor não se desvia do caminho proposto. Nas telenovelas, devido as suas proporções, há sempre diversos plats, fontes de conflitos. O grupo da família rica, dos pobres, dos marginais, e outros. Um único núcleo dramático não pode fornecer lenha para tantos personagens, dispostos em cenários diversos. O que acontece nessa modalidade de espetáculo é que os núcleos se interligam, através de ações ou reações, como um sistema de vasos comunicantes. O que comumente sucede em telenovelas é que certas histórias paralelas, subplots, acabam se desenvolvendo além da previsão da sinopse, ando a comandar a ação geral. Às vezes basta o acerto ou êxito dum personagem secundário para determinar alterações substanciais na estrutura total. Daí ser a telenovela, na maioria dos casos, um gênero de espetáculo ou ficção, como queiram, pouco respeitável na área da criatividade, tão sujeito está a acidentes de percurso, promovidos pela interferência do público, performance dos atores e contínuas intervenções da censura. O tema, porém, é o núcleo, a máquina que puxa ou impulsiona o enredo. Determina-o. O p/ot de sua história está bem definido? Ele possui gás, força, conteúdo para ser explorado, sem repeti-
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ferência do autor; b) com o narrador em of], oculto; c) com o narrador como personagem principal ou mera testemunha; d) com diversos narradores.
Erroneamente talvez, vou falar de temperos antes de levar a a ao fogo. Mas o cozinheiro não improvi sa, sabe de antemão quais os temperos que deve usar. Refiro-me aos ingredientes que enriquecem os roteiros e tornam os pratos mais convidativos. O algo mais que sem ele ou eles o roteiro sai insípido, dando a impressão vaga de que está faltando alguma coisa. ções ou lacunas, até o final do roteiro? Às vezes a precipitação, a queima rápida de situações ou conflitos faz com que ele logo se es gote, já tendo dado tudo que tinha para dar, quando conseqüentemente a ação ou tensão rareia e o interesse se esvai. U ma história pode ser narrada por diversos ângulos, técnicas de abordagem. A mais comum é aquela em que o escritor ou roteirista não interfere no enredo. Ele coloca-se no ponto de vista do espectador e deixa a coisa rolar. Nes te caso o único olho válido ou confiável é o da câmera. Às vezes a câmera pode ter voz, narrador. O narrado r pode estar oculto, um ser impessoal, ou pode participar da narrativa. No seriado Os intocáveis, o narrador, em olf, invisível, conduz o roteiro, conta, como se fosse um arquivo que falasse. É um recurso que se usa para dar maior credibilidade no caso de histó-
rias reais. O narrado r pode também participar do roteiro, como mero observador, um personagem secundário que apenas presenciou acontecimentos ou como ator principal. Nesse caso ele pode saber tudo que aconteceu ou, como o espectador, acompanhar o momento prcsente. No filme O crepúsculo dos deuses, o narrador-ator narra a própria morte. Um enredo pode inclusive ter diversos narradores, no geral cada um dando sua própria versão do mesmo fato. Ou cada um contando um pedaço da história em que ele, como ator, participa. Bolar novos ângulos de narrativa exige muita criatividade. No filme A dama do lago, baseado no romance homônimo de Raymond Chandler, o personagem-narrador é a própria câmera, segue seu ponto de vista, tanto que só é identificado quando diante do espelho. No filme A história duma casaca, peça da indumentária que vai de mão em mão~ os personagens surgem como conseqüência duma casualidade. É quase como se ela, a casaca, narrasse as diversas histórias que o filme reuniu. Descobrir um novO jeito de contar, um ângulo ainda não ou pouco explorado, se não garante o êxito do roteiro pelo menos sempre suscita comentários. As variações mais correntes são: a) história contada sem inter-
Ingredientes: sempre falta alguma coisa Quem conta a história: você ou ele? Humor
Já se disse que não há uma grande história sem uma boa pitada de humor. Humor é sabedoria, dizem outros. Nos bons tempos de Hollywood havia especialistas que se dedicavam exclusivamente a dar o toque humorístico nos roteiros, fossem eles românticos, dra máticos, policiais ou de aventura. Surgiram aí mestres principalmente nos rápidos side-jokes, piadas breves, laterais, para o agrado dos espectadores mais atentos e inteligentes. As radionovelas nâo reser vavam o menor espaço para o humor, o que já não acontece com as telenovelas, embora lidem sempre com o de segunda categoria, grosso. Suspense
É "o que vai acontecer agora?", típico do policial mas indispensável em qualquer gênero. Se J ulieta acordar agora salvará a vida de Romeu. Acorde, moça! Em linguagem de tevê o suspense chama-se gancho e é mais fabricado do que criado porque a telenovela precisa dum gancho em cada final de bloco e um ganchão no final do 1
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capítulo, sem falar naquele, especial, dos sábados, para amarrar o espectador até a segunda-feira. O gancho, macete usado para prender o público, é também o maior culpado do artificialismo do gênero, pois nem sempre surge duma decorrência natural. Já ouvi um telenovelista aconselhar a outro: pense só no suspense, o que vai antes é só para encher 22. o tempo. Um suspensecrescente, que deslize e
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engrosse com as cenas, sem enganações que criam falsas expectativas, impactos sem consistência, é arte que valoriza o roteirista. Grampear o espectador, conduzi-Io, é
uma das metas do profissional, mas erram os que supõem que seja esse o objetivo maior.
Erotismo
É o molho mais em uso, atualmente, sempre partindo duma exigência do produtor. Na maioria dos casos não é mero ingrediente, um anzol a mais, é tudo, pois sempre sobra pouco, se tirado. Embora não tolerado pelos romancistas românticos, os clássicos o adotavam. No cinema o erotismo topou logo com uma barreira, a censura. A única expressão de amor carnal foi limitada ao beijo, no final, quando já caíam os letreiros. Na década de 30, um filme europeu, Êxtase, onde aparecia uma atriz nua, à distância, formou filas nas bilheterias do mundo todo. Foi o cinema italiano, após a guerra, que começou apelar ao erotismo, embora mascarado de realismo social. Os ses tentaram poematizar o erotismo. Mas foram os suecos, às vezes sob o pretexto de intelectualização, que o levaram para a tela sem constrangimento. No Brasil, erotismo e mau gosto, salvo exceções, são quase indissolúveis, quando não copiam modelos estrangeiros, xerocando emoções e comportamentos que nada têm a ver com os brasileiros. Condena-se o excesso, as grossuras, mas o erotismo exagerado, mesmo se um dia ar, já terá se inserido com mais comedimen to à lista de temperos que dão sabor ao roteiro, pois a ingenuidade, a pureza e os amores totalmente assexuados dos antigos filmes de Hollywood pertencem definitivamente ao ado.
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Os personagens: às vezes eles são a própria história
O personagem é o grande elo entre o autor e o público. Se bem concebido, por inteiro, pode salvar uma história fraca ou até dispensá-Ia, pois traz no bojo toda uma biografia repleta de fatos. Shakespeare talvez criasse suas peças teatrais partindo do personagem: Hamlet, Otelo, Romeu e Julieta, Macbeth. Em nossa literatura é fácil enumerar os casos em que o personagem é a história ou seu próprio plot, já que é o núcleo da ação: lnocência, Macunaíma, João Miramar, Serafim Ponte Grande, Teresa Batista, Moleque Ricardo. São histórias que giram em torno ou descrevem uma personalidade. Fixam as conseqüências de quem carrega certo tipo de caráter, formação ou temperamento. O destino de Madame Bovary não poderia ser muito diferente daquele que Flaubert descreveu. E Naná, de Zola, não viveu a vida ditada pela sua personalidade? Tudo isso para ressaltar como é importante para um roteirista trabalhar com personagens reais e verossímeis. Acontece porém que os escritores convivem anos com seus personagens, enquanto os roteiristas não dispõem de tanto tempo assim, ligados à chamada indústria cultural, ávida de produção como qualquer outra. O prazo para a entrega dum trabalho é quase sempre aflitivo, e a pres-
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sa é a maior inimiga da perfeição, embora não sirva como desculpa para o pÚblico, a crítica e mesmo para a emissora de tevê ou empresa cinematográfica que encomendou o trabalho. Faça de conta que já criou o seu personagem principal. Ótimo. Agora faça-o sentarsc c projete nele uma luz bem forte para o interrogatório. Só acredite nele se responder sem hesitações. 1. Onde você nasceu? Foi numa cidade pequena, grande ou no campo? 2. Você é natural da cidade onde a história se desenvolve? 3. Veio para ficar ou está só de agem? 4. A que raça pertence: latino, anglo-saxão, eslavo? 5. Qual é sua profissão? 6. Gosta dela ou lhe foi imposta? 7. Qual é seu grau de escolaridade? 8. Mesmo sem ter coneluído cursos escolares possui alguma cultura? 9. Tem religião? Qual? Professa-a? 10. Como é seu temperamento? Calmo ou agitado? 11. Dá-se ou dava-se bem com os pais? Com toda a família? Fale dela. 12. Como foi sua infância e juventude? 13. Já viveu um grande amor? Marcou sua vida? 14. Tem algum ideal político? 15. O que pretende da vida: a curto, médio e longo prazo? Solte a língua, isso é importante. 16. Tem muitos amigos ou é taciturno? 17. Possui cacoetes? 18. Costuma repetir certas palavras? 19. Gosta de vestir-se bem ou é desleixado? 20. Do que mais gosta ou o que mais odeia? 21. Aceita um drinque? Ah, não bebe. E fuma? 22. Qual sua altura e peso? 23. Pratica esportes? Quais? 24. Já viajou muito ou pretende? 25. Como é que anda de dinheiro? 26. Agora faça uma confissão. Algo que não contaria nem a um padre. Comigo pode se abrir porque sou seu autor. Comece. O espectador nem sempre precisa saber tudo sobre o personagem que criou, mas você precisa, mesmo se ele declarasse:
A entrevista: não responda por ele, deixe-o falar Vou atravessar o roteiro todo sem nada revelar de minha personalidade. Vou ser visto, minhas ações serão acompanhadas pe lo pÚblico, ouvirão tudo que eu disser mas quero manter-me misterioso, enigmático, até o final. Terminado o filme ou programa de tevê, que pensem o que quiserem de mim, analisem-me, condenan do-me ou absolvendo-me. O personagem pode, pois, ser íntimo do público, como uma pessoa que já conhece (parece tio Osório!), ou totalmente impenetrável, uma esfinge para ser decifrada. O primeiro caso, mais seguro, apresenta todavia um risco: a previsibilidade. Um personagem transparente, que lembre muito tio Osório ou o próprio espectador, pode ter ações ou reações óbvias demais, previsíveis, sem surpresa. Como nem nós nos conhecemos inteiramente, convém que o personagem"mantenha seu lado escuro, insondável.
Quem assistiu à Dolce vita, de Fellini, deve lembrar daquele professor, homem equilibrado, conselheiro, marido e pai, integrado no lar, que sem explicação do roteirista mata os filhos e suicida-se, quando numa recente cena anterior fizera verdadeira pregação sobre os prazeres da vida doméstica. Um fato sem preparação nem esclarecimento que mudaria a conduta do personagem principal, vivido por Marcelo Mastroiani. Em matéria de criação de personagens só os autores de superhomens nunca erram. Todos são belos, bons e fortes, sem nenhuma complexidade. O que identifica Flash Gordon é apenas a sorte de ter uma noiva como Dale Arden. Primaríssimos, os super-homens marcam-se por ter um amigo fiel, uma companheira espetacular ou um inimigo implacável. O menos feliz é o Marinheiro Popeye a quem deram Olívia Palito como esposa. Para os romancistas do antigo romantismo a tarefa também era fácil: os bons dum lado e os maus de outro. Deus e o Diabo. E em ne nhum momento o bom deixava de ser bondoso e o mau deixava de praticar maldades. Esse processo maniqueísta não podia mesmo durar para sempre pois não é assim que as pessoas se dividem no mundo. O rádio inventou uma categoria engraçada de personagem: o galã frívolo, que, sem ser um vilão, chegava a namorar com a mo cinha, durante os qüiproquós da novela, mas não chegava a casar com ela, que voltava aos braços do galã. Era um tipo de papel tão marcado naqueles idos que até nos contratos de certos atores se podia ler: galã frívolo.
o d e s e n h o p s i c o l ó g i c o d u m p e r s o n a g e m h o j e
é mais complicado. O herói impoluto perdeu a credibilidade. Tornou-se um chato. Conan Doyle foi um dos primeiros autores populares que resolveram macular um pouco o lado moral de seus personagens: Sherlock Holmes era um dependente de drogas. Parece que depois dele se tornou rotina humanizar personagens através de falhas de conduta. Hercules Poirot, o detetive de Agatha Christie, é um bom cara, mas extremamente vaidoso. Columbo, o do seriado, um relaxado, ao contrário de muitos outros, elegantíssimos. Defeitos de personalidade, falhas de caráter, manias, são também macetes para identificar, marcar, realçar personagens. Mas há também formas materiais, visuais de se fazer isso. Sherlock Holmes não era reconhecido pelo vício secreto da cocaína, mas pela altura, magreza, elegância axadrezada e boné. Como se Conan Doyle já escrevesse para o cinema. Kojak faria o mesmo sucesso sem sua calva e sua piteira? Mr. Moto tinha como marca registrada sua própria raça: japonês. Há também detetives gordos ou entrevados em cadeiras de rodas. Mulheres e padres, todos com seu visual. O seu não é um roteiro policial. Os autores policiais são os que mais se preocupam com o exterior de seus personagens. Mas sempre se pode aproveitar alguma lição, principalmente quando se escreve para cinema ou tevê. Pense um pouco em como deve ser seu personagem exteriormente. Vai facilitar a direção. É magro e alto, baixo e gordo, barbudo, fuma charutos, tem um jeito peculiar de rir, costuma enrugar a testa para pensar, gosta de roer unhas? Não basta inventá-Io. Você tem de ver seu personagem para que outros também o vejam.
Tipos e protótipos
Seu personagem está em qual das categorias? Será um tipo se ele tiver certas qualidades ou defeitos predominantes que o expliquem. O tipo do convencido, "o tipo do insatisfeito, o tipo do ingênuo. Certamente ele não será só isso, mas seu procedimento levará o espectador a concluir que, mais que tudo, ele é o tipo do convencido, insatisfeito ou ingênuo. Mesmo reagindo acaba seguindo essa trilha de conduta.
OS PERSONAGENS; ÀS VEZES ELES SÃO A PRÓPRIA HISTÓRIA 31
O protótipo é criado para demonstrar como o convencido, insatisfeito ou ingênuo agem em qualquer gênero de circunstâncias. Como se o autor fizesse do personagem um mostruário completo de suas qualidades ou defeitos. Como um avarento ou mentiroso, que é só avarento ou mentiroso e mais nada. Evidentemente o protótipo é uma simplificação ou caricatura só justificável em comédias ou quadros humorísticos, sketches de tevê, cujos traços exagerados provocam o riso, embora na dependência da qualidade do ator. No Brasil, o humor na tevê é feito de protótipos, clichês na maioria oriundos do rádio, que continuam a surtir efeito. Desde o advento da televisão, em 1950, raros foram os programas de comédias, não divididos em quadros, que lograram resultado, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, onde seriados como Mary Tiler Moore, de humor finíssimo, permaneceram muitos anos em cartaz. Aqui, humor que não movimenta os músculos da face, em explosões de riso, não é humor.
o personagem é você?
Nenhum autor escreve um trabalho de ficção sem lembrar de suas próprias experiências de vida. Muitas vezes o personagem é o autor usando pseudônimo. O escritor precisa de modelos e o espelho pode lhe oferecer um. Até aí, tudo bem. O erro é quando, embora o autor não seja explicitamente nenhum personagem, aparece a todo momento como um intruso, a dar palpites, tecer comentários, intervindo na história para julgar procedimentos e extrair conclusões. No conto e no romance essa intervenção sucede nas narrações, espaço do autor, quando nos roteiros, como não poderia deixar de ser, se dá através dos diálogos, quando põe na boca dos personagens frases, críticas e conceitos que eles jamais diriam da forma que foram apresentados. Isso é comum acontecer, e quando o é em escala excessiva pende logo para o ridículo, pois força o personagem a sair do tipo para dar vez ao autor, que num lance de ventriloquia a a falar por ele. Se o personagem não é você pode estar por perto: um parente, um amigo. Não sei dizer se somos todos nós personagens, captáveis pela ficção, mas garanto que o mundo está cheio deles. O escri-
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,I I
tor deve estar sempre atento para reconhecê-I os porque às vezes cruza com eles na rua, no elevador, no ônibus. Apenas desconfio dos que dizem "minha vida daria um romance". Para estes ficção limita-se a uma seqüência de desgraças. No geral, os melhores personagens, como as melhores histórias, são aqueles que vamos buscar no fundo do baú da memória, pois já superaram o teste de durabilidade, da agem do tempo. Todos os escritores recorrem a ele. Falando de experiência pessoal quase posso garantir que não inventei nenhum personagem. Mesmo se fizesse ficção cicntífica, não viriam do espaço. Todos que pus em circulação nos meus romances, contos e roteiros tirei do aludido baú ou dum cotidiano mais recente. Mariano, o personagem central de Memórias de um gigolô, foi meu amigo de boemia. Certo conhecido, que me contou uma espantosa história de ciúme, vivida por ele, saiu da mesa dum bar para as páginas dum conto, "O casarão amarelo", mais tarde roteirizado e filmado entre outros contos meus. O ador de dinheiro falso de A arca dos marechais foi alguém que vi algumas vezes na infância e que se tornou assunto no bairro ao ser detido pela polícia. Norma Simone, personagem principal de meu romance Café na cama, é a combinação de duas atrizes que conheci na ocasião. E o roteirista de Esta noite ou nunca tem muito de mim e do que vivi, como autor de qualquer coisa que o cinema da rua do Triunfo me solicitasse. Em Dinheiro do céu, romance infantojuvenil, usei como personagens parentes e conhecidos da juventude, deslocados para uma época mais próxima. E como Hitchcock apareci em diversas ficções minhas como coadjuvante ou mesmo figurante. Feito o personagem resta o problema de batizá-Io. Disse bem, o problema. Há nomes que nào vestem bem certos personagens, fica faltando ou sobrando pano. O recurso de batizá-Ias com nomes extravagantes, ou raros, evidencia demasiadamente a intenção da originalidade. Costumo rebatizar inúmeras vezes os personagens durante a redação dum roteiro até fixar-me no que se ajusta melhor. O ideal é aquele que é fácil de dizer, de gravar na memória, sem ser muito comum. É antigo o recurso de chamar de Cândido um personagem cuja marca principal seja a candura, e de Inocência a moça inocente do roteiro, porém isso só se faz em relação a protótipos, e mesmo assim em franco desuso. Apenas longinquamente o nome do personagem deve lembrar ou alertar para qualidades, defeitos ou características do personagem.
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o roteiro:.
comece aSSIm ... o diretor precisa saber
Não é você quem vai dirigir o filme ou o programa de tevê, portanto tudo deve estar bem claro para o diretor, mesmo se ele, com razões ou nào, decidir alterá-Ia. Em caixa alta, maiúsculas, faça as primeiras anotações. SEQ.01 - AGÊNCIA DOS CORREIOS - INT. DIA
ou
SEQ. 01 - PRAÇA DA REPÚBLICA - EXT. NOITE
As seqüências ou cenas precisam ser rigorosamente enumeradas. Depois, esclareça onde a ação se a: Agência dos Correios ou Praça da República. Mais, se a filmagem será em estúdio ou ao ar livre: externa ou interna. E, por fim, a fase do dia: manhã, tarde ou noite. Certamente quando o ambiente é mencionado pela primeira vez precisa ser descrito. SEQ. 01 - AGÊNCIA DOS CORREIOS - INT. NOITE É uma agência acanhada, dum bairro distante, instalada numa casa velha, quase em estado de decrepltude, tanto em relação às paredes, com a pintura desbotada, quanto ao pequeno balcão e
aos raros móveis. No chão, em pilhas, e nas estantes, acumulam-se desordenadamente cartas e volumes de diversos tamanhos. Há também um cofre e um ..
Essa descrição prende-se ao ambiente, mas os pcrsonagens também devem ser descritos: como são e o que estão fazendo. Um homem de 60 anos de idade, ou pouco mais, chefe da agência, está atrás do balcão, com cara de sono. Olha para o relógio da parede, como se estivesse ansioso para deixar o trabalho. O relógio assinala 18 horas e 55 minutos. Perto dele, uma jovem funcionária, modestamente vestida, vende selos a um office-boy fardado, que os cola numa carta e deposita-a numa caixa. Quando o office-boy sai. entra um homem alto, forte, bem vestido, que se aproxima do balcão 26. 25.
HOMEM ALTO - Fecham às sete? CHEFE DA AGÊNCIA - Já vamos fechar. O chefe da agência sai detrás do balcão e começa a descer lentamente a porta de ferro ondulado. HOMEM ALTO - (Ordena) Feche logo.
O chefe da agência e a moça não entendem a ordem. O homem alto retira um revólver do bolso. HOMEM ALTO - Disse para fechar. Close do velho e da moça, assustados. SEQ. 02 - RUA: DIANTE DA AGÊNCIA - EXT. NOITE Um carro de porte médio está estacionado diante da agência dos correios. Dentro, à direção, está uma moça morena, usando enormes óculos escuros, a olhar a porta de ferrp ondulado que está sendo fechada. Subitamente uma viatura policial pára diante do carro da moça, que, assustada, não sabe se põe o auto em movimento ou se permanece ali. Nenhum policial sai da viatura. SEQ. 03 - AGÊNCIA DOS CORREIOS - INT. NOITE Diante do cano do revólver o chefe da agência, que já cerrou a porta, recebe outra ordem do assaltante. HOMEM ALTO - e a chave.
O v el h o o b e d e c e a p ó s br e v e h e si ta ç ã o. A m o ç a d á u m p a s
so para o interior da agência. HOMEM ALTO - Não se mova daí. CHEFE DA AGÊNCIA - Temos pouco dinheiro aqui. HOMEM ALTO - Eu sei. A resposta intriga o velho e a moça, que se entreolham. Para apressar a saída do assaltante, ele faz uma pergunta. CHEFE DA AGÊNCIA - Quer que abra o cofre? HOMEM ALTO - Não.
herói
Cansada de heróis a ficção inventou o anti-herói, aquele que não deve servir de exemplo para ninguém. Creio que um dos primeiros anti-heróis da literatura foi Julien Sarei, personagem central de O vermelho e o negro, de Sthendai, criado em pleno romantismo quando os heróis eram todos uma soma de virtudes. Neste século os anti-heróis proliferaram, pois se descobriu que possuem um charme especial e à sua maneira são também românticos. Repetidamente são pessoas de origem modesta, que usam de todos os truques para ingressarem na alta sociedade. Seu mau-caratismo pode até ser trocado por austeridade, caso alcancem suas metas. Nossa literatura deu Macunaíma, um herói sem caráter, ligado folcloricamente às tendências naturais dos brasileiros, que serviu de modelo a muitos outros. O anti-herói brasileiro, sem a frieza e calculismo de J ulien Sorcl, são geralmente os pingentes da sociedade, os que vivem de viração, atentos ao oportunismo cotidiano. Mais vítimas que outra coisa. Mas não confundir anti-herói com bandoleiro. Aqui, pelo menos, ele está mais para Zé Carioca que para Lampião.
Os demais personagens
Não faça dos demais personagens do seu roteiro meros antagonistas. Mesmo os secundários ou coadjuvantes precisam ser desenhados e recheados. E não apenas exteriormente. Tem que viver seus conflitos, possuir marca. Quantas vezes é um deles, de pequeno papel, que dá credibilidade a todo o roteiro. Oalton Trumbo, famoso roteirista do cinema norte-americano, sabia valorizá-Ios por menor que fosse sua participação. O filme Viridiana, roteirizado e dirigido por Luís Bui'iuel, é urna obra-prima nesse particular. Seus terríveis mendigos, embora inÚmeros, têm todos seu recheio e personalidade. Ficam na memória do espectador. São os personagens secundários que formam a visão de conjunto. São peças integrantes dum todo, impressão que se perde quando são criados unicamente para contracenarern com o personagem principal.
Personagens-múltiplos Há roteiros em que a situação criada se sobrepõe aos personagens: uma guerra, uma greve, um naufrágio. Nesse caso o roteirista se
o anti-
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propõe apenas demonstrar como reage um grupo de pessoas diante do perigo ou da necessidade de tomar decisões. O cinema-catástrofe inevitavelmente recorre ao processo dos personagens-múltiplos. Comumente revelam uma faceta, a mais marcante, de sua personalidade: o covarde, o mercantilista, o arrependido, o violento, o que só cuida da própria pele e o herói embutido, que só no final expõe sua coragem. O público revela esse primarismo, essa simplificação, porque só deseja saber quais personagens vão se salvar do naufrágio, do incêndio, do tufão ou da bocarra do tubarão. É um tipo de cinemanotícia em que o personagem principal é o acidente, a fúria da natureza ou um animal ameaçador. Muito diferente é o caso em que o roteiro engloba diversas histórias, cada uma com seus personagens, começo, meio e fim, ligados ou não ao mesmo tema. Contar quatro ou cinco histórias, ou oito como o cinema italiano já fez, foi moda nos anos 60, principalmente no gênero comédia, embora tenha sido com o filme de terror inglês, Na solidão da noite, que o novo formato se configurou.
em que contorce o corpo, ao som do rock que vem do rádio colocado sobre a mesa, Outro, diante dum pacote recém-desembrulhado, contempla e acaricia um novo par de tênis, Leo, sentado numa cadeira, escova meticulosamente os sapatos. Um be//boy entra agitado, beijando uma nota de dez dólares. A campainha, estridente, soa, sobrepondo-se à música. Todos se voltam instantaneamente para o no alto da parede onde um número luminoso pisca insistentemente. O rapaz que contava o dinheiro levanta-se e, apressado, vai até o onde aperta um botão silenciando a campainha e apagando o pisca-pisca. Ao mesmo tempo, guarda o dinheiro. Sai, apressado, abotoando-se. Os demais, depois de verificarem o número chamado pelo , retornam imediatamente ao que faziam. Mal bate a porta por onde saiu o rapaz, a estridente campainha volta a soar e outro número pisca no . Os bel/boys repetem os movimentos. Agora é Leo que, livrando-se da escova de sapatos, aperta o botão do e sai apressado da sala.
Outra cena do mesmo roteiro com indispensável descrição longa: SEO. 80 - ACADEMIA DE LUTA - INT. DIA King Kong, atracado ao pescoço do Conde Drácula, tenta estrangulá-Io. Drácula vai perdendo as forças; arregala os olh.os e põe a lín gua para fora_ De repente, num golpe ágil e surpreendente, Drácula consegue escapar. King Kong persegue o esperto vampiro e vê-se agora
o ringue da Acade mia onde no fundo Leo vem
entran do meio assust ado e inibido . A o se aproxi mar do ringue , Leo vê de um lado, fazen do solitários exerci cios de luta, ningu ém meno s que o Tarzã; enqua nto do outro, o Super Home m dorme estira do no chão. Mais adiant e, Fanto
mas, encostado à parede, toma um refrigerante ao mesmo tempo em que encara misteriosamente Leo. A luta prossegue no ringue_ Agora, o Drácula tenta enfiar suas presas mortíferas no pescoço de King Kong_ Leo se aproxima de Mis ter Sandman, o único espectador da luta, no momento em que ele, voltado para o ringue, bate palmas encerrando o treino/ensaio.
Não esqueça as rubricas Nos dois trechos selecionados do roteiro de AIcione Araujo não há diálogo. Limitamo-nos ao visual para exemplificar melhor. Mas um roteiro é composto de narração, anotações técnicas e diálogos. Para orientação do diretor e do elenco estes também precisam de anotações - as rubricas. Do mesmo roteiro de Alcione Araujo retiramos alguns exemplos: JANDIRA - (Categórica) Neste hotel não vejo, não escuto, não falo.
ALEMÃO - (Em alemão, aos berros) Eu não chamei! Não quero nada! Neste hotel só tem ladrões! BELLBOY - (Em off) Você tem namorada? PASCOAL - (De boca cheia) - É bom fazer coisa nova. A freguesia tá mudando' IOLANDA - (Benzendo-se) Que Deus me perdoe! DIOGO - (Quase num soluço) PÔ, ninguém liga pra mim?! Ninguém me dá força?! RITA - Ele está apaixonadinho ... (Com malícia) - E não é só ele, não ... ÃNGELA - (Excitadissima) - Mas tá na hora de papai chegar ... LEO - (Misterioso e detetivesco) - Não sei. PERCIVAL - (Ao telefone) Emperor Park Hotel. Yes .. yes. GINO - Bom dia ... (Tom) - Pra que pressa? (Rindo) O banheiro 11ao 29. 30.
29.
li
vai fugir. RAFA - (Confirmado) E fui ao Acapulco também. (Tom) Desmentiram tudo.
A rubrica Tom é muito importante para o diretor e () ator. Significa mudança de tonalidade, modula a frase. Evidentemente numa fala
do personagem cabem quantas rubricas forem nccessÚ rias. Dão colorido à interpretação e rompem a monotonia. Nos tempos do rádio, quando às vezes nem cnsaio havia, acontecia do ator inexperiente ler a rubrica, assim: PAULO - Fazendo voz romântica, eu te amo.
ou: PAULO - Ameaçadoramente, saia desta casa!
Outra rubrica importante no diálogo é a Pausa. Um ins· tante de silêncio geralmente diz mais que uma enxurrada de palavras. lndica que o personagem vai repensar a situação, perdeu o fio de sua argumentação, recebeu um impacto emocional ou fará uma grande revelação. MARIA - O que quer me dizer? Por acaso está me acusando de ter gasto seu dinheiro? (Tom) Pois vou lhe dizer uma verdade (Pausa) Foi sua mãe quem esbanjou tudo. OTÁVIO - Pensa que me surpreende? (Tom) Então ouça ... (Pausa)
Eu já sa bi a.
Mas não vamos, com essas noções preliminare s, invadir a etapa do diálogo, que merece capítulo à parte.
CHEFE DA AGÊNCIA - Não? HOMEM ALTO - Não me interessam os seus trocados. O chefe e a funcionária entreolham-se outra vez. MOÇA - O que o senhor veio ... HOMEM ALTO - Recebeu hoje um pequeno volume embrulhado em papel verde? O chefe não lembra mas a funcionária sim. MOÇA Procedente de Blumenau? HOMEM ALTO - eme ele. MOÇA - (Usando as mãos) Deste tamanho? HOMEM ALTO - Vamos. Me dê ele. MOÇA - (Embaraçada) Ele ... ele ... (Tom) Não está mais aqui. O assaltante avança sobre a moça surpreso e desnorteado. Ela recua. HOMEM ALTO - Não está mais aqui? MOÇA Vieram buscá-Io. O assaltante toca a funcionária com o cano do revólver, exigindo um esclarecimento rápido. HOMEM ALTO - Quem? MOÇA - (Engolindo em seco) Uma mulher. Não estava em nome dela. CHEFE DA AGÊNCIA - Agora lembro, ela trouxe uma declaração, com firma reconhecida da pessoa que deveria receber o volume. O assaltante perde a agressividade. Torna-se suplicante. Repõe o revolver na ci ntura. HOMEM ALTO - Por favor, senhorita ... Descreva essa mulher.
Aí está um início de roteiro bastante simples em suas linhas mas que começa quente, instigante, já formulando perguntas e questões. Por que assaltar uma minúscula agência dos correios? A resposta do assaltante intriga ainda mais: não queria dinheiro. O que haveria no tal volume verde? O assaltante foi vítima dum logro? A moça de óculos escuros teria algo a ver com o logro? Mas ela, por sua vez, também está em apuros com a chegada da viatura policial. Os policiais estacionaram o carro por acaso? O que a moça fará? Vai fugir ou esperar a volta do provável parceiro? . Acrescentemos mais duas cenas que mantêm o pique inicial.
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SEQ. 04 - RUA: DIANTE DA AGÊNCIA - EXT. NOITE A moça de óculos escuros, sentada ao volante do carro, vê um policial fardado sair da viatura. Dá a partida pondo o carro em movimento mas um caminhão pesado fecha-lhe o o. Para não bater, ela breca fazendo os pneus rangerem. O policial que saíra da viatura dirige-se a ela. POLICIAL - (Gaiato) É preciso ter cuidado com esses grandões, moça. Chegou a bater? MOÇA DE ÓCULOS (Ou sem nome) - Não. POLICIAL - Foi sorte.
Esta cena esclarece que os policiais não estavam ali porque desconfiassem da moça. Mas por que motivo estariam? SEQ. 05 - AGÊNCIA DOS CORREIOS - INT. NOITE O homem alto, ainda suplicante, quer que a funcionária descreva a mulher que foi buscar o pacote verde. HOMEM ALTO - Como ela era? A funcionária parece não lembrar. MOÇA - (Hesitante) Era morena, magra ... (Lembra) Usava ócu· los escuros. O assaltante recebe um impacto. HOMEM ALTO - (Como se desperto para uma suspeita) Óculos escuros? (Pega a funcionária pelo braço e arrasta-a até a porta da agência) MOÇA - (Assustada) O que vai fazer? HOMEM ALTO - Quero que reconheça essa mulher. O chefe da agência abre a porta. O homem alto, segurando a funcionária, não vê o carro. Corre para a rua.
emos dum roteiro simples para outro, mais detalhado, com descrição pormenorizada dum ambiente onde se movimentam inúmeros personagens, como o que se segue, selecionado da adaptação do romance juvenil, de minha autoria, O mistério do cinco estrelas, escrito por Alcione Araujo. SEQ.01 - SALA DOS BELLBOYS (Mensageiros de hotel) - INT. DIA Cinco bellboys, com seus uniformes brancos com debruns dourados, estão descansando. A sala tem sofá desgastado, algumas cadeiras que não combinam entre si, duas pequenas mesas. Visivelmente o mobiliário é um reaproveitamento de peças. Alguns dos rapazes, na faixa dos 16 anos a 20 anos, têm o uniforme desabotoado. Um lê uma revista em quadrinhos, estirado no sofá. Outro conta dinheiro, desamassando as cédulas. Outro, diante dum grande espelho espreme espinhas e se contempla em várias posições, ao mesmo tempo
dade e a princípio a principal atração. Há autores que devem seu êxito ao seu repertório de palavrões sob o rótulo de rebeldia, liberalismo e oposição aos preconceitos. ada a novidade, observa-se que pela repetição acabam esvaziando a carga dramática, quando um único, no momento certo e imprevisto, causaria impacto maior. Além do mais o que hoje em dia escandaliza quem?
Solilóquio: para cômicos e doidos Antigamente, no teatro, até havia o momento do solilóquio, quando o personagem falava sozinho, numa espécie de so lo instrumental de piano ou violino. Na comédia popularesca o solilóquio ainda é recurso usado quando o personagem, como efeito humorístico, comenta suas diabruras ou anuncia próximas maquinações. No rádio o solilóquio também era normal porque não havia uma câmera para registrar as reações dos personagens, obrigados a expor o que estavam sentindo e o que pretendiam fazer. Mesmo quando dramáticos, eram divertidíssimos. Na literatura, James Joyce criou o monólogo interior, Fluxo de consciência, que deu profundidade aos personagens revelando seu universo subterrâneo, mas sem possibilidade de adaptação para cinema e tevê, devido à sua extensão e complexidade.
O monólogo, no entanto, como formato, peça com um só personagem, já alcançou êxito mesmo no teatro nacional, como As mãos de Eurz'dice, de Pedro Block, que, ao lado de outras, estrangeiras, Antes do café, de O'Neil, e O homem da flor na boca, de Pirandello, foram apresentadas na tevê em programas reservados exclusivamente a peças teatrais.
o diálogo e suas modulações Foi Ernest Hemingway que a partir dos seus contos deu novo ritmo e colorido à técnica do diálogo na literatura moderna. Sua novela A vida curta e feliz de Francis Macomber expressa-se tão bem através das falas, caminha tão velozmente a ponto de tornar desnecessárias as descrições, resumidas ao mínimo. Diálogos que não apenas comentam mas conduzem, empurram a ação.
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Ao mesmo tempo Hemingway foi um dos primeiros autores a usar a linguagem do cotidiano, sem empostações literárias, mantendo porém a qualidade do diálogo. O comum sem vulgaridade. Nos seus livros o diálogo não aparece como ório, mas
como elemento essencial para o entendimento dos personagens e do enredo. Antes dele os personagens só falavam o essencial: diálogos longos chegavam a ser atestado de fragilidade do escritor, comprovavam sua incapacidade de narrar ou descrever. Hemingway torpedeou esse velho conceito produzindo diálogos brilhantes, autenticas e condutores de ação. John Steinbeck deliberadamente fez romances que eram ao mesmo tempo peças teatrais e roteiros cinematográficos: Ratos e homens, Noite sem lua e O filho desejado. Mas só no último revelou essa intenção, em prefácio. Pelo menos o primeiro, o famoso Ratos e homens, alcançou plenamente seu intento. Não há uma linha do diálogo do livro que falte ao filme A cadeia fatal, como se chamou em português Of mice and man. O trabalho mais fácil de adaptação para rádio que fiz na vida foi Ratos e homens porque apenas copiei os diálogos, em tradução de Érico Veríssimo, e acrescentei anotações para a técnica e a contra-regra. A adaptação teatral do livro, que assisti no Teatro de Arena, nada subtraiu nem acrescentou ao original. E a adaptação para a tevê apenas incluía um palavrão com o que a direção da emissora não concordou. Em O filho desejado, no prefácio, Steinbeck comentou esse processo: "Apesar das dificuldades existentes, a peça-romance é altamente gratificante, de vez que, além de uma oportunidade mais ampla de ser lida, proporciona também a possibilidade de ser levada à cena, sem as adaptações usuais. Acho, enfim, que se trata duma forma legítima e que pode ser bastante explorada" . A não ser num caso como Ratos e homens, em que o processo funcionou perfeitamente, e que talvez ocasionalmente resultou numa peça-cine-tevê-rádioromance, não julgo aconselhável tentativas idênticas porque limitam em demasia a criatividade além do aspeeto comercial excessivo. Aliás, foi essa a pecha que aplicaram em Steinbeck nos seus últimos anos de vida. Outro excelente criador de diálogos, considerado por muitos também um renovador, foi o romancista norte-americano, do gênero policial, Dashiell Hammett, que se esmerou em falas secas, cínicas, contundentes e invariavelmente curtas. Sua dialogação não deu trabalho aos roteiristas que adaptaram seus romances para a tela.
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Diálogo:
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maIS arte que tecnIca
Não olhe para a tela
Se quiser testar a qualidade dos diálogos dum especial ou programa de tevê, não olhe para a tela. Apenas ouça. Sem a imagem qualidades e defeitos crescem, saltam. Descobre-se, por exemplo, que certos autores usam o diálogo como simples muletas da ação. Parece escreverem histórias em quadrinhos. Tudo picadinho, superficial, desestruturado. Roteiros que sofrem de infantilismo verbal. Brevidade não implica obrigatoriamente em superficialidade. O breve também pode ser óbvio. a) É preferível uma ação muda do que complementada com diálogos inúteis. Imagens também falam.
b) Nunca coloque em palavras o que a imagem ou ação já tornou explícito. c) Evite diálogos longos; cansam, a não ser que possuam indiscutível carga dramática. d) Se diálogos pobres enfraquecem o roteiro, os literários podem torná-lo artificial. e) Os diálogos devem ser espontâneos e corretos. Isso já é boa literatura num roteiro. Sempre que concluir um dos tratamentos do roteiro, pegue um lápis vermelho e risque todas as palavras desnecessárias à com
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preensão e fluidez dos diálogos. Uma única palavra excessiva dificulta a interpretação do ator. Quanto às frases repetidas, só em situações especiais para demonstrar obsessão, indecisões ou temores. Corte inclusive pronomes (eu, tu, você e ele) quando não fazem falta. E varra sem piedade tudo no roteiro que não some, não acrescente, e que já foi dito ou está implícito. No cinema, principalmente, o tempo é precioso. E quanto às qualidades dum diálogo? Uma das mais importantes é a que coloca na boca do personagem a linguagem do seu meio social, cultural e familiar. Aquela história de fazer uma pessoa inculta expressar-se corretamente. O lixeiro que fala como um doutor. Há também o caso da faixa etária. Cada geração tem sua linguagem e maneirismo. É preciso ter isso sempre em mente. Enquanto as imagens explicam, o diálogo deve ser um conduto de emoções. Saber dosar ambos garante um bom resultado. Mas, se por um lado há imagens banais, rotineiras, quadradas, conseqüência da preguiça ou da falta de talento do diretor, há diálogos COI1Struídos com frases feitas, clichês, estereótipos e chavões característicos de certas situações. Eu e minha mulher muitas vezes nos divertimos prevendo faIas de personagens de telenovelas quando diante de conflitos e problemas habituais. Quando se conhece o autor, de outros trabalhos, aí nunca se erra. Essa deficiência veio de Hol1ywood, que, devido a grande produção, não só repetia idéias, enredos e situações como também possuía um estoque de frases~ óbvias, sonoras e sentimentalóides para acertar em cheio no imenso coração do espectador médio. Há autores, que para se livrarem de velhos chavões, apelam ao moderninho, enxertando no diálogo gírias e expressões do momento. Nem Ihes ocorre que com a rapidez com que tudo se transforma esta atualização ou modernidade acaba virando sucata vocabular antes que o ano termine. O pessoal do Cinema Novo tinha essa mania, e hoje, quando revemos seus filmes, podemos observar que o diálogo daquela safra foi o que envelheceu mais depressa. O escritor, conclui-se, deve captar o espírito de seu tempo, não do ano em que está vivendo. Mais que gíria e modismos foram os palavrões os responsáveis pelos diálogos quentes. No teatro tornaram-se uma obrigatorie-
ça, põe fim às pretensões artísticas de qualquer roteirista, levando o trabalho à despersonalização total. Pior que essa divisão de tarefas só mesmo o videotexto, a produção de roteiros por computadorização, robôs autores, capazes de memorizar tudo do agrado do grande público, não muito exigente, mas que consome mais que as elites intelectuais. Temo que não faltariam patrocinadores para comprar o produto dessas infalíveis máquinas de fazer roteiros.
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A imagem: os planos, cortes eflashback
Diziam muito com poucas palavras. Mais que isso: o estilo de Hammett foi adotado pelo cinema, no início dos anos 30, que encontrou o jeito, a medida e a economia de palavras que convinha aos personagens da tela. Mais tarde Hammett escreveu diretamente para o cinema, mas sua maneira cinematográfica, quanto à dialogação, já era uma lição aprendida. Ainda hoje a maioria dos filmes policiais norte-americanos traz nos diálogos a marca de Dashiell, feita de cinismo, brevidade e uma parcela dc humor. Vcjam que até nessa questão, a linguagem dos roteiros, a literatura forneceu suas dicas.
|O subtexto: o invisível inteligente
A grande dificuldade inicial do rotelrlsla aprendiz é pensar em termos de imagem. Sim, porque a princípio ele pensa em termos de palavra. É uma dificuldade semelhante à do estudante de inglês, que não consegue pensar em inglês. E do aluno de auto-escola que precisa pensar um pouquinho antes de mudar as marchas. O roteirista deve habituar-se a ver a história. a imaginá-Ia numa sucessão de cenas, como se os diálogos não fossem necessários. Pergunte-se, pois, se a idéia que vai desenvolver em roteiro pode ser convertida em imagens, desdobrada em takes ou é excessivamente introspectiva, fechada demais ou caótica. Você quer mesmo fazer um' roteiro ou o que tem em mente daria mais um conto, romance ou peça teatral? Essa indagação liga-se imediatamente a outra: - De que tempo vai dispor? Um filme leva em média de 90 a 100 minutos. Sua história não acabaria logo no vigésimo minuto? Um especial de tevê, teledrama ou musical, tem 50 minutos. Cinqüenta minutos também é geralmente o tempo dum seria do ou capítulo de minissérie
Subtexto é tudo aquilo que não está cada trocado em palavras mas embutido no texto, implícito. Um texto primário não tem subtexto: os diálogos dizem tudo. O subtexto é, no geral, a parte mais inteligente do texto, a verdade oculta, a intenção principal, o que vai permanecer depois de findo o espetáculo. Não confundi-Ia com o duplo sentido, no geral picante. Muitas vezes o espectador não percebe o subtexto, o que nem sempre prejudica o entendimento, mas diretor e atores o esmiuçam para dar mais profundidade à interpretação. Uma frase que diz isto mas que também quer dizer aquilo, mais importante. Um personagem confessa-se inocente. Mas há um subtexto, feito de hesitações e comprometimentos, que o condenam. Uma declaração de amor pode conter um subtexto que a negue. Os grandes textos, sejam de romance, teatro e cinema, sempre têm uma verdade subterrânea, só para os mais perspicazes ou cultos.
Diálogos adicionais
Quando o diretor decide acrescentar novas cenas num roteiro, mais explicativas, o que muitas vezes ocorre já em fase de filmagem, é obrigado a recorrer a diálogos adicionais, que podem ser redigidos pelo autor ou por outro profissional. No geral é· o próprio diretor quem os acrescenta, às vezes numa linguagem em desacordo com o resto. Noutros casos verificase que há pouco diálogo na cena, exigindo-
35. se acréscimos. Ou então o diretor resolve substituir diálogos de uma ou maiS cenas. Já fiz um roteiro que, ao vê-Io na tela, não o reconheci. Os diálogos adicionais substituíram totalmente os meus. E pior, os créditos diziam: diálogos adicionais de Marcos Rey.
Personagens do "alô quem fala?" Havia em nossa televisão um autor de telenovelas que ficou conhecido pela disposição que seus personagens tinham de falar ao telefone. Mesmo nas situações de clímax e grandes emoções. Parecia um propagandista da Telesp e da Telerj. O resultado era invariavelmente mau porque toda a tensão duma cena saía pelo fio. Hoje usa-se o split-screen, divisão da tela em duas partes, nas conversações telefônicas mais longas ou quando é importante fixar as reações dos personagens. Mesmo assim aconselha-se a racionar o uso, embora uma ligação telefônica que traga uma notícia inesperada - sua mãe morreu _ possa alcançar o mesmo impacto dramático da que é transmitida de corpo presente. Nos enredos policiais o telefone é geralmente elemento de suspense. Há filmes em que ele é o plot, o núcleo dramático, como em A vida por um fio, quase um filme de terror, em que uma mulher entrevada na cama, milionária, recebe uma ameaça de morte pelo telefone.
A ameaça dos dialoguistas A industrialização do roteiro fez surgir nos Estados Unidos, o que faz crer que vem vindo para cá, uma categoria profissional perigosa: os dialoguistas. Que se tenha espírito de equipe, vá lá, mas daí a entregar a dialogação dum roteiro de nossa autoria a outro autor equivale a tirar grande parte do prazer da criação. Que existam argumentistas e roteiristas é natural. Argumento é o romance, o conto, a peça teatral, o poema, que precisam ser transformados em espetáculo de tela, trabalho que exige especialização. Porém, dividir a produção dum roteiro em partes, como seções ou departamentos industriais, cada um encarregado duma pe-
As minisséries têm 4, 5, 10, 12 ou 20 capítulos de 45 ou 50 mi nutos, segundo a carga de comerciais. A tendência atual é de diminuir o número de capítulos das minisséries para facilitar a comercialização no exterior. Uma telenovela tem de 150 a 180 capítulos com 30 minutos de ação, sem comerciais, abertura e encerramento. Pergunte a quem contratá-Io quantos minutos terá o filme ou programa de tevê para calcular se seu argumento cabe nele. Quantas páginas ou laudas vai dar? O cálculo do número de páginas é sempre torturante porque algumas resultam em 30 segundos de ação e outras num minuto ou dois. Depende do espaço de sua máquina. Do ritmo da ação. Da quantidade de descrição ou de diálogos. Quando o roteiro ultraar o tempo, que na tevê é implacável, a edição resolve, cortando as demasias. É mais grave quando o roteiro estiver curto, minguado, pois o diretor terá de espichar as cenas, o que é mau. Os autores de telenovelas quase não sofrem esse problema: a extensão do trabalho e o número de vezes que freqüentemente reescrevem os primeiros capítulos facilitam o acerto correto entre páginas e tempo.
Cenas e suas Um filme ou teleteatro, qualquer que seja o gêsubdvisões nero de script dramático de tevê, é constituído de cenas, cujo número varia segundo o tamanho e o ritmo. Dificilmente um filme tem menos de 150 cenas ou seqüências. As primeiras novelas de tevê, escritas por autores radiofônicos, preocupados mais com as palavras que com as imagens, tinham poucas cenas por capítulo diário, dez no máximo. Hoje, mais dinâmicas e cinematográficas, chegam a ter 40. Cada cena divide-se em takes - tomadas -, que equivalem aos parágrafos de um romance. A tomada inicia quando o cameraman liga a câmera e termina quando ele a desliga para começar outra. A tomada, como o parágrafo, divide-se em frases - shots que chamamos de planos. É o plano que determina a linguagem a ser usada: próxima, média, geral, subjetiva etc. Resumindo: O roteiro é dividido em seqüências ou cenas; as cenas em tomadas (takes) e as tomadas em planos (shots).
A informação do número da cena e da tomada (também do capítulo quando se trata de telenovela) vão para um pequeno qua dro-negro - claquete - que filmado ou teipado possibilita, em números, a organização da montagem. Travelling
Chama-se assim quando a câmera acompanha o personagem, o carro, o cavalo, o avião na mesma velocidade em que se movi mentam. É o plano da ação, o que rompe a monotonia. Os enlatados norte-americanos, que só têm ação e mais nada, vivem dos travellings. A câmera é a mão que conduz o espectador para o interior do roteiro. Dependendo da escolha de planos, o roteiro fluirá normalmente ou não. Trará alguma novidade narrativa ou não. Mas é trabalho quase exclusivo do diretor, onde demonstra sua criatividade ou impõe sua marca pessoal. O autor só determina o plano no roteiro quando é necessário ressaltar algum detalhe importante. Alguns planos mais usados:
Os planos: enquanto assiste a um filme, classifique-os Plano médio
O mais usado. Quando a câmera foca o personagem da cintura para cima. Também chamado de Plano Americano, que na verdade apanha o ator do joelho para cima. Panorâmica Close-up ou simplesmente close
Chama-se assim quando a câmera movimenta-se dum lado para outro, ao contrário do plano geral, fixo. Ela eia, investiga, descreve o local da ação. É indispensável nas cenas que envolvem paisagens e acidentes geográficos. É o detalhe dominando a imagem. Um rosto ou apenas um nariz ocupando toda a tela é um close. Close de orelha. Seio em close. Pavio de dinamite sempre dá close. O close dum beijo. O abuso do close torna o filme monótono. A tevê usa-o excessivamente para mostrar a beleza de atrizes. Ou para ocultar a pobreza do cenário. Ponto de vista
Usado para mostrar como o personagem, principal ou não, vê e movimenta-se dentro do cenário. Comum ente os roteiros infor mam: do ponto de vista de fulano ou sicrano. É um plano que funde personagem e público. Plano geral (Long-shot) É o que inclui o cenário e os personagens envolvidos na ação.
Quando se pretende informar onde a cena acontece, usa-se o plano geral. Primeiro uma agência de correio vista por fora, depois uma cena já no interior. O plano geral informa logo se é dia ou noite e onde a cena vai se desenvolver: praia, bairro periférico, praça esportiva, conjunto residencial, navio. Num baile usa-se muito o plano geral. Quando o mocinho e a mocinha dançam, não. O plano geral informa onde, enquanto os outros planos informam por quê. Exemplificando
Panorâmica: A câmera eia por uma floresta até localizar dois garotos. Plano médio: A câmera apanha os dois garotos, parados, conversando. Ponto de vista: Partindo do ponto de vista de um dos garotos, algo se move sobre a vegetação.
36. Close: A câmera pega em primeiro plano uma cobra. Travelling: Os meninos fogem acompanhados pela câmera. Plano geral: Visão total duma hospedaria onde os meninos chegam.
o início e o final das cenas Corte
É quando a agem duma cena para outra se faz como se usasse uma tesoura, diretamente e sem antecipação. É o recurso mais adequado para dar ritmo ao roteiro. Usa-se também o corte seco em meio a uma cena para dar idéia de agem de tempo. Escurecimento
Há roteiristas e diretores que preferem o escurecimento (fade in) para mudar de cena, sendo que a seguinte começa com a ilumi nação da imagem (fade out). É um recurso desaconselhável para filmes em que a ação e o ritmo são essenciais. Fusão É a mistura de duas imagens, a nova sobrepondo-se à velha. É mais usado na tevê ou no cinema para iniciar umflashback. A imposição duma imagem-lembrança sobre o presente. Dissolve
As cenas podem ser cortadas, escurecidas ou dissolvidas. Dissolver imagens é um processo muito usado na direção de filmes românticos ou poéticos ou para simular um desmaio. Sua repetição, cansativa, é desaconselhável. Freeze
A tevê vem abusando desse recurso: congelamento de imagem, seguido dum corte seco. Os personagens e tudo ao seu redor imobilizam-se por instantes. O processo vem se limitando mais ao the end.
Ou Uma cena pode empurrar a outra até sua focalização total. Outro recurso do gênero é o rodamoinho em que o último fotograma duma cena gira e desaparece. Ambos, mecânicos demais, cansam depressa pela repetição.
F/ashbac/c: O ado explicando o presente O flashback é um recurso narrativo ao qual o cinema sempre deu grande importâneia e, quando usado com acerto, funciona esplendidamente. Justifica-se: a) quando algum personagem lembra um fato; b) quando algum personagem conta a outros fatos que acrescentam informações ou esclarecem enigmas; c) quando o filme começa pelo final, caso de Lolita, todo ele é um jlashback, a explicação do fim-começo. O gênero policial é o que mais emprega o ./lashback como recurso narrativo, quando o detetive, testemunhas, suspeitos ou o criminoso, contam como tudo aconteceu. Certos roteiristas colocam um ./lashback dentro de outro, o que sempre leva à confusão. Inserts São tomadas, geralmente breves, colocadas no roteiro para lhes dar clima ou criar expectativas. Uma boneca espetada por agulhas, surgindo sem motivo aparente entre cenas, pode significar feitiçaria ou sua ameaça. Uma arma que dispara, o risco de morte acidental ou não pairando sobre os personagens. Uma bóia solta no mar, o perigo dum naufrágio. No filme O homem do prego, inserts-relâmpagos, mostrando uniformes e cruzes suásticas, explicava que o personagem principal fora prisioneiro dos nazistas e vivia escravizado a suas lembranças. Às vezes, mais longo, o insert representa a fantasia ou imaginação de um personagem em fuga da realidade. Por exemplo, o náufrago duma ilha deserta que se vê a bordo dum navio salvador. Um sentenciado que se imagina em liberdade. Nas telenovelas o insert é usado com a intenção indisfarçável de alongar capítulos: desejos, sonhos ou pesadelos consomem al guns minutos livrando o autor do compromisso de contar alguma coisa.
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o roteirista e quem
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com realismo o meio em que vai atuar. Excessivo comercialismo, mau gosto e protecionismo não são males exclusivamente nacionais. Muitas Como já aconteceu comigo e com tantos outros, para não perder uma oportunidade, o roteirista acaba aceitando tarefa que não lhe agrada, útil apenas para fixar-se como profissional no meio cinematográfico. Mesmo porque alguns especializam-se em trabalhar idéias alheias, demonstrando capacidade para realizar qualquer tipo de roteiro, segundo interesses ou preferências do produtor. Na televisão, o produtor ou coordenador de textos, em suma a pessoa encarregada de julgar roteiros, nem sempre é um crítico ideal ou imparcial. Sendo ele funcionário, e não alguém que esteja arriscando dinheiro, é mais influenciável no sentido de atender a pedidos de amigos, gente ligada a casa, selecionando entre sugestões e sinopses não as melhores mas de preferência as assinadas por autores que deseja favorecer.
Um roteiro é criado em duas circunstâncias: quando o roteirista escreve por prazer ou quando atende a um pedido comercial. No primeiro caso faz um trabalho de que realmente gosta, no qual acredita e que o satisfaz artisticamente. No segundo, o artista cede lugar ao comerciante. Para ganhar dinheiro, faz o que o produtor ou a emissora manda. A segunda circunstância é a que lhe dá o pão de cada dia mas é a mais dramática, a começar do tempo para realizar seu trabalho, sempre limitado e urgente. Quanto ao prazer dependerá certamente de quanto lhe pagarão ... No geral o roteirista, principalmente de cinema, é chamado para escrever uma história cujas linhas gerais já existem. Se se tratar duma adaptação, melhor, pois seu trabalho partirá de algo concreto: adaptar um romance ou uma peça teatral. Mas às vezes o produtor tem somente uma idéia vaga do que pretende, apenas o reflexo da vaidade de ter uma história sua filmada, embora confusa e caótica. É o que acontece mais freqüentemente num país onde se lê pouco e portanto os produtores ignoram que a literatura é a mais abundante fonte de argumentos. Os filmes norteamericanos, já disse, são na maioria baseados em contos e romances. Aqui esse procedimento é mais raro resultando em argumentos feitos às pressas não testados pelo público, para atender a uma tendência às vezes ocasional do mercado.
Quem decide, portanto, tornar-se um roteirista profissional precisa ver vezes o novato terá de se defrontar com diretores que possuem o cargo, não a competência. Que lêem por alto todos os roteiros que lhe chegam à mesa ou que já engatilharam seu não, mesmo antes de lê-Ios. Mas a verdade, isso também a experiência comprova, é que a qualidade, até quando não muito comercial, acaba se impondo. Dessa forma, o roteirista estará sempre se debatendo entre o que quer realmente escrever, o que permitem que escreva e o que lhe mandam escrever. Os que se dedicam à chamada indústria cultural, voltada para os meios de divulgação de massa, que envolve grandes verbas e exige retornos comerciais imediatos, têm de aceitar as regras do jogo, tolerá-Ias, se não quiserem ser rejeitados por ela. Até aqui falamos do produtor, de quem paga, no cinema, de quem contrata, na tevê; mas entre o roteirista e o público há outro agente, muito atuante, que é o diretor. Do entendimento entre o roteirista e o diretor é que nascem os bons resultados. Há diretores que colaboram na bolação e redação do roteiro. Sugerem, discli~ tem, acompanham, julgam. Assinei roteiros cinematográficos com diretores que realmente participaram do trabalho, dividindo a responsabilidade do sucesso ou do fracasso. Bunuel nunca dispensou roteiristas para trabalharem com ele suas idéias, O que Fellini e outros diretores ainda fazem.
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E ssa união entre quem escre ve e quem vai realiz ar nem sempre acont ece. Na maior ia das vezes o direto r pega o roteir o e altera-o segun do suas tendê ncias ou impro visa sem consu ltar o roteiri sta por perso nalis
mo ou falta de tempo. Se o diretor realmente for capaz de melhorar sozinho o roteiro, às vezes limitando-se a simples cortes, tudo bem. Mas se procede a modificações profundas para impor o seu estilo, se o possui, ou muda o curso da história, o resultado será danoso. Um concerto a quatro mãos só funciona quando roteirista e diretor tocam a mesma melodia. Se a melodia for diferente o grande prejudicado será o roteirista, pois crítica c pÚblico não saberão onde seu trabalho sofreu alterações e até que ponto foi sua a responsabilidade. Na televisão, tratando-se duma novela, há tempo de sobra para um entendimento entre autor e diretor, sempre obrigados a dialogarem sobre os próximos os. Nesse gênero uma boa direção resume-se mais em correção e fluência, pois não há tempo para muita criatividade a não ser nos primeiros capítulos, feitos com mais vagar, quando todo esforço é concentrado na intenção de agarrar ou surpreender o telespectador. Tudo que o diretor sabe e do que é capaz coloca nesses capítulos iniciais, sendo que logo em seguida, devido à urgência da entrega, a novela cai ao feijão com arroz, à simplificação técnica, tornando-se "quadrada", ao contrário do que fazia prever o seu começo. Já nos especiais, teledramas ou minisséries, produzidos em ritmo menos industrial, a participação do diretor ou seu entrosamento com o autor é mais evidente. A mão, sombra ou perfil do diretor aparece mais, quase como no cinema. A um diretor de tevê sua escalação para dirigir tais gêneros é um prêmio ou teste de' qualidade. Por outro lado, é durante a redação deles que os conflitos entre diretor e autor são mais freqüentes. É fácil imaginar o que acontece entre um autor relativamente culto e um diretor simplesmente intuitivo, mas que no final é quem decide. Tudo que disse teve a intenção de demonstrar que o roteirista não é um criador livre, sem amarras, como o escritor e o poeta. Ele é um elo de uma indústria, o responsável por uma fase de fabricação dum produto que será julgado principalmente pelo seu retorno comercial. A maior prova de que o roteiro é mais um artefato da indústria cultural que uma obra de arte está no fato de ser a cada dia que a um trabalho de equipe. Nesse caso há um roteirista res-
ponsável, que trabalha com colaboradores, ou há entre eles uma divisão de tarefas. Certamente a primeira opção é mais aconselhável para que o roteiro, com a mesma linguagem, apresente harmonia de estilo. No caso das telenovelas a equipe surgiu como uma necessidade de humanizar o trabalho, pesado demais para um só autor, sujeito a estafar-se a qualquer momento. Mais de uma vez fui chamado para substituir novelistas que já não ando aos constantes espichamentos de suas novelas paravam de escrever. Mário Vargas Llosa, em seu romance-depoimento Tia Júlia e o escrevinhado,., fala de um Hovelista de rádio que ava o dia e parte da noite debruçado sobre a máquina de escrever sem jamais ter tempo para curtir ou reler uma linha que fosse dos seus inúmeros capítulos diários. Conheci alguns assim, no rádio, que chegavam a escrever até três novelas ao mesmo tempo, sem merecerem as longas férias que hoje em dia gozam todos os novelistas da televisão. Trabalhar em equipe, no entanto, pode tornar-se tormentoso quando há um desnivelamento cultural entre os roteiristas. Qualquer personalismo ou apego exagerado às próprias idéias retarda ou dificulta a tarefa. Melhores resultados obtêm duplas ou trios de autores que habitualmente trabalham juntos. A TV Globo criou há alguns anos uma Casa de Criação destinada a produzir roteiros, examinar sugestões, adestrar roteiristas iniciantes e estudar novos formatos de programas. Experiência interessantíssima, infelizmente interrompida antes que alcançasse resultados concretos, impossíveis a curto prazo. O que no entanto me parece fora de dÚvida é que o trabalho em equipe, mesmo harmônico, não basta como garantia de qualidade. Torna-o apenas mais fácil e geralmente melhor acabado, porém, um homem só, o criador solitário, é mais ousado que dois ou três trabalhando juntos. Minha experiência pessoal me leva a concluir que a equipe se submete mais docilmente à rotina, ao que já deu certo, ao que já está estabelecido, rejeitando, pela sensatez, aquelas idéias realmente criativas, inovadoras, por envolverem riscos maiores. Duas ou três cabeças pensam melhor que uma. E é justamente isso, o pensar melhor, que no geral trava a tresloucada, a absurda, a inovadora criatividade.
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9 Adaptação: a quase impossibilidade do aplauso unânime
Aqui também o bom-senso é mais importante que qualquer regra Embora sempre tenha preferido criar a adaptar, tive que fazer inúmeras adaptações, desde os tempos do rádio, e não tardei em descobrir que elas exigem uma boa dose de criatividade, além dum bom-senso que impõe verdadeiro desafio à inteligência e técnica do roteirista. Desafio maior quando a adaptação é imposta, como encomenda, e não escolhida segundo sua preferência. Certamente há obras que não se prestam a adaptações cinematográficas, devido à sua extensão ou conteúdo, mas podem dar resultado, se divididas em capítulo, na televisão. Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, foi no cinema apenas uma sombra do livro. Havia muito vinho para um único vasilhame; porém, na tevê, em adaptação de Walter George Durst, coube tudo que o livro tem e deu margem para que o adaptado r pudesse inventar magnificamente, já que o romance possui inúmeras histórias paralelas. Conclui-se logo que a adaptação impõe uma questão de medida; inúmeras novelas, adaptação de romances pequenos ou sem muita ação, não deram resultado. Ao contrário do caso de Gabriela, cravo e canela, havia pouco material para tanto espaço.
Para o cinema os romances grandes, calhamaços, sempre dão péssimas adaptações devido à excessiva sintetização. A intenção aí é mais comercial, para aproveitar o êxito de algum best seller ou a fama acumulada de algum romance consagrado. Por outro lado, romances curtos, novelas, freqüentemente resultam em obras-primas cinematográficas como Ratos e homens, O retrato de Jennie, Morte em Veneza, e Asphalt Jungle (O segredo das jóias), O processo, O segundo rosto e alguns outros. Nenhum desses é simples resumo, sem aquela marca suspeita do "baseado em", significando "parcial adaptação". Como já foi dito, a medida é importante; um romance adaptado tem de caber confortavelmente dentro dum filme, minissérie, especial de tevê ou novelá. Mas essa é apenas a condição inicial, a fita métrica do alfaiate, o que há de mais fácil para ser explicado. A verdade, porém, é que não se pode adaptar um romance selecionado pela importância literária. Há obras quase impossíveis de adaptação, como À procura do tempo perdido, de Proust, embora já tentada, Ulysses, de Joyce, os romances de Virgínia Wolf, quase tudo que Clarice Lispector escreveu, e milhares de outros. A câmera não tem a sutileza das palavras. É capaz de criar clima mas sua profundidade não vai além da pele. Ela pode revelar o sentido duma obra literária, suas intenções, mas não o recheio nem a beleza ou singularidade do estilo. Há escritores que valem pela forma, pela linguagem, pelo subtexto, não contam histórias. Esses não podem ser adaptados para a tela com êxito porque sendo ela um veículo de entretenimento, mesmo quando pretende não ser, vive de ação, de suspense e de espetáculos. Há adaptadores que, mesmo não transpondo para o cinema toda a ação dum livro, conseguem fazer ar para o público a carga emocional que possuem. Um desses casos é o filme Ragtime, baseado no romance homônimo de Doctorow, do qual o adaptador retirou apenas os episódios principais, como se usasse um bisturi, ligando-os com fios invisíveis, que tornaram supérfluos os capítulos rejeitados. Referi-me a esse filme para exemplificar uma afirmação. A adaptação não precisa necessariamente conter tudo que está no livro. Mesmo livros com muita ação têm capítulos monótonos ou vazios. O que importa é que ela seja uma obra inteiriça, redonda, completa, sem evidenciar amputações, cortes por falta de tempo, saltos desconcertantes e buracos entre as seqüências.
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I
A adaptação requer uma planificação mais exigente do que a criação porque implica numa responsabilidade maior, principalmente quando se trata duma obra conhecida, ível de confrontos. Por outro lado a adaptação, mesmo excelente, sempre desagrada os que dela esperavam uma fidelidade maior. O público que leu o livro deseja vê-lo todo na tela. Notando falta de uma cena ou dum personagem sem importância, fica contra. Uns arrogam-se defensores da obra deste ou daquele escritor, e diante duma adaptação reagem agressivamente se algo na obra foi esquecido ou modificado. A verdade é que certas adaptações ao pé da letra, fidelíssimas, são péssimas. Como o escritor escreveu um livro e não um roteiro de cinema ou tevê, precisa haver adaptação, isto é, uma forma de contar para a tela, na linguagem, ritmo e especificidade que ela determina. Isso implica em mudar ordem de cenas, acelerar certas seqüências, resumir diálogos, valorizar ou não personagens, eliminar excessos e acentuar as linhas de convergência para o final. Repito: fidelidade é apenas uma das virtudes exigidas numa adaptação. Ela, sozinha, resulta em desastre. A adaptação boa é aquela que concentra, impactua e afunila a carga de atrativos dum livro. O romance pode ser lido por etapas, guardado na estante, retomado, relido parcialmente nos seus momentos mais complexos, discutido com parentes e amigos durante a leitura e, geralmente, tem orelhas esclarecedoras. Se o leitor não entendeu tudo, relê. A segunda leitura é sempre mais proveitosa. E a terceira ainda mais. A tela, porém, não oferece essas vantagens. Tem de prender o espectador logo de começo e desenvolver em 100 minutos uma história que ele leria em dez ou muito mais horas. Para o adaptador cada segundo é importante. Esse aproveitamento matemático do tempo pode até tornar o filme mais interessante que o livro, no que diz respeito à movimentação, porém sempre perderá em profundidade. Por isso é mais comum um mau romance dar um bom filme, que se conseguir o mesmo com obras-primas. A propósito, conta-se que Orson Welles, pegando às cegas um livro numa estante de livraria, mesmo sem ler o título, disse que faria dele um grande filme. Tratava-se do desconhecido romance, classe C, A dama de Shangai, aposta ou proposta que provou mais uma vez a competência de Welles, capaz de dispensar até bons argumentos. Mas ele gostava também de topar desafios inversos, dirigindo obras teatrais ou literárias de difícil adaptação para o cinema, como nos casos de Macbeth c O processo.
Uma adaptação infanto-juvenil Poucas adaptações feitas para a tevê fizeram tanto sucesso e foram tão contestadas como o da obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato, realizada pela Rede Globo, de 1977 a 1986. Apenas não participei do trabalho no primeiro ano, formando, a partir do segundo, um trio de adaptadores com Wilson Rocha e Benedito Ruy Barbosa, que logo seria substituído por Sylvan Paezzo, e sempre sob a direção de Geraldo Casé. Depois da escolha das histórias, feita em conjunto com o diretor e adaptadores, quando se discutiam também novas diretrizes para corrigir erros ados ou atender melhor às preferências do público, cada escritor escrevia o seu episódio, de 20 capítulos, com um mês de duração. O ponto de partida, claro, eram sempre os livros de Lobato localizados no Sítio do Picapau Amarelo, onde viviam seus conhecidos personagens. Após a redação de cinco capítulos, havia nova reunião com o diretor para julgamento da parte já escrita, o que no geral resultava em nova redação para acerto de linguagem, carpintaria e objetivos. Desta reunião, como da primeira, participavam uma professora de literatura, especializada no autor, e uma psicóloga. Depois de definidos os rumos da adaptação, o adaptador gozava de bastante liberdade, no tocante à criação, pois logo se verificou que todos os temas lobatianos sugeriam diversidade de desdobramento. A intenção era a de manter a maior fidelidade possível ao texto e principalmente ao espírito e intenções do autor. Mas a engrenagem dos episódios não podia ser tão simplificada e retilínea como dos livros, onde tudo acontecia muito depressa, concentradamente. Num só volume do S{{io do Picapau Amarelo descobríamos várias histórias distintas, sendo que cada uma delas fornecia material para episódios completos de 20 capítulos. Essa neccssidade de aproveitamento temático transformou o "adaptado da obra de" em "baseado na obra de", pois do contrário o programa, Sftio do Picapau Amarelo, não poderia ter longa duração, como a criançada de todo o país exigia. Uma simples adaptação atenderia ao espírito saudosista dos adultos, que tinham lido a obra, mas não ao público infanto-juvenil, cuja maioria só a conhecia pela televisão. Como não estávamos adaptando Lobato para que fosse lembrado, porém divulgado e lido pela nova geração, continuamos a trabalhar suas histórias desdobrando-as, incluindo novos lances, valorizando personagens acidentais, criando ganchos, naturalmente ampliando diálogos, modernizdndo a linguagem, e colocando os personagens
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em face de problemas mais atuais. Tudo isso sempre a partir do que havia na obra de Lobato, dos seus story-lines, extraídos às vezes de pequenos capítulos ou parágrafos. Era um trabalho divertido e ao mesmo tempo estafante, principalmente quando o melhor da obra já fora adaptado. Além da experiência profissional que enriquecia os membros da equipe, a longa maratona serviu também para conhecermos o perfil do entusiástico público infanto-juvenil e dos detratadores do programa, sempre mascarados em defensores da memória de Lobato, que diziam ultrajada pela adaptação. Logo às primeiras críticas ficou evidente que esses puristas, na quase totalidade, conheciam apenas alguns livros do Sitio do Picapau Amarelo, os mais conhecidos, daí julgarem invenção nossa o que adaptávamos dos demais. Quando Wilson Rocha fez um episódio intitulado Reinações atômicas, a crítica caiu de pau afirmando que Lobato jamais escrevera nada com esse título, sem ao menos se dar ao trabalho de correr os olhos sobre sua obra. Morto em 1948, três anos após o final da Segunda Guerra Mundial, Lobato inserira num dos seus livros um pequeno conto, assim mesmo denominado, ele que costumava atualizá-los no relançamento de novas edições. No caso das Reinações atômicas, mais uma vez, Lobato revelouse pioneiro, alertando seu público para o perigo da nova arma bélica, mas seus fanáticos iradores, que ficaram na leitura de A menina do narizinho arrebitado, seu primeiro livro, atribuíram a idéia ao desvirtuamento dos adaptadores. No geral existe um juízo preconcebido contra adaptações. Enquanto durou, entre aplausos excessivos e críticas azedas, o Sitio do Picapau Amarelo constituiu para a equipe uma experiência exaustiva no sentido de se extrair o máximo dum texto. Foi uma escola e uma tortura, esta agravada pela vigilância dos que consideravam sagradas e intocáveis as páginas de Lobato. Criticaram-nos até pelo fato de introduzirmos um aparelho de televisão na sala de dona Benta, quando na obra impressa, datada de 1930, o homem up-to-date que Lobato era já colocara um rádio, aparelho raríssimo, mesmo nas capitais, nessa época. E fizera mais, criara uma repórter radiofônica feminina, a personagem Cléo, figura jornalística que só 30 anos após apareceria em nosso cenário profissional. Mas Cléo ou para a crítica como absurda criação nossa. Quase perplexos constatamos que a palavra adaptação não consta do vocabulário de muita gente supostamente possuidora de baga-
gem cultural, como professores e jornalistas. Daí estar ela exposta a julgamentos apressados e superficiais, naturalmente injustos. Toda adaptação é sempre uma tentativa. E nela, mais que num roteiro original, a participação da direção, da cenografia e do elenco tem um peso igualou maior que o do texto. De nada vale uma adaptação honesta e correta, se o visual e a interpretação dos atores não corresponderem às sugestões do conto ou do romance adaptado.
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10 Entrevista (ou mero papo): o aprendiz de roteirista faz perguntas ao veterano
APRENDIZ - Acha que um bom roteiro pode ser considerado um trabalho literário, artístico? VETERANO - Respondo com uma pergunta: um mau romance pode ser considerado uma obra literária? Não se preocupe com esse tipo de classificação, mesmo porque raramente roteiros são publicados. Quando li o Viridiana, de Bunuel, me fiz essa pergunta e conclui que sim. Mas na verdade o roteiro apenas me lembrava o filme, que já vira diversas vezes. O roteiro só se torna obra de arte depois de filmado. Não espere porém pelas glórias: caberão ao diretor. APRENDIZ - O que vem a ser precisamente uma boa história? VETERANO - Para o produtor é aquela que agrada a maior número de espectadores, a que dá lucro. Seu julgamento é concreto. Para o diretor é aquela que mesmo não alcançando sucesso popular aumenta seu prestígio no meio. Para o roteirista é a que escreveu com prazer, apesar do sucesso ou a despeito do fracasso. APRENDIZ - E a crítica nisso tudo? VETERANO - Ouça e leia todas serenamente. Às vezes um falso elogio pode prejudicar mais que uma crítica dura. O chato, em se tratando de filmes, é que existe quase uma impossibilidade
em separar o trabalho do diretor e do roteirista. O diretor melhorou ou comprometeu o roteiro? O crítico não dispõe do roteiro nas mãos para avaliar responsabilidades. Preocupa-se com o que está na tela, com os resultados finais, e não com as fases anteriores a eles. Em suma: deixe os diretores se apavorarem com a crítica. APRENDIZ - Devo mostrar meu story-line ou meu resumo de roteiro a muita gente? VETERANO - Principalmente para um aprendiz mostrar é importante. Quando se começa a escrever, roteiros, poemas ou romances, sempre há uma tendência de supervalorização do que fazemos. O genial de ontem pode ser um lixo relido hoje. Mas não perca tempo em colher opinião de quem não pode dar, por ignorar a matéria ou por não desejar magoá-Io. E cuidado também para não se confundir num mundo de opiniões diversas e conflitantes. Como o roteirista pertence a uma espécie rara, submeta seu resumo a pessoas que ao menos convivam com as palavras, como jornalistas, professores, publicitários. APRENDIZ - Sempre fez isso? VETERANO - Nunca. Mas não siga meu exemplo. APRENDIZ - FreqÜentar cinema ajuda? VETERANO - Isso é óbvio. Agora, com o videocassete, que possibilita revermos um filme muitas vezes, dá quase para ler o roteiro, após um reexame frio. Já na segunda vez você deixará de ser o espectador para dar lugar ao analista. Sentirá a emoção duma criança ao quebrar um brinquedo para ver como ele é por dentro. Verá distintamente as fases do roteiro. Como o autor preparou suspenses, surpresas e impactos. E como é que foi afunilando a história, concentrando-a, agilizando-a até o desfecho. Reassista ao filme uma vez só prestando atenção nos diálogos para observar o tempo que o autor gastou com eles e o ajuste das palavras à ação. Dosar a quantidade de diálogos, não fazendo deles uma pausa meramente, é qualidade indispensável num roteirista. APRENDIZ - Acho que é um bom meio para aprender. VETERANO - É um apoio teórico de primeira, eu diria. Aprender mesmo, só escrevendo e reescrevendo. Sobre isso queria lhe dizer uma coisa. APRENDIZ - Isso o quê?
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VETERANO - Sobre reescrever. É uma tarefa exaustiva que você tem de transformar em prazer. Digamos que no primeiro tratamento o bom é criar, pôr a história para fora. Nos demais descubra o prazer de aperfeiçoar. APRENDIZ - A gente sempre tem de escrever um roteiro maIS de uma vez? VETERANO - Ninguém acredita no primeiro tratamento. Principalmente o diretor. Ele acha que a coisa saiu fácil demais e pede um segundo. Na verdade raramente sai bom. Entre tantos que escrevi só lembro de um que foi aceito na hora. Mas é possível que o diretor, era o Fauze Mansur, estivesse de bom-humor ou com pressa de filmar. No primeiro tratamento sempre escapam detalhes importantes, o que é natural quando a criatividade está solta e a maior preocupação é ar a história para o papel, verificar se ela existe, se caminha, se funciona. APRENDIZ - Na televisão se dá a mesma coisa? VETERANO - Numa novela, não. Não há tempo para isso. A não ser nos primeiros capítulos, quando se afinam os instrumentos, ainda hesitandose quanto aos rumos a seguir e ao ritmo a imprimir. Mas, nas histórias completas ou minisséries, a exemplo do cinema, faz-se mais de uma versão. APRENDIZ - Cinema e televisão usam a mesma linguagem? VETERANO - Não. APRENDIZ - Mas tanto um quanto outro trabalham com imagens. VETERANO - Durante muito tempo pensei que poderia usar na televisão a mesma linguagem dinâmica do cinema. Eu e outros roteiristas, rebelados contra o ritmo demasiado lento das primeiras telenovelas que lembravam as radionovelas. Crendo nisso escrevi em 1968 uma minissérie de 20 capítulos, Os tigres, na TV Excelsior, que além de ser quase toda gravada em externas, o que se fazia pela primeira vez, tinha diálogos brevíssimos e cenas que se sucediam velozmente. A crítica aplaudiu, o pÚblico não, o que me surpreendeu porque Os tigres tinha de tudo para agradá-lo. Fiquei cabreiro e tirei algumas conclusões que resumi numa só: televisão não é cinema. APRENDIZ - Explique isso.
VETERANO - O televisor é um objeto de uso doméstico. Ninguém fica de olhos cravados no desempenho duma enceradeira. Entendeu? APRENDIZ - Não entendi. VETERANO - Um espetáculo de tevê não deve ser monótono mas também não pode ser uma correria, algo que exija atenção total. Quem assiste televisão ouve barulhos da rua, atende a telefonemas, grita com o caçulinha e não precisa atravessar um longo corredor escuro para chegar ao banheiro. Se o ritmo do espetáculo for outro, não o do lar, o espectador perderá um grande nÚmero de cenas e acabará não entendendo nada. Ao contrário do que acontece no cinema, onde só terá a distraí-lo a mão da namorada, se for solteiro, além de concentrar-se mais na tela porque pagou entrada e porque é para a tela que todos olham, já que o resto é escuridão. APRENDIZ - Não me convenceu totalmente ... Muita gente assiste filmes pela televisão. VETERANO - A televisão pode apresentar tudo: programas, filmes, teatro, balés, esportes. Mas, em relação aos filmes, exibidos em horários geralmente tardios, o espectador de tevê assume outra expectativa. Ele sabe que um filme pede mais concentração que um capítulo de novela ou de minissérie. Acomoda-se melhor para assistilo ou reassisti-lo, mesmo se tratando duma reprise ou se já o viu no cinema. E mais: sabe que haverá diversas baterias de comerciais, quando telefonará, irá ao banheiro, lerá sua correspondência ou curiosamente verá o que está acontecendo noutras emissoras. APRENDIZ - Acho que entendi. VETERANO - Se não ainda, vai aí um reforço. Programas de televisão podem ser assistidos com meia atenção. Por isso pedem um ritmo mais lento. Essa observação, feita por muita gente por ocasião do lançamento de Os tigres, determinou outra alteração substancial. A linguagem também mudou. APRENDIZ - A linguagem? Os diálogos quer dizer? VETERANO - O espírito, o caráter, ou como queira chamar, dos diálogos. APRENDIZ - Explique isso.
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VETERANO - Para fugirem ao dramalhão radiofônico, palavroso, os autores dos anos 60 começaram a fazer diálogos enxutos, breves, apenas conduzindo a ação, como os cinematográficos. O moderno era ser conciso, dizer o essencial. Antes diálogos secos que derramados. Parecia ser a fórmula definitiva. Mas isso durou pouco. A brevidade da dialogação queimava logo as cenas e exigia excessiva criatividade. Nasceu então o diálogo mais íntimo, mais pessoal, mais humanizado, mais truncado como no cotidiano, menos formal, menos contido, menos óbvio. Diálogos que explicassem melhor o personagem, que os soltassem, os revelassem por inteiro. Foi aí, já na década de 70, que se definiu melhor o roteiro de tevê como estilo, como jeito de ser. Lembro dum diretor que me disse: não escreva tão corretamente os diálogos, sujeos bastante, use a linguagem do dia-a-dia. APRENDIZ - O que o cinema não faz. VETERANO - Não faz porque tem de ser rápido para que tudo caiba nos seus 100 minutos. A televisão procura ser, mais que o cinema, um reflexo da vida, vive mais de detalhes, de fatos corriqueiros. Seus personagens param freqüentemente nos bares, restaurantes, saguões de edifício e estão sempre na cozinha. Lugares onde a vida diária pode ser flagrada, esmiuçada. Foi o jeito encontrado de estreitar o contato com o público, antes só interessado em grandes tragédias. Está percebendo melhor a diferença entre o cinema e a tevê? APRENDIZ - Estou. A tevê tenta pôr o próprio espectador na tela. VETERANO - Isso mesmo. Ela procura humanizar ou banalizar o personagem a ponto de criar uma identificação maior com o espectador. É onde ela funciona melhor: nos aspectos menores da vida, incrementando o charme banal do cotidiano. O cinema, com sua tela panorâmica, onde o plano geral não se perde, pode transmitir dramas mais coletivos, abrangendo uma fatia maior da sociedade. APRENDIZ - Mas o que o cinema faz, repercute mais e é lembrado por mais tempo. Artisticamente tem um valor maior. VETERANO - Evidente. Um filme é obra mais planejada, mais cara e tem melhor acabamento. Não dizem que é a sétima arte? A literatura já imitou o cinema, quanto à técnica e ritmo. É uma linguagem assimilada pela cultura mundial e um meio de expres-
são artística de muitos povos. Nos seus 80 anos de existência já deu muitos gênios. A produção de tevê é feita mais para consumo imediato. Diria que ela não inova, acompanha as inovações. É mais ligada a hábitos que a prazeres, e raramente leva a pensar pois seu fito é entreter, bolir com emoções. Quanto às novelas, apesar da extensão de suas sinopses, são obras semiplanejadas, abertas, um constante rascunho como disse certo diretor, sujeitas a alterações ditadas pelas pesquisas ou impostas pela censura. APRENDIZ - Atribui maior valor aos especiais e minisséries? VETERANO - Sem dúvida, porque obedecem a um planejamento rígido, mas esbarram numa barreira, o custo da produção. Numa novela de 150 capítulos o custo se dilui, é atenuado pelos merchandisings, os comerciais disfarçados, e oferece às emissoras a grande vantagem de preencher horários. Daí eu duvidar de que venham a desaparecer num futuro próximo. APRENDIZ - Falemos sobre coisas objetivas: como devo começar a escrever meu roteiro? VETERANO - Esquecendo tudo que possa ter lido em livros que ensinam as regras básicas. Uma página em branco sempre assusta. Muna-se de coragem e comece. Se as primeiras páginas não lhe agradarem, rasgue-as e comece de novo. Não perca tempo em corrigir. Deixe isso para depois. Vá em frente. Solte-se, descontraiase. Faça de conta que já sabe de tudo. Não se intimide. Criar é um ato de ousadia. Guarde a paciência do revisor para mais tarde. O primeiro tratamento é um vale-tudo, um borrão. Coerência, concisão e equilíbrio ficam para os próximos tratamentos. Mesmo assim não esqueça no tratamento inicial de enumerar as cenas ou seqüências, determinar se é dia ou noite, se a filmagem ou gravação será interna ou externa, dando já uma moldura ao roteiro para que o seu não seja o rascunho de um conto ou de peça teatral. APRENDIZ - E se mesmo após o segundo tratamento o roteiro ainda não me agradar? VETERANO - Há uma diferença em não agradar e estar correto mas de má qualidade. APRENDIZ - Digamos, que continue sem qualidade. VETERANO Neste caso a solução é a gaveta. Abandone a idéia e comece outro roteiro. Há uma distância entre gaveta e arqui-
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vo. Muitas vezes você ainda trabalha, mentalmente, o que está na gaveta. Um dia poderá descobrir onde se localizam seus defeitos e reescrevê-Io. Quanto melhor a idéia, mais difícil a execução. APRENDIZ - Com você tem acontecido isso? VETERANO - Não com roteiros, mas com contos e romances. Tenho um conto, "Traje de Rigor" , que ficou anos na gaveta. Quando tive a idéia não estava ainda capacitado para escrevê-Io. Mas não foi o único caso. Isso acontece à maioria dos escritores. APRENDIZ - Mas se se trata dum roteiro encomendado ... VETERANO Aí terá de entregá-Io dentro do prazo mesmo se não estiver satisfeito com ele. Pode ser que o diretor descubra os defeitos do roteiro. O cansaço às vezes impede o roteirista de ver as coisas claramente. O pior é quando ele só vai perceber os pontos fracos, as deficiências, quando assistir ao filme.
servavam uma surpresa final, a da última página ou parágrafo, que sacudia o leitor. O fecho de um roteiro não precisa necessariamente apresentar uma grande surpresa, um logro para a platéia, à maneira do contista francês, mas não pode deixá-Io insatisfeito, no vazio, com a testa enrugada. APRENDIZ - Como acontece com os enlatados. VETERANO - É verdade. A maioria deles termina sem explicar direito a solução de enigmas apresentados. Nunca se sabe como o detetive chegou à conclusão que fulano de tal era o assassino. Resolvem tudo com uma piadinha sem graça. APRENDIZ - Os enlatados, principalmente policiais, são de lascar. Parece até que os roteiristas são muito mal pagos.
APRENDIZ - Aí não há remédio.
VETERANO - Mas nem sempre o final é um final de verdade. Para mim são os melhores.
VETERANO - Às vezes há: pôr a culpa no diretor ... APRENDIZ - Meu
APRENDIZ - Como assim?
maior receio é escrever um roteiro que conte história muito manjada, parecida com centenas que rolam por aí.
VETERANO - Gosto dos finais que marcam o início duma nova situação. Desses em que o espectador pergunta: e agora? O filme terminou mas a vida não. Os personagens terão que enfrentar novos problemas como conseqüência natural dos que foram resolvidos. São os finais adultos. Se um dia escrever um roteiro assim, me deixe ler.
VETERANO - Não se tratando dum plágio, aliás comum na tevê, o pecado não é tão grave. Um enredo original é raridade, mas nem sempre significa sucesso ou boa qualidade. A procura obsessiva da originalidade, o desejo de ser diferente, de criar algo de novo, leva freqüentemente a enganos e exageros. O l1Ol1sense na comédia é uma boa, porém noutros gêneros chega a ser burrice. E o original compulsivo no geral pende para o absurdo. Não se meta logo a princípio na busca do ouro. Preocupe-se mais em assimilar a técnica do roteiro, a contar histórias que deslizem normalmente, sem tropeços, buracos e incongruências. Correção equivale a talento nessa profissão. APRENDIZ - Acho que meu roteiro começa bem mas acaba mal.
APRENDIZ - E os finais dos velhos filmes de Hollywood? VETERANO - Eram dum primarismo que hoje faz rir. Noventa por cento deles terminava num beijo. O mocinho e a mocinha sempre casavam-se, como se o casamento fosse a chave geral da felicidade. Bons e ingênuos tempos. Os filmes de cowboys também não apresentavam problemas, já que o ápice do roteiro colidia com o fim, quando bons e maus resolviam tudo num empolgante tiroteio. A variante era um duelo-solo entre o mocinho e o bandido.
VETERANO - Convém reescrever muitas vezes essas duas pontas. Mas o final realmente é mais difícil porque exige maior responsabilidade. Muitas vezes ele é a explicação de toda a história, a resposta para muitas perguntas pendentes. Qualquer precipitação aí pode tumultuar o desfecho. Por outro lado o final esperado, justamente o que o telespectador adivinhava, também frustra o espectador. Já leu Mauant? Seus contos invariavelmente re-
APRENDIZ - Cada gênero tem um determinado tipo de final? VETERANO - Bem, qual é o melhor meio de terminar uma comédia a não ser com uma situação ou piada que provoque gargalhada? O certo é que, seja qual for o gênero, o final não pode frustrar o espectador. Pode irritá-I o com uma saída que ele não esperava: a morte do galã. Aborrecer, contrariar o espectador, é até saudável. Mostra que o autor não se submete ao gosto da maio-
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ria. Mas, contrariando-o ou não, o importante é que o final não revele desorientação do autor, indecisão, incapacidade de manter um nível de coerência, confusão mental, forçamento de barra ou desinteresse em terminar bem uma história por já ter chegado ao final. APRENDIZ - Mas dizem que é no meio que se põe a arte ... VETERANO Pode ser, mas é nas pontas que o artista mostra que sabe o que faz. Que mereceu sua inspiração. APRENDIZ - Parece que no corpo deste livro há um momento que você se rebela um pouco contra o espírito de equipe. Isso de trabalhar em grupo. VETERANO - Eu até já participei de um ou outro brain-storming bemsucedido. Mas nem sempre se reúnem várias pessoas criativas ou sensatas em torno duma mesa. Às vezes a opinião que fica é a de quem fala mais alto. E os menos dotados são sempre os mais convictos, os que defendem com mais veemência seus pontos de vista. Porém o que eu disse foi outra coisa. Disse que o criador solitário é mais ousado, mais talentosamente inconseqüente. O grupo fixa-se nos riscos que uma id~ia original apresenta, no interesse da emissora em agradar a todos, no perigo que representa trilhar um caminho novo, sempre baseado nos seguros resultados obtidos pela rotina. Por isso, em matéria de tevê, é mais fácil uma emissora pequena aceitar uma idéia nova, arriscando-se, do que uma grande emissora cuja estrutura não pode ser abalada por fracassos. Mas, evidentemente, o cinema é um campo mais propício para experiências ou aventuras da criatividade, pois está em mãos de produtores independentes, não ligados a grandes empresas. O fracasso financeiro de um filme não causa terremoto. APRENDIZ - E o que sucede quando um grupo de roteiristas é incumbido dum seriado? VETERANO - Se cada roteirista se incumbir de sua história, escrevendo uma por mês, por exemplo, acho boa solução. O rodízio provocará uma espécie de competição entre eles, ao mesmo tempo que promoverá a uniformização de linguagem e procedimento dos personagens. Tratandose de seriados não há nada melhor. APRENDIZ - Funciona igualmente a redação em dupla?
VETERANO - Quando não imposta pela direção, unindo profissionais de tendências diversas, uma dupla sempre rende bem. Pior, degradante, era a solução antiga do ghost-writer. APRENDIZ - O que é isso? VETERANO - Ghost-writer, escritor fantasma. Ele não era obrigado a usar lençol, mas proibiam-lhe mostrar-se à luz do dia, nos estúdios e corredores da emissora. Seus serviços, urgentes, eram cOJ.1vocados quando o autor, estafado, pifava ou perdia totalmente o pique da novela, o motivo mais comum. Nesse caso o substituto, ghost-writer, não assinava nem como parceiro, porque o autor e a emissora não permitiam, receando que a notícia da substituição pudesse desacreditar a novela. Isso foi ontem. Mais tarde o tempo provou que o público não se fixa em autores, trabalhem sozinhos ou em equipe, atento aos ganchos do folhetim e nos seus atores. Além disso a consciência profissional acabou se impondo e retirou do ghost-writer o lençol que ocultava seu talento sempre menor que seu relacionamento de bastidores. APRENDIZ - Já assisti a especiais de tevê e a seqüências de novelas evidentemente furtadas de romances, filmes e peças teatrais. O plágio é comum no veículo? VETERANO - Sim, porque sendo a produção de tevê feita para o consumo imediato, descartável, apesar das eventuais reprises e da venda de teipes para o exterior, certos autores consideram o pecado do plágio acidental e tão instantâneo, destinado ao esquecimento, que ninguém se dará ao trabalho de comprovar. Sabem também que o grande público não lê e raramente vai ao cinema, portanto ignora as fontes. Quanto aos cronistas especializados, que eu saiba, jamais acusaram roteiristas de plágio e não creio que por solidariedade. Para os roteiristas honestos isso representa perigo, pois seus concorrentes às vezes se chaman Theodore Dreiser, Balzac, Scott Fitzgerald, Agatha Christie e outros cujas obras costumam ser visitadas por espertos playwriters nacionais. APRENDIZ - Qual a importância da trilha sonora numa produção de cinema e tevê? VETERANO - Chega a ser decisiva. Desde os primeiros tempos do cinema falado que o fundo musical tem grande importância. Há filmes que ainda são lembrados apenas pela música. Não sei
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se sem "As time goes by" Casablanca ainda seria tão lembrado. Duvido. A música é melhor conduto de nostalgia que as imagens. Nada melhor para lembrar uma época. A nossa chanchada foi o que foi devido grande parte à música. Já o pomõ não soube explorar trilhas sonoras e talvez nem o Cinema Novo. Nesse particular as novelas lavraram um tento, graças, é claro, à sua extensão. Seis meses é tempo de sobra para o público fixar-se numa trilha sonora. Confesso que acompanhei diversas só para ouvir certas músicas ainda não lançadas em gravações. A trilha sonora é tão importante que, em quase todo capítulo de novela, há um momento em que a ação cessa, entra em vazio, para destaque dum número musical que vai capitanear seu long-play. Um merchandising não desagradável como os ostensivos da propaganda de eletrodomésticos, margarinas e detergentes. APRENDIZ - Há roteiro para clips? VETERANO - Nem sempre. O clip é trabalho de diretor. Aliás, no geral, detesto-os porque impõem um visual que o espectador prefere imaginar. A música é como pintura abstrata, que para cada um tem sentido ou expressão particular. Provoca lembranças íntimas e pessoais cujas imagens não coincidem com aquelas que o diretor projeta, usando dos recursos que tem à mão. O clip invade o mundo particular do ouvinteespectador numa tentativa de colocar seu diretor acima do compositor. A gente só pode apreciar um clip se for indiferente ao número encenado. Ele parece destinado a comprovar que a música atual não se agüenta sozinha, precisa de apoios exteriores. APRENDIZ - E os comerciais? VETERANO - É sem dúvida o que há de melhor na tevê, pois são produzidos sem pressa nem economia, obedecendo a uma meta específica: a publicidade. A limitação de tempo, 30 ou 40 segundos, restringe o filme publicitário ao essencial, o que já é quase uma garantia de qualidade. Mas não são escritos por redatores estranhos ao meio publicitário, e sim por pessoas que conhecem e acompanham os problemas de marketing dos clientes de suas agências. APRENDIZ - Acha então que redatores de comerciais dariam bons roteiristas de cinema? VETERANO ~ Alguns diretores bem-sucedidos em comerciais dedicaramse mais tarde ao cinema. Logo descobriram que são es-
pecialidades diversas. Desistiram ou tiveram de assimilar a nova técnica. Suponho que com os roteiristas de comerciais, redatores de agência, se dê a mesma coisa. O cinema não vive de imagens essenciais, objetivas; nas divagações, aparentes vazios, às vezes está o seu valor. APRENDIZ - O que desanima um pouco um aprendiz como eu é pensar que tudo já foi feito. Veja as novelas, como se repetem. VETERANO - Essa impressão de mesmice, saturação, é causada pelos que realmente mandam, pelas cúpulas. No cinema e na tevê inovar, partir para outro caminho, é sempre um risco. Principalmente em relação à tevê, onde há mais executivos que criadores. Quando a tevê trocou o dramalhão rural e o romantismo piegas pela dramaturgia urbana e atualizada, deu-se por satisfeita em matéria de modernização. Embora veículo de invenção recente, ela segue à distância as conquistas ou inovações da literatura e do cinema. APRENDIZ - Isso porque o público não aceita produções mais ousadas ou mais profundas? VETERANO - Mas também diziam que o público não aceitaria histórias que não fossem um vale de lágrimas. A novela-comédia porém pegou facilmente. Modéstia à parte, eu já acreditava nisso e escrevi em 1975, na Globo, a que lançou essa inovação. Também não acreditavam que heróis safados, anti-heróis, pudessem conquistar o público. E hoje eles pululam ... O mesmo se pode dizer das ingênuas que encabeçavam os elencos, hoje uma espécie em extinção. Com isso quero dizer que o público não é tão rotineiro como se pensa nem tão resistente a novidades, pois ele se renova constantemente. Mais difícil, às vezes, é vencer a resistência dos que selecionam idéias, sugestões, sinopses e roteiros. Por outro lado, começam a aparecer produtoras independentes, que, além de ampliar o mercado para o roteirista, serão, quem sabe, mais interessadas em propor novos caminhos e mais dispostas ao estudo de idéias menos gastas. APRENDIZ - Será também mais fácil entrar em contato com uma produtora independente que com uma grande organização. VETERANO - Sem dúvida, pois nela, por ser pequena, sabe-se logo quem decide. APRENDIZ - Nem sei mais o que perguntar.
55. 54. 54. VETER ANO Seu caso é o de ir em frente.
Você tem uma história que supõe boa, já submetida à apreciação de diversas pessoas. Trata-se agora dum problema de prancheta, como dizem os publicitários quando tudo foi discutido e só resta verificar como a idéia ficará em termos de ilustração. A discussão terminou, emos à realização. Chega de abstrações. Ponha o papel na máquina: Seqüência 01, local, dia ou noite, externa ou interna, e: Cuidado com cenas vazias, todas têm de dizer alguma coisa. Trate de definir logo o personagem, a não ser que haja a intenção de envolvê-lo em mistério. Evite cenas longas, cansativas. Sempre mostre, numa geral, onde está acontecendo a cena. Se for no mercado, uma visão geral do mercado. Se seu personagem é um operário, faça-o falar como um operário. Corte as palavras desnecessárias. Não explique excessivamente o que está acontecendo. O óbvio esvazia a emoção. Não use palavras nas cenas em que a câmera pode contar tudo claramente. Ela é o narrado r principal. Se uma cena de ação vai criar proDIemas, faça a câmera focalizar o após. Exemplo: alguém entra em casa e encontra os móveis numa
desordem geral. Dessa forma eliminou-se a cena de tória fica melhor narrada duma forma acadêmica, como Polansky sempre faz, não recue. O mais original sempre é a personalidade do autor, é o que marca, não o abuso leviano de recursos técnicos. Para fazer o roteiro crescer no final, afunile a história, faça com que todos os pontos convirjam para um só. Acelere. Mas o difícil é concentrar sem saltos nem precipitações. Um começo pode ser obscuro, um final não, mesmo quando ele deixa uma pergunta ou um problema para o espectador pensar em casa. A não ser por uma necessidade imperiosa da história, diversifique os ambientes das cenas para não saturar imagens e criar monotonia. A mudança de ambiente sempre desperta novo interesse no espectador. Não crie personagens psicologicamente semelhantes, isso anula conflitos. Não se preocupe se o primeiro tratamento ficar muito extenso; pior se ele não tiver o que cortar. Terminado, releia o roteiro. A história desliza sobre rodas ou sacode toda, entrando e parando em buracos e desníveis? Segue um curso reto, desimpedido, ou perde-se em desvios e becos sem saída? Escreva com uma naturalidade cautelosa. Nem euforia nem temores. APRENDIZ - Sem mais recomendações? VETERANO - Há dezenas de outras. Mas fiquemos por aqui, pois é mais difícil escrever um bom roteiro do que um livro para ensinar como é que se faz isso.
ladrõe s revolv endo tudo à procur a de valore s. É uma forma de se ganhar tempo e criar surpre sas. O apósviolên cia, a conse qüênci a duma ação, pode ser mais choca nte ou impact uoso que a própri a ação. Nã o inclua no roteir o perso nagen s que não some
m, não tenham uma atuação definida. Mas procure marcar, dar realce, a qualquer personagem. A careta dum figurante pode valorizar uma cena. Não esqueça de registrar os planos principais. Se a cena requerer um dose, para detalhar, ou um plano geral, para ambientar, escreva. Um descuido do diretor, nas circunstâncias citadas, pode prejudicar o roteiro. Atenção com as histórias paralelas: precisam ter uma ligação inequívoca com a história principal, mesmo quando não aparente. Não se precipite nas cenas decisivas; procure extrair delas o máximo de dramaticidade ou hilaridade. Uma cena bem lograda, inteira, perfeita, às vezes basta para garantir o sucesso dum filme ou para permanecer na memória do público. Não confunda moderno com modernoso, isto é, o que está na moda, tido como avançadinho por pequenos grupos. Se a his-
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sozinha na divulgação de produtos comerciais. Nem ela nem os bondes ...
Memorial ainda nãocomputadorizado o rádio: a primeira escola de roteiristas
No Brasil, os primeiros roteiristas profissionais surgiram no rádio, quando noutros países já proliferavam no cinema e no music-hall. Nossa indústria de
entretenimentos é pois relativamente recente. Antes do advento da televisão, enquanto nosso cinema, heróico e desarvorado, ainda vivia de raras aventuras pessoais, o rádio já adquirira o status de indústria, contratando autores especializados na produção de scripts - a primeira palavra estrangeira a circular desinibidamente pelos estúdios radiofônicos. O autor de scripts era chamado de redator, talvez porque a maioria viesse da redação de jornais, enquanto outros, em menor número, chegavam ao rádio das agências de publicidade, mirante donde se podia acompanhar a rápida evolução do veículo. O fato é que desde o tempo do rádio em formato de igrejinha, vendidos após longos períodos de experiência na casa dos interessados, o público se encantou pelo misterioso aparelho. O rádio entrou logo em todos os lares, aclamado como espetáculo permanente e gratuito das classes menos privilegiadas. Em seguida atrairia a verba crescente dos patrocinadores. As agências de propaganda criaram então seu Departamento de Rádio. A imprensa já não estava
Mas transmItIr apenas músicas gravadas, notícias e jogos de futebol não incrementava a concorrência entre as emissoras, que em seguida contrataram conjuntos regionais, orquestras, cantores e mais tarde autores e radioatores. Pode-se dizer que a partir do final da década de 30, excluindo-se o poderoso rádio norte-americano, apenas o mexicano e o argentino rivalizavam-se com o nosso, porquanto o europeu, estatal, no geral meramente informativo ou decididamente cultural, sem os estímulos da competição comercial, era elitista e cristalizado. Como o número de programas ao vivo superava o de discos, diversificaram-se, exigindo roteiristas especializados para cada gênero: autores de radionovelas, de programas humorísticos; redatores de roteiros musicais, de programas femininos, de aventura para a infância e juventude, de crônicas, e de audições mais trabalhadas que aglutinavam o elenco de radioteatro; orquestra, cantores, narrador, com trilha musical feita especialmente para cada audição; eram os chamados programas montados, cartões de visitas das principais emissoras, como os Vai da valsa, O edif((;io balança mas não cai, Rádio-almanaque Kolynos, Meu filho, meu orgulho, Honra ao mérito, O mundo gira, Tribunal do tempo, PRK-30 e muitos outros. Hoje, à distância, podemos afirmar que os programas montados, humorísticos, uma seqüência de esquetes sobre o mesmo tema ou não, sempre com os mesmos personagens ou não, do tipo O edi!feio balança mas não cai, foram as produções radiofônicas mais típicas do veículo, de melhor qualidade, e alcançaram incrível repercussão popular, graças ao uso da linguagem do momento - em contraste com as radionovelas -, as últimas gírias cariocas, como também à criação de tipos extraídos do cotidiano, repetidores de bordões (você que é feliz, primo; há sinceridade nisso?; vamos combinar outra coisa) que, uma vez lançados no programa, conquistavam o país. Nesse setor, o humorístico, podemos afirmar tranqüilamente que a televisão, apesar de seus recursos e da transmissão em rede, jamais aproximou-se daqueles êxitos mesmo ao relançá-Ios no vídeo, redigidos pelos mesmos autores. Outro prato forte do rádio, embora apenas do agrado do público feminino, foram as radionovelas, que obedeciam à técnica dos folhetins, seu contemporâneo, copiando também sua linguagem empolada, espécie de sucata verborrágica do século XIX, engrossa-
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da por falas longas ("bifes") e artificiais, praga lingüística que assolou por três décadas a inculta América Latina. A bem da verdade, no entanto, coexistiam com os noveleiros alguns mal-sucedidos inovadores, que mexiam na forma e no conteúdo da radionovela, optando por diálogos mais breves e cotidianos, inspirados pelo cinema, mas sem resultados positivos porque o povo já se habituara ao velho xarope; e as agências de publicidade, vigiando o interesse dos patrocinadores, não encorajavam a mudança de rumos da vitoriosa ópera de sabão (soap opera). Como se vê, mesmo na pré-história da profissão de roteirista já existiam os que apenas repetiam as fórmulas de sucesso, jogando na certa, e aqueles que se aventuravam a nadar contra a correnteza. Alguns -destes, marginalizados e tidos pejorativamente como intelectuais, foram, mais tarde, os que melhor se adaptaram às exigências do novo veículo, a televisão.
Quando nos anos 50 apareceram as primeiras emissoras de televisão, alguns programas de rádio _ os de auditório - começaram a telerrádio: a imagem ser televisionados, mas sem rocomo simples decoração teiros especiais. Programas que tanto podiam ser ouvidos quanto vistos, pois a imagem era apenas decorativa, não orientada por anotações técnicas. Mais serviam para treino de cameramen e de selecionadores de imagens. Um pouco mais tarde, já nos estúdios, a televisão apresentava seus primeiros programas de teleteatro, em São Paulo o Vanguarda, e no Rio o Câmera 1, a princípio com peças teatrais na íntegra, não-adaptadas. Esgotando-se o estoque dessas peças, a solução imediata foi a adaptação de contos e romances, dando início assim, nas duas capitais, à produção dos primeiros roteiros de televisão propriamente ditos. A página de redação corrente dividiu-se em duas parteJ, áudio e vídeo, dum lado a movimentação de câmeras e personagens, de outro os diálogos. Desfazia-se aí o parentesco entre a televisão e o teatro, pelo menos na apresenta~ão dos scripts, pois como os espetáculos eram ao vivo, antes da invenção do teipe, jogavam com poucos cenários, permanecendo paradões, estáticos. Em externas, nem pensar.
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No entanto, limitações também criam estilo. O gênio desse período experimental da tcvê foi o norte-americano Paddy Chayevesky, que, acomodado na estreiteza do veículo, ou a escrever teleplays de movimentação reduzida, cuja característica fundamental era a abordagem de temas domésticos, miniaturas dramáticas sem complicações, como o do açougueiro gordo e desajeitado (Marty) que não arranjava namorada, da mãe (The mother) que rejeitava a proteção dos filhos ou duma despedida de solteiros (Bachelor party) que resultava em melancolia e fracasso. Como um anti-Cecil B. de MilIe, não contando ainda com o recurso multiplicador do teipe, Chayevesky pôs seu ovo de Colombo de pé ao fixar-se em histórias duma simplicidade linear, retratos de personagens comuns e mergulhos em situações do cotidiano, tudo com tal humanidade e acerto que o cinema o convocou e consagrou. Em São Paulo, principalmente, Chayevesky serviu de modelo a inúmeros roteiristas que se iniciavam no ofício.
o teipe muda tudo Nenhuma novela lançada antes do teipe teve a repercussão de um programa como O céu é o limite, por exemplo, lançado em 1956, na TV Tupi, a princípio em estúdio e logo depois lotando o auditório da emissora. Baseado num programa norte-americano chamado Quarenta mil dólares (nunca houve nos Estados Unidos um The sky is the limit, como o próprio Assis Chateaubriand supunha erroneamente) foi rebatizado em São Paulo, pela Standard Propaganda, cujo diretor lembrara uma frase insistentemente repetida na peça Anjo de pedra, de Tenncssee Williams. Redigi perguntas e respostas desse programa durante poucos meses e ainda rio ao lembrar dos gênios que por ele aram. Pelo menos os que atuaram no meu tempo não competiam com os computadores modernos. Simplesmente perguntava-se a eles o que, em entrevista prévia, já se sabia que conheciam bem. E por que derrubar do pedestal facilmente personagens que carreavam audiência sem constar da folha de pagamento da emissora? Inúmeras vezes O céu é o limite e programas iguais, com outros nomes, foram apresentados mais tarde, sem obterem um décimo do êxito inicial. Foi o maior sucesso da televisão brasileira antes do teipe, apesar de sua nenhuma criatividade e do formato quadrados
drado. Câmer as fixas, cenan os chapa dos e de interpr etação só a dos candid atos quand o repres entava m não lembra r as respos tas, ou do aprese ntador, ao fingir torcer por eles. Eram roteiro s ou
script s invisív eis, gênero talvez não menci onado em livros especi
alidos. 59. Mas o teipe mudou tudo, talvez a televisão tenha começado a partir dele. O que existira antes fora a lanterna mágica doméstica. E seu grande prodígio foi trazer de volta a novela, modalidade que se supunha morta e enterrada. Aqui as primeiras eram argentinas e cubanas, algumas adaptadas do rádio, como O direito de nascer, dramalhão de repercussão continental, e Redenção, esta brasileira, que permaneceu dois anos no ar, recorde imbatível de permanência. Parecia que as telenovelas, devido a seu início radiofônico, permaneceriam com temas e linguagem folhetinescos, o que felizmente não aconteceu. Logo se modernizariam. Deveu-se essa guinada ao fato de se tornarem caras demais para um único patrocinador, e patrocinadas por vários escaparam ao controle de empresas multinacionais ou de suas agências de publicidade, que não itiam novas idéias e novos rumos para as telenovelas. Para essas firmas estrangeiras, há decênios patrocinando soap operas, o público latino-americano era um só e estava fadado a gostar eternamente das mesmas coisas. Eram tempos em que um Mister qualquer, com as pernas sobre a escrivaninha, falando maIo português, examinava as sinopses que as emissoras lhe enviavam, ou o próprio autor, e sem nenhuma preocupação com qualidade ou renovação, escolhia entre elas sempre a mais apelativa, a que tivesse mais concessões ao mau gosto, com receio de que, modernizadas, pusessem em risco a audiência e vendessem menos produtos. A preferência, a última palavra, recaía comumente em favor das novelas escritas em castelhano, as quais além de proporcionarem uma viagem de turismo comercial eram adquiridas - segundo a expressão de um desses senhores que conheci - a preço de banana. Libertando-se desse controle colonizador, oriundo da era do rádio, e que certamente determinou e manteve a má qualidade das radionovelas, tão deletério como a censura que viria depois, a telenovela pôde encontrar caminho próprio, modernizar-se, e falar uma linguagem atual e brasileira. No rádio, os patrocinadores estrangeiros não itiam que se usasse nossa linguagem. O que era bom para a América Latina I
era bom para o Brasil, e estava falado. Mudar podia não ser benéfico às vendas. Rendo aqui, pois, homenagem a alguns roteiristas daquele período, como Oswaldo Moles, Túlio de Lemos, Walter George Durst, Mário Lago e alguns outros, que nunca aceitaram o receituário imposto de fora para dentro, à procura duma expressão criativa mais livre e mais próxima de nossa nacionalidade.
E depois? Depois do teipe veio a cor. Se o teipe acelerou o ritmo das telenovelas e programas em geral de tevê, a cor veio valorizar cenários, guarda-roupa, adereços e maquiagem, simplificados no preto e branco. Um alterou a dinâmica, a outra atuou no visual. Daí a quase-conclusão de que na tevê quem comanda é a técnica. Um novo invento, como televisão em tela grande, para fixar na parede, já em fase experimental, pode gerar programas diferentes e acabar com outros, hoje produzidos. Talvez a novela, como se faz agora, não se enquadre na tela panorâmica, empobreça, surgindo produtores independentes, em maior número, dedicados à produção de filmes. Pode até haver um ponto final para os roteiros de tevê, voltando a época do teleteatro, já que o grande público desconhece o que o teatro fez em mais de 2 000 anos de existência. Toda a produção do rádio, milhões de toneladas, foi para o lixo. A de tevê, nos moldes atuais, pode ter o mesmo destino. Por outro lado, as transmissões a cabo, que ainda não chegaram ao Brasil, especializadas e limitadas a audiências menores, exigirão mais roteiristas quem sabe para satisfazer a uma parcela da população mais intelectualizada. A qualidade no lugar da quantidade, pondo fim à guerra que ainda existe na televisão entre escritores e escrevinhadores, decidida sempre a favor destes, porque em maior número e mais em sintonia com a média intelectual do país.
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Trechos contínuos de um roteiro para televisão Uma auto-adaptação O roteiro escolhido para se submeter ao bisturi não é modelar nem envolve muitas complicações exemplificadoras. Infelizmente não disponho de arquivo de meus roteiros cinematográficos e teleplays, uma pirâmide de papel, do tamanho das egípcias, embora sem sua sedutora antiguidade. No cinema e na tevê até o que se faz de mais moderno geralmente envelhece na virada do ano. Escrever para milhões tem um ônus: o esquecimento de milhões.
O Teletema O homem que salvou Van Gogh do suicídio, exibido na TV Globo, sob direção de Fábio Sabag, com Marco Nanini no papel principal, foi anteriormente um conto publicado no "Caderno Cultural", do jornal O Estado de S. Paulo. Reduzido como uma fábula, umas oito laudas, tinha porém conteúdo material para ser desdobrado com a inclusão de novas situações e novos personagens. Daria um filme. Ou um especial um tanto espremido. Mas, surgindo uma oportupidade no programa Teletema, adaptei o conto para cinco capítulos de 25 minutos de duração cada. Apesar da extravagância do tema, a Casa de Criação aceitou imediatamente a sinopse do Van Gogh, e um dos seus mais credenciados profissionais, Joaquim de Assis, colaborou com sugestões afinadas com o conjunto. Escrevi duas vezes o roteiro; escreveria três se
houvesse tempo, pois O homem que salvou Van Gogh do suicídio, como tudo que escrevi para o veículo, não me satisfez inteiramente, apesar de sua excelente realização. Ficou a viciosa impressão que tinha algo de mais ou de menos. Idéia
A idéia foi a de escrever uma história que usasse a velha Máquina do Tempo, não por curiosidade histórica, mas por pura malandragem do piloto. Alguém que viaja ao ado para lucrar, encher os bolsos. Story-Line
A história dum homem que reinventa a Máquina do Tempo, viaja para a França, 1890, compra todos os quadros dum pintor holandês fracassado, Vincent Van Gogh, volta à atualidade e expõe as telas numa grande exposição. Mas ninguém comparece: cle apagara da história o nome e a fama de sua mina de ouro. Sinopse
Foi uma sinopse muito detalhada, que seria fastidioso transcrever,
mas que já nada tinha do conto original, além da idéia. A sinopse como qualquer outra tratava de dar corpo à idéia. Chamei o personagem de Júlio, engenheiro-arquiteto associado a um antigo amigo, Duílio, rapaz sensato, equilibrado. Dei a Júlio uma namorada pintora, Vera, para ligá-I o ao mundo das artes plásticas, e um rival perigoso, Rogério, marchand e dono dum salão de exposições. Para dificultar as experiências científicas de Júlio, feitas no quintal de sua casa, secretamente, inventei uma governanta idosa, Naná, que tinha com ele intimidades de titia, incumbida do departamento humorístico. Com estes personagens, e outros, acidentais, dava para apresentar uma sinopse bem estruturada. Pelo telefone, Ferreira Guiar me pediu que começasse a escrever imediatamente. 1? CAPíTULO SEQ. 01 - UMA CASA MODESTA DE BAIRRO - EXT. NOITE A câmera aproxima-se lentamente até enquadrar uma janela onde há luz acesa.
SEQ. 02 QUAR TOESCRI TÓRIO DE JÚLIO - INT. NOITE
Q u a rt o e s c ri t ó ri o d u m a p e q u e n a c a s a c
o m q ui n t al . A c â m e r a f o c a u m a e st a n t e c o m m ui t o s li v r o s d e s o r d e n a d o s,
a maioria sobre física e eletrônica. Destaque para A máquina do tempo, de H. G. Wells. Um relógio de parede bate três horas. Apanha a escrivaninha: um cinzeiro com mil pontas de cigarro. Júlio, dispondo de um maço de papel e muitas esferográficas, redige fórmulas matemáticas apressadamente. Coisa complicada: x,Y,v,r,s . .. -.- = 0,0. Tempo e Espaco x Espaço x 33.113. 1111 ' Júlio usa também a máquina de calcular. Canto dum galo. Olha por instante a moça dum porta-retrato, Vera, sua namorada. Num papel, ao lado, desenhado, uma espécie de cabine telefônica com visor de vidro na parte alta e uma série de botões. Os cálculos não vão bem. Júlio amassa papéis e joga pelo chão. Levanta irritado e dá um chute numa cadeira.
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JÚLIO - Os quadros dele estão valendo dezenas de milhões de dólares ... VERA - Mas em vida nunca vendeu nenhum. Ficou biruta e suicidou-se. JÚLIO (Tendo uma idéia) Ele pintou muitos quadros? VERA - Não tantos. (Tom) Mas o assunto é nosso casamento. JÚLIO Claro. (Tom) Ficou biruta, você disse? VERA - Ficou. (Tom) Acha que dá para casarmos em setembro? Júlio fica atento ao quadro. Toca-o com os dedos. A idéia!
JÚLIO - (Possesso) Não é isso. Tem um erro aí. O fator Tempo não es tá em sincronia com a inversão da velocidade da luz. O que anula a progressão do fator Espaço ...
JÚLIO - Tinha muitos amigos, parentes, cão de guarda? VERA - Morreu só. (Tom) Júlio, aceite o projeto que Duílio lhe ofereceu. Um edifício de 20 andares. JÚLIO - Onde ele morreu? VERA - Na França. (Tom) Vai aceitar?
Alguém abre a porta. É Naná, 60 anos, governanta de Júlio. Usa camisolão.
Júlio, ainda com os olhos no quadro:
JÚLIO - O que você quer, Naná?
JÚLIO - Em que ano? VERA - Em que ano o quê? JÚLIO Em que ano ele morreu? VERA 1890.
NANÁ - (Vê a cadeira caída) Tropeçou na cadeira, seu Júlio? JÚLIO Não, dei um chute nela. NANÁ - a das três, não vai dormir? JÚLIO - Traga um café. Vou trabalhar até amanhecer. NANÁ - Mas não disse que estava desempregado, sem serviço? JÚLIO Claro que estou. O café. No dia seguinte, Júlio recebe a visita de seu sócio e amigo Duílio, que lhe traz boa notícia: uma empresa queria os dois para a construção dum prédio. Júlio não se interessa: ele que trabalhasse sozinho. Duílio vê os papéis rabiscados sobre a escrivaninha e supõe estar sendo traído, profissionalmente. Mas Júlio explica que todos aqueles cálculos não avam dum ... entretenimento. Era um invento. Duílio, aborrecido, que trouxera uma boa notícia, despede-se com outra, desagradável. DuiLlO - Tem um cara tentando conquistar sua linda pintora. Um tal Rogério, dono duma galeria. Endinheirado, esperto e bom de papo. Se continuar entretendo-se, babau ... Na cena n~ 05, Vera está em seu ateliê, recebendo um telefonema do fã rico. Na parede, o famoso auto-retrato de Van Gogh. Júlio chega mostrando no rosto o cansaço de quem não tem dormido. Ela, ciente de que ele recusara aceitar a oportunidade que Duilio lhe oferecera, quer saber o motivo. Afinal casariam em setembro. Júlio responde sem explicar nada. Vera aproxima-se do retrato de Van Gogh. VERA - Não quero levar a vida que ele levou. Sabia que dificilmente venao uma tela? JÚLIO - Quem é o cara? VERA - Vincent Van Gogh. É uma reprodução muito manjada.
Júlio dirige-se sonambulando até a porta. VERA - Não vamos almoçar? JÚLIO - 1890 você disse? Tchau. Júlio sai. Vera pega o telefone e faz uma ligação apressada. VERA - Rogério? Vera. Está valendo ainda o convite para o almoço? Júlio vai fazer uma visita a um famoso físico, que foi seu professor, Gambini. Leva uns papéis, cheios de números, e pergunta-lhe: JÚLIO - Lembra dos artigos que escreveu sobre a regressão do tempo? A possibilidade de voltarmos ao ado? Veja essa fórmula. O professor dá uma olhada no papel e pega um lápis. GAMBINI - Aqui há uma incorreção. (Corrige) O fator H é fixo e indivisível. Isso altera todos os cálculos. JÚLIO - Obrigado, agora a máquina vai funcionar. GAMBINI - Está se dedicando à ficção científica? Júlio faz uma pausa e revela: JÚLIO - Não, vou fazer a própria máquina. Quer associar-se a mim? Podemos partir juntos na primeira viagem. Topa? O físico, julgando-o louco, apavora-se. Júlio sai da casa do professor, berrando: não vou precisar de você, velho gagá. Volta ao ateliê de Vera, vazio, e fica a olhar para Van Gogh. De repente ela chega, rindo, com Rogério. Ele mal tira os olhos da reprodução. Cumprimenta o rival, que lhe é apresentado, e sai. Vera tira uma conclusão: Júlio está ficando louco. Saindo para a rua, Júlio entra numa livraria e compra tudo que encontra sobre Van Gogh. Á saída, encontra casualmente com Duílio, que, vendo os livros, pergunta:
DuíLlO - Que livros são esses? JÚLIO - Biografias e estudos sobre Van Gogh. DuíLlO - Que é? Se amarrando em pintura? JÚLIO - Não entendo nada de pintura nem pretendo entender. Chegando em casa com os livros, Júlio diz a Naná que não está para ninguém. Nem para Vera. Duílio procura Vera contando seu estranho encontro com Júlio. Talvez ela pudesse explicar o porquê dos livros e de todo seu estranho procedimen to. Ela não pode. A colaboração do professor Gambini valeu. Júlio acha que acertou na mosca. E para festejar obriga a governanta a dançar com ele, apesar do reumatismo de Naná No dia seguinte ele vai a uma oficina metalúrgica e encomenda a cabine, segundo sua planta e instruções. JÚLIO - Faça o trabalho depressa. Vou viajar. METALÚRGICO - E vai levar a cabine? JÚLIO - Não, vou viajar dentro dela. Duílio, na cena no 15, vai visitar o amigo e só encontra Naná, que tem novidades. DuíLlO - Ele obrigou você a dançar com ele? Às três da madrugada? NANÁ Obrigou, e o pior é que ele dança muito mal. Júlio chega trazendo nos braços um motor de geladeira. DuíLlO - Sua geladeira pifou? JÚLIO - Não, está ótima. DuiLlO - (Procurando penetrar no enigma) Trabalhando muito? JÚLIO Graças a Deus! DuíLlO - Estive com Vera. Parece que o noivado acabou. JÚLIO É, acabou. DuíLlO - Lamento, deve estar grilado. JÚLIO - Não estou. DuíLlO - Não gosta mais dela? JÚLIO - Agora mais do que nunca. DuíLlO Então, como não está grilado? JÚLIO - (Convicto, firme) Ela voltará correndo quando isto der certo. DuíLlO Isto o quê? JÚLIO - Por enquanto é só isto. Até que falei demais. DuíLlO - Se gosta dela, por que não se dedica a coisa mais prática? JÚLIO Impossível. Quando eu voltar serei o homem mais rico do país. DuíLlO - Voltar de onde? JÚLIO - Simplesmente voltar. Quem vai volta. Ou não? SEQ. 16 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Naná vai ao quintal. Num canto, protegido, está o motor de geladeira, uma direção de carro, roldanas e outras peças. Ela olha a tudo estranhamente. Júlio, feliz, surge no quintal trazendo um de automóvel. JÚLIO - Como se encontram coisas úteis nos cemitérios de automóveis!
NANÁ - O senhor disse a seu Duílio que vai viajar ... JÚLIO - Vou. Para a França. NANÁ - Tão longe assim? JÚLIO - Não se preocupe, pretendo voltar no mesmo dia. NANÁ (Sem entende!) Vai à França e volta no mesmo dia? JÚLIO - (Com naturalidade) Não vou fazer turismo, vou a negócios. NANÁ Os aviões de hoje são tão rápidos assim? JÚLIO - Não vou de avião. Tenho medo. Júlio volta para o interior da casa. Vera e Duilio conversam e ele a aconselha fazer uma visita ao ex-noivo, que, talvez, tendo enlouquecido, necessite de assistência. Vera vai visitá-Io, chegando no momento em que carregadores trazem uma cabine metálica. VERA - Parece uma cabine telefônica. JÚLIO - Mas não é. É uma máquina. VERA Máquina de fazer o quê? JÚLIO - Nem todas as máquinas fazem alguma coisa, sabia? Vera deixa a casa de Júlio sem nada ter descoberto, apesar de ter conversado também com Naná, que lhe fala da viagem do patrão à França. Numa boate, dançando com Rogério, atual namorado, fala o tempo todo sobre o enigmático Júlio. E sobre a cabine. Para que serviria? Mas esta é a pergunta mais persistente: VERA - Ainda se eu conseguisse descobrir o que Van Gogh tem a ver com isso ... SEQ. 25 - COZINHA DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Júlio entra na cozinha. Naná trabalha na pia. Ele procura, procura e num armário encontra uma garrafa de vinho. Pega-a, sob o olhar desconfiado de Naná, e volta ao quintal. SEQ. 26 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Júlio chega ao quintal com a garrafa. Abre a porta da cabine. Pega algo parecido com uma prateleira e ajusta-a no interior da máquina, onde vai co locar a garrafa. JÚLIO - (Lê o rótulo) Safra 1979. Pelotas. Coloca a garrafa na prateleira. Fixa-a no . Vira algumas roldanas. JÚLIO Regressão de seis anos. Latitude sul. Hesita antes de apertar o botão do disparo. Aperta. Um zunido prolongado. A máquina desaparece num flash de luz. Silêncio total. Mas logo a cabine reaparece com outro zunido. A cabeça de Naná desponta à porta do quintal. NANÁ - Que zunido foi esse? Júlio abre a porta da cabine. Sorriso de satisfação. Câmera foca a prateleira móvel. No lugar da garrafa está um cacho de uva. Come uma delas. Naná, já no quintal: NANÁ - Uvas? JÚLIO - Uvas.
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N A N Á M a s n ã o c o m p r e i u v a s n e m é
ste) Experimente São de 1979. Naná experimenta uma. Gosta. NANÁ - O senhor disse de ... JÚLIO - ... 1979. NANÁ - Parecem frescas! JÚLIO - E são! Final do 1 ° capítulo.
2° CAPíTULO SEQ.01 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Júlio e Naná comem as uvas. Naná examina a máquina. NANÁ - Isso é uma geladeira? JÚLIO - Isto não é uma geladeira. NANÁ - Onde está a garrafa de vinho que o senhor pegou? JÚLIO Que garrafa de vinho? NANÁ - Mas se o senhor não tem saído de casa como comprou as uvas? JÚLIO - Vou sair. Naná. NANÁ - Depois de 20 dias sem tomar sol. JÚLIO - Tem um saco de estopa? NANÁ - Pra quê? JÚLIO - Perguntei se tem. NANÁ - Tenho. Quando Júlio sai, Naná recebe um telefonema de Vera. Conta o episódio das uvas e outros estranhos procedimentos do patrão. Júlio volta com o saco de estopa que parece conter alguma coisa. Pede um pouco de leite e um pires. No quintal, solta um gato, espiado por Naná. Enfia o gato na cabine. Aperta o botão, o flash, o zunido, o desaparecimento da cabine e seu retorno. SEQ. 08 - COZINHA DE CASA DE JÚLIO - INT. DIA Naná trabalha. Entra Júlio e pega o litro de leite. Retoma. Naná sorrateiramente vai atrás dele. SEQ. 09 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
t e m p o . J Ú L I O ( I n s i
Júlio põe leite no pires. Uma ninhada de gatinhos se serve. Naná espia pela porta da cozinha. Ao ver a ninhada, no lugar do gato, espanta·se. Não en· tende mais nada. Na cena nO 12 Naná corre ao telefone e conta tudo para Vera. Fala da ninhada de gatinhos. Mas eles já haviam retomado à máquina do tempo e o gato, trazido por Júlio, reaparece na sala. Ela larga o telefone. JÚLIO - Não gosta de gatos, Naná? NANÁ - Mas não era uma ninhada? JÚLIO - O que eu faria com uma ninhada? NANÁ - E o que vai fazer com ele? JÚLIO - Pode dar um sumiço no bichano. Não gosto desse bicho.
Vera no ateliê, e esta lhe conta a história das uvas e da ni. nhada de gatinhos, que Naná lhe ara pelo telefone. DuíLlO· Agora está claro. VERA - Claro? DuíLlO - Como água! VERA - Mas o que ficou claro? DuíLlO - Júlio, o mágico! Só mágicos fazem essas coisas. Daí a tal caixa. Aposto que deve estar fazendo maravilhas com um baralho. Afinal descobriu sua vocação. Júlio nesse entretempo mexe·se para a venda dum terreno, seu único imóvel. Precisaria de dinheiro para sua viagem. Ao voltar para casa, recebe a visita dum vizinho, o bêbado do bairro, que fora fazer um agradecimento: Na. ná dera o gato para ele. Ao vê·lo, bebum como sempre, Júlio tem uma idéia. JÚLIO - O que me diz de tomarmos um trago, vizinho? LUIZ - (O ébrio) Bebida só rejeitei uma vez na vida. Tinha dois anos. Era uma tal de mamadeira. Júlio vai à porta da cozinha: JÚLIO - Naná, traga o conhaque. LUIZ - Estou vendo que o senhor é gente boa. JÚLIO - Eu me esforço. SEQ. 18 - COZINHA DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Naná trabalha na cozinha. Chega Júlio com o cálice de conhaque. Jo. ga o líquido na pia. JÚLIO - Naná, podia ir ao Correio para mim? NANÁ - Me dê a carta. JÚLIO - Carta? Para quê? NANÁ - Não me pediu para ir ao Correio? JÚLIO - Ah, melhor é ir à farmácia. Compre esparadrapo. NANÁ Temos um rolo. Júlio repousa a mão sobre uma melancia. JÚLIO - Então, vá à quitanda e compre uma melancia. NANÁ - (Vendo a melancia) Que fruta verde é essa, seu Júlio? Júlio retira a mão da melancia. JÚLIO - Na verdade não preciso de nada. Mas você precisa. Deve es. tar cansada desta cozinha. (Retira dinheiro do bolso e dá a Naná) Vá dar um eio de metrô. Tchau. SEQ. 19 - QUARTO·ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA Câmera foca o litro de conhaque sobre a escrivaninha: Luiz já conse. guiu beber um palmo. LUIZ - Modéstia à parte, em sua ausência bebi três doses. Já começo ver Tiradentes. JÚLIO - Que história é essa de Tiradentes? LUIZ - A bebida me deixa comovido e Tiradentes sempre me faz cho. raro Lembra meu pai.
Duíli o visita
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JÚLIO - Seu pai? LUIZ - Ele também morreu enforcado. Pelos credores.
JÚLIO - Então vá para seu quarto e só saia quando eu mandar. NANÁ Por quê?
Júlio pega Luiz pelo braço:
JÚLIO - Aquele homem, o Luiz, está ando mal. Sabe, bêbado diz muitos palavrões ... NANÁ - Vou fazer um café amargo pra ele.
JÚLIO - Vamos dar um pulo ao quintal. Um bom porre exige espaço. SEQ. 20 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Surgem Luiz e Júlio no quintal. Luiz leva o litro e o cálice. Param dian· te da máquina do tempo. LUIZ - Que é isso? JÚLIO - Uma máquina que comprei num parque de diversões Quem en· tra, vê coisas. LUIZ - Que coisas? JÚLIO - Coisas que a gente gosta de ver. LUIZ - Não diga! I I I
Toque de telefone. Naná atende, enquanto Júlio volta ao quintal, preocupado, à espera do regresso da máquina do témpo. No quintal, Naná chama-o. É Vera ao telefone. JÚLIO - Diga que não estou. NANÁ - Eu não sei mentir. JÚLIO - Então eu digo pessoalmente. Júlio vai atender ao telefone e diz: JÚLIO - Vera, eu não estou em casa.
JÚLIO - Digo.
Desliga e retorna ao quintal. Lá estava a cabine! Aproxima-se dela tenso, lentamente.
LUIZ - Mulheres? JÚLIO - Em três dimensões. LUIZ - Posso entrar nesse troço? JÚLIO - Pode, mas antes tenho de fazer uns ajustes.
Júlio pára diante da máquina. Espia pelo visor. Não vê ninguém. Susto. Abre a porta da cabine, precipitadamente. Luiz lhe cai nos braços. Júlio am para-o. O ébrio chora convulsivamente.
Luiz pega a garrafa e toma mais um gole pelo gargalo enquanto Júlio trabalha no . JÚLIO - (Para si mesmo) Dia 21. Mês: abril. Ano: 1872. Latitude e longi· tude: a mesma. Tudo certo. Luiz aproxima-se: LUIZ - Posso levar a garrafa? JÚLIO - Não há nenhuma proibição quanto à bagagem. Entre, ilustre ageiro. Luiz entra na cabine com o litro. Júlio fecha a porta. JÚLIO - Tudo bem? LUIZ - Por enquanto, um tanto monótono. Júlio aperta o botão central. Luzes. Zunidos. A cabine desaparece. Alguém põe a cara na porta, é Naná. NANÁ - Onde foi aquela coisa? JÚLIO - Que coisa? NANÁ - A caixona que estava aqui. JÚLIO - Vieram buscá-Ia. Quando foi ao metrô. NANÁ - Não fui ao metrô, fiquei aqui. JÚLIO - Não foi mas tem de ir. Júlio vai empurrando Naná para o interior da casa SEQ.21 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA Naná aparece, empurrada por Júlio. NANÁ - Eu me recuso a ir ao metrô.
SEQ. 25 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
JÚLIO - Por que está chorando? Machucou-se na viagem? LUIZ (Abraçado a ele) Pobre homem ... JÚLIO - O que você viu? Vá falando. LUIZ - A praça. Eu o vi ser enforcado. JÚLIO - Quem? LUIZ - Joaquim José da Silva Xavier. Sabe, nem lembrava que se chamava assim. JÚLIO - (Interessado) Você saiu da cabine? LUIZ - Vi tudo pela janela e ouvi o que diziam. (Ainda chorando) Foi horrível. .. Acho que nunca mais usarei gravata. Chega Naná com o café e vê a cabine. NANÁ - (Surpresa) A cabine! Tinha desaparecido! JÚLIO - Dê o café ao nosso vizinho. Luiz pega a xícara e fala com Naná: LUIZ - Foi de cortar o coração. Pobre Tiradentes. NANÁ - Pobre quem? JÚLIO - Tiradentes. Está surda? Leve-o para casa. Luiz vai saindo com Naná. LUIZ - Ele estava tão pálido com aquela barba ... Foi subindo os degraus do cadafalso. Um a um ... Depois lhe pam a corda no pescoço ... Os tambores. Luiz e Naná entram na cozinha. JÚLIO - (Vitorioso) A confirmação! A máquina funciona! Luiz foi e voltou. Eu também voltarei. Só que rico ...
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Júlio concretiza a venda do terreno. Já poderia dar novos os. Em sua ausência, Vera chega, e levada por Naná ao quintal, diante da caixa, tem com a governanta uma longa conversa. VERA - Não há mistério algum, Naná. Seu patrão virou mágico e esta caixa é a prova, NANÁ - Mas ele não tem cartola ... Chega Júlio trazendo um pacote de dinheiro. Naná volta à cozinha. Vera faz comentários sobre a cabine misteriosa. VERA - Quantos botões tem esta caixa! JÚLIO - Pretendo trocá-Ios por um zíper. VERA Então é isso, virou mágico? JÚLIO Adivinhou. Virei. VERA - Fez algum curso? JÚLIO - Por correspondência. VERA - Faça uma mágica para mim. JÚLIO - Você não pagou ingresso. VERA - Um beijo vale como ingresso? (Beija-o) JÚLIO - Vale um camarote perto do palco. VERA - Vamos à mágica. Júlio pensa um pouco e vai para o interior da casa, enquanto Vera olha os botões do aparelho. Ele volta com um ovo_ JÚLIO - Agora vamos à questão milenar. Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha. Júlio abre a porta da cabine e coloca o ovo na prateleira móvel. Depois. faz os ajustes. VERA - E agora? JÚLIO - Agora fecho a porta da cabine. Júlio fecha a porta. VERA - E depois? JÚLIO - Depois aperto este botão. Júlio aperta o botão. Luzes. Zunido. Vera recua, assustada. Abraçada a Júlio, não vê a cabine desaparecer. VERA - (Abraçada) A coisa é assim? JÚLIO - Assim. A cabine reaparece. Júlio vai abrir a porta. VERA - O que espera encontrar? JÚLIO - A resposta da pergunta. Júlio abre a porta da cabine, retira uma galinha que entrega a Vem JÚLIO Meu presente de casamento. VERA - Como fez isso? JÚLIO - Mágica. VERA - A galinha estava aí dentro?
JÚLIO - Não, estava em minha manga. VERA - (Encantada) Oh, Júlio ... isso com turbante e música oriental em fundo ficará maravilhoso! Final do 2? capítulo. 3° CAPíTULO Vera sai da casa de Júlio convencida de que seu ex-noivo virou mágico. Convence Duílio e a própria Naná, que sossega. Júlio, dando prosseguimento a seu plano, vai a uma loja de numismática, e faz uma encomenda: francos que circulavam na Europa por volta de 1890. O proprietário da loja promete conseguir os francos. Em seguida, Júlio volta ao metalúrgico e pede·lhe que faça um bagageiro, na medida da cabine, para ser adaptado à sua parte superior. A terceira providência do dia consiste na visita a um costureiro, ao qualleva um figurino com trajes de diversas épocas e países. Encomenda uma roupa sa que se usava no fim do século ado. JÚLIO - Apronte logo. O baile vai ser no mês que vem. E, por fim, Júlio procura uma professora de francês. Conhecia bem o idioma mas necessitava de algumas aulas práticas. Chegando em casa, recebe um telefonema de Vera. (Voz de Vera ao telefone) Júlio, venha ao meu ateliê. Quero lhe apresentar a uma pessoa que poderá ajudá-Io.
SEQ. 11 - ATELIÊ DE VERA - INT. DIA Júlio entra no ateliê. Vera recebe-o alegremente. JÚLIO - De que pessoa você falou? VERA - Quero provar que continuo sua amiga. Vou ajudá-Io a exercer sua nova profissão. JÚLIO - Você não entende nada de mágicas. Entra um homem de meia·idade, Cleber, com pinta de empresário. VERA - Eu, não, mas Cleber entende. (A Clebei) Este é o mágico Júlio. Já o vi fazer um trabalho. É sensacional. Cleber é empresário. Apertam-se as mãos. CLEBER - Faz a mágica do serrote? JÚLIO - (Esnobando) Essa é velha. CLEBER - Faz desaparecimentos? Um espectador desaparecer? JÚLIO (Ainda esnobando) Já fiz um teatro desaparecer. O chato é quando chove. Nem todos os espectadores trazem guarda-chuva. CLEBER - E quanto à levitação? O público adora isso. JÚLIO - Já fiz 200 pessoas levitarem até o teto do teatro. Só cinco caíram. CLEBER - Acho que podemos um contrato. VERA - Viu, Júlio? Um contrato! JÚLIO - Vou fazer uma viagem. Na volta eu o procuro. CLEBER - Estou com um pouco de pressa. Procure-me na volta. (Aperta a mão de Júlio) Muito prazer. (A Vera) Mantenha-me informado. (Sal)
VERA - Você estava brinca ndo, não?
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VERA - A mágica da galinha me pareceu tão real ... Uma pena ficou JÚLIO - Bonito nome. Agora queira entrar novamente aí. NANÁ Não. JÚLIO - Seja obediente, Naná. NANÁ - Não quero entrar. JÚLIO Por que não? NANÁ - É abafado. Júlio segura a menina pelo braço. JÚLIO - Mas tem de entrar, sim. Naná debate-
67. 69. 68.
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se e diz gírias antigas. NANÁ - Sossega, leão. Me largue, seu calhorda. Naná consegue livrar-se de Júlio e correr para o interior da casa. SEQ. 16 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA Naná, menina, surge correndo, perseguida por Júlio. JÚLIO - Naná, pare ... Você precisa voltar. NANÁ - Pra casa de titia, não. Ela bate em mim. Júlio tenta segurá-Ia. Naná, menina, salva-se outra vez, correndo na díreção da porta da rua. SEQ. 17 - RUA DA CASA DE JÚLIO - EXT. DIA A menina chega à rua no momento em que Duílio estaciona seu caro ro. Júlio aparece, agitado. Vê Duílio, enquanto a garota foge. JÚLIO - (Para Ou/lio) Me ajude a pegar aquela menina! DuíLlO É ladra? Júlio e Duílio saem perseguindo a menina pela rua. Júlio tropeça e cai, mas Duílio consegue detê-Ia. DuíLlO - Que houve, garota? NANÁ - Minha tia quer bater em mim. DuíLlO - Por quê? NANÁ - Porque tirei cinco mil-réis da bolsa dela. Júlio chega aos dois. DuíLlO - (A Júlío) Quem é ela? JÚLIO Naná, minha empregada. DuíLlO - Naná? A plástica faz milagres, não? JÚLIO Quis dizer, a neta dela ... SEQ. 18 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA Entram, vindos da rua; Júlio, que segura a menina, e Duílio. Naná ainda se debate. NANÁ - Me largue ... JÚLIO - Vamos para o quintal. NANÁ - Não vou, seu finório! DuíLlO - Ela tem um vocabulário engraçado. Finório era uma pala. vra que meu avô dizia.
e m m e u v e s t i d o . J Ú LI O A g al in h a er a v er d a d ei ra . O o v o é q u e n ã o p a s s a v a d u m tr u q u e.
Pega uma toalha que cobre um dos quadros e joga-a sobre Vera, co· brindolhe a cabeça. JÚLIO - Chazan! Quando Vera retira a toalha da cabeça, não vê mais Júlio, que saiu do ateliê. Voltando à sua casa, Júlio recebe uma visita entusiasmadora. O do· no da loja de numismática trouxera uma sacola cheia de francos antigos. Uma verdadeira fortuna nos idos de 1890. E no mesmo dia o metalúrgico traz o bagageiro, que prende à cabine, como o de um automóvel. Mais uma encomenda: o traje francês que chega do costurei ro. Mas ele teria coragem de entrar na cabine? SEQ. 13 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT, DIA Júlio observa a cabine. Preocupado. Naná aparece. NANÁ - Patrão, me deixe entrar aí? Luiz, o bebum, disse que é gostoso. JÚLIO - Ele disse isso? NANÁ - Disse. (Tom) Sempre quis entrar num desses caixões de mágicos. JÚLIO - Quer entrar mesmo? Não tem medo? NANÁ - Medo de quê? Mas gostaria que bulisse nesses botões. JÚLIO Que idade você tem? NANÁ - 60. Por que quer saber? JÚLIO - O mágico sempre precisa de informações. NANÁ Posso? Júlio permite. Ela entra. Ele começa a girar as roldanas. SEQ. 14 - RUA DA CASA DE JÚLIO - EXT. DIA Um carro, dirigido por Duílio, aproxima-se. SEQ. 15 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Júlio, aflito. A cabine desapareceu. JÚLIO - (Chama) Naná! Volte! Volte! Eu não devia ter permitido. Naná! Por fim a cabine reaparece. Júlio acerca-se dela. Não vê nada pelo visoro Abre a porta. Imediatamente sai do interior dela uma menina de uns dez anos. Naná, há meio século. Olha para Júlio espantada. JÚLIO - (Também pouco à vontade) Como vai, garota? Como é seu nome? NANÁ - Mariana. JÚLIO - Mariana? NANÁ - Mas me chamam de Naná.
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J ú l
Vamos. Duí.~IO - Você não pode com essa diabinha. Eu ajudo. JÚLIO Vá chamar a avó dela, no quarto. Duílio afasta-se uns os.
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DuíLlO - (Chama) Dona Naná! NANÁ - Naná sou eu. JÚLIO - Vá, Duilio.
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Duilio vai para o interior da casa e Júlio puxa a garota para o quintal.
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SEQ 20 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
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Júlio, torcendo o braço da menina, leva-a para a máquina. Ela ainda reage. NANÁ - Me largue o braço. Está doendo. JÚLIO Entre que eu largo. A menina entra. Júlio começa a ajustar a máquina. SEQ 21 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA Duilio
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volta. Fala alto.
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Olha para o chão. Vê uma cédula dobrada. Abaixa-se e pega-a. DuíLlO -
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Cinco mil-réis! Onde ela teria arranjado essa velharia? Duílio, desconfiado
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de tudo, continua a examinar a cédula.
DuiLlO - Júlio, Naná não está.
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SEQ. 22 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
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Zunidos e luzes. A cabine reaparece diante de Júlio, que precipitadamente abre a porta. Naná sai, tonta.
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JÚLIO - Tudo bem? NANÁ - Tudo bem? Isto é uma fábrica de pesadelos. Que mágica besta! JÚLIO Desembuche mulher! NANÁ - Voltei à infância. Tinha brigado com minha tia. Depois me vi correndo pela rua. E sabe quem me segurou? Seu Duilio. JÚLIO - Deve ter comido alguma coisa indigesta. SEQ. 23 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA
d e s i s t
Entram Naná e Júlio. Duílio permanece com a nota de cinco mil-réis na mão. DuíLlO - Terrivel sua neta, não? JÚLIO - Ele quer dizer ... NANÁ - Neta? Não sou nem mãe solteira ... JÚLIO Ela inventou que Naná é avó dela. DuíLlO - Mas quem disse foi você. JÚLIO - Eu? (A Naná) Vá descansar.
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Naná vai para seu quarto.
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DuíLlO - Esta história está meio estranha. Onde está a menina?
J Ú L I O -
JÚLIO - Que menina? Ah, aquela? Pulou o muro e foi embora. DuíLlO Não vai atrás dela? JÚLIO - Minha paciênCia com crianças se esgota logo. DuíLlO - Alguma coisa aqui não está bem contada. (Mostra o dinheiro) Veja o que encontrei. Cinco mil-réis. Ela disse que tinha tirado uma nota de cinco mil-réis da tia. (Tom) Está me escondendo alguma coisa? JÚLIO - Esse dinheiro é meu. Coleciono notas antigas. (Vai abrindo o pacote dos francos) Veja. Francos do fim do século ado. Coleciono. Duilio sai da casa de Júlio muito desconfiado. Naná se sente tão abatida que Júlio a convence a fazer uma viagem. Ele pagaria, e de bom grado, pois pretendia estar só na hora de entrar na máquina do tempo. Mas ao sair, com sua mala, Naná ainda tem tempo de ver o patrão fantasiado. Na rua, lembra que esqueceu o casaco e retorna. SEQ.31 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Júlio tem na mão um aparelho de controle remoto. Faz os ajustes para a viagem. 15 de setembro de 1889. Mas ainda hesita. SEQ. 32 - QUARTO-ESCRITÓRIO DE JÚLIO - INT. DIA Naná entra. Vê o casaco que esqueceu. Estranha o silêncio da casa. Decide ir ao quintal. SEQ. 33 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Júlio vai entrar na cabine. JÚLIO - Adeus, século XX. Quando voltar terei o mundo a meus pés. Entra. O botão é disparado internamente. Zunidos e jatos de luz. Naná aparece no quintal, vê a cabine. De repente a máquina some. Susto de Naná. Cai sentada num dos degraus da escada do quintal. Close de Naná apalermada. Final do 3~ capítulo.
4.° CAPíTULO Naná, apalermada, sai da casa e pega um táxi. Vai contar o que viu a Vera. Enquanto isso, na cabine, as coisas não correm muito bem. A máquina pousa numa campina. Júlio sai para respirar quando é atacado por um salteador a cavalo. Por sorte o cavalo tropeça e o salteador esparrama-se no chão. Júlio pega-lhe a garrucha. O salteador apavora-se. SALTEADOR - Por piedad, não me mate, hombre! Tengo três hijos, mujer, madrezita, diez sonrinhos ... Por piedad! JÚLIO - Troco sua vida por uma informação. Que lugar é este? SALTEADOR - Málaga, senior ... JÚLIO - Dia, mês e ano. SALTEADOR - Uno de mayo de 1907. JÚLIO - Preciso ajustar melhor o tensor. Júlio retorna à cabine, que depois de disparar flashes luminosos, desaparece.
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SALTEADOR - Oh ... era um santo! E quase 10 mato! I I I
Júlio chega a Paris e vendo um casal de namorados pergunta-Ihes sobre o dia, mês e ano em que estavam. A moça, vendo nele um turista, responde-lhe e atira-lhe uma flor de boas-vindas. Mais além encontra um pintor à margem do Sena. JÚLIO - Você aí, quantas orelhas tem? PINTOR - Duas, ora. JÚLIO - Não me serve_ Depois de andar mais um pouco, encontra outro pintor, mergulhado numa tela. Aproxima-se dele e ri. VAN GOGH - (Irritado) Do que está rindo? JÚLIO - Parece que se atrapalha com os pincéis, não, ruivo? VAN GOGH - Não comecei ontem. JÚLIO - Aposto que nunca vendeu um só quadro. VAN GOGH - Isso é verdade. JÚLIO - Tem mais jeito de pregador. VAN GOGH - Já fui pregador. Agora me deixe terminar isso JÚLIO Termine que eu compro. VAN GOGH - (Surpreso) Compra? JÚLIO - Compro esta tela e todas que já pintou, ruivo. Eu disse todas_ VAN GOGH - (Duvidando) Por que, se não aprecia meu estilo? JÚLIO - Sou um milionário latino-americano. O rei do café. Vim para a Europa com o único intento de praticar uma boa ação. Se eu comprasse telas valiosas não estaria praticando nenhuma ... Termine, ruivo. Vera acompanha Naná à casa de Júlio para confirmar com seus próprios olhos o desaparecimento da máquina. Depois, como a governanta demonstra medo de dormir ali, a pintora decide instálá-Ia em seu ateliê. Duilio chega, e vendo as duas um tanto perplexas com tudo, pede maiores informações. DuíLlO - Então ele sumiu com a caixa de mágicas? VERA - Aquilo não é uma caixa de mágicas. É a Máquina do Tempo. Júlio viajou para o ado. Estou certa disso. DuíLlO - Eh, você também pirou? VERA - Você viu a menina, não? Era Naná. NANÁ - Era eu, seu Duilio. Júlio acompanha Van Gogh até um quarto onde ele morava. Modestissimo, mas que continha toda a obra do pintor. VAN GOGH - Gosta dos meus girassóis? JÚLIO Sinceridade? Uma droga. VAN GOGH - Paul Gauguin também não gostava. Um dia que lhe mostrei uma tela ... JÚLIO - Ele deu um pontapé. VAN GOGH - Como sabe? JÚLIO - Qualquer pessoa de bom-gosto faria isso. Onde estão os outros quadros que pintou?
TRECHOS CONTÍNUOS DE UM ROTEIRO PARA TELEVISÃO 101
VA N G O G HNa Ga leri a Go upi l, co m me u irm ão Th éo, e co m o dir et o r d u m s a n a t ó ri o p a r a d o e n t e s m e n t
ais. JÚLIO - Dê o endereço, vou buscá-Ios. VAN GOGH - (Intrigado) Quer mesmo comprar todos os meus quadros? Júlio derrama sobre uma mesa todo o dinheiro que trouxera na sacola. Van Gogh impressiona-se. JÚLIO - Agora não precisa decepar a outra orelha, ruivo. As gatas de Paris não vão deixá-Io em paz. Mas me aguarde. Tenho uma boa idéia para aplicação desse dinheiro. Volto já. Júlio foi procurar o irmão de Van Gogh, e seu médico, Gachet, e comprou as telas que estavam em seu poder. O médico, o único que considerava o pintor holandês um gênio, resistiu, mas entregou seu tesouro. JÚLIO - Convença-o a deixar de pintar. GACHET - Mas a pintura é sua vida. JÚLIO - Não é. Assim que lhe dei o dinheiro, perdeu aquele ar de demente, transformando-se numa pessoa normal. Provavelmente salvei-lhe a vida. Adeus. Ao voltar ao quarto do pintor, onde sobre a mesa ele ainda observava a montanha de francos, Júlio deu-lhe o conselho prometido. JÚLIO - Já ouviu falar numa coisa chamada telefone? VAN GOGH - Já, um aparelho que fala à distância. JÚLIO - Estão vendendo ações dessa coisa em diversos países do mundo. Compre todas que puder. VAN GOGH - O senhor fala como se fosse meu anjo da guarda. JÚLIO - E nada de pintura. Perda de tempo. Com as ações ficará muito mais rico e da próxima vez que vir Gauguin, dê um pontapé num quadro dele. SEQ. 25 - ATELIÊ DE VERA - INT. DIA Vera ao telefone. Impaciente. Ninguém atende. Naná, perto. NANÁ Seu Júlio já voltou? VERA - Ainda não. Acho melhor esperá-Io em sua casa. NANÁ Com a senhora tenho coragem de ir. VERA - Então vamos. As duas saem. A câmera foca o auto-retrato de Van Gogh em close. Ele vai ficando esmaecido, difuso, até sumir totalmente. A cabine de Júlio estaciona num lugar ermo. Ele espia para fora, cautelosamente. Subitamente começam a aparecer soldados nazistas. Júlio entra às pressas na cabine e aciona o motor. Atingida, a Máquina do Tempo começa a soltar fumaça. Júlio sente-se sacudido, a cabine enfumaçada. Abre a porta, para respirar. A cabine começa a girar. Vera e Naná, já dentro da casa de Júlio, esperam por ele quando ouvem um violento estrondo. Correm para o quintal. SEQ. 34 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA
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Vera e Naná chegam ao quintal. Júlio faz um esforço para se libertar dos destroços da máquina. Na mão traz a flor que a moça sa lhe atirou. JÚLIO - Tudo bem aqui? Final do 4° capitulo. 5? CAPíTULO SEQ.01 - QUINTAL DA CASA DE JÚLIO - INT. DIA Júlio sai da máquina, sujo, com a roupa sa em tiras. Vera e Naná correm para ele. VERA - Onde esteve, Júlio? JÚLIO - Fui buscar esta flor para você. VERA Mas de que altura isto caiu? JÚLIO - Vera, querida! Quem sou eu para construir um avião? Isto não voa, viaja. VERA - Diga a verdade: viajou para o ado? Júlio atira-se sobre os escombros da máquina. VERA - O que está procurando? Sob os escombros ele responde: JÚLIO - Parece que perdi um botão do paletó. Mas o que Júlio estava procurando era o bagageiro. Encontra-o. Algu mas telas estavam chamuscadas, mas a grande maioria se salvara. Fica feliz. Agora o grande negócio ia ter início. A primeira pessoa que procura é justamente Rogério, o novo namorado de Vera. Precisava de seu salão para expor os quadros. JÚLIO - A exposição vai render uns 100 milhões de dólares. Tratase do maior de todos os impressionistas. ROGÉRIO - O impressionismo está fora de moda. JÚLIO Este nunca sai da moda. ROGÉRIO - (Arrisca) Paul Gauguin? JÚLIO - Não. ROGÉRIO - Degas?
JÚLIO - Errou. ROGÉRIO - Manet? Cézanne? Monet? JÚLIO - Está ficando quente, mas não acertou. ROGÉRIO - Um mais recente: Modigliani? JÚLIO Esfriou. ROGÉRIO - Picasso da primeira fase? JÚLIO - Suba mais. ROGÉRIO - Desisto. JÚLIO - Que tal uma ajudazinha. (Tom) Um que era meio biruta. ROGÉRIO - Todos eram. JÚLIO - Holandês. ROGÉRIO - (Tenta lembrar) Holandês impressionista? JÚLIO - Viveu muitos anos na França.
ROGÉRIO - Não lembro. JÚLIO - O que decepou uma orelha. ROGÉRIO - Vendo telas, não peças anatômicas. (Tom) Mas uma coisa lhe digo: nada de falsificaçôes. Dá cadeia. JÚLIO - Semana que vem trago os quadros. ROGÉRIO - Mas vamos lá: quem é o génio? JÚLIO (Enfático) Vincent Van Gogh! Rogério não demonstra nenhuma reação, como se jamais tivesse ouvido esse nome, enquanto Júlio se afasta e dirige-se, ás pressas, a um estabelecimento especializado em molduras. O profissional vê as telas e pergunta: ENQUADRADOR - Quem é o cara? JÚLIO Um imitador de Van Gogh. ENQUADRADOR - Imitador de quem? Enquanto as telas são encaixilhadas, Júlio cuida também de anunciar a exposição e venda dos quadros de Van Gogh. Esperava atrair uma multidão. Duílio vai visitá-Io e diz: DuíLlO - Rogério me garantiu que o cara é bom. JÚLIO - Que é bom! Mas que falta de respeito. O cara é Van Gogh. DuíLlO Quem? JÚLIO - (Berra) Vincent Van Gogh! DuíLlO - Calma, não sou obrigado a conhecer todos os pintores. Minha especialidade é outra. JÚLIO - Não leu nenhuma biografia dele? DuíLlO - Não. JÚLIO - Não viu o filme da vida dele? DuíLlO - Não vi. JÚLIO - Você está me gozando. Nenhuma pessoa civilizada ignora o nome de Van Gogh. Na cena nO 12 Júlio vai visitar Vera no ateliê, entusiasmado corri a aproximação da data da vernissage. VERA - Não há tanta gente assim interessada na compra de qua-
dros, Júlio. JÚLIO - Mas não se trata de um pintor qualquer. Vou vender Van Gogh! VERA Será que ele vende tanto assim? JÚLIO - Que pergunta! Você que sempre adorou Van Gogh! VERA (Surpresa) Eu? Quem lhe disse? JÚLIO - Então por que a reprodução de seu auto-retrato na parede? Júlio dá uns os na direção da parede onde sempre esteve a reprodução de Van Gogh. Mas ela não estava mais ali. JÚLIO - Você tirou o Van Gogh? (Tom) Sempre esteve aqui ... VERA Está enganado, Júlio. Aí eu tive uma folhinha ... Júlio a a mão pela parede, examinando e pensando. Mas logo conclui, irritado: JÚLIO - Então também entrou no complô? VERA (Também irritada) Que complô?
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III!
JÚLIO - Você, Rogério e Duílio ... Querem me gozar, dizendo que não conhecem Van Gogh. Mas vou lhe fazer uma revelação. (Pausa dramática) Viajei ao ado para comprar toda a obra dele. Ouviu? Minha cabine de mágico era a Máquina do Tempo ... VERA - Não duvido, Júlio. Mas, mesmo sendo pintora, juro que jamais ouvi falar do tal gênio holandês ... JÚLIO - Uma brincadeira muito engraçada, Vera. A exposição foi bem organizada: bebidas, salgadinhos, garçãos, repórteres, mas nada de público. Um ou outro curioso entrou, espiou e saiu. Júlio não se desesperou, à espera dum famoso crítico de artes plásticas, professor Marino, que, vendo as telas, logo reconheceria: são realmente de Van Gogh. O crítico atrasou mas chegou e foi examinar os óleos. Antes que saísse, Júlio aproximou-se. JÚLIO - Boa noite. Sou o proprietário dos quadros. Garanto a autenticidade deles. MARINO - Não ponho isso em questão. Mas acho as pinturas des se tal Van Gogh grosseiras, como se pintasse com o cabo dos pincéis. Os desenhos são primários. Usa mal as cores e não estudou perspectiva. Temas banais. Alguns girassóis são razoáveis mas tudo aqui me lembra pinturas que os loucos fazem nos sanatórios como laborterapia. Podem ter interesse científico, artístico, não. JÚLIO - (Espantado) O senhor diz isso de Van Gogh??? MARINO - Nem todos os impressionistas eram geniais. Júlio faz uma pausa e lança olhares para Rogério, Vera e Duílio, cheios de rancor. JÚLIO - Mais uma coisa, professor. MARINO - Diga. JÚLIO - (Sibilino) Quanto lhe pagaram para me dizer essas bobagens ... ? Já estou entendendo o jogo. MARINO - (Nervoso, trêmulo) Jogo? Rogério, Duílio e Vera aproximam-se. JÚLIO - Talvez não seja mera brincadeira. Vocês formam uma quadrilha ... VERA - Júlio, por favor. JÚLIO - (Seguro) Sim, uma quadrilha que deseja me arrebatar os quadros de Van Gogh por uma ninharia. Mas saiba que não os venderei por menos de 100 milhões de dólares ... (Enquanto fala, agarra o professor pelo braço) MARINO - (Apavorado) Me largue ... (Libertando-se, afasta-se) Marino choca-se com um garção que traz uma bandeja com copos de uísque. No dia seguinte, diante do espelho, fazendo a barba com uma navalha, Júlio a abandona com receio de, levado pelo descontrole, amputar a orelha, como Van Gogh fizera. Vai ao dicionário. Procura o nome de Van Gogh. Não encontra. Pega uma enciclopédia e faz a mesma procura: nada.
! III! 'I !I'I
JÚLIO - Naná! Naná!
Naná aparece, precipitadamente. NANÁ - Que foi, patrão? JÚLIO - Onde estão os livros de Van Gogh que comprei? Não encontro. NANÁ - Não tirei livro algum das estantes. JÚLIO - Eram livros grossos, com gravuras. NANÁ - Não sei deles, patrão. JÚLIO - (Furioso) Você não vendeu eles no sebo? NANÁ Imagine ... JÚLIO - Pelo sim pelo não, está despedida. NANÁ Despedída? JÚLIO - Aposto que também está no complô. Quanto lhe prometeram? Um milhão de dólares? (Sai nervosamente) Júlio corre à biblioteca e procura no fichário obras sobre Van Gogh. Não encontra. Vai a um jornal visitar um amigo, crítíco de cinema. JÚLIO - Lembra dum filme de Kirk Douglas sobre a vida dum pintor? CRíTICO - (Tenta lembrar) Acho que não. JÚLIO - O filme chama-se Sede de viver. CRiTICO - Está enganado, Júlio. Kirk Douglas nunca fez filme com esse nome. JÚLIO - A vida de Van Gogh. CRíTICO - Está equivocado. Minha memória é um computador. Como é mesmo o nome do pintor? JÚLIO - Esqueça. Júlio em seguida dirige-se ao telégrafo onde a um longo telegrama para França. Na volta, uma kombi descarrega em sua casa os quadros da exposição com um bilhete lacônico de Rogério. Não aparecera nenhum interessado. Preenche os dias visitando livrarias e bibliotecas, mas sem muita esperança de ler em qualquer livro ou catálogo o nome de Van Gogh. Fazendo as pazes com Naná, dá-lhe um dos girassóis pelos quais arriscara a vida. Ela pendura em seu quarto. Vera vai visitar Júlio e conta-lhe que, juntamente com uma amiga, conhecedora do assunto, estivera fazendo pesquisas sobre o impressionismo sem que nenhuma revelasse o nome do autor daquelas telas. Júlio então fala-lhe de V~n Gogh, desde seus amores fracassados ao suicídio, como a própria Vera lhe fizera, antes. Entra Naná, com um telegrama. NANÁ - Acaba de chegar. Júlio abre o telegrama nervosamente. JÚLIO -' É da embaixada holandesa em Paris. Resposta duma solicitação que fiz. VERA - (Ansiosa) O que diz? Leia. JÚLIO - (Lê) Atendendo à sua solicitação, confirmamos que um Vincent Van Gogh realmente viveu em Paris em fins do século ado. (A Vera) Viu? (Prossegue) Seu nome consta como dum próspero comerciante, falecido em Veneza, aos 87 anos. Jovem ainda enriqueceu graças à compra de um grande lote de ações da Compa-
I
II
A Moreninha foi o romance selecionado para dar seqüência à linha de novelas, baseadas em romances brasileiros, que a TV Globo lançou no ano de 1975, destinada principalmente ao público jovem. Havia, a princípio, certo pessimismo da parte da maioria dos profissionais no tocante à adaptação de romances nacionais, de coloração rósea, mesmo destinada a um horário de sintonia juvenil. Temia-se que as estórias de época com seus cenários pesados, seu guarda-roupa suntuoso, sua sonoplastia não do gosto atual da juventude, como também seu linguajar mais empostado, afugentassem os telespectadores em geral. Por isso, as primeiras novelas dessa linha, como Helena, de Machado de Assis, e O Noviço, peça teatral de Martins Pena, não aram de tímidas experiências de vinte capítulos apenas para testar o misterioso interesse público. Todavia, o resultado logo da primeira adaptação surpreendeu, equiparando-se, em todo o país, aos grandes lançamentos da Rede. Parece que já havia um público potencial para adaptações desse gênero, constituído de estudantes de vários graus e de telespectadores que ansiavam por novelas mais amenas, mais digestivas. Por outro lado, notou-se que a nostalgia não parava na década de 1920, e que o guarda-roupa antigo podia ser uma forma positiva de atração. Os professores colaboraram aconselhando os alunos a acompanharem as novelas baseadas nos livros de nossa literatura. E os editores foram beneficiados pela imediata procura de livros adaptados para a tevê. Ficou assim desfeita a crença de que a televisão atrapalha, bloqueia o interesse pela literatura. Faça-se essa pergunta a Jorge Amado e ele
responderá. Quem ver a novela, tendo poder aquisitivo, eompra o livro para ler nhia Telefônica sa. Realmente na mocidade conviveu com pintores de sua geração, mas pelo que se sabe não se dedicou a nenhum tipo de arte. Uma longa pausa, quebrada depois por Vera. VERA - Você ou uma borracha no nome dele. JÚLIO _ (Entendendo tudo) A ambição me ferrou. Se eu tivesse trazido apenas um quadro, agora seria um homem riquíssimo ... E talvez tenha feito algo pior: matei um artista. Vera abraça-o, sorridente. VERA - Matou o artista, mas salvou Van Gogh do suicídio ... FIM
13 A Moreninha na tevê Porque o horário, vespertino, exigia, e porque essa história fugia bastante dos padrões do programa, fiz um roteiro simples, sem complicações técnicas, mais preocupado com sua fluência e clareza. O absurdo também precisa ter a sua lógica, daí a quase necessidade de contar O homem que salvou Van Gogh do suiddio como uma história rotineira e em linha reta.
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ou presentear. Principalmente se for estudante. Agora, quanto à qualidade da adaptação, isto é outro assunto.
Os críticos e as adaptações As adaptações são o alvo prcferido dos críticos. Não falo dos críticos especializados em televisão, pois cstes, em sua maioria, são apenas noticiaristas ou comentaristas ligeiros, que nunca vão ao âmago da questão. Falo dos críticos literários, que amiúde se ocupam das novelas quando as mesmas são adaptações de romances. O que se diz geralmente é que o autor não obedeceu à estória impressa e muitas vezes nem mesmo ao seu espírito. Qualquer alteração é Ioga acusada de heresia e seu corpo revestido de intocabilidade. Esse excesso de zelo, esse respeito exagerado, geralmente revela apenas o azedume que o crítico ostenta como deformação profissional ou um desconhecimento completo da matéria. Não é possível adaptar-se um romance para a televisão e talvez nem para o cinema, mantendo o adaptador tudo o que o livro contém. A maior prova disso tivemos em Gabriela, a meu ver uma adaptação primorosa. Teve o adaptador, Walter George Durst, que criar uma série de fatos novos, desdobrar a ação de outros, valorizar personagens apenas mencionadas no romance, incrementar conflitos, porém sem fugir ao clima do livro e ao seu espírito de crônica duma cidade. Aí residia o grande valor da adaptação: a novela teve o mesmo curso episódico do romanee, a mesma liberdade, o mesmo tom casual. Um acontecimento puxando outro, sem esquema, sem os ganchos tradicionais, e mantendo, o que foi mais notável, a mesma linguagem de Jorge Amado. Durst fez aquilo que Jorge Amado faria se escrevesse uma novela. Adaptar para a televisão é isso, portanto: obedecer à obra literária não em seus detalhes, mas no que ela tem de essencial, de permanente, de contagiante, de verdadeiro. Uma adaptação ao pé da letra é inviável, tarefa impossível, que só serviria para mostrar a falta de talento do adaptador. Mas os críticos, desconhecendo as exigências do veículo, preferem se fixar no respeito à obra em sua totalidade, o que nem chega a ser uma opinião, é apenas uma teimosia. O que acontece, e nisso sim a crítica poderia opinar, é que há livros que podem ser adaptados com sucesso, outros não. Por isso, a escolha do livro a ser adaptado é um problema sério e polêmico. Eu
já me vi com outros quatro ou cinco novelistas, numa sala, durante horas, diante de listas enormes de romances, à proeura de um título que resultasse numa boa adaptação. E agora já cabe uma pergunta: A Moreninha foi uma boa escolha? Não participei da escolha de A Moreninha para a tevê. Poucas adaptações fiz nestes vinte anos de ofício. Para o gênero novela somente uma, O príncipe e o mendigo, para a tevê Record, em 1971, uma emissora que não contava com nenhum recurso para gravações externas, como o romance de Mark Twain exigia. O príncipe e o mendigo sem áreas abertas, sem cavalos, sem coches, foi de uma pobreza lamentável. Salvou-se apenas a direção competente de Antônio Gichoneto e algumas interpretações isoladas. Mas os resultados do lbope foram os melhores possíveis para um canal que vinha de terrível derrocada. A Record, no entanto, resolveu substituí-Ia por uma novela de atualidades, interrompendo um filão que era mais que uma promessa. No caso de A Moreninha a comunicação foi breve e telefôniea. Eu teria que ler imediatamente A Moreninha e planejar sua adaptação. Quem não leu esse romance de Macedo antes dos quinze anos? E já na minha época a sedução que ele exercia não era muito grande. A releitura de A Moreninha, depois de tantos anos, e já com os olhos de adaptador de televisão, não foi estimulante. Mesmo nas adaptações anteriores, para teatro e cinema, a solução foi o musical, devido naturalmente à pouca densidade do entrecho, à falta de qüiproquós e à extrema candura da estória. À primeira vista, A Moreninha não poderia ser nada mais que uma opereta ou uma comédia romântica toda alicerçada em vinhetas musicais. Nenhum grande drama, nenhuma paixão de fogo, nenhuma cena realmente palpitante a que o adaptador pudesse se apegar. Embora planejada para ser uma novela curta, duns setenta ou oitenta capítulos, o material parecia exíguo demais. Não se pode encher cerca de trinta e cinco horas de gravação com cenas de amor, evocações da infância, um almoço, um sarau e um final previsto desde o primeiro momento. Aliás, já em sua época, Joaquim Manuel de Macedo sofrera as mais duras críticas devido ao seu romantismo epidérmico, apesar do instantâneo interesse que despertava nas mocinhas casadouras. E hoje? Como arrastar para o vídeo uma juventude inquieta e problemática, sedenta de imagens, usando como ímã apenas uma pedra alpinisticamente galgada por uma donzela ao cair da tarde? A tarefa era difícil, quase isso a que chamam de desafio para estimular pessoas sensatas. Fiz novas leituras do livro, sem encontrar nenhum caminho para uma boa adaptação. Foi então que me caiu às mãos outro livro de Joaquim Manuel de Macedo, que pouca gente conhece, e que supera a atração de todos os seus romances: Memórias da Rua do Duvidar. Aí era o autor descrevendo o que poderia ser um dos cenários da novela. Livro escrito na década de 1870, fala dum Rio de Janeiro muito mais fascinante do que aquele que se vê em A Moreninha, escrito em 1844. Em vinte anos o Rio mudara muito. Já se tornava uma cidade com pretensões a metrópole. As ruas quase todas iluminadas a gás, os barcos a vapor ligando o Rio a Niterói, alguns jornais circulando, as idéias republicanas e abolicionistas mais amadurecidas, um Jóquei Clube, maior número de estrangeiros nas ruas e, principalmente, sua grande artéria, a Rua do Ouvidor, com suas lojas e casas comerciais, suas confeitarias vendendo sorvetes, suas modistas famosas e, logo na esquina da Rua Uruguaiana, o Alcazar, o primeiro teatro burlesco inaugurado no país, com sua extravasante Aimée, vedete sa, espécie de antecessora de Jane Avril e de La Goulue, que Toulouse-Lautrec retrataria alguns anos depois no Moulin Rouge. Bem, com esse Rio já se podia fazer alguma coisa. A ordem era continuar pesquisando. Ler as Memórias do Rio de Janeiro, de Vivaldo Coaracy, foi maravilhoso. Quase tudo sobre o Rio antigo está lá. E os dois volumes de Aparência do Rio de Janeiro, de Gastão Cruls, completavam o panorama desejado. O gosto pela pesquisa torna-se um hábito. Às vezes, vale a pena ler cem páginas para se ob ter
uma única informação. Por seu lado, a TV Globo também pesquisava para orientar a cenografia, o guarda-roupa, a sonoplastia, a decoração, enfim, um mundo de detalhe que sempre dá realidade aos trabalhos de época. Embora eu estivesse de posse de um livro de anúncios do Rio antigo, recebi fotografias dum mundo de reclames dos arquivos de jornais. Era preciso saber o preço das coisas, o que mais se vendia, o que mais se comprava, marcas de bebidas, refrescos da moda, nomes de estabelecimentos, a identidade das pessoas que costumavam transitar na Ouvidor e inclusive as músicas que Mademoiselle Aimée cantava no Alcazar. Ficou então assentado que a estória se desenrolaria em 181768, e não apenas por causa da fisionomia modernizada da cidade, mas porque nesses anos alguns acontecimentos tumultuavam a vida da nação, incrementando, naturalmente, o interesse pelo jornalismo. Um desses acontecimentos era a Guerra do Paraguai, longa e tormentosa, tendo como mais pungente episódio a retirada de Laguna, mais tarde relatado com detalhes e dramaticidade por Taunay.
Um país em guerra e, ainda mais, contra uma nação supermilitarizada, como era então o Paraguai, é um bom pano de fundo para uma estória. Essa guerra poderia ser de importância no romance. Principalmente a trágica retirada, em que centenas de brasileiros perderam a vida. E enquanto a guerra se travava nas fronteiras e no exterior, dentro dos nossos limites avolumavam-se as mensagens abolicionistas e republicanas, estimuladas em grande parte pela Loja Maçônica do Grande Oriente, situada à Rua do Riachuelo. Tensão externa e interna. Das fronteiras, as notícias, do centro, os boatos. Nada mais monótono e irritante do que um romance de amor num clima de paz, com tudo correndo em ordem. Um pouco de tumulto ajudaria para intensificar os lances. No plano poético-literário, a transferência da ação da estória para vinte e quatro anos mais tarde também oferecia vantagens. Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu já eram uma saudade, enquanto os poemas panfletários de Castro Alves já começavam a circular. Assim se poderia criar uma linha divisória mais nítida entre o ontem e o hoje. Os primeiros e os últimos românticos. Uma mostra inclusive do choque de gerações, evidenciando que esse é um problema de todas as épocas. Abria-se ao mesmo tempo um espaço mais largo para citações de poetas e escritores, capitalizando-se o interesse do telespectador não apenas para Macedo como também para outros autores. Entre estes, Manoel Antônio de Almeida, muito citado pelos personagens, José de Alencar e Álvares de Azevedo, que teriam em toda a novela uma grande importância. O que se ava nos outros países é assunto do cotidiano dos personagens, principalmente no que se refere às invenções. É feita a primeira máquina de escrever experimental, inventam o ventilador e o elevador. Fala-se num autocarro movido a vapor. Aprimora-se a fotografia. A palavra eletricidade entra em circulação. O nome de Pasteur chega ao Brasil. Romancistas como Balzac, Dumas e Vitor Hugo já são lidos aqui por uma elite. Edouard Manet, que vivera na mocidade no Rio, pinta a sua famosa Olimpia. É um mundo que revela os primeiros indícios de mudança, no limiar de grandes invenções, revoluções sociais e artísticas, e quase na agonia do romantismo da primeira metade do século. Resolvi fazer então, sem a licença dos puristas, uma Moreninha menos estática,
imobilizada em sua pedra, menos desligada, talvez mais sensual, e um pouco preocupada com o que acontecia em seu redor. Romântica, sim, mas não "groselhosa", e, como todas as moças da sua idade, fascinada pelas notícias que vinham do exterior através da sensacional novidade do telégrafo e dos rápidos navios movidos a vapor. Podia morar em Paquetá, com sua avó Da. Ana, mas ter o espírito voltado para a Rua do Ouvidor com seus estabelecimentos feericamente iluminados a gás.
Os personagens
O primeiro estímulo que recebi ao começar a taretà insana do primeiro capítulo foi do diretor da novela, Herval Rossano. Bem-sucedido com novclas anteriores do gênero, já aludidas, deu-me ele a liberdade de criar inclusive novos personagens, caso fosse necessário ao interesse da estória. Não é possível escrever mil e quatrocentas páginas movimentando apenas um punhado de personagens. Em A Moreninha, os personagens são poucos. Poucos e não muito definidos. Os quatro rapazes - Augusto, Filipe, Fabrício e Leopoldo - muitas vezes parecem irmãos gêmeos, física e espiritualmente. Augusto e Fabrício são os que
mais se confundem. O autor tratou apenas de dar êntàse ao amor de Augusto e Carolina, a Moreninha. As moças têm também a mesma origem ovular: Carolina, Clementina, Joana, Quinquina (que chamei de Quininha) e Gabriela (que mudei para Marina). Moças que querem casar, nada mais. Macedo apenas deu mais impulso à sua criatividade ao compor as figuras de Violante, a solteirona, Keblerc, o alemão cervejeiro, e Tobias, o negrinho escravo com mania de falar difícil. No resto se omitiu, mas não precisaria de mais nada para alcançar o sucesso que obteve e que ainda obtém. Mas qual foi o motivo de tantas edições deste livro? A explicação é simples e reside no próprio título do romance. Numa época em que as heroínas da ficção eram loiríssimas, Macedo resolveu lançar uma moreninha, brasileiríssima, embora de alma loira. Mais de cem anos depois, Jorge Amado faria coisa semelhante lançando uma heroína mulata. Aliás, aproveitando o êxito de seu livro de estréia e sem sair de sua linha pigmentária, Macedo publicava em seguida O moço loiro, causando um susto nos heróis morenos da moça tradicional. Estava pronta a grande receita, que abriu caminho para O mula-
to, Bugrinha e outros clichês de imediata fixação visual. Outro elemento de sucesso foi sem dúvida a paradisíaca ilha de Paquetá, pois o amor numa ilha dá maior sensação de intimismo e sinceridade. E, por fim, a novidade da publicação de um livro de literatura brasileira, da qual Macedo foi cronologicamente um dos precursores. A preocupação imediatamente anterior à criação ou recriação dos personagens foi de não situar a estória apenas ou em sua maior parte na ilha. O Rio ou a Corte, como ainda diziam os mais velhos, era cenário mais empolgante. Tratei de dividir a ação com seus cená rios: parte no Rio de Janeiro, parte em Paquetá. Pude, então, pensar nos personagens.
Carolina
Carolina é a suavc Moreninha de Macedo, personagem inspirado naquele que seria sua esposa, prima em segundo grau do poeta Álvares de Azevedo. A apresentação ou criação de galãs com suas damas é sempre um problema na televisão c no cinema. No geral são personagens que marcham em linha reta, como um tapir, para o casamento, a solução de todos os males e a satisfação de todos os anseios. Em se tratando da Moreninha, Da. Carolina, a coisa era ainda mais grave, porque era ela uma romântica quase típica. Afora suas travessuras juvenis, era uma jovem feita para o casamento. Apenas a cor de sua epiderme e dos seus cabelos a diferençava um pouco das outras. Não era, evidentemente, uma Capitu nem uma Sofia, com suas atrações misteriosas e um complexo mundo exterior. Por outro lado, eu não podia modelar na novela uma heroína que fosse o avesso de seu modelo literário. A primeira providência,já aludida, foi integrá-Ia em sua época - os anos 1860. A segunda foi definir seu relacionamento com os demais personagens. Se na vida real a musa de Macedo era prima de Álvares de Azevedo, fiz que o personagem o fosse. Mais ainda, liguei-a estreitamente ao grande poeta da Lira dos vinte anos através de seu irmão, Filipe, também poeta, à maneira dos românticos da primeira fase. Para Filipe logo se prenuncia um fim triste, como o do primo ilustre, e Carolina, talvez por temer perdê-Io cedo, dedica-lhe profunda e solidária amizade. Será sua insubstituível companheira até o fim. Outra ligação bastante afetiva da Moreninha é com Marina (Gabriela), que inutilmente ama Filipe, à espera de vê-Io livre de sua obsessiva paixão por Clementina. A Moreninha é na novela um personagem ativo, que
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tem opinião e toma partido. Sabe amar e odiar também. Sentimentalmente, custa a decidir-se entre Fabrício e Augusto, ambos estudantes de medicina e amigos, decidindo-se afinal por aquele que conhecera e amara na infância, levada a identificá-Io por uma incrível coincidência romântica. Seu relacionamen to com a avó, a sábia Da. Ana, é mais um encontro do que um deseneontro de gerações, c muitas vezes o diálogo das duas é o jornal que narra ao telespectador o que acontecia naqueles anos no Rio, no pais e no
resto do mundo. Também é intensa a amizade que prende a Moreninha ao negro Simão, escravo fugido, que, protegido pelos estudantes, luta até o final para preservar sua perigosa liberdade. Difícil para I-Ierval Rossano, o diretor da novela, foi a escolha da atriz que viveria a Moreninha. Muitos nomes foram lembrados, mas a escolha final recaiu sobre Nívea Maria, que vinha de alguns êxitos e que já estava a merecer um papel principal.
Augusto
Augusto era um estudante de medicina, como está no livro. Na época em que Macedo escreveu A Moreninha, estudava-se medicina no Rio e direito em São Paulo. No Rio já existia Faculdade de Direito, mas a famosa era a das Arcadas. Álvares de Azevedo estudara em São Paulo e Castro Alves viajara muito para matricular-se na faculdade paulista. Os personagens de Macedo, sempre bastante radicados na vida da Corte, não se abalariam de lá para estudar. Segundo a descrição do romance, Augusto, por estar ligado a um amor de infância, uma menina que conheceu e perdeu no mesmo dia, e por ter tido na juventude três romances fracassados, tornara-se um cético no amor. Gostava de namorar, mas fugia aos compromissos. Seu namoro com a Moreninha começou, pois, como uma brincadeira, algo para preencher as horas dum fim de semana em Paquetá. Na novela esse espírito foi mantido: Augusto aproximava-se das moças e escapava do amor com a mesma velocidade. Essa descrença, esse medo de ficar envolvido, é o que afugenta Carolina e lança em cena seu rival e amigo Fabrício. Na novela, porém, Augusto tem outras preocupações. Uma delas é seu pai, também médico, viúvo, cuja vida isolada, com um escravo liberto, seu afastamento da medicina e de amigos, seu recolhimento incompreensível, torna-o verdadeiro enigma para o filho. E
esse enigma cresce ainda mais quando André, é como batizei o pai de Augusto, elege Leopoldo, colega deste, seu amigo e confidente. No tocant eà aboliç ão, Augus to é levado a ela pelo sentim ento. É ele que esconde o negro Simão na república de estudantes. Mais tarde é ele que o leva para a casa de Da. Ana em Paquetá. Pisa nesse terreno como em areias movediças. Obrigado a ocultar Simão em toda a parte, vai-se emaranhand o nas lutas
abolicionistas e complicando a sua vida. O estudo c o amor chegam a ficar em segundo plano. O principal para ele era evitar que o desprotegido fugitivo caísse nas mãos vingativas de João Bala. É esse alheamento à causa, essa luta sem compromissos ideológicos que fazem de Augusto um herói por acaso, um soldado sem bandeira, um aventureiro abolicionista, embora de todo entregue à sua missão. No entantO', para ele tudo se resumia em salvar um negro, Simão, c não em salvar os negros. Outro aspecto da personalidade de Augusto é sua fiel amizade a Filipe, irmão de Carolina. Filipe amava Clementina, conhecida da família, mas, como nos versos de Drummond, cla amava Augusto, que amava Carolina. Aí então o seu drama, pois não sendo de todo indiferente a Clementina tinha que zelar para não magoar e humilhar o amigo. E essa situação se estende até que Augusto no final se define pela irmã de Filipe, reconhecendo nela, depois de alguns anos, a mesma menina que o encantara durante uma manhã inesquecível.
Filipe
Filipe é o irmão de Carolina, dois anos mais velho do que ela. Frágil, enfermiço, estudante de medicina, mas sonhando mudar-se para São Paulo e ingressar na Faculdade de Direito para repetir um capítulo da vida de seu primo Álvares de Azevedo, falecido sete anos antes do início da ação da novela. Filipe, mais que primo, é um irmão gêmeo de Álvares de Azevedo e poeta igual a ele, embora inédito, e sem a certeza de seu talento. O amor à irmã e à avó substitui o afeto materno e paterno de órfão. Mora na república de Da. Lalá, com seus colegas, onde é o habitante mais retraído. Seu desastre foi conhecer e apaixonar-se por Clementina, cuja tia, Violante, pertencia a seu clã familiar. É um amor desastrado, sem compensação de espécie alguma, não correspondido desde o primeiro momento, amargo, persistente e suicida. Clementina em momento algum se dignou ao menos a ler um dos versos que inspirava no poeta. Prática, moderna, auto-suficiente, repudiava os homens do ti-
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II
po de Filipe, ostentando vivo desprezo àqueles que se atirassem aos seus pés. Todo o seu amor, mesclado de astúeia e cálculo, eoncentrase em Augusto, o que Filipe não tarda a perceber. Ele, todavia, é incapaz de livrar-se da obsessão inicial, disposto a amá-Ia até as últimas conseqÜências, mesmo sem nenhuma esperança. É um amor todo alicerçado naquilo que Filipc lcu, nos vcrsos quc decorou, na amargura romântica que trazia da inü1ncia e que, por hcrança familiar, vinha de Álvares de Azevedo. Ele é o produto dum tipo de formação, duma época, dc todo um bclo período de vida e poesia que entrava em declínio. Clementina, sem nenhuma educação artística, não poderia entendê-l o e foge dele como quem foge do caos. Vítima desse amor, Filipe, porém, não se mantém al~lstado das lutas abolicionistas. João Bala, o feitor, era para ele o Inimigo. Não meramente o opressor dos negros, mas seu inimigo pessoal ou o próprio destino invencível que no íntimo ele odiava. Envolvido pelos amigos da tàculdade e da repÚblica, ajuda a esconder o negro fugitivo Simão, levando-o depois, vestido de mulher, para a casa de sua avó em Paquetá. E é aí na ilha que, na convi vência com Clementina, acentua-se o seu fracasso sentimental, e o seu grande drama interior toma corpo. No final, desprezado pela mulher que ama, surrado pelo feitor João Bala, já muito doente, embarca para São Paulo numa carruagem que levaria o seu cadáver.
Leopoldo
Um dos quatro amigos da república, o mais pobre entre eles. Quando a novela inicia, ele é considerado morto pelos companheiros, mas logo aparece, doente e em farrapos, como um dos retirantes da Laguna. Leopoldo partira para a Guerra do Paraguai como voluntário. Não tendo interesse pela medicina, quis viver a aventura maior daqueles dias: seguir para os eampos de luta. Depauperado pela cólera-morbo, é internado num hospital, ficando sob os cuidados do Dr. André, pai de Augusto. Entre os dois, o médico e o doente, surge logo uma real amizade. Diz-lhe Leopoldo que, durante a guerra e sua enfermidade, tivera tempo de sobra para pensar, terminando por encontrar um ideal para a vida. Pretendia abandonar a medicina e ingressar no jornalismo, para assim participar da campanha em prol da abolição e da república. É um rapaz sério, atormentado pelos problemas e mazelas de sua época.
A M O R E NI N H A N A TE V Ê
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Por sugestão de Filipe, Leopoldo é levado para a casa de sua avó, em Paquetá, a fim de recuperar-se. Necessitava, inclusive, de tempo para medítar no rumo que daria a seu destino, na troca do certo pelo incerto. Na ilha, Leopoldo fíca conhecendo duas primas de Filipe, Joana e Quininha, filhas de mãe viÚva, jovem ainda e abastada. A princípio, Joana se interessa vivamente por ele. Como moça dominadora e possessiva que é, tenta modelar Leopoldo à sua maneira, como sempre tentava fazer com seus iradores. Mas, em relação a Leopoldo, encontra um obstáculo: ele não se sentia inclinado a tornar-se um marido exemplar, voltado para o lar e para a família. A segurança burguesa não era a sua meta. Todavia, sua irmã mais moça, Quininha, sente-se atraída por aquele rapaz tão diferente dos muitos que já conhecera nos saraus de menina rica. Não a seduzem as idéias polítieas de Leopoldo, mas seu lado aventuresco. Joana, no entanto, não quer itir a derrota e, recuando aqui c ali, entra em franca competição com a irmã, num obsessivo jogo dc personalidade. Recupcrado, Lcopoldo volta para o Rio, abandona a medieina e, como planejara, ingressa no jornalismo. Aproximando-se cada vez mais de seu médico c amigo Dr. André, entra para a Loja Maçônica do Grande Oriente, participando das lutas subterrâneas pela abolição e repÚblica. Seu amor por Quininha logo se evidencia, mas em primeiro plano coloea sempre seus ideais políticos. Para salvar o negro Simão, que simboliza na novela todos os horrores da escravidão, arrisca a vida consecutivas vezcs, demonstrando sempre incomparável coragem. Nos últimos capítulos, excessivamentc enredado nas malhas das conspirações, acaba perseguido e martirizado, sem que sua amada e seu mentor, Dr. André, figura exponencial da maçonaria, possam fazer nada por ele.
Fabrício Fabrício é um dos personagens mais fascinantes da novvela. É ele o comediante, o eonquistador, o grande alienado. Estudante abastado, procura extrair da vida tudo o que ela oferece de bom e supérfluo. Seus romances são curtos, acidentados e bemsucedidos. Mas é justamente o aludido alienamento, a futilidade de suas ações, que o leva a complicar-se com a abolição, ajudando os colegas a
salv ar o neg ro Sim ão de seus pers egui dor es. Faz por brin cad eira o que os outr os faze m a séri o. E não com men os cor
age m e hab ilid ade. Por ém, qua ndo a abo liçã o é
o tema em discussão, ele se mostra, paradoxalmente, um antiabolicionista. Oriundo de família rica, não crê que o país possa prescindir dos negros para seu progresso. Defende a escravidão com palavras c duvida da viabilidade da república. É um vivedor, e é com o interesse de namorar que se reúne com os amigos em Paquetá, onde a avó de Filipe comemora, no dia de Santana, o seu aniversário. Na ilha, as moças, já cientes de quem era Fabrício, principalmente Joana, que o conhecia, resolvem não ceder aos seus encantos, torturando-o com "nãos" sucessivos. Fabrício, posto à margem, cai em si, e, mudando de tática, decide "paquerar" uma só ao invés de todas. A escolhida é Carolina, a Moreninha, o que o coloca como rival de seu amigo Augusto. Mas acontece o inesperado: Fabrício, cansado de ser o clichê gasto de conquistador, apaixona-se realmente por Carolina, o que, para seu tormento, ninguém acredita. No Rio, Fabrício vive simultaneamente uma grande aventura amorosa com a vedete-mo r do Alcazar, a bela Aimée, a mulher mais cortejada em toda a cidade naqueles anos. É porém um amor secreto, pois a sa é a hipnótica paixão de um amigo seu, já balzaquiano, chamado por todos de Belo Senhor, que vive com ela um romance de aparências, não correspondido, mas que satisfaz sua vaidade de transeunte da Rua do Ouvi dor. Fabrício chega a namorar a Moreninha, a pedi-Ia em casamento e quase a casar-se com ela, desafirmando todas as pragas já proferidas contra as uniões indissolúveis. Mas Carolina vivia à procura do seu namorado da infância, que lhe deixara um breve, espécie de relíquia religiosa, como lembrança e Fabrício não era esse homem. Embora perdendo no amor, esse Jack Lemmon do século ado não perde no jogo da vida. Acaba bem a sua estória com um casamento de conveniência que o aproxima ainda mais do sonho de ser proprietário de um hospital e não simples médico.
Dr. André
Dr. André, médico, é pai de Augusto. Homem atualizado, ou alguns anos na Europa, onde se familiarizou com as teorias e experiências de Pasteur e tomou contato com as invenções de sua década. Mas, em seu regresso, afasta-se um pouco da profissão, sem explicações visíveis para o fato. Seu filho imagina que o pai, viúvo, possui alguma paixão que insiste em man-
ter em seg red o. Se u Ún ico ínti mo par ece ser seu esc rav o lib ert o, o velho Be nja mi m. Ma is tar de, Le op old o pas sa a ser um dos seu s rar os e dil cto s
amigos, e inexplicavelmente também o boêmio Belo Senhor. A incógnita, porém, é logo revelada ao telespectador. André voltara da Europa com novas idéias, que eram a abolição e a república. E, para dar curso aos seus ideais, participa efetivamente, mas com a discrição exigi da na época, das reuniões da Loja Maçônica do Grande Oriente, na Rua do Riachuelo. Apesar de dividida, agora a maçonaria voltava a atuar com desassombro. Afinal, fora ela a maior artífice da independência do país. O élan que José Bonifácio lhe dera, antes c depois de D. Pedro I, retomava com igual ardor. Dr. André em breve escalou vários graus, tornando-se voz ativa na loja. Mas não sc limitava a ser apenas um divulgador de idéias. Vai mais além. Transforma-se num salvador de negros fujões. Ligado a tàzendeiros e proprietários abolicionistas, conduz os negros fora-da-lei a lugares seguros onde possam viver em liberdade. Um verdadeiro Pimpinela Escarlate, camuflado e ativo, e totalmente insuspeito para a maioria. Sentimentalmente, o Dr. André quase se deixa enredar em sua visita a Paquetá, onde vai prestar assistência a Leopoldo. Lá fica conhecendo Da. Luísa, mãe de Joana e Quininha, primas de Filipe, viÚva de um rico homem do comércio e extremamente apegada a seus bens. Luísa proíbe Quininha de alimentar ilusões em Leopoldo, devido às idéias perigosas, e sem o saber acaba se enamorando do mentor do estudante, crendo tratar-se de um aburguesado médico da Santa Casa. Dr. André, figura definida de quem sabe o que quer, capaz de renÚncias, afasta-se de Da. Luísa, elimina a possibilidade de um casamento feliz, mesmo quando, após o martírio de Leopoldo, chega a duvidar do sucesso de suas lutas. André representa na novela a persistência dum ideal, a extrema consciência duma posição política, e é o retrato de muitos homens que, naquele tempo, anteciparam-se em pugnar por aquilo que para a maioria ainda era indiferente.
Da. Ana
Da. Ana é a avó de Filipe e Carolina, de Joana e Quininha. Vive em Paquetá onde resolve reunir parentes e amigos no fim de semana de seu aniversário. Perto dos setenta, mantém fascinante lucidez e simpatia. Isolou-se em Paquetá por não ar mais o trânsito de coches na Corte e, o que era pior, os bon-
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des puxados a burro sobre trilhos da Botanic Garden Rail Road Company. Apesar de seu espírito liberto, via com muita desconfiança as invenções da época, a maioria ainda em projeto. Acha, por exemplo, que as novas conduções e o elevador, já anunciado na Europa, juntamente com a máquina de escrever, tornariam o homem demasiadamente preguiçoso. Quanto aos modernos lampiões a gás, temia que pudessem envenenar a população. Em suma, Da. Ana é a própria previsão do futuro, embora seu vocabulário desconheça a palavra poluição. Das novidades do seu tempo, a mais aceitável é o sorvete. Foi das primeiras senhoras a tomar sorvete nas confeitarias da Ouvidor, isso quando o gelo vinha ainda do lago Potomac. Não é ranzinza mas irônica, divertida. De resto, é generosa, alegre e capaz de penetrar a alma das pessoas. Em matéria de literatura, está em dia com os autores europeus, principalmente Balzac, e entre os nacionais menciona sempre Manuel Antônio de Almeida, devido às suas lembranças dos meirinhos. Quanto a Castro Alves, faz restrições por causa dos seus amores escandalosos. Ouvida sempre pelos parentes, fala com razoável sabedoria, e seus conselhos são mais aceitos que temidos. Da. Ana é, mais que qualquer personagem da novela, a visão crítica da época, com sua ironia e ceticismo. Não morre de amores pelo imperador, não chega a ser uma beata. E acha ilusória a impressão de que a máquina salvaria o homem. No tocante à abolição, é no contato com o DI'. André que a a defendê-Ia, participando das manobras para esconder o negro Simão. Mas reconhece tardia a sua participação, tanto que sua maior preocupação continua a ser os netos. É quem mais sofre com os insucessos de Filipe e a mais solidária com Augusto em seu amor por Carolina.
o Belo Senhor
O Belo Senhor é um boêmio histórico do Rio de Janeiro, descrito por Manuel de Macedo em seu livro Memórias da Rua da Duvidar. Mas ele viveu em época muito anterior, em plenos dias da devassa que perseguiu os Inconfidentes no Rio. Foi ele amante da Perpétua Mineira, que teria escondido Tiradentes em seu ateliê de costura. Sempre bem vestido. Porém sem dinheiro, gostava de imitar s alheias, fazendo do estelionato um esporte e uma prática para freqüentar as lojas com falsas cartas de apresentação. Para ligar duas obras de Macedo,
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e ciente de que em todas as épocas e em todas as cidades há um Belo Senhor, situei-o em 1868, morando com os estudantes na república, e apaixonado pela vedete principal do Alcazar, Aimée. Tanto este como aquele possuem o mesmo hábito de imitar s, caminho que o contemporâneo da Moreninha encontra para chegar com uma jÓia caríssima, que nunca poderia comprar, ao coração da cobiçada sa. O que ignora, e que depois saberá, é que Fabrício, sem esse expediente condenável, consegue com Aimée resultados ainda melhores, bastando lhe oferecer a sua juventude. O Belo Senhor é preso, no final, não por ter participado do episódio do negro Simão, não por ter se aliado a rebeldes abolicionistas, mas simplesmente por falsa identidade e estelionato, enquanto a bela do AIcazar regressa à França, depois de sua longa e vitoriosa temporada no Rio de Janeiro.
Da. lalá e Rafael
Da. Lalá é a proprietária da pensão Estrela, no largo do Rossio, onde, além das quatro jovens moças da novela, moram outros estudantes de ação episódica. A tônica de sua personalidade é sua paixão desenfreada e caricata pelo Belo Senhor, com quem sonha freqüentar o Alcazar. E é ela que lhe empresta dinheiro que ele torra justamente com sua famosa rival. O Belo Senhor faria bom negócio se casasse com ela, mas suas ambições são mais altas e mundanas. Por amor ao seu inquilino, Lalá também se envolve com o feitor João Bala, sempre farejando o rastro de Simão. O gesto mais tresloucado dessa ex-pacata senhora é agredir Aimée em pleno eio, quando tenta desnudá-Ia aos olhos de todos. Mas, quando seu amado é preso, ela o perdoa e faz o possível para resgatar sua dívida. Mais importante que ela, talvez, seja sua pensão, onde os estudantes vivem em algazarra e comentam os fatos do dia. É o jornal da novela, o cenário onde se informa o que acontecia em 1868. Quanto a Rafael, garoto, escravo de Lalá, é um telefone de recados, mensageiro de bilhetes perigosos, mas bem-humorado, simpático, veloz e eficiente. Deve ter havido muitos iguais a ele naqueles dias, pois a missão mais importante dos negrinhos escravos, nas grandes cidades, era a comunicação rápida. Graham Bell veio depois.
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João Bala e Jerô
João Bala é o vilão da novela. Descendente de capitães-de-mato e feitores de escravos, seu trabalho é a caça ao negro fugitivo, o que faz com indiscutível zelo. Mas, no caso do negro Simão, apenas um escravo um pouco mais rebelde que os outros, João Bala, sem esperar, se expõe a uma derrota pública, comentada divertidamente pelos jornais. O insucesso de João Bala chega a tomar as proporções da queda da própria escravidão. Ele, que era capaz de levar dezenas de negros fujões de volta ao cativeiro, de repente não consegue o mesmo êxito com um ao menos, embora ajudado pelo seu fiel Jerônimo --- .Ierô. O que acontece é que espontaneamente, sem nenhum plano, todos decidem esconder Simão, salvá-Io das garras de João Bala. E muitos, por motivos pessoais, não ligados à luta pela abolição. Na realidade, apenas duas pessoas lutam contra Bala como se lutassem contra a escravidão: Dr. André e Leopoldo. Apenas estes dois eram abolicionistas conscientes, que defenderiam Simão como qualquer outro negro. Os outros têm razões particulares e até secretas para isso. Augusto interessa-se por Simão, porque o viu perseguido e surrado na praia; Juca, o taberneiro, porque Simão se escondeu em seu estabelecimento e tinha pressa de livrar-se dele; Fabrício, por espírito de aventura; Filipe, por solidariedade aos amigos; Lalá, por amor ao Belo Senhor; Quininha, para afirmar sua identidade com Leopoldo; Da. Ana, para se entrosar com o espírito da época; Carolina, por amizade a Filipe. O certo é que todos, mediante ações isoladas ou conjuntas, lutam contra Bala, tramam, enganam, ocultam, despistam, usando todas as armas sutis da astúcia. Bala é uma repetição do Vidigal do Sargento de Milícias, embora ainda mais cruel e vigilante. Sua caça a Simão torna-se uma luta de vida e morte, incansável, obsessiva, javertiana. É, em suma, a luta de todos os que sempre se opam à liberdade e ao progresso. A ignorância armada contra a inteligência de braços atados. A lei, dos opressores, desafiada pelos oprimidos.
Juca Juca é o proprietário da Taberna do Juca, um bar com violeiros ocasionais, que serve a desagradável cerveja marca barbante. Já existia, na ocasião, a cerveja de tampinha, mas a outra ainda persistia, fechada com rolha e amarrada com barbante. Juca é um homem comum e simpático, amigo dos estudantes. Tudo vai bem
A MORENINHA NA TEVÊ 123
em seu boteco até o dia em que Simão se esconde lá, dentro dum tonel vazio de vinho. Aí começa seu triste envolvimento no drama do negro foragido. Juca é solidário com Simão, mas lhe falta fibra para participar da luta, aliás como à maioria das pessoas naqueles dias. Seria capaz de fazer tudo por Simão, se não corresse perigo. Nem ele nem sua taberna, seu único bem. Mas João Bala não tarda a descobrir isso. Ameaçando destruir a taberna, intimida Juca, que acaba cedendo. Assim, Bala consegue um aliado. Nem todos são heróis nesta estória. Há um
traidor, e esse traidor é Juca. Não, porém, um Silvério dos Reis. Juca trai por medo, trai porque seu sistema nervoso não agüenta muitos impactos. Logo em seguida, Juca, querido de todos, começa a viver o drama do remorso, mais grave que o do pavor antigo. Torna-se o responsável pela prisão do negro Simão. A comemoração é feita em seu próprio estabelecimento. Não resiste. Suicida-se.
Aimée
O Alcazar foi o primeiro teatro burlesco do Rio de Janeiro. Inaugurado em 1864, na Rua Uruguaiana, apresentou logo, como atração máxima, a cantora e bailarina Aimée, recémchegada da França. Retratos da época mostram uma trintona bolachuda, sem grande beleza, mas o fato é que ela fez furor. Machado de Assis, então jornalista, sem ainda ter escrito nenhum romance famoso, escreveu mais de uma crônica sobre Aimée, em tom de irador apaixonado e sem muito senso de ridículo. Em suas Memórias da Rua do Duvidar, Macedo deplora o sucesso do Alcazar, que estava esvaziando as casas de espetáculo destinadas ao teatro sério. Era a vitória do gênero pornô, hoje igualmente combatido no cinema. Aimée, apesar da crítica azeda de Macedo, foi incorporada à história brasileira do século XIX. Quem falar do Rio antigo tem que falar de Aleazar e de sua extravasante vedete. Aí começava o Rio metrópole, que por antecipação já apresentava cenas do que seria décadas mais tarde, na França, o rumoroso "fim de século". Que me perdoe Macedo, por ter colocado sua donzelesca Carolina ao lado de Aimée nessa adaptação de A Moreninha para a tevê. Eu é que não o perdôo por não ter escrito mais, com informações minuciosas, sobre essa figura cativante do Rio mundano, que a tevê vai ressuscitar nesse trabalho.
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Tobias e Duda
Da. Ana, a simpática aniversariante de Paquetá, tem dois escravos: Tobias e Duda. Tobias é um negrinho muito bem vestido e metido a falar bem. Cobra todos os favores que faz pelo dcsejo de mais tarde comprar sua carta dc alforria. No fim, acaba recebendo a carta dc prcscnte, das mãos de Da. Ana. Ela, porém, lhe pede um favor em troca: que permaneça na ilha, tàzendo-Ihe companhia. Tobias se comove, mas não lhe diz sim. É que já escolhera seu destino. Queria ir para o Rio. Fazer o que lá? Ser ator, pois sabia cantar, dançar e imitar pessoas. "E é capaz também de fazer chorar", acrescenta Da. Ana, vendo-o partir. Duda é a bela escrava que recebe Simão, quando este chega à ilha, vestido de mulher. O que acontece cntre os dois é o amor imediato de dois saudáveis exemplares de sexos opostos. Mais tarde, Duda é hospedada na casa do Dr. André, para onde, logo em seguida, Simão é levado para trocar de esconderijo. O romance entre os dois continua aí, agora dramatizado pela ameaça duma separação imediata e definitiva. Duda não vacila em pôr sua vida em risco para salvar Simão, vivendo os dois, nessa casa, acossados por João Bala, alguns dos capítulos mais pungentes da novela. Violante é um dos poucos personagens que mantêm na novela a linha que lhe deu Macedo: a da viúva espevitada. Assim foi conservada na adaptação teatral e cinematográfica. Encarrega-se de muitas das vinhetas 11Umorísticas da novela, sempre em sua intenção de coletar clogios dos mais jovens para se fazer amada por Keblerc.
Violante e Keblerc
Keblerc é um bebedor de cerveja. Chegou ao Rio disposto a criar uma indústria, mas acabou fascinado pelo paraíso de Paquetá e seus ócios. No entanto, não se interessaria por Violante, se os rapazes não recorressem a um truque: cada um por seu turno chega-se a Keblerc e confessa seu amor por Violante. Fabrício vai mais longe e fala em suicídio. Depois dessa farsa bem montada, Keblerc cede terreno e atira-se, apaixonado, cheirando a cerveja, aos pés da viúva. Violante, porém, ao saber das confissões, acredita que realmente os rapazes estavam apaixonados por ela, e que só não se declaravam de pena do alemão ...
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Clementina
Clcmentina, na novela sobrinha de Violante, não chega a ser a vilã da estória, mas é a que vai concentrar os rancorcs do público. O amor à primeira vista que desperta no frágil Filipe é correspondido por um desprezo à primeira vista. Talvez por um problema epidérmico, Clementina repele o jovem poeta em todas as suas investidas românticas. Nega-se, inclusive, a lhe conceder o diálogo. Quando Filipe é agredido por João Bala, Clementina não vai vê-I o no seu leito de acidentado. Filipe escrevelhe versos. Clementina não os lê. Essa indiferença por seu irmão desperta o ódio de Carolina. Avulta entre as duas uma inimizade irreconciliável, agravada pelo interesse de Clcmentina por Augusto. E como Carolina não se decide, ligada ao seu romance juvenil, CIcmentina consegue ganhar terreno e influencia Augusto. Com seu ativo desprezo, Clementina arranca Filipe do que poderia ser o seu destino. Sua prÓpria inspiração seca. Ele se torna um inútil. É um desprezo que mata.
Quininha e Joana
Filhas de Da. Luísa, netas de Da. Ana, Joana e Quininha representam o tipo de moças da classe abastada da época, que debutavam nos saraus familim"es. Joana é a de personalidade mais forte, habituada a "dobrar" seus namorados. Seu interesse por Leopoldo é normal até que ela sente a impossibilidade de ajustá-lo a seus interesses. Ao eontrário dela, sua irmã, mais modesta, mais feminina, mais dócil, aceita o homem que ama como é. Orgulha-se mesmo dos ideais de Leopoldo. Vê o "namorado secreto" eomo um herói, um tipo completamente diverso dos rapazes que já conheccra. Mas é feita duma tênue matéria, e quando Leopoldo caminha para seu martírio, quando ela vê que seus ideais têm o gosto de sangue c quc podem conduzir à morte, ela se apavora e procura regressar, acovardada, a seu destino burguês.
Luísa É a viúva sedutora, uma balzaquiana à Machado de Assis, solidamente plantada numa situação financeira e disposta a responder pelo nome e tradição da família. Procura guiar o destino das filhas e proíbe-as de se aproximarem de Leopoldo, porque vê ne-
82. le mais um estróina que um idealista. Mantém-se superior aos erros e equívocos humanos, embora no peito pulse um coração insatisfeito. Na ilha de Paquetá conhece o Dr. André e por ele se interessa com discrição. Lentamente surge entre os dois um amor que vai se intensificando com o tempo, até que ela descobre as ligações de André com Leopoldo e com a maçonaria. Tenta recuar, mas é tarde, e é apanh!1 da na armadilha duma incoerência que ameaça destruir sua própria personalidade. Marina Sobrinha de Keblerc, Marina é a moça simples que age com o coração, um tanto alheia às complicações da vida. O que faz na estória é amar Filipe sem ser amada, mas sem drama e sem súplicas. Aceita a sua derrota como um fato normal, nada indagando. Ela poderia salvar Filipe se ele o permitisse. E dar-lhe a mão para retirá-lo do abismo é o que ela faz o tempo todo. Na realidade, ela e Filipe são os únicos personagens românticos da estória, os únicos integrados na sua época. Os que amam sem nada exigir como paga ou troca. Mesmo assim, a aproximação é impossível. A única diferença entre ambos é que Filipe vai perecer 83. e Marina, mais forte que ele, vai subsistir... Benjamim É o escravo liberto do Dr. André, participante das lutas da abolição. Homem idoso, mas não alquebrado. Fraco, mas capaz de ficar forte quando a situação exige. Está a par de todas as manipulações políticas de seu patrão e dos seus problemas sentimentais. Mais que um ouvinte, é às vezes um conselheiro. Simão Simão, o negro fugitivo duma senzala, é o personagem que enfeixa toda a novela, motivo permanente de suspense e aquele que força com sua fuga a definição dos demais. Ninguém é indiferente ao drama de Simão, e, tomando partido ou reagindo de qualquer forma, eles nada mais fazem do que revelar sua identidade mais profunda. Onde Simão chega, chega junto o interesse maior da estória, com suas tramas, surpresas e amarguras. Ele é o homcm que optou pela liberdade ou morte, como tantos já fizeram nos períodos da história esmagados pela opressão. Simão não é um personagem real, é um
pcrsonagem simbólico, uma síntese de muitos iguais a ele, cujos nomes não constam dos jornais e dos livros.
o diálogo na televisão o diálogo na televisão foi uma das piores heranças deixadas pelo rádio. Falo, certamente, do diálogo das telenovelas, originárias das radionovelas, que durante uns trinta anos deliciaram e deslustraram dezenas de milhões de latino-americanos. Mas a radionovela não criou obras de arte como seu avoengo, o folhetim. Não nos deu um Balzac, um Dostoiévski, um Zola. O seu Everest foi a novela cubana O direito de nascer, cujo engenho consistiu em reunir todos os lugares-comuns já catalogados num só trabalho. Não criava, repetia tudo, numa verdadcira maratona que se prolongou por centenas de capítulos. O direito de nascer não foi a mclhor novela de rádio, mas foi a maior e a que continha todos os seus chavões. Se alguém, no futuro, quiser pesquisar o que foi a telenovela latino-americana, bastará ler pacientemente O direito de nascer e terá a mais perfeita visão panorâmica do gênero extinto. Os teleautores de novela herdaram dos radioautores a técnica, os vícios, a resistência física e principalmente o diálogo. Na maioria vinham todos do rádio, e à primeira convocação abriram seus poeirentos baús e adaptaram para o vídeo o que haviam escrito para o dial. Não se importavam com imagem, cortes, fusões, c/oses e planos gerais. Faziam uma televisão para ser ouvida. Jamais esquecendo-se, no entanto, dos ganchos de final de capítulo, que seguram e escravizam o telespectador. A linguagem coloquial, intimista, não existia no rádio antigo. As primeiras experiências nesse sentido foram feitas na Rádio Excelsior de São Paulo, por volta de 1949, com a intenção de criar algo de novo no mundo das radionovelas. Participei dessa ousada experiência juntamente com Mário Donato, então diretor artístico da emissora, o jornalista Carlos de Freitas, o escritor Jerônimo Monteiro e poucos outros. Mais tarde André Casquel Madrid (Leonardo de Castro) juntou-se à equipe, e hoje, professor de comunicações da USP, costuma relatar esse episódio a seus alunos. Mas a ten-
84. 85.
tativa de inovar no gênero, no tocante à linguagem c à técnica, era demasiadamente prematura. Não deu certo. Os próprios artistas estranhavam que os personagens usassem uma linguagem corrente no país, inclusive com palavras da gíria atual. Fomos tão criticados por tentar uma inovação, que chegamos a provocar a irritação geral dos colegas de outras emissoras. "A novela", diziam, "era justamente aquilo que o povo gostava, não o que nós gostávamos". E quando as agências de publicidade nos negaram apoio, retiramo-nos da luta, impotentes para competir com a enxurrada de dramalhões que inundava as emissoras. No início das telenovelas, portanto, a linguagem, os diálogos, eram os mesmos do rádio. A novela A moça que veio de longe é um exemplo disso. Os enredos remontavam ao mais saudoso romantismo e os personagens falavam empoladamente, quando não chegavam ao absurdo de pensar "em voz alta". Os autores jamais se ocupavam da movimentação dos personagens em cena, como o cinema ensinava. Mas, aos poucos, foi nascendo uma linguagem de tevê, e os diálogos, do que estamos tratando, acabaram se atualizando, embora constituam ainda matéria em discussão. Geralmente quando se aborda o assunto, a pergunta que se faz é se os personagens das telenovelas devem falar como os personagens do cinema, isto é, com a maior economia possívcl de palavras e usando o diálogo apenas como complementação da imagem. Durante alguns anos permaneci nesse erro. É que adotar o diálog.o cinematográfico já era um progresso. Melhor frases secas, rápidas, telegráficas do que o exagero verbal, dos dramalhões. Somcnte algum tempo depois, reestudando o assunto, é que concluí, por observar e experimentar, que o parentesco entre o cinema c a televisão não justifica a mesma linguagem por uma série de motivos. O cinema é veloz e espetacular devido às próprias dimensões da tela. É as-
sistido no escuro, de forma compenetrada, tendo como único empecilho casual a mão da namorada. Seu texto tem que ser traduzível para todos os idiomas da Terra. No decorrer de seus noventa minutos, um filme, para não cair na monotonia, precisa ter no minímo cento e cinqüenta cenas ou seqüências divididas em seiscentos takes ou muito mais. Quase sempre, o filme é uma obra de condensação: contos, peças teatrais, romances. Os próprios roteiros originais são uma estória reduzida. Na telenovela o que acontece é o oposto. A atenção total do telespectador não é exigida. Ele pode fumar, tomar café, ir ao banheiro, atender o telefone, comer uma sobremesa e comentar com os presentes fatos relacionados ou não com o que vai surgindo no vídeo. É um espetáculo caseiro, de ritmo doméstico, repousante. A mulher pode ir até o extremo da casa para avisar o marido ou quem quer que seja de quc aquela cena ansiosamente aguardada vai começar ou já está começando. Raros são os momentos de telenovela que obrigam a família a se conccntrar num silêncio total. E, como espetáculo gratuito que é, uma cena perdida não dá ao espectador a impressão de que gastou dinheiro em vão. Sendo esse o ritmo da tevê, o tcleautor não pode usar nos diálogos a mesma secura de Ernest Hemingway, nem pretender a precisão dum James Cain, dum Horace McCoy, nem recorrer às meias frases dum John O'Hara. A linguagem desses autores funciona no cinema, como funcionou na literatura, porém na televisão formaria grandes vácuos que a imagem lenta do vídeo dificilmente preencheria. O diálogo dos personagens das telenovelas somente chega ao pÚblico envolvendo-o paulatinamente. É preciso ter um tom intimista, confessional, de familiar sinceridade, como se o telespectador estivesse assistindo a algo que lhe fosse pessoalmente destinado. Não a linguagem telegráfica do cinema, mas a de sua casa, do escritório, da fábrica, das lojas, da rua. As frases terão sempre que trazer o sabor do improviso, da criação espontânea. As indecisões vocabulares, a repetição de palavras, as frases soltas, os modismos, o uso discreto de gíria, certos lugares-comuns, um palavrão não pronunciado, um adjetivo vacilante levam o personagem à intimidade do lar, explicam seu caráter e comportamento, e separam, de forma inconfundível, o que é certo em matéria de diálogo na televisão do que é certo no cinema. Em suma, quando se escreve para cinema pensa-se no público, quando se escreve para a televisão pensa-se no espectador. O diálogo no cinema tem que servir para todos. Na televisão é só para a pessoa que se sentou diante do aparelho. Essas conclusões tendem a parecer óbvias demais. Mas são verdades que o profissional sempre esquece quando se lança ao trabalho. O que, no entanto, parece fora de dúvida é que se fez neste terreno um grande progresso. Já estamos distantes da linguagem dos dramalhões e também distantes da dialogação moderninha que surgiu logo após, quando o autor que usasse e abusasse da gíria corrente era imediatamente apontado como inovador, pioneiro, quando não um gênio. Alguns desses falsos valores, que escreveram para uma única faixa etária e numa determinada época, não tardaram a revelar o vazio de suas
86. idéias e quase todos já foram enterrados juntamente com sua própria pedra fundamental . Isso vem demonstrar que o "já" e o "agora", mesmo num gênero tão perccível como o da tclenovela, envelhccem às vezes muito antes de que ela chegue ao último capítulo.
o
diálogo de A Morenin ha Como se falava, no Brasil, na época em que se desenrola A Moreninha ? Não sei. O que se sabe é como se
falava nos romances da época, que talvez não fosse a verdadeira linguagem, a dos lares, a das ruas. Duvido que as pessoas se comunicassem em tom tão cerimonioso, como se todas particiem dum baile na Corte. Os românticos não faziam concessões ao realismo. A intimidade era sinal de mau gosto. As pessoas já nasciam "senhoras" e "senhores". Macedo sempre se refere à sua heroína como Da. Carolina. Da. Carolina no seu romance tinha quinze anos. A novela não decorre em 1844, mas em 1868. Acredito que, vinte c quatro anos depois, o relacionamento entre as pessoas tinha mudado um pouco, embora não muito. "Você", como tratamento, já era usual. O respeito reservava-se mais para as pessoas desconhecidas e mais velhas. Pegaria mal, na adaptação, dois namorados se tratarem por "senhora" e "senhor". Aboli totalmente esse formalismo entre os jovens. Mas procurei manter uma linguagem da época, seguindo a certa distância alguns modelos do romantismo e usando palavras e expressões então em voga, inclusive alguma gíria como "cor de burro quando foge", "do tempo do onça" e raras outras. O cuidado foi mais de não dizer nada que não se dizia do que adotar uma discutível fidel idade. Mais importante era não errar do que acertar. A não ser que os atores resolvam improvisar, o que não acontecerá, nenhum personagem dirá palavras ou expressões que então não se usavam. É ridículo um personagem de 1868 falar como um carioca da Idade do Samba. Revelar uma influência norteamericana, quando os ses é que nos influenciavam. Referir-se a inventos ainda não inventados. E dar - o que é pior - aos personagens uma visão profética daquilo que viria a acontecer em termos de História. Já vi adaptações nas quais os personagens chegavam a ter consciência de que pertenciam ao ado. Mas o script, numa novela de televisão, é apenas parte do trabalho, o ponto de partida. Depois vem a direção, que é uma soma de tu-
seleção de imagens, cenografia, guarda-roupa, decoração, sonoplastia (às vezes com músicas especiais), maquilagem, montagem, edição e não sei o que mais. No ritmo industrial em que se trabalha, não é possível sair tudo bem. É muita coisa em pouco tempo. Só o crítico conta com tempo integral para encontrar defeitos, embora geralmente lhe escapem as soluções.
Resumo de A Moreninha Este é apenas um resumo sumário da novela. Tudo o quc se disse até aqui já bastou para dar uma idéia do que ela é. Mais importante do que o enredo, foi esclarecermos o critério adotado, a razão de transferirmos a ação para vinte e quatro anos depois e a relação dos personagens com seu recheio psicológico e seus problemas. Resta acrescentar que, devido ao aspecto cultural que a novela acabou adquirindo, no tocante às informações históricas, sugeri e foi aceito pela Rede Globo de Televisão que em cada capítulo fosse feito um apelo ao telespectador, dirigido principalmente ao estudante: FREQÜENTE A BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SUA CIDADE. Não pretende, portanto, a Globo, apenas divulgar obras literárias nacionais, mas também incrementar o amor à literatura e estimular o confronto entre os originais e as adaptações. A ação da novela se inicia com a fuga de Simão, em plena praia, já perseguido por João Bala e .Ierônimo. Bala consegue deter Simão, mas, não se contentando com isso, começa a surrá-Io. Nesse instante avam por ali dois estudantes de medicina, Augusto e Fabrício. Embora desaconselhado por Fabrício, Augusto intervém para impedir o massacre. Favorecido pela intervenção, Simão volta a fugir, desaparecendo. Çomeça aí o ódio de João Bala pelos estudantes e o acidental interesse de Augusto pela sorte de Simão. Mais tarde, Augusto se dirige à Taberna do Juca, lugar freqüentado pelos estudantes, onde .se tomava vinho e a desagradável cerveja marca barbante, fechada com rolha. Augusto vai encontrar seu proprietário, o Juca, bastante alvoroçado. Algo teria acontecido com ele, que Juca não quer contar, mas acaba contando. Dentro duma pipa vazia da taberna estava um negro fujão, um escravo que por muitas vezes já tentara a fuga. Mal .Iuca conclui sua revelação, entram na taberna Bala e Jerô. Alguém informara que Simão estaria ali. Os dois revistam o estabelecimento, inutilmente. Bala senta-se sobre a tampa da
do: ensaio e marcação de atores,
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I II
pipa e interroga Juca, que nada confessa. Quando os dois feitores saem, Juca cai em pânico. Não poderia manter Simão ali, no interior duma pipa. Mais cedo ou mais tarde, seria descoberto. Augusto promete ajudá-Io, levando Simão para outro lugar: a pensão dos estudantes. À noitc, Augusto volta à taberna, levando um amigo, o Bclo Senhor, homem de meia-idade, simpático boêmio quc morava com os estudantes. Mas Augusto não lhe conta sua intenção. Diz que queria levar a pipa para seu quarto, porque tencionava ofereeer o vinho eomo presente à avó de seu eolega Filipe, que aniversariava em Paquetá, e que havia convidado os estudantes para um sarau. O próprio Filipe não podia saber. A pipa teria que fiear no quarto do Belo Senhor, o únieo que morava só. O Belo Senhor, eujo nome era Gustavo, ajuda Augusto a transportar a barrica, ando por .João Bala, que vigiava a Praça do Rossio. Ao ehegarem à pensão, a pipa entra pela janela, para que a dona da república, Da. Lalá, não implieasse com a entrada de tanto vinho em sua casa. Quando a operação é feita, Augusto é forçado a contar a verdade. Dentro daquela pipa havia um homem, o negro Simão. O Belo Senhor assusta-se, mas se assustaria ainda mais quando bateriam à porta. Era Da. Lalá, que vira a barrica ar pela janela. O Belo Senhor, sempre capaz de dominar uma situação e ciente de que Da. Lalá tinha por ele uma incontrolável afeição, explica que o vinho não era para ser bebido ali, mas seria um presente para uma velha senhora que aniversariava. E faz mais: consegue que ela lhe prometa não falar a ninguém daquela pipa, para que a oferta não perdesse seu sabor de surpresa. Aí tem início uma série de incidentes, todos relacionados com o novo esconderijo do negro Simão. Enquanto isso, os personagens vão sendo apresentados. Fala-se da festa que haveria em Paquetá, motivo de entusiasmo para o frágil Filipe, que ali encontraria Clementina, uma jovem pela qual se apaixonara ardentemente. Outra preocupação dos estudantes é Leopoldo, colega deles, que tinha abandonado os estudos para lutar no Paraguai, e pelo que se sabia -participara da desastrosa retirada da Laguna. Logo nos primeiros capítulos, Leopoldo reaparece, com um grupo de soldados, maltrapilho, doente, irreconhecível. É levado para a Santa Casa, onde o pai de Augusto, Dr. André, incumbe-se de curar o amigo de seu filho. Entre os dois logo nasceria uma grande amizade, baseada nos mesmos ideais políticos, que Leopoldo adquirira na guerra, e André trouxera de sua viagem à Europa. Esses ideais, quase secre-
tos, eram a abolição e a república, que dali por diante norteariam o destino de ambos. Simão continua escondido no quarto do Belo Senhor, na república. O primeiro a descobrir que havia uma pessoa dentro da pipa é o negrinho Rafael. Mas bastam algumas moedas para comprar o seu silêncio. Depois, já pensando em ter que tirar Simão da república, num futuro próximo, Augusto revela seu segredo a Filipe. Quanto ao Belo Senhor, embora com um negro fujão no quarto, continua preocupado com sua vida mundana, apaixonado que estava pela bela Aimée, vedete sa, que pontificava no Alcazar, teatro burlesco que há quatro anos fora inaugurado na Rua Uruguaiana. Logo mais, Leopoldo recobra parcialmente a saúde e volta à pensão, porém é convidado por Filipe a viver algum tempo em Paquetá, onde, com sossego e boa alimentação, seu restabelecimento seria mais rápido. Leopoldo aceita o convite, necessitado que estava também de algum tempo para pensar nos ousados os que daria dali por diante. Assim, os quatro amigos de outros tempos voltam a reunir-se. Mas o que Augusto ignora é que Bala não desistiria da captura de Simão. Voltando à taberna e espremendo Juca, consegue assustar o taberneiro. Este, porém, não cede. Vendo uma pipa, o feitor resolve colocar .Juca dentro dela, rodando-a por todo o Rossio. O pobre .Juca não agüenta e acaba confessando quc o negro Simão estava refugiado na pensão dos estudantes. Fabrício, presente à tortura, fica sabendo dc tudo, ele que nem sabia onde se achava Simão. Todos os estudantes unem-se, então, para salvar Simão das mãos de .João Bala. Os feitores levam a efeito uma batida na república, mas Simão, graças a um truque do Belo Senhor, não é encontrado. Bala retira-se, mas crente de que fora hidibriado. a a vigiar a pensão dia e noite. Detendo o garoto Rafael, que ia fazer compras, obriga-o a falar. Atemorizado, Rafael diz que Simão ainda estava lá. Agora, parece impossível Simão escapar. O cerco à pensão fora redobrado e a invasão seria imediata. Mas os estudantes bolam um plano: o Belo Senhor e Fabrício saem pela porta do fundo da pensão rodando uma pipa. Bala e seus homens saem atrás, detêm os fugitivos e abrem a pipa. Simão, porém, já não estava lá. Vestido de mulher, com Filipe e Leopoldo, é levado ao cais das barcas, rumo a Paquetá. A estória em Paquetá toma impulso. Fica-se conhecendo a avó de Filipe, Da. Ana, a aniversariante, Da. Luísa, sua filha, Joana e Quininha, filhas de Luísa, a caricata viúva Da. Violante e sua
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O ROTEIRISTA PROFISSIONAL - TV E CINEMA
sobrinha Clementina, o alemão Keblerc, residente da ilha, e sua sobrinha Marina, os escravos Tobias c Dudu, e Carolina, a Moreninha, órfã, irmã de Filipe, neta de Da. Ana. É no ambiente de preparativos duma grande festa que Simão aparece, vestido de mulher, como escrava de Leopoldo. Precisa dum quarto, e o quarto que lhe dão é vizinho do quarto de Duda. Mulher tinha que morar com mulher. Certamente, Duda é a primeira pessoa na ilha a saber que Simão é um homem, um negro fugitivo. A segunda é a própria Carolina, pois os estudantes precisavam duma aliada de confiança. Na ilha desenvolvem-se diversos conflitos amorosos. Clcmentina apaixona-se por Augusto e despreza Filipe, Marina aproxima-se de Filipe, que não aceita o prêmio de consolação. Joana tenta atrair Leopoldo, mas é por Quininha que ele se interessa. E Violante, conhecendo Keblere, vê chegar ao fim seu tormentoso celibato involuntário. Mais tarde, chega André para cuidar da saÚde de Leopoldo e fica conhecendo Da. Luísa, e se esboça entre ambos um discreto romance. Antes de embarcar, porém, André, entrando em conbto com o Belo Senhor, convida-o para ingressar na maçonaria. A sociedade secreta precisava duma personalidade insuspeita como ele, para obter informações. O Belo Senhor concorda. Sem desistir de procurar Simão, Bala descobre, depois de mil investigações, que ele só poderia estar em Paquetá. É para onde parte com JerÔnimo. Sua presença na ilha causa verdadeiro transtorno. Simão tem que se manter dentro do quarto, pretextando doença. Da. Ana é interrogada, ela que nada sabe. Toda a população da ilha fica sobressaltada. Quando pressente que seu quarto vai ser invadido, Simão nada para a ilha de Broeoió. Lá, por falta de sorte, uma cobra venenosa o pica. Bala e Jerônimo concluem que Simão, não estando na ilha, só poderia estar em Brocoió (mencionada na novela como a "ilha vizinha"), e vão visitá-Ia. Simão, à distância, vê o bote se aproximar. Algum tempo depois, entra na água e aos poucos vai empurrando o bote mar adentro até voltar a Paquetá. Era o momento de fugir, mas a febre provoeada pela picada de cobra o impede. Bala e Jerô, sem o bote, não podem voltar, o que só conseguem no dia seguinte, graças a um pescador. Para despistarem Bala, quando ele volta, Augusto retoma à Corte levando uma mulher negra. Acontece que de fato se tratava duma mulher negra: Duda. Ao receber essa informação, Bala retoma também ao Rio, crente de que a mulher era Simão. Mas parte só, na
A MORENINHA NA TEVÊ
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ilha fica Jer ô, que con tinu aria na pro cur a. En qua nto no con tine nte Bal a des cob re que for a ludi bria do, por que a mul her era mul her me smo, o que con stat a na cas
a do Dr. André, Jcrô, seu comparsa, decide entrar inopinadamente no quarto de Simão. E topa cara a cara com ele. A busca parecia ter chegado ao fim. Porém Leopoldo e Fabrício entram e dominam Jcrônimo, que é amarrado. Agora, com todos da casa sabendo quc Simão está na ilha, e Jcrônimo amarrado e amordaçado, o escravo tcm quc mudar dc escondcrijo. (~ preciso levá-Io à casa do Dr. André, no Rio. Mas seu disfarce de mulher já é conhecido no porto. Simão, porém, mais uma vcz, burla a vigilância, transformado num negro velho. Bala, dois dias dois, está novamente em Paquetá. Agindo segundo um plano, o Dr. André vai a scu encontro c "denuncia" os estudantes. E mostra-lhe onde está Jerônimo. A rresentação é feliz, e por algum tempo o feitor supõe tcr conscguido um aliado. Mas não vai pcrcorrer as demais ilhas da baía, como o médico lhe aconselha. Volta rápido para o Rio. Aí, vai à taberna, pois Juca sempre estava a par de tudo. Faz ameaças ao taberneiro. Destruiria seu estabelecimcnto se ele não lhc dissesse onde Simão se refugiara. Com receio de perder seu Único bem, Juca acaba cedendo: Simão estava na casa do Dr. André. João Bala e Jcrô se dirigem imediatamente para lá. Invadem a casa. E arrombam a porta do quarto de Simão. E é neste justo momento que a novela começa a esquentar ... Mais ainda.
Cenários 1. Cozinha 2. Sala de refeições 3. Quarto do Belo Senhor 4. Quarto de Augusto e Filipe 5. Quarto de Fabrício e Leopoldo (na república de estudantes) 6. Taberna do Juca 7. Sala da casa do Dr. André 8. Camarim de Aimée 9. Sala da casa de Da. Ana em Paquetá 10. Quarto dos hóspedes 11. Quarto das moças 12. Alpendre 13. Quarto de Duda
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14 Vocabulário crítico Argumento: resumo de uma história, para roteirização dum filme, que
pode ser origina] ou adaptado de obra literária. Tratando-se de telenovela chama-se sinopse. Não confundir com story-line, que é o resumo resumido. Audio: a parte sonora de filmes e programas de tevê. Nos roteiros ocupa o lado direito da página. Ação é vídeo, diálogo é áudio. Cena: todo o roteiro é dividido em cenas, unidades dramáticas de ação contínua. É o degrau duma escada que leva ao clímax. Numere-as. Claquete: quadro onde se registra o nome do roteiro e números de cenas e tomadas. Clichê: a repetição enfadonha de diálogos e soluções cênicas em qualquer tipo de produção artística. Clímax: a seqüência mais dramática e decisiva dum roteiro. Clo.se-up: detalhe focalizado em câmera cheia, aproximando-o do espectador. Co.rte: agem direta de uma cena para outra, sem escurecimento, desfoque ou outros recursos. Crédito.s: letreiros no início ou fina] de filme ou programa de tevê em que aparecem título, personagens e agradecimento a pessoas ou empresas que contribuíram para sua realização. Espelho.: página de abertura dum roteiro que traz informações sobre características de personagens, enumera e descreve cenários e ]0cações externas.
Flashback: cena ou cenas que remetem ao ado, para lembrá-Io,
situar ou desvendar enigmas. Fusão: quando uma imagem se sobrepõe a outra para mudar de cena ou
enfatizar a ligação existente entre elas. Gancho: palavra usada na tevê, relativa ao suspense que deve haver no
final dos blocos e no final dos capítulos das telenovelas para prender o telcspectador. Insert: imagem breve e quase sempre inesperada quc lembra momentaneamente o ado ou antecipa algum acontecimento. Os inserts podem ser variados ou repetidos, estes servindo, às vezes, de plot, o núcleo dramático, ou algo que o simbolize. Localização: onde a história acontece, informação sempre acompanhada da época. Localização: França. Época: 1890. Long-shot: plano geral, usado para mostrar onde a cena vai se desenrolar. Plano geral dum estádio de futebol. Mensagem: sentido social, político, filosófico ou qualquer outro que uma história pode conter. Quase a moral da história, das fábulas. Oll vozes ou sons não produzidos na cena focada. Um personagem que fà]e, sem estar em cena, fala em o.fl Pano.râmica (pan.): diz-se da câmera que se movimenta, gera]mente em exteriores, mostrando-o ou sondando-o. Não confundir com o plano geral, que apenas revela o cenário para simples identificação. Plano médio: também chamado plano americano; foca personagens da
cintura para cima. Plot: centro da ação, núcleo da história e seu gerador principal. Po.nto de vista: plano visto pelos olhos do personagem, à sua altura e distância, no geral intensificando a dramaticidade do roteiro. Rubrica: observação entre parênteses, nos diálogos, indicando a reação dos personagens, bem como mudanças de tom e pausas. Script: como se denominavam os roteiros radiofônicos, hoje de pouca aplicação na tevê. Seqüência: como se denomina cena, no cinema, embora muitos prefiram chamar assim uma série de cenas ligadas pela mesma continuidade. Sino.pse: resumo de uma história, no cinema mais chamado de argu-
mento. Split screen: imagem dividida na tela, mostrando acontecimentos separados mais simultâneos, como num telefonema. Story-line: resumo de uma história em poucas linhas. Subtexto: verdadeiro sentido dum diálogo, o que está apenas subentendido. Suspense: diálogo ou ação que faz prever algo chocante, temível, emocionante ou decisivo. Take: tomada, o parágrafo duma cena. Travelling: câmcra em ação, acompanhando personagens ou veículos. Zoom: lente da câmera que aproxima ou distancia subitamente personagem e detalhes, para dramatizar ou esclarecer lances do roteiro.
90.
Biografia do autor
Marcos Rey (Edmundo Donato) nasceu em São Paulo em 17 de fevereiro de 1925. Foi autor de scripts para rádio especializando-se em programas humorísticos e policiais -, repórter e colunista de jornal. Aos 16 anos publicou seu primeiro conto e com menos de 30 o seu primeiro romance, Um gato no triângulo, reescrito e relançado em 1995 em comemoração aos seus 40 anos de carreira literária. Foi também roteirista de cinema e professor de faculdade de comunicação, experiências que o levaram a escrever esta obra, além de criador e redator de inúmeras campanhas de publicidade. Como escritor, publicou mais de trinta livros e assinou dezenas de crônicas em jornais e revistas de São Paulo. Marcos Rey ocupa a cadeira 17 na Academia Paulista de Letras e, em 1995, recebeu o Prêmio Intelectual do Ano pelos livros Os crimes do olho-de-boi e O diabo no porta-malas.
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OBRAS DO AUTOR Para o público adulto Um gato no triângulo, romance, 1953 (totalmente reescrito e relançado em 1995) Café na cama, romance, 1960 Entre sem bater, romance, 1961 Habitação, coleção Conquistas Humanas, 1961 A última corrida, romance, 1963 (relançado em 1982) O enterro da cafetina, contos, 1967 Os 10 grandes crimes da História, divulgação, 1967 Memórias de um gigolô, romance, 1968 O pêndulo da noite, conto, 1977 Soy loco por ti, América!, contos, 1978 Malditos paulistas, romance, 1980 Ópera de sabão, romance, 1980 A arca dos marechais, romance, 1983 Esta noite ou nunca, romance, 1985 A sensação de Setembro, romance, 1989 O roteirista profissional, estudos, 1989 O último mamífero do Martinelli, romance, 1993 Os crimes do olho-de-boi, romance, 1995 O cão da meia-noite, romance, 1995 Para o público infanto-juvenil Não era uma vez, 1980 O mistério do cinco estrelas, 1981 O rapto do Garoto de Ouro, 1982 Um cadáver ouve rádio, 1983 Sozinha no mundo, 1984 Dinheiro do céu, 1985
Proclamação da república, paradidático, 1985 Bem-vindos ao Rio, 1986 Enigma na televisão, 1987 Garra de campeão, 1988 Quem manda já morreu, 1989 Corrida infernal, 1991 Na rota do perigo, 1992 Um rosto no computador, 1992 Doze horas de terror, 1993 O diabo no porta-malas, 1995 Brasil - os fascinantes anos 20, paradidático, 1995 O coração roubado e outras crônicas, 1996 Gincana da morte, 1997 Fantoches!, 1998 O menino que adivinhava, 1999
tarde? A tarefa era difícil, quase isso a que chamam de desafio para estimular pessoas sensatas. Fiz novas leituras do livro, sem encontrar nenhum caminho para uma boa adaptação. Foi então que me caiu às mãos outro livro de Joaquim Manuel de Macedo, que pouca gente conhece, e que supera a atração de todos os seus romances: Memórias da Rua do Duvidar. Aí era o autor descrevendo o que poderia ser um dos cenários da novela. Livro escrito na década de 1870, fala dum Rio de Janeiro muito mais fascinante do que aquele que se vê em A Moreninha, escrito em 1844. Em vinte anos o Rio mudara muito. Já se tornava uma cidade com pretensões a metrópole. As ruas quase todas iluminadas a gás, os barcos a vapor ligando o Rio a Niterói, alguns jornais circulando, as idéias republicanas e abolicionistas mais amadurecidas, um Jóquei Clube, maior número de estrangeiros nas ruas e, principalmente, sua grande artéria, a Rua do Ouvidor, com suas lojas e casas comerciais, suas confeitarias vendendo sorvetes, suas modistas famosas e, logo na esquina da Rua Uruguaiana, o Alcazar, o primeiro teatro burlesco inaugurado no país, com sua extravasante Aimée, vedete sa, espécie de antecessora de Jane Avril e de La Goulue, que Toulouse-Lautrec retrataria alguns anos depois no Moulin Rouge. Bem, com esse Rio já se podia fazer alguma coisa. A ordem era continuar pesquisando. Ler as Memórias do Rio de Janeiro, de Vivaldo Coaracy, foi maravilhoso. Quase tudo sobre o Rio antigo está lá. E os dois volumes de Aparência do Rio de Janeiro, de Gastão Cruls, completavam o panorama desejado. O gosto pela pesquisa torna-se um hábito. Às vezes, vale a pena ler cem páginas para se obter uma única informação. Por seu lado, a TV Globo também pesquisava para orientar a cenografia, o guarda-roupa, a sonoplastia, a decoração, enfim, um mundo de detalhe que sempre dá realidade aos trabalhos de época. Embora eu estivesse de posse de um livro de anúncios do Rio antigo, recebi fotografias dum mundo de reclames dos arquivos de jornais. Era preciso saber o preço das coisas, o que mais se vendia, o que mais se comprava, marcas de bebidas, refrescos da moda, nomes de estabelecimentos, a identidade das pessoas que costumavam transitar na Ouvidor e inclusive as músicas que Mademoiselle Aimée cantava no Alcazar. Ficou então assentado que a estória se desenrolaria em 181768, e não apenas por causa da fisionomia modernizada da cidade, mas porque nesses anos alguns acontecimentos tumultuavam a vida da
nação, incrementando, naturalmente, o interesse pelo jornalismo. Um desses acontecimentos era a Guerra do Paraguai, longa e tormentosa, tendo como mais pungente episódio a retirada de Laguna, mais tarde relatado com detalhes e dramaticidade por Taunay. Um país em guerra e, ainda mais, contra uma nação supermilitarizada, como era então o Paraguai, é um bom pano de fundo para uma estória. Essa guerra poderia ser de importância no romance. Principalmente a trágica retirada, em que centenas de brasileiros perderam a vida. E enquanto a guerra se travava nas fronteiras e no exterior, dentro dos nossos limites avolumavam-se as mensagens abolicionistas e republicanas, estimuladas em grande parte pela Loja Maçônica do Grande Oriente, situada à Rua do Riachuelo. Tensão externa e interna. Das fronteiras, as notícias, do centro, os boatos. Nada mais monótono e irritante do que um romance de amor num clima de paz, com tudo correndo em ordem. Um pouco de tumulto ajudaria para intensificar os lances. No plano poético-literário, a transferência da ação da estória para vinte e quatro anos mais tarde também oferecia vantagens. Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu já eram uma saudade, enquanto os poemas panfletários de Castro Alves já começavam a circular. Assim se poderia criar uma linha divisória mais nítida entre o ontem e o hoje. Os primeiros e os últimos românticos. Uma mostra inclusive do choque de gerações, evidenciando que esse é um problema de todas as épocas. Abria-se ao mesmo tempo um espaço mais largo para citações de poetas e escritores, capitalizando-se o interesse do telespectador não apenas para Macedo como também para outros autores. Entre estes, Manoel Antônio de Almeida, muito citado pelos personagens, José de Alencar e Álvares de Azevedo, que teriam em toda a novela uma grande importância. O que se ava nos outros países é assunto do cotidiano dos personagens, principalmente no que se refere às invenções. É feita a primeira máquina de escrever experimental, inventam o ventilador e o elevador. Fala-se num autocarro movido a vapor. Aprimora-se a fotografia. A palavra eletricidade entra em circulação. O nome de Pasteur chega ao Brasil. Romancistas como Balzac, Dumas e Vitor Hugo já são lidos aqui por uma elite. Edouard Manet, que vivera na mocidade no Rio, pinta a sua famosa Olimpia. É um mundo que revela os primeiros indícios de mudança, no limiar de grandes invenções, revoluções sociais e artísticas, e quase na agonia do romantismo da primeira metade do século. Resolvi fazer então, sem a