Maria Inês Smiljanic José Pimenta Stephen Grant Baines ORGANIZADORES
CURITIBA 2009
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais Departamento de Antropologia Campus Universitário Darcy Ribeiro – Asa Norte ICC Centro – Sobreloja – B1-347 70.910-900 – Brasília – DF E-mail:
[email protected] Projeto de Cooperação Acadêmica Etnologia Indígena e Indigenismo: Novos desafios teóricos e empíricos Equipe: Alcida Rita Ramos (UnB), Edilene Cofacci de Lima (UFPR), José Pimenta (UnB), Julio Cezar Melatti (UnB), Karenina Vieira Andrade (UnB), Marcela Coelho de Souza (UnB), Maria Inês Smiljanic (coordenadora-UFPR), Miguel Carid (UFPR), Stephen Grant Baines (coordenador-UnB) Conselho Editorial: Alcida Rita Ramos, Julio Cezar Melatti, Roque de Barros Laraia Editoração: Nexo Design Impressão: Gráfica Capital Tiragem: 1000 unidades Esta publicação foi financiada com recursos da CAPES
Depósito legal junto à Biblioteca Nacional, conforme Lei n° 10.994 de 14 de dezembro de 2004
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Index Consultoria em Informação e Serviços S/C Ltda. Curitiba - PR F138 Faces da indianidade / Maria Inês Smiljanic, José Pimenta, Stephen Grant Baines.— Curitiba : Nexo Design, 2009. ISBN 978-85-88673-02-1 1. Etnologia – América do Sul. 2. Índios – América do Sul. I. Smiljanic, Maria Inês. II. Pimenta, José. III. Baines, Stephen Grant. IV. Título. CDD (20.ed.) 572.8 CDU (2.ed.) 572.9 IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL
SUMÁRIO
Prólogo_________________________________________________________________ 7 Parte I: Histórias do Contato Cap. I – Patrões, Cunhados e Onças. Os brancos no universo relacional Apiaká. Giovana Acácia Tempesta ____________________________________________________ 13
Cap. II – Mercadorias, Guerras, Comedores de Gente e Seringueiros: História do contato interétnico no baixo Apapóris (séculos XVIII-XX). Luis Cayón _ _______________________________________________________________ 39
Cap. III – Entre “Brabos”: índios e seringueiros no Alto Juruá. Paulo Roberto Homem de Góes _______________________________________________ 67
Parte II – Agencialidades Cap. IV – Parceiros de Troca, Parceiros de Projetos. O ayompari e suas variações entre Ashaninka do Alto Juruá. José Pimenta______________________________________________________________ 101
Cap. V – “Wätunnä: tradição oral e empreendimentos econômicos dentre os Ye’kuana”. Karenina Vieira Andrade_ ___________________________________________________ 127
Cap. VI – A Comemoração do Dia do Índio entre os Yanomami de Maturacá (AM). Maria Inês Smiljanic_ _______________________________________________________ 155
Parte III – Políticas Cap. VII – “Esperando para ser Julgado”: Indígenas no Sistema Penitenciário de Boa Vista em Roraima. Stephen Grant Baines _ _____________________________________________________ 169
Cap. VIII – Indígenas no Ensino Superior: Novo Desafio para as Organizações Indígenas e Indigenistas no Brasil. Gersem Baniwa____________________________________________________________ 187
Cap. IX – Bukimuju, Xukurank: Lideranças, Política e Etnopolítica Xakriabá. Alessandro Roberto de Oliveira_______________________________________________ 203
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Parte IV - Imagens Cap. X – Imagens dos Yaminahua. Miguel Carid______________________________________________________________ 235
Cap. XI – Economia e Arte, entre o Seringueiro e o Artista: Linguagens da política em etnografias Kaxinawá. Paulo Roberto Nunes Ferreira________________________________________________ 245
Parte V – Pesquisas em andamento na graduação Narrativas Orais e Eventos Rememorados de Líderes e Lideranças Kaingang e Guarani. Nádia Philippsen Fürbringer_ ________________________________________________ 273
A Controvérsia do Murmuru: Notas sobre um conflito de visões. Guilherme Moura Fagundes_ ________________________________________________ 277
A Terra Indígena Igarapé Lourdes, Rondônia: o impacto de um projeto de “desenvolvimento sustentável”. Fabiana Lima dos Santos_ ___________________________________________________ 279
O Reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas e a Construção do Pluralismo Jurídico no Brasil. Mariana Yokoya Simoni_ ____________________________________________________ 281
Perspectiva Histórica do Indigenismo no Nordeste de Roraima: Elementos e processos de uma estrutura dinâmica. Felipe de Lucena Rodrigues Alves_____________________________________________ 283
Da Aldeia à Câmara Municipal: Candidatos indígenas nas eleições de 2008. Maria Inês Smiljanic, Flávia Roberta Babireski, João Vitor Fontanelli Santos, Nádia Philippsen Fürbringer e Luís Fernando Carvalho Cintra______________________ 285 Colaboradores _________________________________________________________________ 289
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PRÓLOGO
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ste livro reúne artigos produzidos no contexto do Projeto de Cooperação Acadêmica Etnologia Indígena e Indigenismo – Novos desafios teóricos e empíricos, financiado pela CAPES por meio do Edital PROCAD 2007. Participam do projeto docentes e discentes dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília e da Universidade Federal do Paraná. Os textos incluídos nesta coletânea abordam diversos aspectos da relação entre os povos indígenas das terras-baixas da América do Sul e seus Outros, lançando luz sobre dimensões variadas das relações entre os povos indígenas e entre estes e diferentes atores do indigenismo. Desta forma, contemplamos aqui dois campos distintos de reflexão que compõem o referido projeto: “Sociocosmologia, Concepções da Identidade e da Alteridade” e “Indigenismo, Políticas Indígenas Governamentais e Não-Governamentais”. Dividimos as contribuições em cinco seções. As quatro primeiras contemplam as temáticas: Histórias do Contato, Agencialidades, Políticas e Imagens. A quinta seção intitula-se Pesquisas em Andamento na Graduação. “Histórias do Contato” apresenta as contribuições de Giovana Acácia Tempesta, Luis Cayón e Paulo Roberto Homem de Góes. Giovana Acácia Tempesta analisa as narrativas dos Apiaká sobre os diferentes “brancos”, mostrando a complexidade e a ambivalência dessas elaborações indígenas. A partir de relatos nativos e de fontes históricas, Luis Cayón mostra como os Makuna interpretaram suas relações com os brancos frente aos processos coloniais luso-brasileiros e colombianos entre os séculos XVIII e XX, oferecendo uma valiosa contribuição para o entendimento da história do contato interétnico da região do baixo rio Apaporis na Amazônia colombiana. Paulo Roberto Homem de Góes traça um breve panorama das primeiras décadas de contato entre os povos Pano que habitavam a região das densas florestas dos formadores dos rios Juruá e Purus e as sociedades da borracha, a partir de diferentes referências etnológicas, etnográficas e históricas. “Agencialidades” é composta pelos artigos de José Pimenta, Karenina Vieira Andrade e Maria Inês Smiljanic. Após discorrer sobre o lugar ocupado pelos brancos e pelas mercadorias ocidentais na mitologia dos Ashaninka, José Pimenta analisa a concepção que esse povo indígena elabora sobre a noção de “projeto” e mostra as similitudes e diferenças entre o sistema de trocas tradicional e os novos “projetos” de “desenvolvimento sustentável”. Karenina Vieira Andrade analisa as relações comerciais entre os Ye’kuana e os seus parceiros à luz de suas histórias tradicionais, revelando as motivações e os significados que estão por trás de tais empreendimentos econômicos. Maria Inês Smiljanic analisa a comemoração do Dia do Índio entre os Yanomami 7
de Maturacá com o objetivo de situar este evento no contexto mais amplo da história de contato desse grupo com a sociedade nacional, demonstrando como, ao objetificarem a cultura e a tradição yanomami no contexto da escola, os moradores desta localidade expressam a complexidade de sua situação de índios civilizados e os perigos que dela decorrem dentro da lógica predatória que rege a relação dos Yanomami com seus Outros. “Políticas” apresenta as reflexões de Stephen Grant Baines, Gersem Baniwa e Alessandro Roberto de Oliveira. Em seu artigo, Stephen Grant Baines examina a situação prisional de indígenas nas instituições penitenciárias da cidade de Boa Vista, em Roraima, a partir de um levantamento de pesquisa realizada naquela cidade, em janeiro de 2008 e 2009. O objetivo é apresentar alguns dados preliminares sobre a situação prisional de indígenas. Posteriormente, examinam-se depoimentos de indígenas presos e agentes carcerários que compartilham o mesmo espaço institucional para examinar como os indígenas expressam sua própria experiência de privação de liberdade. Gersem Baniwa reflete sobre os desafios do atual indigenismo no Brasil relacionados ao papel das organizações indígenas e indigenistas na construção das políticas de educação indígena intercultural nas universidades brasileiras, a partir da análise de experiências indígenas no ensino superior e das variáveis sociopolíticas e epistemológicas que orientam estes jovens indígenas na luta pela formação acadêmica. O texto de autoria de Alessandro Roberto de Oliveira trata das eleições municipais de 2008 no município de São João das Missões, no norte Minas Gerais, onde o povo Xakriabá reelegeu o prefeito e mais seis indígenas para a câmara de vereadores. Ele demonstra como a hegemonia política Xakriabá no município resulta da articulação do sistema político interno subjacente, fortemente calcado na autoridade dos caciques das aldeias, e discute as transformações da autoridade política entre os Xakriabá nestes últimos 20 anos. “Imagens” inclui os artigos de Miguel Carid e Paulo Roberto Nunes Ferreira. Miguel Carid observa que é comum observar a presença de dois estereótipos antagônicos nos relatos que os “outros” − missionários, membros de ONGs, de instituições governamentais, populações indígenas vizinhas ou até os próprios antropólogos – fazem dos Yaminahua: por um lado, os Yaminahua seriam representantes exemplares do estereótipo de “índio selvagem”, conhecedor das artes da floresta mais profunda e ignota; por outro, não é incomum vê-los descritos como índios objeto de uma aculturação fatal, adictos à errância desnorteada pelas periferias urbanas da Amazônia. O texto deste autor visa comparar esses clichês com as noções yaminahua de civilização e mistura. Nesse contraste, a noção de pessoa adquire um caráter estratégico como foco de discursos e praxes indígenas que situam o múltiplo e o social na raiz do ser yaminahua, mais ocupado – como veremos − em processar a história do que em separar naturezas e culturas, sejam estas selvagens, as naturezas, ou sujeitas à modificação por contato. Paulo Roberto 8
Nunes Machado, interpondo como pretexto a análise das etnografias sobre os Kaxinawá de Terri Vale de Aquino (1892) e de Els Lagrou (2007), propõe-se a relacioná-las às “inspirações” indigenistas que delas podem ser elaboradas, à maneira como esse povo socializa “seus” antropólogos e aos discursos de luta política, outrora associados à economia e, hoje, imbricados à cultura. A última seção deste livro, “Pesquisas em Andamento na Graduação”, apresenta curtos informes sobre pesquisas realizadas por graduandos sob orientação dos pesquisadores que compõem a equipe deste projeto. Contribuem nesta seção os alunos de graduação: Nádia Philippsen Fürbringer, Guilherme Moura Fagundes, Fabiana Lima dos Santos, Mariana Yokoya Simoni, Felipe de Lucena Rodrigues Alves, Flávia Roberta Babireski, João Vitor Fontanelli Santos e Luís Fernando Carvalho Cintra. Os autores agradecem à CAPES pelo financiamento que permitiu a consolidação de uma parceria entre pesquisadores dos Programas de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília e da Universidade Federal do Paraná.
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Parte I
Histórias do Contato
PATRÕES, CUNHADOS E ONÇAS. OS BRANCOS NO UNIVERSO RELACIONAL APIAKÁ
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Giovana Acácia Tempesta Não creio que a história obedeça a um sistema, nem que suas pretensas “leis” permitam deduzir as formas sociais, futuras ou presentes. Acredito, porém, que tomar consciência da relatividade e, portanto, da arbitrariedade, de um traço de nossa cultura já o desloca um pouco; e que a história (não a ciência, mas seu objeto) não é mais que uma série de deslocamentos imperceptíveis. T. Todorov. A Conquista da América
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ste artigo focaliza o modo como os Apiaká conceitualizam a relação com os brancos na região dos rios Juruena e Teles Pires, principais formadores do Tapajós, que, modernamente, servem como divisas naturais entre os Estados do Amazonas, Mato Grosso e Pará. Os Apiaká contemporâneos são descendentes de uniões de indivíduos desta etnia com indivíduos Munduruku, Kokama, Kaiabi e nordestinos, compondo um contingente de aproximadamente quinhentas pessoas vivendo, geralmente associadas aos Munduruku, em aldeias no Mato Grosso e no Pará (nas Terras Indígenas Apiaká-Kayabi, Kayabi e Munduruku) e algumas centenas vivendo em cidades e vilas daqueles três Estados. A língua Apiaká, da família Tupi-Guarani, está fortemente ameaçada de extinção. O ado a que se referem os Apiaká em suas narrativas abrange todo o século XX e trata dos efeitos do avanço da frente da borracha para a borda meridional da Amazônia. Tais narrativas tematizam o processo de declínio populacional, mistura étnica, dispersão territorial e progressiva civilização por que aram os Apiaká desde então. O traço mais marcante da memória Apiaká é a afirmação da adesão voluntária ao modo de vida civilizado, que consiste, basicamente, em o regular a mercadorias e contato com a fé católica, e que caracteriza os índios mansos, que aram a viver em comunidade no século XX, por oposição aos parentes que se internaram na 1 Este artigo é uma versão modificada do paper apresentado na 26.ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 1.º e 4 de junho de 2008, em Porto Seguro, Bahia. A comunicação teve lugar na terceira sessão do GT 26 - Narrativas e percepções nativas das relações de contato com os brancos, coordenado por Valéria Soares de Assis e Deise Montardo e mediado por Alcida Ramos. O texto apresenta informações e reflexões desenvolvidas na Primeira Parte 1 de minha tese de doutorado (TEMPESTA, 2009).
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mata e ainda vivem de modo independente e tradicional – os isolados do Pontal2. Ao falar sobre o ado, meus interlocutores mais velhos postulavam três categorias de brancos: os padres, missionários estrangeiros (religiosos alemães, austríacos e americanos); os patrões (seringalistas brasileiros e peruanos) e os arigós (maranhenses, cearenses e paraenses empobrecidos empregados nos seringais). Quanto aos povos indígenas com que conviviam mais ou menos intensamente ao longo do século XX, os Apiaká mencionam os Munduruku (tronco Tupi), inimigos de outrora que se tornaram aliados no século XIX, embora mantivessem com eles uma relação tensa nos rios Anipiri e Cururu (PA); os Kaiabi (Tupi-Guarani), antagonistas no Rio dos Peixes; os belicosos Rikbaktsa (Canoeiro, do tronco Macro-jê) e os Tapayúna (Beiço-dePau, do tronco Macro-jê) que, nos anos 1960, confrontavam seringueiros no rio Juruena. Os etnônimos Kokama e Sateré-Mawé (povos do tronco Tupi), a despeito dos intercasamentos no contexto dos seringais, não são discriminados nas narrativas apiaká; aos primeiros, os Apiaká se referem geralmente como índios peruanos e, aos segundos, como gente de Santarém. A convivência mais intensa entre esses povos foi produto da expansão da frente da borracha para a região e do subsequente engajamento dos índios no trabalho nos seringais, bem como da atuação missionária3. A frente da borracha arregimentava indígenas e nordestinos para o sistema de trabalho dos seringais, regido pela lógica do aviamento, disseminando doenças contagiosas, inviabilizando a vida ritual tradicional, impondo o uso exclusivo da língua portuguesa, reunindo arbitrariamente pessoas de etnias distintas e chancelando violências de toda ordem, incluindo massacres premeditados. Os Apiaká falam sobre essa época como um momento de desestruturação social, quando avam longos períodos longe das aldeias, vivendo em colocações de seringueiros – muitas das quais estabelecidas em pontos de antigas malocas apiaká – e se casavam com índios Munduruku, Kaiabi, Sateré-Mawé e Kokama e com arigós, configurando-se assim, em seus próprios termos, a mistura que caracteriza o povo no presente. No início do século XX, o capitão Manoel Teophilo Costa Pinheiro, membro da “Comissão Rondon”, informava que os Apiaká estavam extintos como povo; segundo o capitão, em 1912, restavam apenas 32 Apiaká refugiados na sede da Coletoria de Impostos de Mato Grosso, no lugar denominado Barra de São Manoel, que atualmente é uma vila no Estado do Amazonas (apud RONDON, 1915, p. 42): tratava-se dos sobreviventes de massacres levados a cabo por coletores de impostos que também atuavam como seringalistas. No entanto, havia outra parcela do povo, ignorada pelos funcionários do governo, vivendo em grupos locais ao longo dos afluentes do baixo curso dos 2 Os termos em itálico são palavras empregadas pelos próprios Apiaká em suas narrativas. 3 Os Apiaká orgulham-se do fato de um de seus velhos ter sido protagonista, em 1967, da pacificação dos bravos Tapayúna, ancestrais do atual chefe do escritório da Funai de Colider (MT), responsável pelas aldeias apiaká do Mato Grosso.
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rios Juruena e Teles Pires, no local chamado regionalmente Pontal do Mato Grosso, um triângulo de mata fechada no noroeste desse Estado; tais famílias continuavam realizando atividades extrativistas e vendendo produtos da floresta para negociantes locais. Nos anos 1930 e 1940, algumas famílias provenientes dessa região se mudaram para as imediações da Missão Franciscana do Cururu, no Pará, que atendia os Munduruku. Ignorando a existência dessa outra parcela do povo Apiaká, D. Ribeiro classificou-o como grupo extinto nos anos 1950, com base no citado relatório da Comissão Rondon (RIBEIRO, 2002, p. 263). Nos anos 1960, contudo, seções de famílias extensas apiaká, ligadas a índios de outras etnias e a arigós, foram convidadas pelo missionário jesuíta João Dornstauder a morar numa área destinada aos Kaiabi no Rio dos Peixes, afluente oriental do Arinos. Este fato permitiu a rearticulação sociopolítica dos Apiaká que, desde os anos 1980, lutam para ter respeitados os direitos que a nova legislação indigenista lhes garante. Meu objetivo aqui é refletir sobre categorias do discurso Apiaká que exprimem tempo, mudança e agencialidade, com o intuito de me aproximar de sua historicidade, tendo em vista a premissa da filosofia política de C. Lefort, segundo o qual uma maneira singular de ser no Tempo é indissociável de um modo específico de instituição do social (LEFORT, 1999, p. 305)4. Também tenho em mente a proposta teórico-metodológica das coletâneas “Pacificando o Branco” (ALBERT; RAMOS, 2002) e “Time and Memory in Indigenous Amazônia” (FAUSTO; HECKENBERGER, 2007) de apreender as concepções indígenas sobre o contato e as mudanças subsequentes. Veremos como uma rápida análise das categorias centrais da historicidade apiaká pode nos ajudar a desnaturalizar conceitos que empregamos de modo muitas vezes irrefletido, bem como a superar o discurso simplista e etnocêntrico da aculturação. Misturado e espalhado são as principais categorias empregadas pelos Apiaká contemporâneos quando rememoram seu ado, a “mistura” surgindo nas narrativas como índice de uma apreensão corporal da história (uma vez que se fala em mistura de sangues), como processo da ordem do parentesco, portanto, decorrente da dispersão e da dizimação ocorridas na virada para o século XX, num contexto de nacionalização. Mistura remete fundamentalmente a uma concepção transformacional do social, mais es4 C. Lefort (1979) define sumariamente historicidade como a relação geral que os homens mantêm com o ado e o futuro. Ele propõe que todas as sociedades têm de se reproduzir a cada novo dia e que nenhuma é compreensível nos limites de um presente, sugerindo que “Coloquemo-nos o problema em outros termos: ite-se que haja, em toda sociedade, acontecimento, transformação cultural e retomada vívida do ado pelo presente; é possível dizer, porém, que a reação ao acontecimento, à transformação, à retomada do ado tenha sempre a mesma significação?” (LEFORT, 1979, p. 46). E prossegue ponderando que na sociedade “a transformação não é a agem de um estado para outro, mas o encaminhamento deste debate que antecipa o futuro referindo-o ao ado. O que significa ainda dizer que o histórico não reside no acontecimento enquanto tal ou na transformação enquanto tal, mas em um estilo das relações sociais e das condutas em virtude do qual há colocação em jogo do sentido” (p. 47).
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pecificamente a modos de vida ou tipos de socialidade5 dispostos simbolicamente num continuum espaciocultural, onde os Apiaká mansos que vivem em comunidade ocupam a posição intermediária entre, de um lado, os parentes isolados do Pontal, ainda selvagens ou bravos, e os brancos urbanos, plenamente civilizados, divididos em patrões e arigós. Nesse sentido, o conceito de civilização é entendido como um processo ambivalente de transculturação, isto é, de transformação de um modo de vida voltado para a guerra com inimigos indígenas, caracterizado por uma tecnologia rudimentar, em um estilo de vida pacífico, em que objetos e ideias ocidentais modulam as relações na aldeia. Viver em comunidade é, assim, a forma contemporânea de se relacionar com diversos Outros. “Misturados” ou de sangre mezclada é também a maneira como os povos nativos do baixo Urubamba, na Amazônia peruana, pensam a si mesmos, em oposição a outros “tipos de gente” (GOW, 1991, p. 85). P. Gow sublinhou a positividade da “mistura” de tipos de gente distintos para a produção das novas gerações (século XX) que, quase despojadas de sinais culturais diacríticos, surgem sob o signo da liberdade e da civilização, por oposição à gente “pura” do ado (século XIX), que vivia na escravidão das fazendas, sem o à escola e às mercadorias. Esses tipos de gente (índios puros, índios misturados e brancos) observariam relações diferenciais com a terra e o sistema econômico (a saber, o regime de aviamento, o mesmo que vigorou na Amazônia brasileira e que se baseia na circulação e no incremento inexorável da dívida). Nesse sentido, os povos nativos do baixo Urubamba são apresentados como “progressistas”, abertos a inovações e voltados para o exterior, sua configuração sociocultural correspondendo a uma variação estrutural de outros sistemas de parentesco amazônicos. Por seu turno, A. C. Taylor (2007) propõe que os povos de língua Quéchua da Amazônia ocidental, classificados como “misturados” ou “aculturados”, formam sociedades híbridas, eminentemente transformacionais e ambivalentes, que historicamente serviram de amortecedores para o avanço dos colonizadores, permitindo que seus vizinhos, os belicosos Jívaro, mantivessem um grau mais alto de independência. Desse modo, os índios “mansos” teriam elaborado um regime de historicidade complementar àquele elaborado pelos “selvagens” Jívaro a partir de um fundo cultural comum, que explicaria a permeabilidade entre as identidades “manso” e “selvagem”. Tais regimes de historicidade apontariam para uma modulação na relação com a alteridade constitutiva do Eu (TAYLOR, 2007, p. 158), sendo que o caráter distintivo das narrativas históricas contadas pelos “índios mansos” consistiria na reorganização dos elementos de memória partilhados por todos os moradores de uma mesma região nos termos de uma estrutura ternária, que compreende 5 Socialidade é um termo empregado por M. Strathern (2006) para designar uma forma ativa de criação e manutenção de relações sociais, que envolve as pessoas numa trama de interdependências mútuas, abrangendo os aspectos moral, sentimental e estético da forma de constituição de relações.
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os seguintes estágios de socialidade imaginada: o “tempo da selvageria”, o “tempo da escravidão” e o “tempo da civilização” (p. 155 e s.). Esses casos etnográficos revelam a apurada consciência histórica contida em categorias sociais de povos que sofreram de maneira brutal o impacto das frentes extrativistas na Amazônia e que, num viés culturalista, geralmente são considerados como de “baixa distintividade cultural”, portanto indignos tanto do interesse antropológico como da assistência estatal, uma postura criticada por J. P. de Oliveira (1998). Ora, se o foco na coerência e na integração do grupo social aplica-se mal a estes e a outros povos (ver, por exemplo, uma reflexão sobre a situação dos povos emergentes do Nordeste brasileiro em J. P. de Oliveira, 1999), não é porque sua configuração sociocultural atual seja desinteressante em si, mas porque as categorias analíticas “tradicional” e “aculturado” são inadequadas para proceder a uma análise desse tipo de fenômeno social. Por isso, não apresentarei os Apiaká como mais um caso de desintegração cultural e social; pretendo, antes, delinear os contornos gerais e os termos centrais de suas narrativas sobre o ado, as quais informam o discurso político da identidade étnica no presente. Para tanto, realizarei um cruzamento entre as narrativas apiaká obtidas em campo e as informações encontradas em textos de viajantes, missionários e es, escritas principalmente no século XIX.
A visão de viajantes, es e religiosos Com base em registros escritos, podemos afirmar que os brancos surgem como um entre os vários “outros” com os quais os Apiaká se relacionam desde o final do século XVIII; é neste período que aparecem as primeiras menções aos Apiaká em crônicas de viajantes e em documentos istrativos referentes ao interflúvio Arinos-Juruena (o rio São Manoel, mais tarde rebatizado de Teles Pires, só seria explorado no século XX), região que abriga muitas riquezas naturais, especialmente ouro e pedras preciosas, alvo do interesse de particulares paulistas e dos governos provinciais de Mato Grosso e Pará. De acordo com a reconstituição histórica de M. Menéndez, ao final do século XVII, antes, portanto, do avanço dos colonizadores para o interior da Colônia, na imensa área entre os rios Madeira e Tapajós, vigorava uma rede de relações intrincada, que ligava, por meio da guerra e das trocas, povos do tronco Tupi e alguns do tronco Macro-Jê, organizados em pequenos grupos com alto grau de mobilidade espacial. Nessa época, os Tapajós e os Tupinambá começaram a se deslocar para aquela área, provocando rearranjos territoriais; após o rápido declínio desses dois povos predominantes, os demais grupos teriam ficado bastante expostos ao contato com os brancos (MENÉNDEZ, 1981/2, p. 319). É possível que tais povos não formassem unidades sociais discretas e duradouras, a exemplo dos Tupinambá quinhentistas, cujas aldeias, na costa, 17
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compunham um conjunto informe de grupos locais circunvizinhos que não estava sujeito a uma autoridade comum nem tinha fronteiras rígidas (FAUSTO, 1992, p. 384). Para Fausto: A inimizade recíproca distinguia grupos de aldeias aliadas, que operavam segundo uma estrutura de tipo “rede”: as aldeias, unidas uma a uma, formavam um “conjunto multicomunitário” capaz de se expandir e se contrair conforme os jogos da aliança e da guerra. Os limites dessas unidades não são palpáveis nem definitivos: um dia poder-se-ia estar de um lado, no dia seguinte do outro – inimigos (e cunhados) eram justamente tobajara: “os do outro lado”, como sugere a etimologia mais provável do termo (FAUSTO, 1992, p. 384).
Menéndez afirma que os Mura, os Sateré-Mawé e os Munduruku “parecem ter constituído por longo tempo uma espécie de escudo protetor” para os povos que ocupavam posição mais interiorana na área Tapajós-Madeira (MENÉNDEZ, 1989, p. 334). Os Apiaká constituíam um desses povos mais interioranos, cujo movimento de expansão deve ter se iniciado em fins do século XVIII, impulsionando o deslocamento dos Tapayúna, seus inimigos, mais para leste (MENÉNDEZ, 1981/2, p. 332). A extensão do território apiaká era, assim, determinada pela empresa guerreira e pela coleta de pedras para seus machados e de hastes para fabricar flechas; os Apiaká percorriam então vastas extensões no encalço de seus inimigos tradicionais, demonstrando grande capacidade de mobilização para a guerra (GUIMARÃES, 1865, p. 317; NIMUENDAJU, 1963a,b). As célebres tatuagens faciais, marcas distintivas do povo, retratadas por Hercules Florence no âmbito da expedição chefiada pelo barão de Langsdorff, que ou pelos rios Arinos e Juruena em 1828 (MONTEIRO; KAZ, 1988), atestavam as “proezas e valentias nos combates com inimigos”, bem como a participação nos ritos antropofágicos decorrentes das guerras (GUIMARÃES, 1865, p. 312; NIMUENDAJU, 1963a,b). O registro mais completo que encontrei sobre os Apiaká no século XIX foi escrito pelo cônego jesuíta José da Silva Guimarães, que ou alguns dias em companhia de uma comitiva apiaká em viagem à sede do governo provincial, em 1819. Esta viagem é especialmente interessante porque revela a atitude de curiosidade dos Apiaká em relação aos agentes poderosos e detentores de mercadorias, que se manterá constante até os dias atuais6. Ao final da estada em Cuiabá, anota Guimarães, o governador teria presenteado os Apiaká com roupas e objetos, oferecendo ao cacique um uniforme militar completo; o grupo teria se irado, sobretudo, da espada, afirmando que serviria para “cortar as cabeças dos Tapanhónas, seus figadaes inimigos” (GUIMARÃES 1865, p. 314). A atitude pacífica em relação aos brancos contrastava, assim, com o circuito de guerras de vingança ainda vigente com os 6 Os Apiaká apreciam muito fazer e ouvir relatos sobre viagens. Eles gostam de contar histórias sobre longas viagens, realizadas nos séculos XX e XXI, para centros políticos como Alta Floresta, Apiacás, Cuiabá e Brasília, bem como sobre expedições em busca dos parentes isolados no Pontal.
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PATRÕES, CUNHADOS E ONÇAS. OS BRANCOS NO UNIVERSO APIAKÁ
povos vizinhos. Tendo como intérprete um brasileiro que vivia numa aldeia apiaká e acompanhava a comitiva, o religioso anotou que: Os Appiacás fazem a guerra, não por ambição, mas pelo desejo de vingar sua nação, excitado pelos seus anciões, que conservando ódio implacável a seus antigos inimigos, recontam em suas palestras as adas affrontas que sofreram d’esta ou d’aquella nação, estimulando assim os moços a procurar vingança, que sempre lhes aconselha. Por isso é a guerra amiudadas vezes promovida pelo povo, que a pede ao cacique, e este outras vezes é que a determina, mandando fazer os aprestos necessários, e solicitando o auxilio das outras aldêas, cujos caciques nunca o podem negar. (...) A guerra dos Appiacás é sempre feita por traição (...) Os seus prisioneiros são conduzidos às aldêas, onde com grande apparato são comidos, não só pelos guerreiros, como pelas mais gentes das mesmas aldêas; dando-se cuidadosamente esta vianda aos meninos, aconselhando-os que sejam intrepidos desde já, para se regalarem com tão saborosa comida. Para se emprehender a guerra é preciso consultar aos pagés, que são certos embusteiros mais espertos, que a massa geral da nação, os quaes se dizem adevinhadores (...) (GUIMARÃES, 1865, p. 308 e s.).
A visita dos Apiaká a Cuiabá ocorria no momento da intensificação do comércio entre as províncias de Mato Grosso e Pará, autorizada por D. João VI em 1815. A aliança com os Apiaká, habitantes das margens do Arinos, rio por onde se fazia o transporte de mercadorias, mostrava-se estratégica, daí porque o então governador e capitão-general de Mato Grosso, marquês de Aracati, ordenara que se tratasse “com a maior humanidade possível a numerosa e guerreira nação Appiacás” (p. 305), que até poucos anos antes representava um obstáculo às expedições oficiais, como foi o caso da investida contra a expedição de Manoel Gomes dos Santos, em 1805, no Arinos (CASTRO; FRANÇA, 1868, p. 115)7. O cônego explica que: Vivia esta nação desconfiada, porque os primeiros navegantes do rio Arinos tinham disparado alguns tiros de espingarda para se desembaraçarem defensivamente dos guerreiros d’ella, que, vindo a reconhecel-os, principiaram a fazer hostilidades, que se devia evitar, visto não attenderem aos signaes, que se lhes dava de paz e concordia. Com a frequência da navegação, e com os presentes que lhes mandou fazer o dito Capitão General, começaram a apparecer aos viajantes, e até entraram a itir em suas aldêas alguns Brazileiros, que ahi quizeram ficar, com os quaes se foram 7 A informação mais antiga que encontrei sobre os Apiaká data de 1746 e é de autoria de João de Souza Azevedo, o qual, em expedição pelo Tapajós, menciona um “reino dos Apiaká” no baixo Arinos (apud FONSECA, 1880, p. 68). Depois disso, em 1779, o tenente coronel Ricardo Franco de Almeida Serra atribui o fracasso da exploração das minas de Santa Isabel, situadas próximo às cabeceiras do Arinos, parcialmente aos Apiaká: “Na margem oriental do Arinos, e não longe da fronteira, lugar da foz do Rio Negro, existem as minas de Santa Isabel, das quaes se fez partilha no anno de 1749, a que concorreu bastante povo; mas a valente e temivel nação Apiassá, que habita aquelles terrenos, e carestia dos mantimentos e generos precisos para a dispendiosa extracção do ouro, as poucas forças de Cuyabá no 20.º anno de sua creação em villa, e finalmente a descoberta dos diamantes e ouro do Paraguay, tudo foi caso urgente para se abandonarem as minas de Santa Isabel, perdendo-se ainda a positiva certeza do lugar da sua antiga existencia.” (ALMEIDA SERRA, 1869, p. 10). Em 1844, o viajante F. de Castelnau conheceu alguns índios Apiaká em Diamantino (MT), dos quais obteve informações sobre a vida do povo muito parecidas com as registradas pelo cônego Guimarães (CASTELNAU, 2000, p. 329-333).
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familiarisando, e d’elles colheram as noticias precisas para o conhecimento que haviam ter do nosso caracter e da nossa obsequiosa correspondencia (GUIMARÃES, 1865, p. 305).
Décadas mais tarde, em 1848, os Apiaká serão definidos pelo primeiro diretor geral dos índios de Mato Grosso como ainda vivendo no “primitivo estado de independência” – caracterizado, sobretudo, pela prática da antropofagia –, embora mantendo boas relações com os colonizadores (apud BARROS, 1989). Nos escritos do século XIX, os Apiaká são classificados como “mansos” e “úteis” à empresa colonial, em oposição aos “ferozes” Nambiquara (família linguística isolada), Tapayúna e Munduruku, que continuavam constituindo sérios obstáculos à ocupação colonial e à economia regional. A partir de 1819, não mais se encontram menções a ataques de Apiaká a estabelecimentos de colonos e sua cordialidade em relação aos viajantes será sempre ressaltada. Os Apiaká aparecem então como colaboradores dos colonizadores, atuando como remadores e guias valorosos, em troca de objetos industrializados, durante o penoso processo de estabelecimento da rota comercial que ligava os “dilatados sertões” do Tapajós ao porto de Belém. No entanto, em 1861, o geógrafo W. Chandless deparou-se com seringueiros na foz do São Manoel (Teles Pires) e relatou que um grande contingente Apiaká do rio Juruena fugira para o curso baixo deste rio (CHANDLESS, 1862, p. 273). Em 1895, H. Coudreau registrou, no baixo Juruena, aproximadamente 100 índios Apiaká vivendo em cinco aldeias, duas delas chefiadas por seringueiros não-indígenas (COUDREAU, s.d., p. 238); no alto curso do rio Tapajós, deparou-se com índios Sateré-Mawé e Munduruku engajados na indústria de extração de látex, reduzidos numericamente e ligados a “regatões” e seringalistas por relações de dívida, no âmbito do sistema de aviamento. Por sua vez, acima do Salto Augusto, barreira natural no baixo curso do rio Juruena, os Tapayúna, Nambiquara, Parintintin (Tupi-Guarani), Bakairi (Carib) e Kaiabi resistiam bravamente ao contato com os brasileiros. Na virada para o século XX, os brancos, seus objetos e seus germes haviam alterado consideravelmente a rede de relações entre os povos indígenas na região dos formadores do Tapajós.
Patrões que viram afins O estabelecimento da frente da borracha na segunda metade do século XIX, na área dos formadores do rio Tapajós, teve um peso decisivo na história dos povos indígenas que ali viviam. Como se sabe, a empresa extrativista baseava-se no endividamento progressivo e no trabalho forçado das populações locais, controladas por prepostos de seringalistas, que utilizavam métodos violentos para obter excedente comercializável; os próprios seringalistas raramente visitavam os barracões, vivendo antes nas grandes cidades amazônicas e obtendo crédito nos bancos aí sediados. Aqueles a 20
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quem os Apiaká se referem como patrões são, em geral, os representantes dos seringalistas, homens que controlavam e distribuíam as mercadorias em troca de látex e anotavam em cadernos dívidas e créditos – aquelas sempre superiores a estes8. A atividade de extração de látex nos seringais nativos da Amazônia não requeria a ocupação efetiva do território, a propriedade da terra ou o desenvolvimento de atividades de cultivo, mais duradouras; contrariamente, os grandes contingentes de homens vindos do Nordeste e do Estado do Pará buscavam o enriquecimento rápido e eram organizados em grupos que mudavam de lugar tão logo as árvores, dispersas por uma imensa área, dessem sinais de esgotamento9; sua subsistência consistia de atividades de caça, pesca, coleta e agricultura, que devem ter se beneficiado em muito do conhecimento ecológico dos povos indígenas com que interagiam. Todavia, muitos arigós e alguns prepostos de patrões acabaram se fixando na região e se unindo a mulheres indígenas. Nas narrativas apiaká sobre o ado, os massacres empreendidos por particulares contra o povo ocupam lugar de destaque. Uma história emblemática para os Apiaká é a da morte de Paulo Corrêa, patrão poderoso, ocorrida na primeira década do século XX. De acordo com um dos últimos falantes do idioma Apiaká: Tinha uma índia Apiaká, a mulher do Paulo Corrêa, era ela que atiçava o pessoal dele para matar Apiaká: “Pode matar Apiaká, Apiaká não presta.” Aí o pessoal sentava o pau, lá na Barra. Aí os Apiaká fugiram da Barra, foram para o São Tomé, foram fazer a aldeia Apiakatuba: “Aqui é nosso lugar, Apiakatuba”, se escondendo por causa daquele pessoal. Aí foi indo, até que terminou essa briga deles, os Apiaká ficaram mansos, acabou o medo dos brancos. (...) Eles pegaram a cabeça do Paulo Corrêa lá na Barra mesmo, o guaxeba10 dele, branco mesmo, entregou para os Apiaká: “Aqui a cabeça do seu cunhado; ele matava um monte de parente de vocês, agora vocês levam para a aldeia de vocês.” Aí eles foram por terra de novo; atravessaram o rio Bararati e o Ximari, na banda do Amazonas. Quando chegaram na boca do São Tomé, atravessaram para esse lado do Pontal. Aí pegaram a estrada deles e vieram embora. Chegaram na aldeia, falaram: “Olha a cabeça do Paulo Corrêa. O amigo dele mesmo entregou a cabeça para fazer festa. Então nós trouxemos.” Aí pintaram a cabeça dele de urucum, botaram (urucum?) no buraco dos olhos dele, riscaram tudo, aram jenipapo, ficou pretinho, tornaram a riscar do outro lado, aqueles riscos no rosto, ficou diferente. “Você conhece aquele cara que matava nossos parentes?” “Não.” “Olha aí ele”, o capitão dizia. Era assim. Mas era festa direto, vários dias. Dizem que ele matava gente demais, até branco ele matava. (A história me foi contada em português, na aldeia Mayrob, em 30.07.07).
Contando a mesma história, o atual cacique de uma das aldeias apiaká, bem mais jovem, acrescentou: “Eles fizeram festa para comemorar a liberta8 Ver Weinstein (1993) para uma boa análise do negócio da borracha na Amazônia. 9 O livro do seringalista R. P. Brasil (1910) fornece um bom panorama das atividades econômicas no vale do Tapajós na virada para o século XX. 10 Guaxeba era o homem de confiança do patrão, a pessoa que castigava os empregados e portava arma de fogo.
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ção do povo e a morte da onça que estava comendo os parentes”. De fato, há registros históricos sobre a existência de um coletor de impostos e seringalista chamado Paulo Corrêa, morto em circunstâncias obscuras na primeira década do século XX; menções a seus desmandos contra os empregados podem ser encontradas nos relatórios da Comissão Rondon (1915, 1916) e no livro do memorialista paraense R. P. Brasil (1910, p. 91). Entretanto, os Apiaká parecem empregar o nome Paulo Corrêa como uma figura de linguagem, uma posição discursiva que pode ser ocupada por diferentes pessoas, e que remete à constituição do modo de vida contemporâneo, que consiste em índios misturados e mansos, vivendo em comunidade. Como vimos, no século XIX as guerras de vingança, a captura de cabeças e os ritos antropofágicos configuravam uma matriz cultural Tupi na região dos formadores do Tapajós11. P. Menget afirma que as cabeças valorizadas pelos Munduruku eram as de inimigos de outros grupos, especialmente os Parintintin, Sateré-Mawé e Apiaká, não havendo referência à caça a cabeças de brancos (MENGET, 1993, p. 314). As cabeças-troféu eram objeto de um longo e complexo ritual que focalizava a dinâmica da reprodução geral (p. 318) e exprimia a hostilidade em todos os níveis sociais e cosmológicos (p. 320). Menget estabelece um paralelo entre o cerimonial da cabeça-troféu Munduruku e o da morte em terreiro dos inimigos dos Tupinambá (p. 315)12. Lendo de forma crítica a análise de Florestan Fernandes (2006) das guerras de vingança e dos ritos antropofágicos praticados pelos Tupinambá quinhentistas, Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1986) propam que a vida social daqueles indígenas era função da produção do par matador-inimigo, de tal modo que a necessidade de vingança, decorrente do canibalismo, colocava em relação de hostilidade permanente os grupos envolvidos em confrontos (CARNEIRO DA CUNHA; VIVEIROS DE CASTRO, 1986, p. 65), não tanto no sentido de evocar relações adas, mas sobretudo no de estabelecer as bases para relações futuras. Para estes autores, o inimigo morto em terreiro deixava uma memória de vingança que cabia aos vivos honrar; dessa forma, “os inimigos am a ser indispensáveis para a continuidade do grupo, ou melhor, a sociedade Tupinambá existe no e através do inimigo” (p. 70). A memória assim colocada a serviço do futuro leva os autores a classificar as sociedades Tupi como “máquinas de tempo” (em oposição às “máquinas de suprimir o tempo” em que se constituiriam as sociedades Jê), 11 Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro afirmam que a quebra do crânio do inimigo era mais importante que a antropofagia para os tupinambá quinhentistas (CARNEIRO DA CUNHA; VIVEIROS DE CASTRO, 1986, p. 60). Os Apiaká e os Kaiabi não dedicavam às cabeças de inimigos o mesmo tratamento ritual altamente elaborado verificado entre os Munduruku, mas os Kaiabi atribuíam enorme importância à quebra do crânio (SENRA, 1999) e confeccionavam colares com os dentes do inimigo; um velho Munduruku me disse que os Apiaká “antigos” faziam cintos com dentes de inimigos mortos em guerra e Guimarães (1865, p. 308) menciona que os homens Apiaká presenteavam suas esposas com colares de dentes de inimigos. 12 Os Yudjá (Tupi) também faziam troféus com cabeças de inimigos, mas, assim como parecia ocorrer entre os Apiaká e diferente do que se ava com os Munduruku, suas guerras não podem ser caracterizadas propriamente como guerras de caça de cabeças. Os Yudjá explicam o valor da cabeça-troféu pela alegria que ela lhes proporcionava durante as festas, as grandes cauinagens que encerravam os ritos de homicídio (STOLZE LIMA, 1995, p. 335).
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como sociedades que têm consciência de sua história e lhe conferem papel central em sua auto-inteligibilidade (p. 75). A guerra de vingança tupinambá exprimiria, pois, “a abertura para o alheio, o alhures e o além: para a morte como positividade necessária” (p. 76). Por sua vez a onça, animal singular na cosmologia de vários povos TupiGuarani, é especialmente temida pelos Apiaká, além de ser o principal animal em que um co-residente pode se metamorfosear para praticar ações nefastas na aldeia13 e o pior xingamento que se dirige a um afim que não corresponde às expectativas criadas pelo casamento14. É significativo, pois, que, num momento de crise, o afim poderoso tenha sido equacionado simbolicamente ao principal inimigo animal dos Apiaká, e que a ele tenha sido dispensado o tratamento ritual anteriormente reservado aos inimigos indígenas, principalmente levando em conta a opção histórica da maior parte dos Apiaká pela aliança com os brancos, no início do século XIX. Além disso, é digno de nota que os Apiaká que estavam na Barra de São Manoel tenham retornado à aldeia no interior para realizar a comemoração, evocando os ritos decorrentes das guerras de vingança dos Tupinambá quinhentistas (CARNEIRO DA CUNHA; VIVEIROS DE CASTRO, 1986; FAUSTO, 1992; FERNANDES, 2006). De modo complementar, proponho que a relação de afinidade mencionada na narrativa, expressa na palavra cunhado, evoca a atitude ameríndia de abertura para o Outro que, de acordo com C. Lévi-Strauss, “se manifestou com toda a clareza quando dos primeiros contatos com os brancos, embora estes fossem animados de disposições bem contrárias” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 14)15. O lugar dos brancos, marcado em vazio no pensamento ameríndio, foi assim preenchido pelos Apiaká (e por muitos outros povos, como propõe COELHO DE SOUZA, 2008) com uma relação de afinidade. Embora seja percebida pelos Apiaká como produtiva em muitos sentidos, a relação de afinidade travada fora do grupo local jamais deixou de encerrar seus riscos. No interior da comunidade apiaká, porém, a afinidade não tem grande rendimento simbólico; não há categorias de afins estabelecidas a priori em relação aos casamentos reais nem tampouco grupos mais ou menos fixos que trocam cônjuges. Casa-se com parentes afastados (para ego masculino, especialmente: ffim, ffIPP, ffimP, fFfFIPP) ou com forasteiros familiares (sobretudo Kaiabi, Munduruku e brancos regionais conhecidos de longa data), e concebe-se que a co-residência é capaz de aplacar o componente de alteridade que caracteriza todos aqueles que não são consanguíneos imediatos. 13 O tema das metamorfoses ocupa posição importante no simbolismo apiaká, mas requer uma análise à parte, que infelizmente não poderá ser realizada aqui. 14 Sugestivamente, de acordo com Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1986, p. 66), a onça podia desempenhar o papel de cativo de guerra entre os Tupinambá, sendo morta em terreiro e conferindo um nome a seu matador, embora sua carne jamais fosse consumida; a ela destinava-se um discurso inverso ao da vingança, na medida em que falava de esquecimento, e não de novas mortes. 15 Embora para os Apiaká a afinidade não tenha grande rendimento simbólico em nível local, ela parece servir como modelo para as relações com os forasteiros em geral, o que os equipara a vários povos amazônicos entre os quais, mesmo quando não há afinidade real (matrimonial), a afinidade (potencial) predomina sobre a consanguinidade enquanto princípio relacional (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 411).
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Mas, como sublinham meus interlocutores nessa narrativa de origem do estilo de vida contemporâneo, o patrão não agiu sozinho, ele contou com a ajuda de uma mulher Apiaká, uma traidora que atuou como elo de ligação entre duas categorias sociais distintas. A morte de Paulo Corrêa constitui, de fato, um marco na história do povo, um ponto de referência em relação ao qual se pode dizer que há um antes e um depois. Entretanto, nesse movimento, a própria identidade social de Paulo Corrêa é colocada em xeque: um patrão que se torna afim e age como onça, desconsiderando a dimensão de dádiva contida na relação econômica e devorando as pessoas, é morto e festejado como um inimigo indígena16. Sua morte inaugura um novo período na história dos Apiaká, que se tornam mansos (abandonam as guerras) e am a ter o a novos objetos e ideias classificados como civilizados. Nesse sentido, falar sobre o ritual com a cabeça de Paulo Corrêa nos dias de hoje parece ser uma demonstração da capacidade de superação de um período especialmente traumático; com efeito, os Apiaká quase foram dizimados e sem dúvida se transformaram culturalmente, mas continuam concebendo a história em termos próprios, isto é, continuam pensando a morte como positividade necessária e acreditando que o inimigo é indispensável para a perpetuação do grupo, uma prova irável de resiliência social. Assim, o pendor guerreiro permanece vivo no discurso, especialmente nas narrativas sobre o ado e a vida nos seringais. O fato de os Apiaká chamarem Paulo Corrêa de onça e de colocarem na boca de um não-indígena o termo cunhado indica a inserção da relação econômica no esquema conceitual da dádiva, que, neste caso, remete ao domínio do parentesco. Nesse sentido, em que pese o componente inegável de exploração contido no sistema de aviamento, o emprego de ambos os termos para se referir ao patrão sugere que os Apiaká concentravam sua atenção no espaço (e no tempo) deixado em aberto por este sistema econômico, que eles preenchiam com uma relação de parentesco ou amizade, marcada pela imprevisibilidade. A relação de patronagem mostrava-se em geral duradoura, e a entrega das mercadorias possivelmente era vista pelos indígenas como retribuição obrigatória pela adoção de um novo modo de vida (não necessariamente pelo trabalho braçal em si)17, assim como a quantidade e a 16 Difícil não recordar aqui o destino similar de outro agente colonial em águas distantes; no Havaí, assim como no Juruena, as pessoas reorganizaram as categorias de classificação do mundo a partir de um evento marcante, naquele caso, a morte do capitão Cook. Isto porque, de acordo com M. Sahlins: “A ação simbólica é um composto duplo, constituído por um ado inescapável e por um presente irredutível. Um ado inescapável porque os conceitos através dos quais a experiência é organizada e comunicada procedem do esquema cultural preexistente. E um presente irredutível por causa da singularidade do mundo em cada ação (...) A diferença reside na irredutibilidade dos atores específicos e de seus conceitos empíricos que nunca são precisamente iguais a outros atores ou a outras situações – nunca é possível entrar no mesmo rio duas vezes. As pessoas, enquanto responsáveis por suas próprias ações, realmente se tornam autoras de seus próprios conceitos; isto é, tomam a responsabilidade pelo que sua própria cultura possa ter feito com elas. Porque, se sempre há um ado no presente, um sistema a priori de interpretação, há também ‘uma vida que se deseja a si mesma’ (como diria Nietzsche)” (SAHLINS, 1990, p. 189). 17 A respeito da divergência de expectativas dos patrões e dos empregados no regime do seringal, Weinstein explica que a produção permanecia em grande medida sob controle direto dos seringueiros que, a despeito da exploração sofrida, gozavam de certa margem de manobra e usavam mesmo de trapaças quando a pressão dos
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variedade de bens que o patrão era capaz de acumular exprimiam a medida de seu prestígio. Empiricamente, a memória coletiva apiaká é ativada, sobretudo, para explicar a atual configuração sociocultural do povo e empregada para fundamentar a luta pelos direitos civis. Sempre que falam sobre a perda da língua indígena, de itens de cultura material e da pintura corporal, além do drástico declínio populacional, os homens politicamente atuantes evocam a história de Paulo Corrêa, destacando não tanto as perseguições empreendidas pelos seringalistas, as disposições guerreiras do povo ou a festa com a cabeça do patrão mítico, mas principalmente os pesados castigos físicos aplicados contra os empregados que não cumpriam as exigências dele, a imposição do português como língua franca e os raptos de mulheres nos seringais. Por outro lado, o que a fala supracitada do velho Apiaká sublinha é o papel de afim desempenhado por Paulo Corrêa – casado com uma Apiaká que o incitava a perseguir os próprios parentes –, o esforço despendido em transformar a cabeça deste afim perigoso num objeto culturalmente valorizado (um troféu de guerra), a alegria e a duração da grande festa. Devo dizer que o casamento entre uma índia Apiaká e um afim estrangeiro é uma metáfora central na história Apiaká. Houve realmente um casamento entre o coletor de impostos que teria colocado fim à sequência de massacres contra os Apiaká na Barra de São Manoel, por volta de 1910, e uma mulher desta etnia. A menção a esta aliança matrimonial encontra-se num documento escrito em 1936 pelo Delegado Especial do Norte, do SPI, endereçado a seus superiores em resposta a um questionamento sobre a atuação dos coletores de Mato Grosso em relação aos Apiaká, denunciada no livro “Os Indígenas do Nordeste”, de autoria de Estêvão Pinto, nos termos seguintes: “Os Apiacás do Tapajoz recentemente destroçados pelas forças fiscaes de Matto-Grosso (...)”. O Delegado comunicou a seus superiores que “as perseguições e destroços aos índios Apiacás pelas forças fiscaes do Estado distam já de muitos annos”, acrescentando que “Para pôr em relevo a cordialidade com que este exemplar exactor (José Sotero Barreto) agia na zona com os Apiacás, basta dizer que se consorciou com uma Apiacá e tem os seus filhos cursando as academias de direito e medicina, em Belém” (SPI, 1936). patrões se intensificava, ao mesmo tempo em que obtinham objetos industrializados e experimentavam certa mobilidade espacial. Os seringueiros determinavam o próprio ritmo de trabalho, podiam mudar de seringal sem saldar as dívidas com relativa impunidade e ainda tinham a chance de “vender” o látex para um regatão que dispusesse de mercadorias de qualidade superior àquelas oferecidas por seu patrão num dado momento. “Parece que os seringueiros tinham ado a contar com um adiantamento em espécie, e o tratavam como bonificação que não teriam de devolver” (WEINSTEIN, 1993, p. 40). Além do mais, como um seringal podia ser explorado por até 50 anos, era de interesse do patrão estabelecer um relacionamento mais duradouro com os seringueiros, evitando demonstrações exacerbadas de violência (p. 42). Ainda de acordo com a autora, a complexa rede de aviamento consistia num sistema poroso, rico de variações em todos os níveis, em que “as modalidades de troca variavam não apenas de propriedade para propriedade, mas até mesmo de estrada para estrada, uma vez que cada um dos “aviados” podia estabelecer acordos muito diversos com o respectivo patrão” (p. 35). Assim, seringueiros, patrões, aviadores locais, membros da elite financeira em Belém e Manaus e compradores estrangeiros engajavam-se numa cadeia de transações vulnerável a todo tipo de contingências.
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A “confusão” dos nomes de Paulo Corrêa, seringalista de péssima reputação na região, e José Sotero Barreto, saudado no Serviço de Proteção aos Índios por sua amizade pelos indígenas, leva a crer que os Apiaká concebem os patrões de forma genérica e estereotipada, em conformidade com uma “história dos sentimentos” (SANTOS-GRANERO, 2007, p. 57), em que se sobressai o valor moral das relações, em detrimento de uma suposta objetividade dos fatos. Durante a pesquisa de campo, vários Apiaká me falavam, com orgulho, sobre um dentista, filho do coletor José Sotero Barreto e de uma mulher Apiaká, que atendia em Belém; falavam ainda sobre Apiaká atuando como pilotos de avião, médicos e outras profissões concebidas como importantes em grandes cidades do Norte, todos eles casados(as) com regionais. Isto somado à veemência com que o velho Apiaká fala sobre o protagonismo da esposa indígena de Paulo Corrêa, evidenciado nas perseguições contra os indígenas, revela a intenção de sublinhar a agencialidade histórica apiaká18. Voltando à cabeça de Paulo Corrêa, percebe-se que o tratamento que lhe foi dispensado pelos indígenas destinava-se a torná-la irreconhecível, isto é, a transformá-la fisicamente em cabeça de inimigo, para que pudesse ocupar o lugar constitutivo reservado à alteridade no simbolismo tupi. De acordo com C. Fausto (2001), a diferença subjetivada do inimigo morto seria o principal butim das guerras de vingança do ado. Este autor interpreta a guerra ameríndia como uma espécie de consumo produtivo, explicitando seu aspecto de destruição e gasto produtivo, sugerindo assim que “em economias do dom a produção de pessoas é um fenômeno da esfera produtiva, e não do consumo” (FAUSTO, 2001, p. 327). O autor defende que a guerra não pode ser reduzida à esfera da circulação nem confundida com a operação da troca (p. 328); sua posição é a de que se deve olhar também para a destruição e o consumo dos corpos para compreender o processo produtivo ameríndio. O abandono das guerras de vingança e da antropofagia, práticas de importância capital para os Apiaká até o século XIX, de acordo com Guimarães (1865) e Nimuendaju (1963a,b), bem como para tantos outros grupos Tupi, certamente trouxe consequências decisivas para a reprodução sociocultural do povo. Não é possível avaliar em que medida a catequização e a redução populacional devida a epidemias e a massacres influenciaram a renúncia coletiva, mas é extremamente significativo constatar que a festa com a cabeça de um branco poderoso assinala, na memória do povo, o desfecho da era das guerras: “Aí foi indo, até que terminou essa briga deles, os Apiaká ficaram mansos”. A “mansidão” que caracteriza os Apiaká misturados no presente ganha assim uma inscrição temporal mais ou menos precisa (início do século XX) e uma nova camada de significado, pois que não se refere apenas ao o regular a mercadorias, instituições ocidentais e à fé católica, mas tam18 O fato de os Apiaká se perceberem como protagonistas não os impede de eleger o abandono como a marca da relação com os antigos patrões. Uma indagação recorrente arremata as narrativas sobre o ado, indicando que, para os indígenas, havia outras “coisas” em jogo além de objetos industrializados: “Pra que os brancos foram amansar a gente, dar miçanga, café, açúcar, sabão? Pra que tirar a gente do mato, se agora nos abandonaram?”
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bém à cessação dos confrontos bélicos. A relação entre ambos os eventos – o a ideias e objetos ocidentais e interrupção das guerras –, aliás, parece ser concebida pelos Apiaká nos termos de uma substituição (e não de uma evolução linear), da qual eles foram co-autores, em alguma medida. Assim, as longas perseguições a inimigos a serem canibalizados foram de alguma forma substituídas pelo o negociado a bens industrializados e à liturgia da salvação, exprimindo o início de uma nova época histórica, em que os Apiaká adotaram um estilo de vida diferente, no qual, contudo, a alteridade continua desempenhando papel constitutivo. Fausto cunhou o termo “desjaguarificação” para se referir à negação do canibalismo como condição geral do cosmos e mecanismo de reprodução social, tal como experimentada, por exemplo, pelos Guarani contemporâneos, cuja cosmologia caracteriza-se pela disjunção de elementos intimamente ligados em outras cosmologias Tupi-Guarani, designadamente o guerreiro e o xamã (FAUSTO, 2005, p. 396). Após séculos de contato intensivo com a fé católica, os Guarani teriam suplantado o pólo-jaguar de seu xamanismo, associado ao sangue, à caça, à morte, à guerra e ao exterior, ando a adotar a ética do amor e da mansidão, voltada para o interior do grupo, e selecionada em detrimento de outros imperativos católicos, como a punição e o inferno. Creio que um processo análogo se deu entre os Apiaká no século XX; ao que tudo indica, o processo de destruição de corpos de Outros (inimigos), imprescindível à reprodução do grupo até o final do século XIX, deu lugar à prática de produção de parentes orientada pela ética da moderação, dentro do universo da comunidade, que é constituído a partir de elementos Outros (ocidentais). No interior da comunidade, há que impedir cotidianamente que co-residentes se tornem Outros, aplacando a dimensão animal da pessoa com ações propriamente sociais, designadamente a dádiva e a partilha de alimentos. Ao identificar aspectos diversos da mesma narrativa enfatizados por diferentes sujeitos – os homens influentes e os velhos –, estou sugerindo que a memória apiaká, seletiva, como toda memória o é, especialmente em contextos de intensa desigualdade de poder, omite certos “fatos” que são, de outro modo, bastante elaborados em outras narrativas convergentes, a saber, as lições sobre como utilizar as mercadorias e a devastação causada pelas epidemias. Com efeito, os aspectos distintamente enfatizados da narrativa explicitam significados, sentimentos e emoções diversos: enquanto o homem mais velho fala em “briga” e no desfecho dramático de uma relação de afinidade com um patrão, condensada no termo cunhado, os jovens homens politicamente atuantes falam sobre a injustiça da exploração econômica e sobre o roubo de mulheres, prática comum nos seringais. Mas é digno de nota que ambos os discursos silenciem sobre os contra-ataques aos moradores da Barra de São Manoel empreendidos pelos Apiaká, eventos mencionados apenas por alguns Munduruku e regionais; já a respeito da an27
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tropofagia, o silêncio é geral (embora os Apiaká digam em conversas ocasionais que os “antigos” comiam algumas partes do corpo de um inimigo morto em guerra). O fator geracional tem muito a nos dizer nesse caso: aquilo que os mais velhos entendem como um regime de dádivas associado à lógica do aparentamento19, os mais jovens percebem como espoliação e inserem num discurso altamente politizado em prol da melhoria das condições de vida. De acordo com F. Santos-Granero (2007), os Yanesha, povo Aruak do Peru que, procuram apagar as injustiças do ado por meio da identificação mimética com o Outro e de uma dialética de esquecimento e lembrança, empregando um dispositivo simbólico que leva à negação do poder do Outro e corresponde ao desejo de supressão do tempo. Por sua vez, os homens influentes Apiaká abordam em suas narrativas as mudanças que experimentaram no último século e reafirmam a convicção na produtividade da relação com o Outro, desde que possam acomodar os resultados dessa relação aos princípios partilhados pelo grupo. Significativamente, a forma que os Apiaká encontraram para assegurar tal produtividade simbólica nos novos tempos foi adotar a linguagem das relações comerciais sem, contudo, assumir a posição social e simbólica de empregados, mas tentando, de modo singular, ocupar a posição de parceiros daqueles brancos que veem como poderosos, desejando equilibrar a estrutura de dominação. Nas narrativas apiaká, o principal critério de distinção entre os brancos é sua posição econômica; assim, há: a) os arigós, nordestinos e paraenses empobrecidos, cuja situação de exploração nos seringais era análoga à dos Apiaká, com os quais muitas mulheres Apiaká se casaram, sendo que alguns deles tornavam-se guaxebas, ando a perseguir mais diretamente os indígenas; e b) os brancos provedores, patrões e missionários de distintas nacionalidades que detinham mercadorias e inclusive, em certas ocasiões, como expressa o registro do cônego Guimarães (1865), tornavam-se aliados indiretos na luta contra povos inimigos. Os Apiaká desejavam relacionar-se com esses brancos, embora tivessem consciência da instabilidade de tal interação20. Se hoje em dia não se pode mais buscar cabeças de inimigos com as quais festejar – parecem cogitar os Apiaká –, os brancos devem fornecer ao menos objetos exóticos que, ao circular entre as famílias extensas, sirvam à reafirmação do ideal comunitário. É consenso entre os Kaiabi e Munduruku vizinhos que os Apiaká tiveram sucesso na criação de suas comunidades, uma vez que se afirma que eles conseguem captar bens que lhes asseguram uma aparência civilizada, ao mesmo tempo em que conseguem manter as 19 Aparentamento refere-se à prática adotada pelos Apiaká de firmar alianças políticas e econômicas pela via do casamento e/ou da convivência prolongada, marcada pelo feeding. 20 A título de comparação, menciono o artigo de C. Howard (2002), que mostra como os Waiwai optaram por diversificar o leque de suas alianças políticas com os brancos para obter mercadorias de modo a evitar uma exploração mais sistemática. De acordo com a autora, a circulação dos objetos industrializados na complexa rede de relações intertribais regional servia à atualização de relações sociais legítimas, e não representava necessariamente uma ameaça a elas.
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relações entre os co-residentes em um nível considerado bom, sufocando os impulsos de antissocialidade, especialmente a feitiçaria, a despeito dos casos de metamorfose temporária que ocorrem em suas aldeias.
O tempo do aviamento A história contada pelo velho Apiaká, transcrita acima, ocorreu nos primeiros anos do século XX, momento em que as relações entre Apiaká e brasileiros evoluíam para o conflito aberto, tendo como causas principais as mulheres e a força de trabalho indígenas. Os massacres sofridos pelos Apiaká, motivados por tentativas de roubo de mulheres e de obtenção forçada de mão de obra, foram empreendidos por vários coletores. Ao que tudo indica, na perspectiva dos Apiaká esses brancos poderosos deveriam proceder como chefes, isto é, engajar-se numa relação de troca com os chefes Apiaká, provendo mercadorias em troca de produtos da floresta e estabelecendo alianças matrimoniais; tais patrões, concebidos como afins potenciais, aram entretanto a agir como onça, isto é, quebraram as principais regras da socialidade apiaká, tomando mulheres sem apresentar a compensação devida; devorando os Apiaká, ao invés de comer com eles; comportando-se verdadeiramente como inimigos, ou seja, como Outros, o que explica o tratamento dado à cabeça de Paulo Corrêa. Nesses termos, o próprio trabalho extrativista realizado pelos índios parece ter sido apreendido pelos Apiaká sob a lógica da dádiva, configurandose um embate entre valores distintos: se, de um lado, os seringalistas procuravam obter mais lucro em seu negócio ao forçar os índios a trabalhar mais, por outro lado, os Apiaká buscavam manter uma aliança que percebiam como produtiva em outros termos. A maneira como os Apiaká pensam sua relação com os brancos aponta para a vigência de um sistema de trocas que se orienta pela lógica da dádiva e que vigora ainda hoje nas comunidades. Ao estudar as formas de troca vigentes em diversas sociedades “primitivas”, M. Mauss concluiu que “uma parte da humanidade, relativamente rica, trabalhadora, criadora de excedentes importantes, soube e sabe trocar coisas consideráveis, sob outras formas e por razões diferentes das que conhecemos” (MAUSS, 2003, p. 231). Mauss definiu a dádiva como “fenômeno social total”, na medida em que, nesse tipo de transação, exprimem-se simultaneamente instituições religiosas, jurídicas, morais (políticas e familiares), propriamente econômicas e estéticas (p. 187). Assim, as pessoas se obrigam por meio das coisas (p. 216) e a vida tribal é um constante dar e receber (p. 226, citando Malinowski), de modo que não existe acumulação strictu sensu. Dialogando com Mauss e C. Gregory, M. Strathern propõe um contraste conceitual entre economias políticas organizadas em torno da dádiva e aquelas organizadas em torno da mercadoria para refletir sobre modos distintos de organização das relações sociais e de produção da desigualdade. De acordo com a autora: “se, numa economia mercantil, as pessoas e as coisas assu29
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mem a forma social de coisas, numa economia de dádivas elas assumem a forma social de pessoas” (STRATHERN, 2006, p. 208). Nas economias da dádiva, vigora a “produção consumptiva”, na qual o consumo de coisas é voltado para a produção de pessoas e se deseja, sobretudo, ampliar relações sociais (p. 222). Numa economia de dádivas, portanto, a vinculação é condição e objetivo de todas as relações: os objetos são criados pela transação, não pelo trabalho; os objetos são eminentemente instrumentos das relações. Nas sete aldeias Apiaká contemporâneas, observa-se que a lógica da dádiva coexiste de modo tenso com a adoção de alguns objetos, valores e comportamentos civilizados. Casos de acumulação individual ostensiva, como os de alguns homens influentes, suscitam reações violentas por parte da comunidade; o constrangimento é um mecanismo eficaz, operando na esfera da política doméstica, que tem na instituição da fofoca, atividade levada a cabo principalmente pelas mulheres, sua principal expressão. Dessa forma, a diferenciação social por meio do acúmulo de objetos e de prestígio é reprimida na proporção mesma em que é desejada por alguns. Ademais, os vínculos de parentesco parecem não bastar para obrigar as pessoas a exercerem a generosidade; tanto assim que consanguíneos distantes e mesmo co-residentes remotamente aparentados reafirmam tais laços por meio da instituição católica do compadrio, que reforça, entre dois casais, a obrigação de partilhar alimentos e objetos, prestar ajuda mútua em atividades cotidianas e oferecer apoio político. A despeito da longa e intensiva inserção dos Apiaká na economia regional, a vida na aldeia é reputada como incompatível com a riqueza individual. Porque se percebem como grupo de parentes, os co-residentes rejeitam o enriquecimento de apenas algumas pessoas; a lógica é: se alguém tem muito, deve repartir entre todos. Assim, a organização social apiaká faculta à comunidade recordar periodicamente aos caciques os perigos envolvidos em tentar se transformar naquilo que se quer englobar, impedindo a cristalização da autoridade e a concentração da riqueza, e declarando a supremacia da coletividade sobre o indivíduo, bem como a supremacia das pessoas sobre os objetos. O prestígio não confere, portanto, poder de mando, e não deve redundar em assimetria de poder: os caciques não podem se tornar patrões. Com efeito, a grande maioria dos Apiaká despreza o lucro financeiro, sendo que o dinheiro não é concebido como valor em si, mas como um meio de manter em funcionamento as redes de interdependência dentro e fora da aldeia. O acúmulo de riqueza individual é percebido, assim, como ameaça ao status quo, na medida em que permite a alguns subtraírem-se a essas redes. Da mesma forma, a autossuficiência individual não é um valor positivo, já que negar os vínculos de dependência aldeã é negar o parentesco e a coresidência (ver, por exemplo, Gow, 2003, p. 65).
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Embora Manoel Teophilo Costa Pinheiro fale em apenas 32 Apiaká sobreviventes de massacres em 1912 (apud RONDON, 1915), o supracitado narrador Apiaká informa que havia outra aldeia “no mato”, no Pontal do Mato Grosso. Os Apiaká bravos que viviam ao longo do rio São Tomé, afluente oriental do Juruena, mantinham contato com os outros Apiaká mansos, empregados de Paulo Corrêa e de outros seringalistas locais. A própria distinção entre mansos e bravos parece datar do início do século XX. A propósito, os Apiaká mais velhos contam divertidas histórias sobre os encontros entre essas duas seções do povo: “Antes, quando eles levavam anzol, fumo, isqueiro, açúcar, café para Apiakatuba, os outros perguntavam o que era aquilo, se era casa de cupim”. Não apenas os Apiaká mansos, mas também missionários proviam mercadorias para os índios bravos de Apiakatuba: O padre Plácido, da Missão Cururu, sempre ia à aldeia Apiakatuba, todo mês ele ia; trazia fumo, anzol, linha, que a gente precisa mesmo. Alguns não conheciam bem os materiais dos brancos; o padre deu uma caixa de fósforo para um e disse: “Você quer fumar? Tem fósforo aqui.” Padre é bicho danado, de vez em quando acende um cigarro. Ele fez um cigarro, pegou a caixa de fósforo, acendeu e jogou o fósforo. O cara gritou: “Que diacho é isso?” O padre riu: “Está com medo? Não queima, não, é fósforo, é assim”, ensinou. E o outro: “Eu não sabia, estava com medo, achei que fosse queimar minha cara toda.”
Os franciscanos da Missão Cururu também atuavam como patrões, na medida em que mantinham um barracão de mercadorias que trocavam por qualquer produto comercializável da floresta que os indígenas ou civilizados levassem até lá. Nas primeiras décadas do século XX, os Apiaká faziam longas viagens até a Missão, carregando carne salgada de caça e peixe, tracajás, castanhas, mel, peles e garras de felinos, óleo de copaíba, resinas etc. para trocar por querosene, sal, raladores de metal, redes de dormir, mosquiteiros, espingardas, munição, anzóis, linha de náilon, miçangas, as e outros artigos apreciados21. O ponto a destacar nesses relatos é o interesse manifestado pelos Apiaká em estabelecer uma relação amistosa e diplomática com esses brancos detentores de mercadorias, de modo a obter os itens valorizados sem gerar confrontos, no momento mesmo em que abandonavam as guerras e a antropofagia. Pode-se argumentar, provisoriamente, que as mercadorias, enquanto ícones de uma alteridade poderosa, satisfaziam a necessidade de signos de exterioridade para a constituição da identidade Apiaká, servindo como equivalentes simbólicos das cabeças “festejadas” de outrora. Desse modo, é como se os patrões e missionários fornecessem aos Apiaká um novo modelo de socialidade, mediado pelas mercadorias, enquanto se inviabilizava o antigo, por meio da catequização e das altas taxas de mortalidade. Os Apiaká parecem ter aderido mais ou menos rapidamente ao novo estilo de 21 Consultar Arnaud (1971, 1974) para o panorama das relações estabelecidas pelos índios Munduruku com os patrões, os missionários e os funcionários do Posto Indígena na primeira metade do século XX, na região estudada.
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vida, embora não tenham jamais esquecido os ideais guerreiros e as rivalidades com povos vizinhos, especialmente com os Kaiabi. A principal característica distintiva desses brancos opulentos era o fato de acumularem uma grande quantidade de bens, inesgotável aos olhos dos índios, e controlarem sua distribuição entre os trabalhadores, ação fundamentalmente arbitrária, posto que sustentada na ignorância da dívida, uma vez que apenas o patrão podia ver o caderno, além de ser um dos poucos que sabia fazer cálculos e escrever. Movidos pela consciência dessa assimetria de saber e de poder, os Apiaká hoje valorizam sobremaneira a escola, e os caciques mantêm cadernos onde anotam os bens e os valores que entram e saem da comunidade. Porém, os Apiaká não valorizam tanto as mercadorias em si, mas se interessam, sobretudo, por sua origem, pelo modo como foram obtidas e por seu destino social, isto é, pelo circuito de casas que elas irão percorrer na aldeia, pelas relações que elas irão ativar, reduzindo com isso a dimensão mercantil desses objetos para colocá-los a serviço de relações propriamente sociais, aquelas orientadas para a intensificação do senso de comunidade. É interessante notar que, se por um lado, ataques bélicos e intercasamentos marcam tanto as relações com os brancos no início do século XX quanto as relações com outros povos indígenas desde pelo menos o século XVIII, por outro lado, as mercadorias e as epidemias singularizam, de modo ambivalente, a interação com o branco. Desse modo, sugiro que, nas narrativas históricas, o branco opulento, provedor de mercadorias, classificado simultaneamente como afim potencial e inimigo perigoso, aparece em posição análoga à do criador Bahíra22, o qual, em narrativas apiaká, dava aos homens objetos e ensinamentos úteis para a vida na mata. Todavia, como nos conta um homem Apiaká, enquanto Bahíra, no começo do mundo, explicava aos antigos como utilizar o machado de pedra, os filhos deles, que haviam nascido “no meio dos brancos” e já conheciam ferramentas de metal, desdenhavam o instrumento. E aqui reencontramos a distinção geracional que marca a relação com os brancos. Pois o velho Apiaká alude a dois tempos distintos: uma era mítica em que Bahíra se relacionava diretamente com os Apiaká e um período (ainda em curso) em que os Apiaká preferiram se relacionar com os brancos para adquirir objetos industrializados23. Observa-se que, para os Apiaká, o processo de civilização é fundamentalmente ambivalente, na medida em que a morte surge como correlata das mercadorias. Mais recentemente, nos anos 1960, no vale do Arinos, durante o auge da exploração de caucho, os Rikbaktsa (Canoeiro) realizavam ataques violentos aos trabalhadores, arigós e Apiaká. Os Apiaká e Munduruku mais velhos são unânimes em afirmar: “Morreu muita gente. Branco matou muito 22 Bahíra é a versão apiaká do herói Maíra de outros povos Tupi-Guarani, assimilado pelos índios a Jesus Cristo; Tupã aparece alternativamente a Bahíra como sinônimo do Deus cristão, sendo associado diretamente ao trovão (tupasing) e à espingarda (tupã). 23 Os Tenetehara (Tupi-Guarani) dizem que Maíra lhes deu os instrumentos de ferro, juntamente com as plantas cultiváveis (WAGLEY; GALVÃO, 1961, p. 48). Os Kawahiwa postulam sua relação com os brancos e com Bahíra nos termos de uma escolha que resultou na aquisição de instrumentos de metal pelos brancos (MENÉNDEZ, 1989).
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Canoeiro e Canoeiro matou muito branco e índio. Mas também não faltava mercadoria, era muita mercadoria”. Igualmente, o período em que os Apiaká viveram nas imediações da Missão Cururu caracterizou-se tanto pelo afluxo de mercadorias quanto pela ocorrência de epidemias: Quando nós saímos da Missão, fomos para o Anipiri (PA), lá é farto de comida, peixe; aí o pessoal começou a se espalhar, e tinha muita doença, sarampo, catapora, alastrina, doença feia. Eles não sabiam que diacho era aquilo e banhavam no rio; aí amanheciam duros, eram dois ou três por noite, era assim, morreu muita gente. Aí foi acabando Apiaká, só escaparam meu pai e o cunhado dele.
Devo esclarecer, todavia, que os velhos Apiaká só mencionavam as epidemias quando eu os questionava diretamente sobre elas, e que o velho Apiaká apenas me contou que perdeu vários irmãos, vítimas de sarampo, após dois meses de convivência intensa comigo. O fato de o irmão e a irmã mais velhos desse homem se negarem veementemente a falar sobre o ado, afirmando constantemente que já se esqueceram e o fato de terem deixado de conversar com seus filhos e netos no idioma Apiaká, atualmente em desuso (apesar do esforço de alguns professores indígenas em reativá-lo por meio da escola) são expressões do caráter traumático do contato para os Apiaká. Eles não fazem como os Yanomami, que postulam uma relação direta e explícita entre mercadorias e doenças (ALBERT, 2002). Os homens influentes Apiaká me explicaram que, para ter informações sobre o ado de seu povo, muitas vezes tiveram de recorrer a velhos Kaiabi e Munduruku, pois os velhos Apiaká não gostam de falar sobre o que viveram. Assim, o modo de vida civilizado do século XX caracteriza-se inicialmente pela presença de mercadorias e, posteriormente, pelo abandono, pela ruptura de uma relação que os Apiaká haviam imaginado, de acordo com a lógica da dádiva e do parentesco, como de cooperação e provisão de bens industrializados. Ainda hoje os brancos opulentos são vistos como afins potenciais e parceiros comerciais e políticos prediletos, embora sejam potencialmente perigosos. Por algum tempo, a Funai e os missionários foram concebidos como atores opulentos, fornecendo aos índios bens industrializados valorizados; nos anos 1990, quando o fluxo de objetos começou a escassear, porém, os índios se sentiram abandonados. Significativamente, os objetos industrializados mais valorizados pelos Apiaká são medicamentos, e a reorganização política Apiaká na última década deve muito à capacidade de obter e distribuir bens e serviços não apenas para o conjunto das aldeias apiaká, como também para aldeias kaiabi e munduruku no Rio dos Peixes e no Teles Pires.
Em busca do espaço perdido Antes de concluir, gostaria de me deter no valor que os Apiaká atribuem ao espaço, não apenas em termos simbólicos e sociais, mas também no que respeita à constituição do discurso da identidade étnica no século XXI. 33
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Os Apiaká falam apaixonadamente de um grupo de parentes que recusou o contato com os brancos e voltou para a mata, já no século XX24; esse grupo faria visitas esporádicas aos parentes civilizados no rio Juruena, nos dias de hoje, guiado por seus pajés. Os Apiaká desejam fortemente o contato com esse grupo, como forma de recuperar um pouco de sua cultura (sobretudo a língua), e lutam para demarcar o território por onde eles transitam, como forma de protegê-los do contato com os brancos. A insistência na presença de um grupo “isolado” na área reivindicada indica algo além de uma estratégia política, indica que os Apiaká pretendem recuperar não apenas uma terra, mas um lugar, isto é, um contexto social e um modo de vida inviabilizado pela colonização. Na medida em que para vários povos indígenas a relação com o lugar estrutura a experiência social, podemos compreender as palavras do velho Apiaká como verdadeira expressão da busca de um espaço-tempo perdido: “Apiakatuba, lá é nosso lugar, lugar do povo Apiaká, lá é rico”. De acordo com K. Basso (1996), os termos “história indígena” e “etnohistória” parecem cada vez mais ceder terreno a um tipo de estudo antropológico próximo a uma “etnogeografia”, uma vez que muitos povos de tradição oral investem o espaço de uma concepção sobre o ar do tempo e de valores morais que tornam única uma dada comunidade. Para os Apache ocidentais, por exemplo, “história” é a arte narrativa de construir lugares por meio de imagens do ado que aprofundam a consciência do presente. É dessa maneira que a busca das concepções indígenas de história adquire os contornos de uma “etnografia das topografias vividas” (BASSO, 1996, p. 111), cuja densidade humana se expressa sob a forma de quadros simbólicos sobre o mundo físico associados a padrões de comportamento socialmente sancionados. Para os Apiaká, os padrões de comportamento socialmente sancionados ocorrem no interior da comunidade, uma entidade temporal, uma localidade em processo onde os co-residentes devem agir uns em relação aos outros como parentes, o que significa colocar em prática cotidianamente o valor da generosidade, especialmente por meio da partilha alimentar, tarefa considerada cada vez mais difícil devido ao afluxo crescente de dinheiro e mercadorias nas aldeias25. Nos níveis local e supralocal, os Apiaká estabelecem uma relação de “simbiose” com os Munduruku e de “hierarquia” com os Kaiabi, com inflexões regionais: no Rio dos Peixes, os Kaiabi ocupam a posição superior na hierarquia intertribal, e os Munduruku geralmente agem 24 Laraia fala sobre a insistência com que os Akuawa-Asurini, os Suruí e os Kaapor, povos Tupi-Guarani, referem-se a outros índios, “aqueles que ficaram no mato”, “aqueles de quem se separaram em função de uma contenda violenta” e grupos de características nitidamente mitológicas (LARAIA, 1984/85, p. 26), sugerindo a importância deste tema para a compreensão do processo de segmentação que teria originado os povos Tupi contemporâneos. 25 O dinheiro é proveniente principalmente dos cargos assalariados nas áreas da saúde e da educação, de projetos diversos e da venda da castanha-do-pará; ao menos parte dele é coletivizada, uma vez que todos os assalariados e aposentados devem contribuir para a compra de alimentos industrializados por ocasião de festas e para a compra de objetos de uso coletivo, como aparelho de TV, voadeira, tacho para torrar farinha, etc.
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como aliados dos Apiaká para fazer frente a esta predominância; no rio Teles Pires, os Munduruku predominam e protegem os Apiaká contra os Kaiabi; mas são os Kayapó, com quem os Apiaká mantêm uma relação amistosa, que detêm as posições de maior influência no âmbito da istração da Funai e da Funasa. Esta situação é equivalente àquelas discutidas por A. Ramos (1980), que afirma que experimentar a desintegração social em meio a outros índios é muito diferente de experimentá-la entre brancos; no caso dos Apiaká, como pudemos notar, a convivência com antigos inimigos assegurou-lhes, significativamente, a sobrevivência enquanto povo – um traço eminentemente Tupi. No presente, os Apiaká manifestam forte desejo de autonomia política frente ao Estado e fazem uso da diplomacia como política interétnica, divulgando uma imagem de pacifismo; os Apiaká afirmam repetidamente que hoje resolvem os problemas por meio da palavra, não por meio da borduna. Como vimos, a transformação das relações de guerra e hostilidade com os vizinhos indígenas em alianças pontuais estratégicas, ocorrida nos séculos XIX e XX, se deu num contexto em que os Apiaká tentaram fazer dos patrões aliados, mas acabaram se deparando com sua ferocidade. Nesse período, as relações entre os povos indígenas tiveram de se reajustar em função das relações com os brancos, o belicismo e a troca comercial combinando-se e ajustando-se no interior das novas estruturas burocráticas, das quais os Apiaká vêm se apropriando com rara habilidade. Assim, se os brancos (missionários) foram importantes nos anos 1960 para garantir a convivência de Apiaká e Kaiabi, hoje em dia ambos os grupos se rivalizam por intermédio de outros brancos e suas instituições (Funasa, Funai, projetos de geração de renda, fazendeiros e políticos locais etc.). No Rio dos Peixes, os Apiaká apropriaram-se da estrutura da Funasa e vêm realizando um trabalho reconhecidamente bom, uma vez que trabalham “para todo o mundo” (entenda-se: as outras etnias do Distrito Sanitário Especial Indígena e da istração Regional da Funai, quais sejam, Kaiabi e Munduruku). Mas, no domínio doméstico, a hostilidade histórica em relação aos Kaiabi é perpetuada, e os Munduruku são aliados políticos apenas em certas ocasiões. Os Apiaká continuam apreciando a parceria (comercial e política) com os brancos, sem esquecer, contudo, que parceiros podem virar onça, o que parece ecoar uma opção antiga por relações social e simbolicamente produtivas. Em linhas gerais, a experiência histórica recente dos Apiaká pode, portanto, ser pensada como o projeto de transformar patrões em parceiros e impedir que estes virem onça, ao o que a comunidade se esforça para inviabilizar a instituição de relações de patronagem em seu interior. Ao tentar apreender o modo como os Apiaká elaboram simbolicamente o tempo, a mudança e a relação com os brancos, eu pretendia produzir um deslocamento, ainda que muito sutil, na forma como é contada a história 35
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dos povos indígenas da região dos formadores do Tapajós, não apenas no sentido de ajudar a repensar a maneira como os historiadores registraram as relações estabelecidas naquela área, mas sobretudo no sentido de instaurar, no presente, um diálogo entre regimes de historicidade distintos, tal como proposto por Fausto e Heckenberger (2007, p. 19), um diálogo que venha, a um só tempo, enriquecer a etnologia e contribuir para o processo de reconhecimento e respeito aos direitos dos povos indígenas.
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MERCADORIAS, GUERRAS, COMEDORES DE GENTE E SERINGUEIROS: HISTÓRIA DO CONTATO INTERÉTNICO NO BAIXO APAPÓRIS (SÉCULOS XVIII-XX) Luis Cayón1
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s Makuna, ou melhor, Ide masã (Gente de Água) são um grupo Tukano oriental que habita principalmente a região do baixo rio Pirá-paraná, incluindo o entorno da sua foz no rio Apapóris, nos Estados do Vaupés e do Amazonas, perto da fronteira da Colômbia com o Brasil. São ao redor de 600 pessoas que subsistem da horticultura, caça, pesca e colheita sazonal de frutas silvestres, insetos, anfíbios e répteis comestíveis. A moradia tradicional é a maloca, onde são celebrados diferentes tipos de rituais que são o centro da vida social, e cada aldeia possui ao menos uma. As diferentes aldeias estão inseridas em duas terras legalizadas – chamadas de Resguardos2 – pelo Estado, cujas organizações políticas locais – ACAIPI (Asociación de Capitanes Indígenas del Pirá) e ACIYA (Asociación de Capitanes Indígenas del YaigojéApaporis) – se encarregam da interlocução com os não-índios e com outras organizações indígenas. O grupo está organizado em clãs patrilineares hierarquizados e especializados, idealmente, segundo a ordem de nascimento dos filhos do ancestral epônimo Sucuri de Água (Idehino). Em geral, a residência é patri/ virilocal, embora possa se alternar ocasionalmente com a uxorilocalidade. A terminologia de parentesco é uma variante do tipo dravidiano e divide o universo social entre consanguíneos e afins. Existe a exogamia de grupo, o casamento preferencial é realizado com as primas cruzadas paralelas ou com certos grupos preferidos, como os cunhados, desde os tempos ancestrais. A organização política tradicional implica a relação complementar entre um dono de maloca (wi ühü) e um xamã (he gu) “oficiais”, i.e., que ambos são reconhecidos pelo resto dos membros do grupo e trabalham conjuntamente, 1 Doutorando em Antropologia Social da Universidade de Brasília; bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 A figura jurídica do Resguardo tem origem colonial e estava associada às áreas nas quais os indígenas podiam trabalhar a terra para autoconsumo e para produzir um excedente que era pago como tributo, dado seu caráter de “homens livres” e vassalos do Rei da Espanha. No transcurso da Colônia, muitos Resguardos foram desfeitos e suas terras vendidas. Depois da Independência, foram conservados alguns na zona andina do país e foram abolidos os tributos, embora, de acordo com a Lei 89 de 1890, os Resguardos pudessem ser desfeitos na medida em que seus habitantes fossem se “civilizando”, processo influenciado por pressões de fazendeiros e colonos que desembocaram em diversos conflitos locais durante boa parte do século XX. Em meados da década de 1960, o Estado iniciou um processo de reconhecimento da propriedade comunal indígena no qual se entregavam às comunidades territórios reputados como terras baldias sob a figura de Reservas Indígenas, às quais se deu o caráter legal de Resguardos desde 1980, como resultado da luta reivindicatória dos movimentos indígenas do país.
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mas não significa que não existam atritos nem competição entre eles ou com outros especialistas reconhecidos. A região dos baixos rios Apapóris e Pirá-paraná sempre foi de difícil o. Grandes cachoeiras impediram a exploração desses territórios até o século XX. Por essa razão, não existem muitas fontes documentais que contenham informação sobre esses rios e seus habitantes; na verdade, a informação é muito fragmentária. O primeiro mapa completo do Apapóris, e em especial da região do baixo Apapóris, foi feito por Richard Evans Schultes em 1943 (DAVIS, 2004). E o primeiro mapa completo do Pirá-paraná foi feito pelos membros da Anglo-Colombian Recording Expedition em 1961 (MOSER; TAYLER, 1963). Isto não significa que antes nenhum branco tivesse visitado a região. Pelo contrário, e principalmente pela memória oral indígena da região (e em alguns fragmentos escritos), sabemos que houve algumas incursões luso-brasileiras ao menos desde meados do século XVIII e de seringueiros colombianos no começo do século XX. O isolamento geográfico da região nunca foi um impedimento para a voracidade dos aventureiros na procura pela fortuna. Vários velhos makuna falaram-me, muitas vezes, em diferentes lugares e anos, que quando eram crianças o primeiro branco que viram na vida foi o “doutor Schultes”. Diziam que o célebre botânico norte-americano Richard Evans Schultes era uma pessoa muito tranquila e respeitosa e que dava bombons e balinhas em troca das flores e das plantas coletadas por eles na floresta. É evidente que a personalidade e as atitudes de Schultes contrastavam radicalmente com o comportamento dos outros brancos (gawa), os seringueiros patrões dos pais desses velhos, no auge do segundo ciclo da seringa. E também com aqueles portugueses que, décadas atrás, fizeram os descimentos de grupos vizinhos, e dos Barea gawa (brancos ou estrangeiros comedores de gente) – grupos aruaque aliados dos portugueses – que cativavam escravos, e que os antigos Makuna enfrentaram em guerras e com xamanismo, no tempo em que começaram a circular as primeiras mercadorias ocidentais na região. Com o vazio existente nos documentos históricos coloniais, devemos nos aproximar dos primeiros séculos do contato a partir dos eventos históricos ocorridos nas bacias dos rios Negro e Japurá, assim como das políticas coloniais portuguesas, tomando como referência os dados que a memória makuna traz à tona. Não se trata de procurar equivalências nos dados, senão procurar a complementaridade entre eles para elaborar uma história do contato interétnico na área dos baixos rios Apapóris e Pirá-paraná, levando-se em conta os diferentes momentos e processos de conhecimento e aproximação entre índios e brancos. No meio dessa história regional, vou tentar esclarecer o uso histórico do etnônimo Makuna, pois eles mesmos pediramme para empreender esse esforço com o intuito de esclarecer aos brancos alguns mal-entendidos sobre o tema. 40
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Séculos XVIII e XIX: os luso-brasileiros De acordo com a história oral makuna, os primeiros contatos diretos e mais ou menos permanentes com os brancos aconteceram no início do século XX, quando seringueiros colombianos entraram na região. Antes disso, só se contam algumas histórias sobre grupos envolvidos no tráfico de escravos e nas quais não há referências muito diretas ao envolvimento da Gente de Água com os traficantes ou com as vítimas. O que eles dizem é que nesse tempo havia muita guerra e pessoas de outros grupos iam se esconder no território deles para serem protegidos xamanicamente. Também contam que, naquele tempo, todo o grupo vivia junto no igarapé Toaka, seu território ancestral, embora espalhados em várias malocas nos diferentes afluentes do mesmo igarapé. Para eles, os fatos históricos têm a ver mais com acontecimentos e conflitos internos do grupo, que foram configurando boa parte de seus problemas atuais, do que com o contato com os brancos. Porém, talvez eles não enxergassem que muitas coisas que aconteceram na região, e que são explicadas sob outras perspectivas, eram reflexos de um processo muito mais amplo de expansão colonial. Só com o ar do tempo, e pela necessidade de se relacionar com os brancos para sobreviver, as coisas começaram a se esclarecer para eles. Isto não significa que a presença do branco fosse desconhecida antes do contato direto, já que se sabia que estes estavam relacionados com os objetos de metal que começaram a fluir através das redes comerciais nativas muitos anos atrás. Também se sabia que os brancos eram os patrões dos Barea gawa3, visto que os relatos falam das incursões de um grupo do rio Negro cujos membros tinham rabo para que se pendurassem nas árvores e capturassem pessoas para levá-las, engordá-las e comê-las no Brasil. Arturo Makuna (em Mahecha, 2004, p. 55) garante que os Barea gawa eram Baniwa ou Curripaco e, com isso, sugere que pertenciam à família linguística Arúak. Independentemente de identificarmos quais eram os grupos implicados4, este dado é importante, pois situa a existência dos Barea gawa no tempo da captura de escravos, visto que alguns grupos do rio Negro participaram do tráfico com portugueses e holandeses pelo menos desde as primeiras décadas do século XVIII. Em 1723, os portugueses acusaram os índios Manao, de língua Arúak, que eram especialistas no comércio de ouro e de outros artefatos – sendo 3 Imagino que esta designação está relacionada com o fato de que os Barea gawa chegaram com espingardas e mercadorias. 4 Matallana e Schackt (1991) afirmam que este grupo, chamado de Mirabara pelos Yukuna, seriam os Manao. Segundo Gersem Santos (comunicação pessoal), este grupo pode ter sido os Baré do médio rio Negro. Isto seria coerente com as possíveis rotas de o que os grupos do rio Negro envolvidos com o tráfico de escravos podiam usar para chegar até os rios Japurá e Apapóris, percorrendo os rios Marié e Curicuriari até suas cabeceiras, pois ambos ficam no médio rio Negro e faziam parte do território Baré. No entanto, Wright (2005) garante que, na metade do século XIX, os Baniwa e os Curripaco faziam guerra para capturar crianças de outros grupos (cita os Maku e os Carapana) e para vendê-las para os brancos em Marabitanas. Também na tradição oral Baniwa, segundo Wright, a fratria Waliperi dakenai, junto com alguns Hohodene e Maualinai, fez incursões no Japurá para capturar crianças que venderam quando cresceram, trocando-as por armas de fogo com os portugueses, para continuar fazendo a guerra. Nesse sentido, poderia ser possível identificar os Barea gawa com estes Baniwa.
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um grupo chave nas redes comerciais que ligavam os cacicados subandinos com os povos do rio Amazonas e das Guianas (WRIGHT, 2005, p. 17-18, 43) –, de serem aliados dos holandeses, já que eles recebiam mercadorias e armas de fogo dos holandeses graças a seus sócios comerciais do rio Branco. Este fato motivou uma guerra que se estendeu até 1727, na qual os Manao foram derrotados. A partir desse momento, os portugueses tiveram o ao médio e alto rio Negro (LLANOS; PINEDA, 1982), evitando o perigo de uma invasão holandesa no rio Branco e, por outro lado, colocando barreiras aos espanhóis no alto rio Negro, pontos geoestratégicos de expansão e defesa que se consolidaram com a construção de fortes, incentivados pelas políticas pombalinas depois de 1751. De acordo com Farage (1991), o tráfico de escravos era incentivado tanto pelos holandeses como pelos portugueses, que se valeram das redes comerciais nativas (ver Arvelo-Jiménez, Méndes e Castillo Biord, 1989) para trocar cativos destinados à extração de drogas do sertão por mercadorias como machados, facões, anzóis, facas, contas de vidro e espelhos. As tropas de resgate portuguesas não se embrenhavam na floresta além de alguns limites naturais intransponíveis para navegação, como grandes cachoeiras, tendo que se valer de alianças com grupos de línguas Arúak para obter escravos. Vale a pena assinalar que a política indigenista desses dois impérios coloniais era muito diferente na época: os holandeses nunca buscaram aldear nem converter os índios, mas aumentar sua influência sobre os nativos por meio das trocas (FARAGE, 1991, p. 89), enquanto os portugueses se valiam da “guerra justa” e dos “resgates” para “civilizar” e “evangelizar” os indígenas, mobilizando tropas e missionários. Desta forma, para os portugueses, os índios se classificavam em “escravos” e “livres”, os primeiros capturados nas guerras justas e os segundos comprados e/ou salvos de uma “morte certa” pelo suposto canibalismo das tribos selvagens e pagãs, cujo extermínio era justificado por essa razão em “guerras justas”. Os índios livres eram aldeados e serviam como mão de obra, ajudando também a fazer descimentos, em que os missionários visitavam e se valiam desses “índios mansos” para convencer indivíduos e aldeias inteiras a saírem de seus territórios para viver em aldeias da missão (FARAGE, 1991, p. 26-31). Apesar de que é certo que a Coroa portuguesa condenava o negócio de tráfico de escravos, missionários e agentes governamentais lucraram pessoalmente e incentivaram o tráfico clandestino. É possível deduzir que entre 1728 e 1755 iniciaram-se as incursões dos Barea gawa, pois nesse período a presença das tropas de resgate aumentou no rio Negro e, consequentemente, as atividades escravistas. Dessa forma, intensificaram-se as guerras intertribais5, motivadas pelo fluxo de mercado5 Na literatura etnográfica da região, existem algumas referências a guerras intertribais em diferentes momentos: as primeiras com as migrações Tukano, que subiram o rio Negro e povoaram a região do Uaupés, deslocando seus habitantes Arúak (REICHEL-DOLMATOFF, 1997); outras, segundo Nimuendaju (1982 [1927]), no século XVIII, quando os Tariana (de língua Arúak) enfrentaram os Tukano e deslocaram-nos das regiões de Javareté e Ipanoré no rio Uaupés. Bourgue (1976) sustenta que os Kawillary enfrentaram os grupos Tukano do Pirá-paraná
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rias ocidentais redistribuídas pelas redes comerciais nativas, mobilizando os vínculos de parentesco e aliança vigentes, os quais também estariam se reatualizando6. Segundo Wright (1991), na década de 1740 teriam descido uns 20.000 habitantes do alto rio Negro. Segundo os testemunhos makuna, os Barea gawa foram várias vezes ao Apapóris e ao Pirá-paraná. Chegavam em grandes batelões carregados de mercadorias, em especial espingardas, espelhos, machados e facões. Eram muito fortes, usavam crânios como instrumentos, capturavam as pessoas com malhas e trancavam-nas em um curral que ficava em um lugar do Apapóris chamado Güsogü (morro de jacaré-tinga). Uma vez, os Barea gawa chegaram a uma maloca Ide masã onde estavam um velho com sua neta. Durante o ataque, o velho matou vários Barea, mas não conseguiu se salvar. Porém, antes de morrer, o velho envenenou xamanicamente sua própria carne e, quando os Barea o comeram, vomitaram e morreram. Por essa razão, os Barea gawa não atacaram aos Ide masã; de fato, pediram colaboração para alguns homens fortes do grupo, assim como de outros grupos da região, para trabalharem com eles, iniciando-os no canibalismo após levar inúmeras mordidas de formigas e vespas na cabeça, pulsos, mãos, tornozelos e pés. No Pirá-paraná, os Barea gawa atacaram aos Emoa (Gente de Formiga de Fogo), Heañara (Gente de Lenha) e Ümüa masã (Gente de Dia), todos afins dos Ide masã. Como os Emoa eram pajés poderosíssimos, eles abriram a maloca dos rümüa (certo tipo de seres do mato, próximos dos curupiras) para se vingar dos Barea gawa. Um dia, os Barea acharam uma maloca em Guari sõa (Remanso de guerra) e escutaram vozes e risos. Quando foram capturar as pessoas, não perceberam que os rümüa os estavam esperando. Assim, a maioria foi morta por aqueles seres e os Barea gawa nunca voltaram. Sabe-se que a última vez que apareceram na região foi no rio Mirití-paraná, onde os Yukuna fizeram uma armadilha e praticamente os aniquilaram. Em 4 de fevereiro de 1745, registra-se o primeiro documento que faz referência a: “Hua india chamada Neebú da nação Macurá de idade de quarenta annos... Hum rapaz que diz ser seu sobrinho de idade ao parecer de sette annos... As quaes duas pessoas sendo julgadas no refferido exame por forras, e livres de cativeiro” (MEIRA, 1994, p. 117-118 [Livro das Canoas, documento 148, folha 86]). Essas duas pessoas foram remetidas do rio Negro ao Capitão Major Balthazar do Rego Barboza por Manoel Caetano de Azevedo, ficando ao seu serviço por cinco anos para, logo, serem remetidas à aldeia de Caabû, segundo a disposição do Governador e Capitão General do Estado do Maranhão e Grão-Pará. No entanto, se observarmos nos registros escravistas assie os Karijona (de língua Karib) no Apapóris; mesmo assim, garante que os Kawillary e os Kurripako realizaram incursões guerreiras contra os Tukano em momentos posteriores. Wright (2005) também descreve guerras entre diferentes fratrias Baniwa, assim como incursões destas a territórios de grupos Tukano. 6 Conforme menciona Hill (em Wright, 2005, p. 73), durante esse período ter-se-ia produzido uma reorientação das fratrias Arúak com relação aos grupos Tukano orientais, já que, ao se verem impossibilitados de sustentar suas antigas relações sociais com seus vizinhos Arúak, penetraram em território Tukano, produzindo conflitos que puderam ser o motivo para o surgimento de fratrias hierarquizadas entre os Baniwa.
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nados entre junho de 1745 e maio de 1747 por Lourenço Belfort, comandante das tropas de resgate do rio Negro entre 1739 e 1745, e pelo jesuíta Achilles Maria Avogadri, capelão da tropa, nunca aparece esse etnônimo, mas vários que fariam referência a nomes de clãs atuais dos Makuna, assim como de seus aliados próximos, como se infere da lista apresentada por Wright (2005, p. 61-70). Entre eles cabe destacar Buhegababana, Bungamana (Buhabo ~gana) e Chirôa (Süroa) para os clãs Ide masã atuais, e Duajana, Duexana, Uhiana, Ujana (Wühana), Gibamaxam, Gibamaxa (Yiba masã), Itana (Itana), Minâua, Minoua, Uenonigana (Minowari ~gana) e Omamaça, Umamaxam, Umamaçam, Umomaçam (Ümüa masã) para os grupos relacionados. Com as reformas pombalinas, implantadas a partir da década de 1750, produziu-se uma mudança de orientação no tratamento aos índios que não significou o fim da escravidão no rio Negro, apesar de que se decretou a liberdade para os nativos. Estabeleceu-se o Diretório dos Índios (ver Almeida, 1997), que promovia os processos de aldeamento através dos descimentos, já que se procurava converter os índios em vassalos do Rei porque Portugal queria garantir a posse legal de seus territórios diante das pretensões espanholas. Assim, as aldeias indígenas ficaram sob a tutela de diretores civis e alguns índios foram selecionados como Capitães-Mores e Sargentos-Mores para coordenar os trabalhos de coleta de drogas do sertão (FARAGE, 1991). Vale dizer que esses indígenas não eram necessariamente autoridades tradicionais e que eram julgados como militares. As reformas pombalinas, cuja aplicação foi promulgada no Diretório dos Índios em 1755, devem ser vistas à luz de um projeto de governo (ALMEIDA, 1997) e da consolidação civil da Coroa portuguesa, assim como de “civilização” dos índios ao decretar a expulsão dos jesuítas, encarregados de dirigir e istrar as aldeias. Os jesuítas foram acusados de ensinar a língua geral e não o português (CABRERA, 2002), defendendo seus interesses econômicos com o tráfico de escravos e seus negócios com os espanhóis, o que era um estorvo para os interesses de Portugal. As políticas pombalinas foram substituídas pela Carta Régia de 1798, através da qual os índios se mantinham em situação de órfãos para que fossem protegidos do tratamento dos brancos, assentando a base do que depois seria, no Brasil, a tutela dos índios (FARAGE, 1991, p. 48). É justamente do tempo do Diretório que encontramos o primeiro registro escrito conhecido sobre a existência do rio Apapóris, em especial da sua parte baixa, e dos seus habitantes, em 17557. De acordo com o testemunho do prático Eugenio Ribeiro: Entrando pela bocca do dito Iaporá acima, o primeiro Rio que se encontra à mão direita a 15 dias de distancia é o Apapurez (1) 8 que corta ao norte em grandíssima distancia, e dizem que vai ter ao Parvá ou Orinoco. Habitão 7 No caso do alto Apapóris, o missionário espanhol Roque Lubián descreve a existência do rio Apapu em 1751 (USECHE, 1987). 8 Na nota de rodapé diz: “Este Rio tem um Furo chamado Peridá que comunica com Issá Paraná em 5 dias de viagem tem uma Caxoeira. Corre de Pte. A Nte. este Furo” (1906 [1755], p. 321).
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neste Rio os índios Mataméz e acima delles os Curutús, e Iaguarites, Paricatapuya, Cavearys, Vacujás (Makurás?) e outros mais um pouco acima (1906 [1755], p. 321).
Tanto Monteiro de Noronha (1856 [1768], p. 47) quanto Ribeiro Sampaio (1824 [1775], p. 83) afirmam a existência de uma conexão entre o rio Apuápurí ou Apoaperí com o rio Goapez ou Uoapés, que comunicaria as bacias dos rios Negro e Japurá, tema de interesse principal para Portugal. Ribeiro Sampaio acrescenta que o Apoaperí está “povoadissimo de gentio” e que “da nação Aniána não havia atégora indios descidos nas nossas povoações. Ella habita o rio Apoaperí, que desagoa pelo norte no Jupurá” (RIBEIRO SAMPAIO, 1824 [1775], p. 83, 78). Para finais do século XVIII, os portugueses tinham expandido o seu domínio sobre o rio Negro e desejavam aumentar sua soberania sobre outras partes da Amazônia. Segundo os Tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777), a fronteira entre as Coroas espanhola e portuguesa era o rio Japurá. Em 1781, um ano antes da quarta Comissão de Limites, Henrique João Wilckens (Sargento maior e segundo comissário da quarta Comissão) explorou uma parte do rio Japurá, cujo o era dificultado pelos índios Mura, que estavam em guerra com Portugal pelo menos desde 1738. Wilckens ou pela foz do Apapóris no dia 29 de março e continuou sua viagem pelo Japurá. Uns dias depois, na segunda semana de abril, Wilckens convida os índios Tauocas para criar uma aldeia na margem norte do Japurá (WILCKENS, 1994 [1781], p. 28-29), em algum lugar entre a foz dos rios Mirití-paraná e Cahuinarí. Este fato geraria protestos oficiais de Francisco de Requena, o comissionado espanhol, um ano depois, pois os portugueses estavam deslocando povoações nativas do lado português para ocuparem terras que, em teoria, seriam da Espanha (REQUENA, 1987 [1782], p. 101-102). Poucos anos depois, o viajante e naturalista português Alexandre Rodrigues Ferreira erra a localização da dita aldeia e a relaciona com os índios Mucúnas. Segundo Rodrigues Ferreira: quando o Tenente coronel Teodósio Constantino Chermont, Primeiro comissário da quarta Comissão, estava no “Apapóris (...) aparecendo lá então e fallando com elle, na povoação dos Tabocas, o principal Maimanaca da outra aldeã superior dos Mucúnas, donde tinha descido, segundo foi avisado, para o comprimentar, e tratando ambos de estabelecimentos, que devião fazer entre nós, ou a dizer-lhe o dito principal: que ao general representasse, que elles nenhuma dúvida tinhão em se aldearem n’aquele logar a nosso modo, com tanto porém que se lhes havia de mandar vigario para os baptizar e doutrinar, como elles muito desejavão, e não poucas vezes o tinhão pedido debalde; mas por nenhum modo o director, porque da conducta de todos elles com os índios aldeados nas nossas povoações, estavão bem informados, tratando sómente de as destruírem e não de as edificarem. Que ao dito vigario não se consignasse côngrua 45
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alguma, por que por sua conta corria a sua subsistencia e acomodação; e não só a do padre, si não tambem dos soldados, que lá quizessem mandar, que assistissem, para guardarem o padre, no caso de desconfiar d’elles; tal era a aversão que lhes tinhão, que antes querião os soldados, que directores”. (1983 [1787], p. 124. Grifo meu).
Esta informação, algo confusa, tem a ver com outro fato acontecido durante a parte final da quarta Comissão de Limites. As duas partidas deixaram o rio Apapóris para ser reconhecido durante o caminho de volta para vila de Ega (atual Tefé) e o visitaram entre 22 de junho e 9 de julho de 1782. Quando entraram no rio, depararam-se com quatro cachoeiras que dificultaram a viagem. A maior parte dos membros adoeceu de febres e diarreias e duas malocas dos índios Coretús, Curutús ou Corutús, que encontraram acima da quarta cachoeira (atualmente cachoeira de La Libertad), viraram literalmente hospitais (REQUENA, 1987 [1782], p. 140-149). Com as duas partidas dizimadas, os comissários acordaram interrogar os Coretús sobre os povos e rios que ficavam rio acima. Valendo-se de um soldado intérprete, inteligente en la lengua general de los Topinambás, la cual entendían muchos indios de la expresada población, e reunindo os mais velhos, incluindo o chefe Catianimí, os comissários souberam que a los cinco días y medio de navegación para arriba se hallaba el pueblo de los indios Mucuras, situado en la margen de la izquierda, así como que a los siete días de navegación por la derecha se hallaba el río PiráParaná, que era pequeño y del cual no sabían nada (REQUENA; CHERMONT; MAZORRA, 1992 [1782], p. 146-147). Nas testemunhas de Requena nunca se fala da visita do chefe dos Mucúnas relatado por Rodrigues Ferreira. De fato, no Códice B.N. 21.1.38 de Rodrigues Ferreira (apresentado nas suas Memórias de Antropologia), quando descreve a estrutura das malocas dos Curutús, afirma: (...) muito se distinguiram os referidos gentios no tratamento, que fizeram a ambas as Partidas. Porém o certo é, que de há muito tempo a esta parte conservam conosco a Paz e a Amizade, porque pelo Ilmo. e Exmo. Sr. Francisco Xavier de Mendonça Furtado, lhes foi ada uma Portaria, para que ninguém ousasse violentá-los para descerem em contemplação dos serviços que sempre fizeram a Sua Majestade, escoltando as suas tropas, praticando os outros Gentios para descerem, e facilitando o Negócio das Drogas internadas pelos sertões daquele Rio. O que não ignorava o Primeiro Comissário da Partida Portuguesa quando lhes propôs as novas razões, que então se lhes ofereciam, para se resolverem a descer um pouco mais para baixo de onde estavam, como realmente desceram, vindo a ficar na distância de meio dia viagem, água abaixo, aonde existe a cachoeira grande do referido Apaporis. Representaram-lhe, que eles queriam ter na sua Aldeia um vigário, para os instruir e batizar; que por conta deles deixassem o sustento do padre, e a fatura do Negócio preciso para a sua Côngrua; porém, que por nenhum modo se lhes mandasse Diretor, 46
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porque das suas absolutas estavam eles informados; que sempre tinham tido e queriam ter amizade conosco; porém que ainda não estavam deliberados a mudar de Estabelecimento para fora daquele Rio, o que com o tempo se conseguiria. Isto que então disseram, foi o mesmo, que a poucos dias mandou o Principal Catiamani dizer a S. Excia. por um dos seus filhos... (RODRIGUES FERREIRA, 1974 [1787], p. 24-25. Grifo meu).
Como se pode observar, as duas agens citadas de Rodrigues Ferreira apresentam a mesma informação com relação a uma mesma situação, só mudam os etnônimos e os nomes dos chefes. Também pressupõe uma relação de longa data entre os índios e os portugueses e sugere que houve descimentos no Apapóris muito antes da década de 1780, pois a testemunha de Sampaio, acima citada, coloca os Coretús como moradores do Apapóris em 1755. De fato, Monteiro de Noronha (1856 [1768], p. 41]) e Ribeiro Sampaio (1824 [1775], p. 34) afirmam que na vila de Ega moravam na época alguns Coretús que foram descidos do Japurá. Poder-se-ia pensar uma sobreposição ou identificação entre os Coretú e os Mucúna ou Mucura, porém dados um pouco posteriores sugerem outras coisas. Entre 1784 e 1787, Manoel da Gama Lobo D’Almada e seus soldados fizeram vários reconhecimentos da região procurando uma conexão fluvial entre as bacias do rio Negro e o Japurá, que nunca foi descoberta. Em 10 de dezembro de 1784, Lobo D’Almada escreve “... do Rio Cananari pelo qual se entra no Apaporis, e por este se desce ate dar na sua Margem Meridional com os Tapuyas Cumacumas ~a quarto daonde há por terra para o Japurá huma breve comunicação de hu deora de caminho” (ADONIAS, 1963, v. II, p. 28. Meu grifo); a distância entre o Cananari e a maloca foi de 12 dias (LOBO D’ALMADA, 1784, citado por REIS, 2006 [1940], p. 77). No final de 1785, tinham-se estabelecido três comunicações entre as duas bacias: “a primeira pelo Yucari-Cananari-Apaporis. Entre o Tiquié e Japuparaná, por terra, cortando ao Taraira, nove dias. Do Apaporis da maloca dos Cumacumans, em quinze minutos por terra, estava-se no Japurá. A segunda pelo Tiquié-Japuparaná-Piriparaná-Apaporis-Marutiparaná” (ADONIAS, 1963, v. II, p. 31. Meu grifo). Ao observar uma cópia do mapa de Lobo D’Almada de 1784 (REIS, 2006, [1940], p. 23), o mesmo localiza três assentamentos dos Coretús águas acima da maloca dos Cumacumans. Isto sugere que é muito possível que os Mucúnas de Rodrigues Ferreira deslocaram-se, como pediu Chermont, e apenas dois anos depois da Comissão já existia um novo assentamento muito mais perto da foz do Apapóris, agora dos Cumacumans. Entre janeiro e março de 1820, o viajante e naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius percorreu o baixo rio Japurá. Entre os dados relevantes para o que já foi dito acima, ele achou os juris-tabocas em um povoado chamado de Manacaru (muito provavelmente a mesma aldeia fundada por Wilckens), justo entre os rios Cahuinarí e Mirití-paraná. Também conheceu Pachico, um chefe coretu, de quem diz que: 47
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(...) era de longe o índio mais astuto e atrevido, que até agora eu havia encontrado... Procurava conservar a sua tribo no mato, longe dos brancos, e, por sua própria conta, fazia guerra aos vizinhos, a fim de negociar os prisioneiros com os europeus a chegarem; mesmo os seus próprios companheiros de tribo teria de igual modo permutado por uma bagatela” (SPIX; MARTIUS, 1976 [1831], p. 198).
Na povoação de Uarivaú, um lugar sobre o rio Japurá próximo à desembocadura do rio Puré, encontrou “alguns macunas e iupuás, que haviam vindo rio abaixo pelo Apaporis, e permutavam por utensílios de ferro, com o principal, entrecasca de turiri pardo e branco9” (SPIX; MARTIUS, 1976 [1831], p. 227) e na sua nota do capítulo (v. III, cap. IV) fala do Apapóris e diz: “embora existam numerosas tribos nas suas margens, como os cauiaris, aethonias, siroás, macunás, iucunás, iaunas, tajassu-tapuias, coretus, iupuás, só poucos descimentos feitos daí para o Rio Negro” (SPIX; MARTIUS, 1976 [1831], p. 232). Spix e Martius também informam que alguns Macunás habitam na Fortaleza da Barra do Rio Negro (Manaus), ao serviço do Sr. Zani, companheiro de viagem dos naturalistas (SPIX; MARTIUS, 1976 [1831], p. 135). O testemunho de Martius parece confirmar a ideia de Vidal e Zucchi (citados em Wright, 2005, p. 74), que sugerem que entre 1798 e 1830 teria sido uma época de surgimento e consolidação de sistemas de aviamento e de uma cultura de fronteira, o que evidencia a maneira como foi se expandindo o domínio português a territórios nos quais não haviam feito uma presença permanente, como no caso do Apapóris. De fato, Martius descreve mais grupos, muitos deles ainda existentes, morando neste rio. Sua referência aos Coretú confirma sua velha aliança com os luso-brasileiros e só apresenta os Macunas trocando mercadorias. Nunca se fala de proximidade geográfica nem de relações entre eles, mas talvez estes dois grupos estivessem engajados juntos no tráfico de escravos, por serem aliados ou parentes, e nesse ponto a história oral pode nos dar algumas pistas que esclarecem a origem do etnônimo Makuna. Em 1905, o etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg conseguiu coletar várias palavras da língua dos Kueretú e os classificou como “membros impuros” do grupo Betóya (hoje Tukano oriental). Segundo Franky (2004), os Coretú são denominados na língua tanimuka como Riarijémajá e seu território tradicional localizava-se no baixo Mirití-paraná, entre Quebrada Negra e o rio Japurá, e são diferentes dos Makûrã (palavra que, segundo os Tanimuka, é da sua própria língua e derivou em Makuna), identificados nas outras línguas vizinhas como Wühana. Na língua makuna, os Coretú provavelmente são os extintos Ria peto masã (Gente da beira do rio), mas eles também falam dos Wühana (Assassinos). Os Wühana eram descendentes de Sucuri de Metal (Komehino), um português convertido pelos deuses em ancestral, e estavam relacionados por parentesco consanguíneo com os atuais Heañara (Gente de Lenha) e Ümüa masã (Gente de Dia), cunhados da Gente de Água e, hoje 9 De acordo com Franco (s.f.), nos relatos orais os Ümüa masã comercializavam no Brasil as de barro, balaios, cestas, tipitis, peneiras e remos e, em troca, levavam sal, facões, machados e anzóis para o rio Apapóris.
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em dia, falantes de língua makuna. Aliás, algumas pessoas asseguram que os Ide masã falam hoje a língua dos Heañara e Ümüa masã, razão pela qual na atualidade as pessoas desses dois grupos asseguram ser Makuna, mas não verdadeiros ou próprios, reconhecendo os Ide masã como os verdadeiros Makuna (ver Cayón, 2004). Segundo os relatos, os Wühana eram chamados de Makuna pelos brasileiros e se dedicavam a capturar outros indígenas para entregá-los como escravos em troca de mercadorias. Eles construíram dois armazéns no Apapóris para guardar as mercadorias que recebiam; os dois armazéns ficavam na desembocadura do Pirá-paraná e em um lugar chamado Yaigohé (Buraco de onça), na foz do rio Rikapuya. Naquela época, muitos grupos que viviam nos rios Apapóris e Pirá-paraná ficaram com medo, fugiram e esconderam-se na floresta, chegando ao ponto de alguns morrerem de fome. Alguns grupos vizinhos, como os Barasana, estavam cansados dos ataques e amaldiçoaram os Wühana. Um dia, os brasileiros lhes encomendaram mais escravos, mas os Wühana não acharam ninguém e chegaram com as mãos vazias aos seus patrões. Os brasileiros se irritaram e encomendaram-lhes as raízes da palmeira hota ehõma, para fabricar pólvora, em troca da dívida das mercadorias. Na primeira vez, os Wühana cumpriram a tarefa, mas não na segunda. Eles tentaram enganar os brasileiros levando até Manaus raízes da palmeira de açaí. Quando os brasileiros perceberam o engano, ficaram furiosos e decidiram descer os Wühana para cobrar as dívidas das mercadorias que tinham lhes antecipado. Sem que os pajés Wühana enxergassem o perigo de um ataque iminente, realizaram um ritual na sua maloca em Buhekuya, no Apapóris. Um pajé tanimuka presente na festa lhes avisou que os brasileiros estavam chegando para atacar, mas eles não acreditaram; por isso, o tanimuka fugiu na escuridão da noite. De manhã, enquanto todas as pessoas dormiam, um homem que construía o teto de uma casa viu vários barcos dos brasileiros subindo o rio. Correu e acordou o chefe, que ficou contente com a chegada dos seus amigos, pois pensava que estavam lhe levando mais mercadorias. O que eles não sabiam era que alguns barcos brasileiros tinham subido o rio à noite e preparavam uma emboscada. De repente, apareceram muitos homens armados em volta da maloca, entraram e começaram a repartir muitas mercadorias. Um brasileiro ficou colado em cada Wühana, sem importar se era mulher ou criança, e capturaram todo mundo. Só um homem fugiu carregando o ralador de mandioca do grupo, mas ele morreu na floresta. Ainda na maloca, os brasileiros estupraram todas as mulheres na frente dos seus maridos e filhos. Depois levaram todas as pessoas para os barcos10 e foram embora. Nunca mais se viram os Wühana. Tempo depois, quando os brasilei10 Em um relato de um velho Ümüa masã (em Franky, 2003) se afirma que este grupo foi descido junto com os Wühana, seus parentes mais velhos, e que foram levados em um barco a vapor – segundo Tocantins (2000, em Mahecha, 2004), a navegação a vapor se iniciou no Amazonas em 1843. Na versão deste relato, apresentado por Mahecha (2004, p. 58-59), diz-se que junto com os Wühana foram descidos alguns clãs Yauna.
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ros perceberam que os Ide masã falavam uma língua similar à dos Wühana, começaram a designar a Gente de Água como Makuna. Só a partir do descimento dos Wühana, os Ide masã ficaram conhecidos como Makuna, mas, por enquanto, só para os brasileiros que entravam na região. Hoje em dia, os Ide masã ficam indignados quando outros grupos sugerem uma continuidade de parentesco entre eles e os Wühana, pois é uma má fama que eles não querem carregar pelas imprecisões dos etnônimos. De acordo com os relatos orais, estes fatos teriam acontecido aproximadamente na segunda metade do século XIX, pois se fala de grandes embarcações que subiram o rio. Historicamente, depois de 1850, já na época de construção do Império, floresceu uma indústria de construção de barcos no rio Negro e o governo provincial de Manaus restabeleceu o Sistema de Diretório dos Índios (1852-1855), seguindo um programa de “civilização e catequização”. Este programa buscava atrair para os rios principais os gentios (índios da floresta), em oposição aos índios aldeados e aos civilizados, com ajuda de comerciantes e organizando expedições punitivas contra os grupos que resistissem. Muitos grupos não contatados foram convencidos a sair de seus assentamentos para a margem dos rios mediante ofertas de ferramentas e tecidos onde, por ordem do governo, cortariam madeira e construiriam casas novas com estilos diferentes daquelas dos padrões tradicionais, e também se desejava que trabalhadores e crianças fossem enviados a Manaus para aprender as “artes da civilização” (WRIGHT, 2005, p. 110-113), continuando com a lógica dos descimentos. Um evento ocorrido no começo do século XX, o boato de que os Ide masã seriam os próximos a serem descidos, me faz pensar que a história dos Wühana aconteceu em algum momento entre 1850 e 1870, o qual parece estar apoiado por um relatório enviado em 1864 à Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, onde se afirma que nesse tempo só existe um Macuna no Japurá, um rio praticamente deserto (ALBUQUERQUE LACERDA, 1864, p. 32-33). Este fato fecha, até onde sabemos, a influência luso-brasileira na região. Como não existem fontes conhecidas para a região entre 1820 e 1900, este período é nebuloso. Durante a segunda metade do século XIX, os remanescentes de vários grupos estariam refugiados nas cabeceiras dos afluentes dos grandes rios, enquanto as beiras destes últimos estariam quase despovoadas até metade do século XX. Porém, sabemos que em outras partes do Noroeste amazônico, como no rio Uaupés, tanto a presença crescente de comerciantes e missionários (WALLACE, 1979 [1853]; COUDREAU, 1887) quanto o primeiro auge da borracha, iniciado em 1870 no rio Negro, deflagraram ainda mais abusos sobre os índios e produziram respostas como os movimentos milenaristas e messiânicos nos rios Negro, Içana e Uaupés (WRIGHT, 1992, 2005). É evidente que na primeira situação de contato o exercício do poder colonial, primeiro português e depois brasileiro, teve uma continuidade baseada nos deslocamentos territoriais promovidos pela concepção institucional 50
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dos descimentos e na combinação do uso da violência e da capacidade de atração das mercadorias. Seus efeitos devastadores ampliaram-se pela própria agencialidade de alguns grupos indígenas que se envolveram no tráfico de escravos, os quais se valeram dos canais comerciais e padrões nativos de troca e guerra para enfatizar sua diferenciação social e monopolizar as mercadorias ocidentais. A resposta dos grupos da região às incursões dos aliados dos luso-brasileiros enquadra-se dentro dos valores culturais relativos à guerra, incluindo o embrenhar-se na floresta como forma de defesa e exacerbando suas estratégias xamânicas de combate11 – não em vão, tanto os Barea e os Wühana foram objeto de maldições xamanísticas que acabaram com sua presença na região – e sem reconhecer nos luso-brasileiros seus inimigos, já que o contato não era direto. Nesse sentido, mais que pensar neste como um período de sujeição fantasma dos Ide masã e de seus vizinhos ao poder colonial, é melhor assumir que era um tempo em que estavam em pé de guerra e regidos pelos princípios que culturalmente a orientavam. Todos estes processos significaram para os grupos do baixo Apapóris e do Pirá-paraná uma mudança nos padrões de ocupação territorial, já que os grupos que viviam sobre as margens dos rios tiveram que buscar refúgio floresta adentro (HUGH-JONES, 1981) e também, talvez, fizeram com que o poder político dos donos de maloca aumentasse, já que, ao serem os encarregados da redistribuição cujo modelo seria o da organização de rituais, teriam obtido o monopólio sobre as mercadorias ocidentais, servindo como intermediários e provedores de escravos, trocando possivelmente alguns de seus serventes ou parentes de clãs e ofícios hierarquicamente menores, visto que os Makuna sustentam que a sociedade antiga era muito mais hierarquizada porque havia um dono de maloca que contava com trabalhadores a seu serviço. Tudo isto é coerente com o que afirmam os Makuna, pois, antigamente, os grupos vizinhos viviam em guerra, embora expliquem que esta era causada por competições de conhecimento xamânico12. Muitos grupos e clãs desapareceram, aniquilando-se entre si, e os sobreviventes foram assimilados por outros grupos; os Makuna dizem que nesse tempo muitas pessoas iam se refugiar em seu território. Além disso, os clãs maiores Buyayukua e Tabotihehea viviam no interior da floresta, nas cabeceiras dos afluentes do 11 Pineda (1987) afirma que as práticas de antropofagia e uso de partes do corpo humano como troféus que os espanhóis descreveram no século XVI eram, na realidade, respostas simbólicas dos índios ao estado de guerra exacerbado que estavam vivendo. Da mesma forma, os indígenas interpretaram os cães de caça, caçadores de índios, como xamãs-onças espanhóis. 12 Segundo Franky (2003), os Tanimuka garantem que as primeiras guerras no Apapóris aconteceram devido ao desrespeito às posses de cada grupo e/ou pessoas por um excesso de população. Para eles, essas guerras aniquilaram muitos grupos e aconteceram antes da chegada dos Ba’akaka (os Barea gawa), que acabaram de exterminar os que ficavam. Os Tanimuka também dizem que os “Come-gente” fizeram várias incursões pelo rio, mas que não os atacaram; de fato, assinalam que na sua última visita chegaram acompanhados de seus patrões portugueses com a intenção de fundar um povoado na foz do igarapé Kurubari, mas que os velhos se incomodaram porque queriam levar alguns Tanimuka, sendo que já se haviam acabado as pessoas que eles podiam trocar. Depois de um choque, os Tanimuka fizeram um trabalho xamânico para que os Come-gente adoecessem de impaludismo e se lembrassem de seus parentes. Logo depois, os portugueses chegaram sozinhos para convidá-los a viver na margem do Apapóris, mas eles regressaram às cabeceiras e deixaram de realizar trocas durante muito tempo.
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igarapé Toaka, enquanto os menores Sairã localizavam-se nas margens do Toaka porque eram os guerreiros especialistas, encarregados da defesa dos maiores, ou seja, dos detentores do conhecimento xamânico para reproduzir o grupo. Isto sugere que os Makuna e seus vizinhos estavam vivendo em estratégia de guerra. Para os Makuna, a guerra (guari) é uma força constitutiva do cosmo e encontra-se nas malocas invisíveis dos pontos cardeais; na cura do mundo, protegem-se para que essa força não se desencadeie e destrua a vida humana, embora afirmem que, se se sabe manejar a guerra, ela é boa porque conduz à troca de mulheres, bens e rituais com outros grupos. A guerra combina ações físicas violentas com conhecimentos xamânicos específicos que envolvem a defesa do território e as malocas, assim como a manipulação do clima e das estações do ciclo anual (CAYÓN, 2003). Isto significa que, se a situação merece, a cura do mundo feita pelos pajés pode trazer ao mundo a força da guerra para deixar o cosmos em configuração de combate. A guerra está vinculada sociocosmologicamente ao xamanismo e aos princípios de reciprocidade que regulam as relações sociais; embora em princípio expresse a negação da reciprocidade por meio dos assassinatos, dos roubos de mulheres e dos bens rituais, o que se pretende é chegar à troca pacífica. No caso das guerras escravistas, era difícil chegar a tais trocas pela demanda de escravos; por isso, os Barea gawa foram interpretados como comedores de gente, isto é, como onças com as quais era impossível negociar e trocar mulheres. Era uma guerra sem fim, que não conduzia a trocas matrimoniais nem de conhecimentos ou bens, pois as mercadorias não tinham a capacidade de se encaixar em todos esses aspectos de maneira simultânea, embora produzissem uma espécie de voracidade. Por isso, na medida em que os portugueses foram chegando ao Apapóris, os grupos que ali viviam começaram a se deslocar até os povoados dos rios Negro e Japurá para fazer trocas, e isto significou estabelecer alianças com os portugueses e depois com os brasileiros. Nesse sentido, essas alianças foram o início de novas incursões escravistas e descimentos guiados pelos “novos aliados”; entretanto, o mais significativo foi que a interação de tais grupos com os luso-brasileiros baseou-se na lógica da reciprocidade, na qual os últimos ofereciam grandes quantidades de mercadoria aos índios até o ponto em que a dívida só era pagável quando os “novos aliados” eram descidos. Contudo, é possível pensar que os ritmos da troca eram concebidos de maneira diferente para cada um, já que os índios geralmente mantêm os laços sociais com seus sócios comerciais pensando em uma reciprocidade postergada, enquanto os brancos pensariam mais em uma troca de serviços ou uma compra e venda quase imediata. Desta maneira, o choque entre ambas as lógicas estabeleceu o princípio de aviamento. Como consequência de todos estes processos, foram produzidos movimentos de ocupação posterior dos territórios dos grupos extintos, assim como reajustes estruturais das relações de parentesco e afinidade entre os segmentos de sobreviventes, o 52
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que também pode conduzir a assumir, usurpar e criar novas identidades. Isso também pressupõe a existência de uma criação e re-atualização constante de laços sociais e uma grande flexibilidade em suas estruturas sociais, embora mantendo critérios básicos de diferenciação social. Isto seria apenas a primeira fase de construção da relação com os brancos.
Século XX: os colombianos Segundo os Makuna, os principais eventos que teriam acontecido na sua história durante a última parte do século XIX seriam sua guerra contra os Tanimuka (ver Cayón, 2003), as mudanças (alimentação, xamanismo, comportamento, etc.) produzidas pelo consumo de peixes grandes, resultado da briga entre dois pajés poderosos (pai e filho), e a saída do clã Sairã do igarapé Toaka. Os Sairã foram morar com seus cunhados Yiba masã, no igarapé Komeña, por uma rixa interna pelo o e controle de certos poderes xamânicos. Assim, no começo do século XX, os Ide masã estavam divididos em dois segmentos. Quando o etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg percorreu o rio Tiquié em 1904, obteve dos Tuyuka informações sobre os Buhpú mahsá (gente zarabatana), um grupo “selvagem” que nunca tinha visto os brancos, morava no igarapé Dyí (Komeña), eram expertos fabricantes de zarabatanas e curare e pareciam ser muito respeitados pelos Tuyuka. Dias depois, conheceu um homem desse grupo, que se autorreconhecia como Buhágana –o nome atual é Buhabo ~gana (“os da zarabatana”, linhagem Ide masã) – acompanhado por um velho Ömöa mahsá (Ümüa masã, Gente de Dia); ambos os dois falantes de uma língua quase idêntica (KOCH-GRÜNBERG, 1995 [1909], T. 1, p. 285-354). No ano seguinte, Koch-Grünberg voltou no Tiquié e ficou sabendo de uma guerra, uns 40 anos atrás, em que se aliaram vários grupos (entre eles os Buhágana e os Tukano) contra os Yauna13. O velho narrador afirmou ter participado nela quando era adolescente e diz que levaram como prisioneiras algumas mulheres e crianças que foram vendidas aos brancos (KOCH-GRÜNBERG, 1995 [1909], T. 2, p. 244-245). Das cabeceiras do Tiquié, Koch-Grünberg se dirigiu ao igarapé Yaucáca (possivelmente o primeiro igarapé Umuña afluente do Pirá), onde encontrou os Hógolotsöloa (Hogoro Süroa, “Süroa borboleta”, um clã Ide masã) e os que diferenciou dos Tsöloa (Süroa) do Komeña. Durante sua permanência ali, Koch-Grünberg conheceu pessoas dos grupos Tsáina (Sairã), Yäbámahsa (Yiba masã) e Doämahsa (Roe masã), todos habitantes do Komeña e falantes de uma língua igual à dos Buhágana (KOCH-GRÜNBERG, 1995 [1909], T. 2, p. 251-258). Koch-Grünberg enviou um recado para os Buhágana, pedindo para encontrá-los na foz do Komeña, mas eles não compareceram. O alemão não entrou naquele rio e resolveu descer pelo Pirá até o Apapóris. Seus remeiros Tuyuka desistiram de acompanhá-lo por medo dos Tanimuka, grupo que 13 Segundo Franco (s.f.), os Ümüa masã e os Emoa trocavam artesanato por objetos de metal e sal no Brasil. Os Yauna mataram Wecomi, capataz desses índios comerciantes, e os grupos vizinhos (Tanimuka, Letuama, Tuyuka, Tatuyo, Taiwano, Barasana e Makuna) fizeram uma aliança que dizimou aos Yauna.
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tinha atacado e matado muitos dos seus parentes no ado. Junto com seu ajudante Schmidt, percorreram o Apapóris sem encontrar nenhuma maloca, até localizarem, em algum ponto entre as cachoeiras Manaitara e La Libertad, duas malocas dos Makúna, falantes de um dialeto aparentado com o Buhágana (KOCH-GRÜNBERG, 1995 [1909], T. 2, p. 264). Ali, conheceram o capitão José, para sus condiciones un hombre culto y viajado… [que] además de makúna y yaúna hablaba de corrido lingoa geral y algo de portugués (KOCH-GRÜNBERG, 1995 [1909], T. 2, p. 276). Concordo com Mahecha (2004, p. 62) ao identificar o capitão José com “Yusé Sapatino”, único remanescente do qual descendem todos os Ümüa masã atuais. Segundo os testemunhos dados a esta autora, “Yusé” nasceu em Belém do Pará e voltou para o Apapóris, onde comerciava mercadorias por tábuas de madeira trabalhadas pelos seus primos Heañara, e depois trabalhou com um seringueiro colombiano. Então, os chamados Makúna por Koch-Grünberg são os Ümüa masã de hoje. Se lembrarmos que os Ümüa masã foram descidos junto com os Wühana em algum momento entre 1850 e 1870, podemos estabelecer uma continuidade entre ambos os grupos e o etnônimo Makuna. Isto significa que os Ide masã e os Makuna são grupos diferentes, embora as línguas dos “Makúna” e dos “Buhágana” fossem muito próximas, segundo Koch-Grünberg. No início do século XX, os seringueiros colombianos controlavam o negócio no baixo Apapóris (KOCH-GRÜNBERG, 1995 [1909], T. 2), em especial um tal Cecilio Plata, que, segundo os índios, era cruel em extremo e foi assassinado pelos Yauna. Koch-Grünberg encontrou vários dos seus trabalhadores e uma das suas bases na cachoeira La Libertad. As hostilidades com os índios terminaram em mortes tanto de um lado quanto do outro, o que sempre foi aproveitado por alguns seringueiros para fazer com que os índios trabalhassem indefinidamente na extração da seringa para “pagar o preço do morto” (RODRIGUEZ; HAMMEN, 1993) ou para pagar as “dívidas” pendentes dos índios, derivadas do aviamento, com os seringueiros mortos. Plata foi substituído por seus sócios, e estes por outros sócios que monopolizaram o negócio no baixo Japurá, o Mirití-paraná e o Apapóris. Assim, sucessivamente se constituíram diferentes sociedades como “Espinoza, Jaramillo e Borrero”, aviados pela casa alemã Wesche e Cia. de Manaus, “Jaramillo, Mejía e Cia”, “Mejía e Cia”, “Angarita e Cia” e “Cabrera e Cia” (DOMÍNGUEZ; GÓMEZ, 1994), que se expandiram na região cometendo grande quantidade de atrocidades com os índios. Em 1911, o projeto expansionista da abominável Casa Arana tentou chegar no Japurá, produzindo um conflito entre a Colômbia e o Peru pela invasão de La Pedrera, posto colombiano sobre o Japurá. O seringueiro Oliverio Cabrera fundou o acampamento de Campoamor no Mirití-paraná e freou o processo de expansão da Casa Arana, companhia peruana que tinha escravizado, por meio de uma “cultura do terror” (TAUSSIG, 2002 [1987]), os índios da região entre os rios Japurá e Purumayo (Içá) e que cometeu um genocídio entre 1900 e 1912, aproximadamente, embora mantivesse o controle sobre seus escravos até pouco depois de 1920 (PINEDA, 2000). 54
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De acordo com os Ide masã, de um momento a outro começou a correr o rumor de que os brancos iam chegar ao igarapé Toaka para matá-los e levar todos eles. No meio de controvérsias entre os pajés, pois algum deles falou que não iria acontecer nada, os Makuna saíram com pressa de seu território, completamente assustados, não ficando ninguém em Toaka. Subiram pelo Apapóris até o rio Popeyaká para se refugiarem no território dos Letuama, seus irmãos mais velhos por parentesco mítico, e ali ficaram durante várias décadas. Algumas pessoas do grupo resolveram ir para Campoamor e seguiram seu patrão Cabrera até Araracuara, no Japurá, para trabalhar na abertura de um posto de apoio ao exército colombiano; ali, as epidemias de sarampo e gripe produziram inúmeras mortes no começo dos anos 1930. O tempo de exílio no Popeyaká é considerado como o momento mais crítico da história makuna, visto que afirmam que quase se extingue a “cultura”; com isso, querem dizer que não realizaram seus rituais de jurupari, que o conhecimento sobre seu território não lhes foi transmitido por completo pelos velhos e que quase foram assimilados pelos Letuama. No entanto, os velhos de hoje em dia, que nasceram no Popeyaká, conseguiram recuperar parte de seu conhecimento e poder e alguns voltaram a Toaka e ao Pirá há mais de 35 anos. Na década de 1920, os rios Apapóris e Pirá-paraná estavam desolados, como se infere a partir do testemunho do viajante McGovern (em Århem, 1981, p. 51). Segundo um censo realizado em 1928 no Popeyaká, foram registradas 89 pessoas como pertencentes aos Makuna, embora muitas delas fossem de outros grupos, como Tanimuka, Yauna, Ümüa masã e Heañara. Naquela época, encontravam-se nesse rio os ancestrais de quase todos os habitantes que hoje em dia vivem no Apapóris e no Toaka (MAHECHA, 2004, p. 65). É impossível imaginar os horrores vividos pelos índios durante os dois auges da borracha, em especial entre começos do século XX e 1940, mas podemos ter uma ideia das dimensões da débâcle demográfica dessa época. Em 1905, Koch-Grünberg contratou como remeiro um robusto e jovem Buhágana chamado Bitsúka. O nome real era Bisuga e dele, junto com seus dois irmãos, descendem todos os membros do clã Tabotihehea, clã principal e mais numeroso hoje em dia dos Makuna nos rios Toaka e Pirá-paraná. O Popeyaká transformou-se nesse momento em um grupo territorial multiétnico, com muitas malocas dispersas pelos seus tributários e cabeceiras, uma espécie de último refúgio da “vida antiga” ou de sobrevivência física, pois congregou em um único rio muitas pessoas de diferentes grupos, algo inusitado na história regional. Também nessa época se encontra a chave para entender as razões pelas quais o etnônimo Makuna se transferiu definitivamente para os Ide masã. Em 1911, há notícias de um acampamento cauchero chamado “Yaunas e Macunas” sobre o Apapóris (Franco s.f.), evidentemente o mesmo assentamento sob o comando do capitão José, e em 1928 encontramos seus descendentes no Popeyaká. Este homem teve um único filho e não conseguiu mulher para ele entre os Tanimuka, motivo que 55
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o levou a pedir uma esposa entre os Ide masã. Como os Ümüa masã estavam em risco de desaparecer, os Ide masã fizeram uma cura xamânica, na qual familiarizaram e subordinaram a reprodução dos Ümüa masã ao poder do seu jurupari14. Dessa maneira, a Gente de Dia foi assimilada pela Gente de Água e, por isso, os primeiros falam hoje que eles não são Makuna verdadeiros. Em 1932, um reporte dos missionários (MORA, 1975) descreve que para o trabalho da borracha em Campoamor havia 89 makunas, falantes de Yukuna (?), dirigidos pelo capitão Mariano, dono principal da maloca dos Ide masã no tempo do exílio dos Toaka. O fato de as cabeceiras do Popeyaká serem muito próximas das cabeceiras dos afluentes do Mirití-paraná me faz pensar que o boato que deslocou os Makuna do seu território poderia ser resultado de uma armação entre os seringueiros e seus trabalhadores Letuama e/ou Yukuna para aproximar a mão de obra de Campoamor. Os seringueiros se valeram de muitas estratégias para cooptar os índios e, no auge do acampamento, tiveram cerca de mil trabalhadores. O acampamento de Campoamor transformou-se com o tempo em uma grande concentração multiétnica. E Cabrera, que no começo do seu percurso trabalhou para Casa Arana, assim como muitos de seus capatazes, casou-se com mulher indígena, prática comum entre os seringueiros colombianos. Cabrera não apenas alterou os padrões de assentamento, mas os de matrimônio, pois formava casais de acordo com seus interesses (HAMMEN, 1992, p. 35). Apesar de que no início recorreu ao terror e depois infringia castigos físicos aos índios, estes terminaram definindo-o como um bom patrão; de fato, como um bom cunhado que redistribuía suas mercadorias. A bonança da seringa decaiu entre 1912 e 1913 na Amazônia, o que levou os seringueiros a trabalhar também com outros tipos de látex, como a balata e o chicle, até os anos 1940, e por isso mantiveram controle sobre a mão de obra indígena. No início da década de 1940, durante a segunda Guerra Mundial, iniciou-se uma nova bonança da seringa, que levou a um filho mestiço de Cabrera e seus genros a transformarem-se nos novos patrões15, abrindo espaço para que chegassem novos seringueiros. No entanto, sabemos que quando o botânico Richard Schultes viajou pelo Apapóris em 1942, 1943 e 1952, encontrou o rio despovoado (DAVIS, 2004) e, na última viagem, visitou o Popeyaká, onde encontrou os Makuna, como foi dito no começo deste texto. O segundo ciclo da seringa contribuiu para o deslocamento efetivo de várias famílias makuna para os rios Japurá, Mirití e Apapóris, que trabalharam sob o sistema de aviamento. Já nessa época existiam corregedores em La Pedrera, como tímida presença do Estado, e tinha-se proibido os maus-tratos à população indígena; não obstante, isto não impediu que as mulheres fossem 14 Isso explica por que, anos depois, um poderoso xamã Ümüa masã queria acabar com os Ide masã. Ele pensava transformar-se no maior do grupo, usurpando a identidade da Gente de Água, invertendo a ordem das relações de parentesco. Por isso destruiu, com seu poder, um dos pares de jurupari com o qual se criou o mundo (ver Cayón, 2004). 15 Jácome Cabrera, José A. Uribe e Antonio Lugo.
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violadas e que os castigos continuassem nos acampamentos, embora com menor crueldade em comparação com as práticas genocidas de algumas décadas anteriores. Nesse tempo, começaram as incursões dos missionários para levar pela força as crianças para a escola. Os Makuna escondiam as crianças cada vez que escutavam um motor de popa, porque pensavam ser os missionários que iriam levá-los para os internatos de La Pedrera (fundado em 1934) ou do alto Mirití (criado em 1949). Quando Mariano Makuna morreu, foi sucedido por Miguel Pava, dos Emoa, que era o tradutor de Mariano e atuou como capitão e intermediário com os seringueiros e com os missionários durante bastantes anos. Depois, Roberto, filho de Mariano e dono de maloca principal dos Makuna até sua morte, em julho de 2007, converteu-se no capitão, mas não durou muito tempo porque decidiu regressar ao igarapé Toaka para liderar, na segunda metade de 1960, junto a Isaac, o jovem pajé principal do grupo, um regresso temporário à vida antiga, celebrando rituais e assistindo o jurupari. Isto sugere que, inicialmente, os Makuna interpretaram que os donos de maloca eram os que deviam articular as relações com os brancos; no entanto, naquela época, os patrões seringueiros haviam assumido o papel de redistribuidores de mercadoria, substituindo os donos de maloca que, no entanto, seguiam controlando os trabalhadores e a redistribuição nos rituais. Porém, o o aos bens do branco democratizou-se e a lógica de sua obtenção, por meio do aviamento, estabeleceu um sistema de patronagem que debilitou os donos de maloca. Isto não quer dizer que fosse uma submissão forçada para os índios, mas que interpretavam sua relação de trabalho como uma troca que, muito factivelmente, modelou-se na relação entre um dono de maloca e seus trabalhadores (que se replicava no nível interétnico na relação entre Tukanos em geral com Makús, onde ambos trocavam serviços). Tal relação fundamenta-se na capacidade de um dono de maloca para mobilizar as pessoas do seu grupo local na obtenção de recursos suficientes para realizar rituais e convidar parentes e/ou aliados. É de se supor que no ado havia um controle maior sobre os trabalhadores, pois, antes da chegada dos machados, era muito dispendioso abrir campos de cultivo. O êxito político do dono de maloca depende da abundância de seu oferecimento de comida, coca, tabaco e bebida para os convidados, assim como da proteção e vitalidade derivadas da cura que faz o xamã associado ao dono de maloca. Assim, a recompensa dos trabalhadores é obter mais vitalidade e defesa contra as doenças. Não obstante, o poder político de um dono de maloca é frágil, pois os seus trabalhadores podem abandoná-lo em qualquer instante, dando origem a uma fissão do grupo local. Sugiro que a mesma lógica tenha sido aplicada aos patrões, não apenas pela redistribuição e pelos vínculos de parentesco que eles tinham desenvolvido por seus matrimônios com mulheres indígenas e sua prole mestiça (com as responsabilidades e contraprestações que 57
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isso supunha), mas porque, de alguma forma, também ofereciam proteção e vitalidade. S. Hugh-Jones (1988, p. 81) afirma que os Barasana, cunhados dos Makuna, acreditam que as mercadorias possuem ewa, uma força poderosa e irresistível que os faz agir de forma incontrolada e fazer coisas contra sua vontade, causando uma sensação similar à loucura ou à embriaguez; também associam os objetos manufaturados à propagação de doenças (ver Albert, 1992, 2002; Buchillet, 2002). Por essa razão, ao receber mercadorias das mãos dos brancos, os Makuna sempre fazem uma cura xamânica para se proteger dos componentes daninhos (hünirise) dos manufaturados. Como nos tempos dos seringueiros as mercadorias estavam dentro de baús de madeira, os índios relacionaram estes objetos com as caixas de penas onde guardam os ornamentos rituais (RODRÍGUEZ; HAMMEN, 1993, p. 37). Os Makuna garantem que as caixas de pena contêm a vitalidade do grupo, já que as penas são manifestações do jurupari que, se são vistas por crianças e mulheres antes da cura xamânica, produzem doenças e uma espécie de loucura, pois possuem basa gõñãri (pinta do baile), de maneira similar ao que fazem as mercadorias. A caixa de penas pertence, como os instrumentos sagrados, a todo o grupo, embora esteja sob os cuidados dos donos de maloca; por isso, na época da borracha os índios desejavam os baús e ali guardavam suas mercadorias, costume que têm até hoje, mas já substituíram os baús por grandes recipientes de plástico, que geralmente pertencem ao homem dono da casa. Por estas associações simbólicas, os baús e as mercadorias representavam, ambivalentemente, vitalidade e proteção, assim como perigo e contaminação. Rodriguez e van der Hammen (1993) afirmam que, da perspectiva indígena, é difícil sustentar que o o às mercadorias em troca do trabalho na borracha fosse uma troca desigual, já que para eles era sobretudo uma troca simbólica que lhes permitia ter o a objetos maravilhosos, como fósforos e machados. Quando terminou o segundo auge da borracha, começou o das peles exóticas. Este terminou na década de 1970 e os velhos patrões da borracha caíram em desgraça, igual ou pior que qualquer dono de maloca que não pôde manter seu prestígio; por isso, morreram pobres e acusando os índios de ter-lhes feito bruxaria para deixá-los na pobreza. Na verdade, o poder dos seringueiros sobre os índios tinha diminuído muito desde que aumentou a presença de missionários que fundaram internatos, pois, de alguma forma, protegeram os índios dos abusos. Lamentavelmente ninguém fez o mesmo com as crianças indígenas que eram educadas em tais internatos, vítimas de castigos como pancadas, longas jornadas de trabalho, proibidas de falar em línguas nativas e obrigadas a comer alimentos proibidos culturalmente (MAHECHA, 2004, p. 71). Com razão, Cabrera (2002) conclui que o impacto do trabalho missionário teve maiores consequências para as práticas indígenas que as ações dos seringueiros. Poder-se-ia afirmar que boa parte dos adultos que hoje têm ao redor de 45 anos recebeu alguma 58
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formação escolar. No entanto, o impacto das missões no Apapóris e no Piráparaná não teve o mesmo alcance que em outras regiões vizinhas, como no alto rio Negro e no Uaupés16, onde salesianos, monfortianos e xaverianos se empenharam em atacar a estrutura social, os rituais e as práticas culturais através da fundação de aldeias (CABRERA, 2002). O Estado colombiano utilizou-se dos seringueiros e missionários para ter alguma presença na região com o propósito de ter certo controle sobre as zonas de fronteira. Para isso, adjudicou aos seringueiros o direito de trabalhar nas terras baldias e nas florestas nacionais, desde o início do século XX, e deixou nas mãos da Igreja, desde 1890, a tarefa de civilizar os “selvagens”, conforme seu projeto de nação baseado nos ideais hispanistas e católicos dirigidos à assimilação dos indígenas, no qual se incorporariam os índios como mão de obra nas economias regionais, assim como os missionários cumpririam seu trabalho civilizador. Devido à baixa quantidade de missionários designados para a região do Apapóris e do Pirá, eles faziam viagens em que batizavam17 crianças e ainda tentavam levar algumas para os internatos. No Apapóris não fundaram aldeias nem internatos, e isso ocorreu no alto Pirá só no final dos anos sessenta, quando também chegaram os primeiros missionários evangélicos do Instituto Linguístico de Verão. Desta forma, o projeto de construção do Estado-nação nesta região ficou nas mãos de poucas pessoas, mas ainda assim conseguiu alguns de seus propósitos, como o de definir suas fronteiras e identificar sua população em territórios longínquos. Assim, por exemplo, durante o primeiro auge da borracha, esta era vendida em Manaus e beneficiava os barões da borracha, enquanto na segunda bonança adequou-se um sistema de transporte aéreo que levava a borracha para o interior do país e daí aos portos marítimos para ser exportada, deixando o lucro na Colômbia. A interação com os seringueiros atacou o poder dos donos de maloca, pois entrou em competição com o sistema nativo de redistribuição. Contudo, também gerou responsabilidades e obrigações dos patrões para com seus trabalhadores e, especialmente, com as famílias das esposas indígenas que tomaram. Essa interação também alterou os padrões matrimoniais indígenas, ampliando a gama de afins pela convivência, nos acampamentos, com membros de diversos grupos. Os seringueiros provocaram a inserção indígena dentro do sistema mercantil, assim como grande quantidade de deslocamentos territoriais, seja para os indígenas se esconderem ou para que fossem trabalhar com eles. Alimentaram com suas mercadorias – concebidas pelos índios como poderosos objetos depositários de vitalidade, embora potencialmente daninhos – um sistema de troca simbólica que permitiu 16 Silverwood-Cope (1990) descreve que os missionários chegavam acompanhados dos Tukano para levar as crianças Maku às missões, mas que elas geralmente fugiam e reencontravam-se com seus pais na floresta. 17 Os índios consideram que o batismo católico oferece proteção xamânica às crianças e, por isso, antes era solicitado a qualquer branco.
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aos seringueiros manter seus trabalhadores; isto provocou um processo de redução das diferenças hierárquicas internas dos grupos indígenas. Poder-se-ia pensar, assim, que, durante este período de conhecimento mais próximo, índios e brancos começaram a se domesticar mutuamente. No início de 1960, a dependência dos patrões seringueiros diminuiu, embora começassem a controlar o auge das peles exóticas. Os Makuna encontravam-se dispersos, principalmente, pelos rios Apapóris, Pirá e Mirití, ocupando territórios de grupos extintos e formando alianças com afins também atomizados; muitos dos grupos locais constituídos nessa época foram o gérmen das aldeias fundadas quase vinte anos depois. Algumas famílias foram viver nas proximidades de La Pedrera, para estar perto dos filhos que tinham nos internatos. Outras famílias regressaram a Toaka e, com os parentes que viviam próximos no Pirá (mas não com os Makuna do Komeña), iniciaram um período de reconstrução de suas práticas rituais e retomaram seu território. Os antropólogos estrangeiros que chegaram à região no final dos anos sessenta e início dos setenta (Christine e Stephen Hugh-Jones, Kaj Århem, Patrice Bidou, Thomas Langdon, Jean Jackson, etc.) encontraram os Makuna e os grupos vizinhos vivendo em assentamentos dispersos e não em aldeias. O processo de aldeamento no Apapóris e Pirá-paraná começou pouco depois de 1975 e se estendeu até início dos oitenta, em grande medida pela ação indigenista de antropólogos que trabalhavam na estação de La Pedrera, criada pelo Instituto Colombiano de Antropologia, e que disseram aos índios que era necessário que se agruem em aldeias para se defenderem dos brancos, criassem lojas comunitárias para ter o aos bens ocidentais e vivessem de acordo com seus costumes, sem trabalhar para os brancos. Além disso, iniciaram um programa de alfabetização em línguas indígenas, que durou pouco por problemas de financiamento, mas que interferiu nos interesses de comerciantes e missionários que, em resposta, desprestigiaram os pesquisadores. Segundo Mahecha (2204, p. 78), nesse momento a política indigenista oficial do Estado, orientada pela Divisão de Assuntos Indígenas, era a de promover a formação de comunidades e o reconhecimento dos capitães indígenas como interlocutores legítimos diante do Estado. Assim, no início dos anos oitenta, começaram a delimitar e titular os diferentes Resguardos da região e iniciaram os processos organizativos necessários para o reconhecimento legal dos territórios indígenas. Enquanto eram preparados os primeiros os para o reconhecimento dos direitos indígenas, aconteceram os ciclos da coca e do ouro e, mais tarde, os índios foram se envolvendo cada vez mais na pesca comercial, estabelecendo relações diretas com comerciantes e visitando ou se empregando temporariamente em La Pedrera ou na mina de ouro do rio Traíra. Estas atividades econômicas atraíram muitos indígenas e permitiram-lhes conhecer e ter o a novas mercadorias, como gravadores, óculos escuros, etc. 60
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Em 1988, o Estado, representado por Virgilio Barco, o Presidente da República, entregou os títulos do Resguardo Yaigojé-Apaporis a Isaac Makuna, o he gu do grupo, que atuou como capitão de 1973 até 2000. Ele foi nomeado pelos padres, em parte para tirá-lo das suas obrigações rituais no seu território, mas isso não afetou sua posição como pajé principal. Porém, teve que ocupar o papel de interlocução política que correspondia ao dono de maloca principal – e esta superposição de cargos criou problemas internos, mas teve resultados políticos. Ele conseguiu garantir a posse do Resguardo das próprias mãos do Presidente, “dono de maloca” dos colombianos. Certamente, seu trabalho xamânico de encher de coca a cuia da fertilidade18 dos brancos, na cachoeira de La Libertad – lugar da origem do universo makuna e de todos os seres –, teve o resultado esperado quando um deles, o dono de maloca colombiano, levou os títulos que lhes garantia a posse do território e, portanto, de sua vitalidade, de forma análoga às trocas rituais entre donos de maloca. No entanto, a titulação não conseguiu incluir todo o território, deixando fora da área muitos lugares importantes; porém, em 1998, o Resguardo foi ampliado. Em 1991, a nova Constituição colombiana garantiu novos direitos aos indígenas, como a autonomia de suas formas de organização e seus territórios de acordo com seus usos e costumes. Em 1993, constituiu-se a ACIYA (Associação de Capitães Indígenas do Yaigojé-Apapóris), organização indígena local do Apapóris, iniciando-se um processo de re-ordenamento territorial que visa, segundo a proposta da Constituição, garantir a autonomia e a forma de vida indígena de face ao futuro. Na atualidade, o Resguardo Yaigojé-Apapóris tem umas 17 aldeias, com uma população total aproximada de 1.140 habitantes, segundo dados de 2000 (FUNDACIÓN GAIA AMAZONAS, 2000), nas quais vivem, predominantemente, membros dos grupos Makuna, Tanimuka, Letuama, Yujup-Makú e Kabiyarí. A composição étnica do Resguardo não deixa de chamar a atenção, já que inclui grupos das famílias linguísticas Tukano oriental, Makú-puinave e Aruak, que têm em comum segmentos míticos e o ritual de jurupari, assim como uma estrutura social semelhante, baseada na filiação patrilinear e na exogamia, embora claramente diferenciados por certas particularidades especiais e sem ter tido, necessariamente, relações sociais frequentes no ado. Isto quer dizer que nem todos os Makuna, assim como os membros de qualquer outro grupo, fazem parte do Resguardo nem da organização local. Isto contrasta com a própria concepção nativa, onde se supõe que todo o grupo deve viver em um mesmo território, dado pelos deuses no final da criação, para agir conjuntamente e realizar uma intensa vida ritual. Mas essa composição é o resultado do processo histórico que viveu a região e que descrevemos acima. Nesse sentido, é uma continuação da colonização, ao mesmo tempo em que é o começo de 18 No xamanismo makuna, os pajés têm a obrigação de encher as cuias de fertilidade de todos os seres para garantir sua reprodução e manter boas relações sociais.
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uma nova fase na relação entre os índios e os brancos. Esta parte do processo já foi analisada em outros textos (CAYÓN; TURBAY, 2005; CAYÓN, 2009) e, por isso, não vou entrar em detalhes. Até o dia de hoje, os Makuna não decidiram voltar a viver juntos no igarapé Toaka. Apesar de atualmente existir uma pequena vertente tradicionalista, a maioria prefere viver nas aldeias e ter o aos serviços que lhes prestam os brancos.
Considerações finais Pode-se afirmar que a persistência do sistema cosmológico através das vicissitudes do contato interétnico é o resultado tanto do vigor do xamanismo – sua associação com a estrutura ritual e seus especialistas e das práticas orientadas para as curas de manejo do mundo que fazem parte da vida cotidiana – quanto da flexibilidade e capacidade de incorporar as mudanças a partir de sua própria lógica. Isto não significa que em outras dimensões não se alteraram algumas coisas. Os reajustes na estrutura social implicaram a eliminação dos guerreiros especialistas, a diminuição do poder dos donos de maloca e a ampliação das trocas matrimoniais com grupos com os quais não tinham relações sociais no ado. As dinâmicas de ocupação do território aram por processos sucessivos: desde a concentração de todo o grupo em seu território tradicional, ando pela estratégia de proteção de guerra assumida durante o tempo das incursões escravistas, que levou aos clãs maiores a viverem nas cabeceiras, deixando os guerreiros na periferia para protegê-los; depois, a segmentação do grupo, na qual a maior parte do clã Sairã foi viver com seus cunhados no igarapé Komeña, o abandono de Toaka pelo rumor da chegada dos brancos, o exílio com os Letuama e outros grupos no rio Popeyaká, os trabalhos nos acampamentos seringueiros; logo depois, a reagrupação relativa do grupo para ocupar os territórios de grupos extintos e regressar ao Toaka, até finalmente iniciar a formação de aldeias e sua consolidação com a titulação do Resguardo, o surgimento da organização local e, agora, o processo de ordenamento territorial. Os processos históricos influíram sobre a vida Makuna e isso se reflete em uma série de problemas contemporâneos, sob a perspectiva cultural. A localização atual das aldeias que, em geral, não corresponde aos padrões tradicionais de distribuição territorial, mostra que muitas vezes não se tem o conhecimento xamânico para manejar com exatidão a fertilidade de um lugar porque as aldeias ficam no território de algum grupo extinto. A permanência de uma população que ultraa o tamanho médio de um grupo local gera grandes pressões sobre o entorno circundante e faz com que as pessoas tenham de se deslocar para distâncias maiores para obter seu sustento diário ou diminuam a possibilidade de peixes para outra aldeia, porque os que vivem rio abaixo os capturam em excesso. A presença de novos especialistas e líderes surgidos pelo contato com a sociedade dominante (professores, auxiliares de saúde e membros da organização indígena) atingiu as 62
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pautas da diferenciação social e os canais de redistribuição, que já haviam sido minados pelo o indiferenciado às mercadorias ocidentais desde o tempos dos seringais; mas, ao mesmo tempo, isso reforçou o prestígio dos especialistas rituais, deixando-os, ao que parece, em uma esfera diferente, desligada de certas obrigações econômicas e dirigida mais ao nível religioso, terreno propício para o surgimento de movimentos messiânicos. Tudo isso introduziu uma noção de desordem do mundo que se refletiu na fissão dos segmentos dos grupos e em algumas alterações das percepções sobre a identidade, pois já começam a ter como variáveis de definição o pertencimento a determinada aldeia, Resguardo ou associação indígena. A divisão interna por clãs foi afetada, pois seus segmentos se dispersaram, outros foram assimilados por grupos de aliados ou parentes e alguns se deslocaram para lugares muito distantes de seu território tradicional; no entanto, creio que dentro de sua estrutura social sempre existiu certo mecanismo de segmentação social que contempla a assimilação dos afins ou de remanescentes de grupos consanguíneos. O contato interétnico foi elaborado a partir da cosmologia makuna e enfatizou, sobretudo, o xamanismo. A guerra, a assimilação das mercadorias, a titulação do Resguardo e a proposta de organização territorial não apenas pressupõem interpretações xamânicas, mas ações xamânicas dirigidas a domesticar, assimilar e neutralizar os brancos. Nesse sentido, podemos pensar que, para os Makuna, a guerra com os brancos não terminou, mesmo que estes ajam de outras maneiras atualmente. Parece-me que, hoje em dia, eles assumem as propostas do Estado como uma forma de violência, que não é outra coisa senão a continuidade de uma relação social que tem essa característica como fundamento desde que foi criada. Por isso, o termo de relação que os Makuna usam para se referir aos brancos é heteña (pessoas com quem se troca). Este termo implica, ao mesmo tempo, distância social, violência potencial e a semente da transformação em afins, ou seja, um sistema de troca mais ou menos definitivo que elimine parte da tendência ao conflito. Porém, a história do contato não se esquece. Ainda hoje é latente o temor da deportação, evidência do impacto causado pelas políticas lusobrasileiras centradas nos descimentos, já que em 1999 correu o rumor, como um eco do ado, de que a guerrilha FARC chegaria e levaria todos; isto fez com que muitas pessoas fugissem e se escondessem na mata durante alguns dias (MAHECHA, 2004). A presença guerrilheira na região não é permanente e até o momento não produziu enfrentamentos com o exército, o que é interpretado pelos Makuna como resultado de uma proteção eficiente do território graças à cura do mundo. Porém, a reação das pessoas frente ao boato evidencia seus temores profundos com relação aos brancos, assim como a sua estratégia de sobrevivência. A guerra continua por outros meios. 63
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Paulo Roberto Homem de Góes2 Igarapé Primavera Cruzeiro do Sul rio Liberdade T.I Yawanawa/Katukina rio Gregório
T.I Katukina rio Campinas
BR-364
rio Acuraua Boca do Campinas - Rio Juruá
Tarauacá
Marubo - T.I. Vale do Javari
Principais áreas percorridas pelos Katukina/Pano ao longo dos séculos XIX - XX (a imagem está orientada pelos cursos dos rios – na parte de cima da imagem estão as cabeceiras).
A
região que abrange os formadores dos rios Juruá e Purus, até as duas décadas finais do século XIX, não foi atingida por exploradores e missionários, portugueses ou brasileiros, senão de forma esporádica. Espanhóis e peruanos já haviam feito reconhecimentos mais precisos da área em épocas anteriores, tendo realizado expedições desde o século XVI sem que, no entanto, houvessem obtido sucesso em se estabelecer perenemente na área. A inconstância na relação com os nativos custou a vida de muitos desses cristãos, tendo outros mais optado por recuar mesmo após anos de contato diante de reconfigurações no contexto de relações interétnicas. Muitos desses numerosos povos da família linguística Pano que habitavam esta extensa área de densas florestas já conheciam, com maior ou menor intensidade, a figura do homem branco há alguns séculos, mas somente 1 Agradeço à professora Maria Inês Smiljanic (DEAN-UFPR) o convite para colaborar nesta publicação. Uma primeira versão deste estudo foi escrita em julho de 2008 e sofreu algumas alterações a partir dos comentários essenciais dos professores Carlos M. Lima (DEHIS-UFPR), Edilene Coffaci de Lima e Ricardo Cid Fernandes (DEAN-UFPR) e de mais duas viagens de campo em novembro de 2008 e janeiro de 2009. Prováveis imprecisões e equívocos são, é obvio, de minha inteira responsabilidade. Agradeço também a Mani, Pe’o, Txoki, Kosti, Ni’i e Aro, da Terra Indígena Katukina/Campinas, pela disposição de compartilhar seus conhecimentos sobre o tempo dos antigos. 2 Paulo Roberto Homem de Góes é bacharel em Ciências Sociais pela UFPR e mestrando em Antropologia Social pela mesma universidade.
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foram obrigados, efetivamente, a conviver com estas sociedades estrangeiras quando exploradores de caucho e seringa aram continuamente a realizar incursões em seus territórios. O presente estudo busca traçar um breve panorama das primeiras décadas de contato entre as sociedades indígenas e as sociedades da borracha na região do Alto Juruá, a partir de diferentes referências etnológicas, etnográficas e históricas.
Territórios e guerras Pano Estudos sobre os grupos que formam a família linguística Pano relacionam esta com a família Takana – cujos falantes são encontrados atualmente no nordeste da Bolívia – e estimam uma profundidade cronológica de cerca de três mil anos para cada uma delas (URBAN, 1992, p. 97). As pesquisas arqueológicas disponíveis sobre a ocupação Pano – que abrange a região de boa parte da bacia do Ucayali a oeste, até o Purus a leste, e do médio e alto Javari ao norte, até o Madre de Dios ao sul – são de autoria de D. Lathrap e de sua equipe (RENARD-CASEVITZ, 1992, p. 198; MORIN, 1998, p. 292). A partir de análises de vestígios de cerâmica, Donald Lathrap propõe que os grupos de língua Pano aram a ocupar a região por volta de 1900 a 1600 a.p. (antes do presente) provenientes da região do Madeira-Guaporé, onde ainda hoje existem algumas pequenas populações. Uma ocupação, portanto, relativamente tardia, tendo em vista os registros arqueológicos coletados na região, datados de 4.000 a.p. (que coincidem, com o surgimento da cerâmica). A ocupação de populações Pano, diferente do padrão que se supõe que foi até então empregado por outros povos da região, teve inicio pelo interflúvio e só posteriormente atingiu áreas ribeirinhas como o Ucayali, onde hoje há maior concentração demográfica. Dados sobre comércio, guerras e outras modalidades de troca entre as diferentes populações indígenas em épocas anteriores à invasão espanhola são escassos, tanto na bibliografia quanto na memória de seus descendentes. Renard-Casevitz (1992, p. 201-4) sustenta que os Arawak subandinos, cujo território se estendia dos contrafortes andinos até as margens do Ucayali, eram intermediários em trocas comerciais que envolviam povos andinos incaicos e pré-incaicos e povos Pano das florestas. Quando da chegada dos espanhóis na região, já no século XVI3, grupos Pano ribeirinhos e Arawak centrais estavam integrados comercial e militarmente, sendo que nos séculos XVII e XVIII há registros de confederações guerreiras Pano e Arawak que defendiam as fronteiras amazônicas expulsando missionários, exploradores, colonos espanhóis e mesmo o exército peruano. Tais confederações interétnicas sustentaram a integridade territorial destes povos até o início da expansão do ciclo da borracha na década final do século XIX. Neste período, ocorre na região do Alto Juruá e Purus uma 3 O primeiro registro sobre populações Pano é de 1557, quando o missionário franciscano Arias de Ávila encontrou os Pãnotahua no rio Huallaga (DOLE, 1998, p. 141)
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significativa reconfiguração política e territorial, decorrente da presença de duas frentes extrativistas distintas. Superiores militarmente, caucheiros peruanos e seringalistas brasileiros, beneficiados pelo desenvolvimento da arma de repetição e por financiamentos de companhias exportadoras, ocupam a região para explorar o látex, desarticulando as redes comerciais e militares mais amplas que ligavam grupos Pano e Arawak. Ainda segundo Renard-Casevitz, os Kampa garantiam acordos de não agressão entre os diversos grupos (cada aldeia podia chegar a 1.500 pessoas4) através de uma lógica política concêntrica, onde referências comuns articulavam a unidade militar de grupos distantes. Segundo a análise de José Pimenta sobre os mesmos Kampa: A grande flexibilidade desse sistema de organização social assegura, ao mesmo tempo, a independência e a liberdade das unidades locais (household group) e cria os fundamentos de uma solidariedade política interna que pode ser acionada em caso de necessidade. Desse modo, apesar de desprovidos de uma organização política centralizada e hierarquizada, as alianças entre nampitsi formam uma ampla rede de ramificações que interconecta todos os Ashaninka. Por sua vez, essas alianças se estendem aos outros Kampa, considerados como integrantes da mesma família, e cria uma solidariedade étnico-política maior que pode ser mobilizada em tempos de guerra para lutar contra inimigos comuns (PIMENTA, 2006, p. 4).
A organização Arawak seria, portanto, caracterizada por esta centralização virtual, no sentido de que não há o reconhecimento de uma posição de liderança hierarquicamente superior que articule todos os grupos Kampa, o que, no entanto, não impede que esses grupos intensifiquem sua coesão ou promovam uma unidade política tendo matrizes culturais, materiais e mitológicas comuns que resultam em acordos de não agressão interna aos grupos do conjunto. Modo de organização distinto daqueles exercidos pelos grupos Pano do interflúvio, onde a profusão de etnônimos e uma propensão maior à descentralização política implicavam em conflitos guerreiros também entre si. A unidade Pano é analítica, dadas as semelhanças culturais, territoriais e linguísticas dos grupos que virtualmente a compõem, mas não política ou sociológica. Segundo a análise de Santos Granero (1998, p. 17-9), as guerras de captura de mulheres e cativos já eram inerentes à lógica militar e matrimonial 5) destes povos, algo que foi intensificado com a chegada espanhola e, posteriormente, brasileira. Quando os missionários começaram a estabelecer reduções entre os Cocama (Tupi) no baixo Ucayali no século XVII, os Conibo, que não tinham contato direto com essa fonte de mercadorias, intensificaram suas guerras contra os Amahuaca de forma a fornecer cativos aos Cocama em troca de ferramentas de metal. 4 Em tempo de chuva, considerando a prática ainda vigente dos Ashaninka em se dispersar pelas praias durante o verão. 5 Ainda hoje é comum entre alguns grupos Pano prescrição de casamento fora do grupo, sendo que, no caso Shipibo, “a exigência de distância genealógica (...) chega aos quatro ou aos sete graus” (CALÁVIA, 2002, p. 42), o que na prática implica que o casamento ideal é com uma parceira tão distante que se aproxima de um inimigo.
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O shoitiya Mani, falando sobre as migrações e guerras Katukina, em tempos anteriores ao ciclo da borracha, fornece-nos outros dados sobre esta dinâmica. Note-se que os Hoshonawa – como também sugerido também por Txoki, citado abaixo – são considerados como os principais responsáveis pela separação dos povos que viriam a se tornar Katukina e Marubo6 : Fomos subindo o Juruá todo tempo. Hoshonawa7 fez correria em nós e quase acabava tudo, ai escapava dez pessoas e aumentou de novo, daí depois aconteceram outras coisas. Diz que Varinawa tinha muito Varinawa, e acabava Varinawa, fizeram remédio, morreram quase tudo, Marubo me contou que era mais que tudo essas outras tribos, Waninawa era pouco, Satanawa era pouco, Kamanawa era pouco. Daí Varinawa era mais que essas pessoas, por isso quiseram matar quase tudo, daí escapou. Hoshonawa deu correria nele, depois aconteceu de novo, ai depois aconteceu de novo, daí eles pensaram: “– Vamos sair daqui, muita gente não dá certo com inimigo”. Daí ou, um bocado de gente foi embora, atravessou o Juruá na boca do Campinas, fizeram aldeia pra cá (Mani, aldeia Varinawa – novembro de 2008).
Exemplos como estes sugerem, portanto, que de certa forma as correrias – enquanto captura de mulheres e cativos – não foram geradas pelo mercado da borracha, pois vendetas entre diferentes povos já contribuíam para a composição da dinâmica sociopolítica Pano. Miguel Carid Naveira (2007, p. 22) sugere, através da análise de genealogias, que os raptos entre os Yaminawa ocorriam apenas entre diferentes grupos Pano, não havendo registro de casamentos com parceiras de povos Arawak ou Tupi, por exemplo. Não afirmo com este paralelo que as guerras de captura de esposas, tão presentes em tempos anteriores às invasões de peruanos e brasileiros, fossem da mesma natureza que aquelas promovidas pelas sociedades da borra-
Índios do rio Tarauacá, maloca do “cupu”, ainda selvagens em 1910 (CASTELLO BRANCO SOBRINHO, 2005 (1930), p. 18).
6 Coffaci de Lima (1994) já registrara que os Katukina e Marubo dizem ter sido um mesmo povo, que se separou antes da chegada de não-índios na região. A subida do Juruá aqui relatada pertence, portanto, ao período anterior ao início do ciclo da borracha.. 7 Hoshonawa é traduzido como “gente branca”. Carid Naveira registra como “gente da garça” a partir do mito de criação dos povos (Suvini) dos Yaminawa (2007, p. 357).
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cha – a aproximação justamente intenta o efeito contrastivo. Como veremos em seguida, o que os exploradores da borracha adicionaram a este contexto foi uma espécie de correrias em que a captura de mulheres estava articulada com a apropriação territorial e as consequentes guerras de extermínio. Os Hoshonawa aparecem em bom número de narrativas como sendo um povo extremamente guerreiro. Na narrativa do romeya Kosti, que segue abaixo, esse povo aparece através da ação de um pajé que buscava se vingar de uma traição. Teve um pajé que rezou e apareceu Hoshonawa. Tinha um cara que namorava mulher do pajé, dai pajé rezou pra ele transformar Hoshonawa, pra ele mata. Dai que surgiu muito Hoshonawa, dai Hoshonawa matou povo Noke Koï. (Foi) desse lado, depois de atravessar o Juruá que topou com Hoshonawa, dai Hoshonawa encontrou ele (KT), matava povo Noke e Noke Koï matava ele. Também quem escapou que fugiu né. Hoshonawa só comia milho torrado, quando vem duas horas da madrugada, Hoshonawa entrou na casa do Noke Koï pra matar ele, ai deitava na rede sozinho, ai ele foi deita com mulher dele. Hoshonawa entrou na casa pensando que ele tava deitado na rede, ai ele (Katukina/Noke Koï) escutou que tava pulando na rede. Ele correu e pegou Hoshonawa e jogou dentro do fogo, dai queimava o Hoshonawa. Tinha muito Hoshonawa, mais esse entrou sozinho. dai Noke Koï foi caçar e deixou só o filho dele na casa, ai quando ele chegou na mata o Hoshonawa já tinha matado o filho dele e partiu (o filho) e colocava em cima na palha. Quando ele chega da mata já tinham matado filho dele, ai ele foi ou direto atrás do Hoshonawa. Foi, levou mulher dele só flechando atrás do Hoshonawa, até que ele encontrou. Quando caiu chuva Hoshonawa fez tapiri pra ar chuva, Hoshonawa tinha muito dai ele deixou a mulher dele escondida, pra ele matar. Só era uma pessoa e Hoshonawa tinha muito. Ele matou tudinho os Hoshonawa, só uma pessoa foi na frente pra ver se vinha gente atrás dele, quando ele matava tudinho, a pessoa vinha na frente matou ele, a mulher dele correu. Ve’a foi quem matou os Hoshonawa e Hoshonawa matou ele também. Noke Koï tava com medo de Hoshonawa, colocou um monte de caroço de cocão pra deixar no terreiro pra Hoshonawa não entrar. Quando Hoshonawa entra pisou em cima e escorregaram, quando caíram Noke Koï matou Hoshonawa. Foi ai que acabou Hoshonawa. (Kosti, tradução de Aro, aldeia Varinawa - janeiro de 2009).
Ve’a é o mártir responsável pela morte de grande parte destes inimigos dos Katukina. É notável que outros povos da região também reivindicam a autoria do extermínio deste povo temível – inclusive uma liderança reconhecidamente guerreira dos Yawanawa era chamada de Hoshonawa. Segundo Mukanawa – que é Yawanawa casado com Katukina – e Carid Naveira (1999), isto se deve ao fato de ter sido capturado ainda criança pelos Yawanawa. Diferentemente de Kosti, mas de acordo com Mani, o shoitiya Txoki aponta os mesmos Hoshonawa como responsáveis pela separação do povo Noke Koï nos atuais Marubo e Katukina. 71
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Paulo: Por que os Katukina estão se chamando de Noke Koï? Txoki: Na geração é povo Noke Koï mesmo. Atravessamos na ponte jacaré, Tarakawate, ele afundou e morreu muita gente. Ficou gente lá, veio outro, eles falaram que chama de Marubo por causa da casa grande da maloca, ou tempo ficou Marubo, aí inventaram Marubo. Paulo: Como eles chamavam? Txoki: Noke Koï mesmo, é como nós: Varinawa, Satanawa, Kamanawa, Waninawa, foi branco que chamou Marubo. Katukina morava lá no outro rio, afluente do Ituí, quando veio Hoshonawa fazer correria, eles fugiram, daí inventaram mentira que outro pajé queria matar ele de macumba, Katukina saiu porque nós sofremos muito com Hoshonawa e pra não viver nessa confusão atravessaram pra cá o (rio) Juruá na boca do Campinas. Paulo: Como atravessaram? Txoki: Colcha de paxiubão que atravessava, não tem canoa, atravessaram o Juruá, aí nesse trecho peruano atacava ele, rodava nesse trecho todinho que eles matavam mesmo, minha mãe que contava, ela era antiga! Beiço pintado, orelha furada e tudo. Peruano atacava no Gregório e no Liberdade todo tempo, eles atacavam e Katukina vinha pra cá e ia pra lá. Paulo: Onde fica o Tsa Tsa Waka? Txoki: Tsa Tsa Waka (rio do peixe) é nesse meio antes do Liberdade, deságua no Juruá, atravessaram na boca do Campinas, daí depois que sumiu o peruano é que foram pro Tsa Tsa Waka até que vararam pro Gregório onde encontrou Manoel de Pinho, daí conversou com ele, daí voltaram pro Liberdade, ele brigava com o (seringalista) Mapes e saiu do (seringal) Guarani e foi pro Rio Branco e levou todos os índios pra lá no (rio) Tauari que deságua no Gregório. Tauari ficou com Manoel de Pinho, encontrou no Guarani, ele carregava mercadoria que patrão, você sabe, viaja todo canto. Aqui brigaram por causa do seringal, ou tempo morreu Manoel ficaram sem patrão, sabe notícia do Antonio Carioca, bocado deles foram olhar pra ver se quer trabalhar com ele, ele chamou e foram todinho pra lá, antigamente não tem canto certo. (Txoki, janeiro de 2009)
A narrativa de Txoki alude à travessia na ponte jacaré – tão presente nos shedipawo dos povos Pano – para, em seguida, explicar que o ataque de Hoshonawa foi o responsável pela separação dos Noke Koï em Marubo e Katukina. As correrias exercidas pelos peruanos começam logo após a travessia do rio Juruá, que Txoki afirma ser na altura da foz do rio Campinas. O episódio culmina com o “amansamento” do povo - já debilitado por anos de guerras e migrações - pelo seringalista Manoel de Pinho.
Conflitos e o modo de ocupação seringueiro no Alto Juruá Grande parte das tribos do Juruá-Purus desapareceu antes que fosse possível qualquer documentação sobre seus costumes; de muitas delas só 72
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se conhece a crônica das violências de que foram vítimas, crônicas, aliás, quase idênticas, pois os mesmos fatos se repetiram com uma tribo após a outra (RIBEIRO, 1979, p. 43 apud PANTOJA, 2004, p. 151).
As largas extensões de florestas que abrigam os formadores das bacias dos rios Purus e Juruá ao norte e do Madre de Dios ao sul, regiões de florestas densas e predominantemente territórios de numerosos grupos Pano, são também florestas que concentram grande variedade e quantidade da Hevea brasiliense, tendo já sido ricas também em Castilloa elastica. Antes que houvesse demanda pelo produto destas árvores, foram poucos os exploradores e missionários brasileiros que se aventuraram por estes territórios indígenas. Segundo Euclides da Cunha, o inglês William Chandless, que em 1866 publicou Ascent of the River Purus pela Royal Geographical Society of London, foi o primeiro explorador a fazer conhecida aos não índios a hidrografia daquelas terras que viriam ser incorporadas ao Brasil enquanto Estado do Acre. Em sua viagem, Chandless desbravou e mapeou o alto rio Purus e seus tributários, com o intento de encontrar o divisor de águas que permitisse o o aos formadores do Madre de Dios em uma época em que havia esperança de encontrar ligações possíveis entre as bacias do Amazonas e do Paraguai. Aqueles longínquos lugares do Purus — mais conhecidos hoje, depois da exploração de Chandless, do que muitos pontos do nosso far west paulista — exigem uma aclimação dificílima e penosa. Apesar de um rápido povoamento, de cem mil almas em pouco mais de trinta anos, têm ainda o caráter nefasto das paragens virgens onde a copiosa exuberância da vida vegetal parece favorecida por um ambiente impróprio à existência humana (CUNHA, 1907, p. 51).
Até o início do XX, oficialmente, a região era ainda reivindicada pelos Estados da Bolívia e do Peru, sem que nenhum desses países efetivamente a ocue. Por volta de 1870, exploradores de aguano (mogno) e em seguida as primeiras levas de caucheiros peruanos começam a adentrar os territórios de povos Pano e os primeiros conflitos em torno deste novo mercado começam a acontecer. Os exploradores da Castilla elastica, dadas as técnicas empregadas na coleta do caucho (abate das árvores e extração completa da borracha de uma só vez), implementaram uma cadeia de exploração extrativista e nômade, cuja característica fundamental na relação com os nativos era a extrema violência. Quando chegaram os brancos, nesse tempo não tinha seringa não, eles começaram com negócio de aguano [mogno], tirando madeira, chegaram madeireiro por lá. Aí tinham as aldeias na margem do rio também, pra poder tirar as madeiras aí metiam a bala nos índios. Os índios corriam, um bocado matava, aquele mais corajoso ele [índio] flechava ele [branco], aí ele [branco] matava, jogava. Pegava aqueles pequenininhos trazia pra criar, hoje em dia como tão tudo misturado, né. Foi assim que começaram trazer 73
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pra amansar os pequeno, uma menina, um menino, quando começaram crescer dizia: “Olha, você vai mais eu, fala pros teus parentes que nós não vamos matar mais não, a gente quer trabalhar, eu dou a roupa pra ele, eu dou terçado pra ele”. Aí dava a roupa pra ele, chegava lá dizia que a roupa era muita quentura não vestia não, tirava, jogava fora. (...) Então foi assim que começou, essa história que eu posso contar, é assim que meu avô me contava muito, aí dizia assim: “olhe, meu neto, eu sofri, eu tava com medo e tal, mataram meu pai, me pegaram isso, me levaram assim...”. Então foi assim que comecemos. (Vicente Sabóia Kaxinawa - outubro 2002, citado em WEBER, 2004, p. 26).
O primeiro impacto deste modo de ocupação na organização dos povos resistentes a este processo, de início, foi certamente territorial, com graves implicações nos rituais e na economia nativa. Diante das levas de caucheiros que chegavam e dos embates ocorridos, muitos povos optaram por estratégias também nômades que permitiam que usufruíssem de invisibilidade e, por consequência, proteção no interior das florestas. Para tanto, era necessário o abandono das técnicas agrícolas e dos rituais que mobilizassem as comunidades. Tal situação forçou determinados grupos a praticar infanticídio como forma de possibilitar as fugas, enquanto outros aos poucos foram desenvolvendo estratégias de aproximação que os permitissem negociar com os não-índios. Abaixo, um mapa e uma relação dos primeiros exploradores do Alto Juruá segundo Castello Branco Sobrinho (2005 (1930), p. 12 – grifo meu):
Primeiras expedições ao Juruá Federal AMAZONAS
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Rio Juruá
Rio Branco
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Rio Ipixuna
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Rio Juru
VIII Rio Breu
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ENTRE “BRABOS”: ÍNDIOS E SERINGUEIROS NO ALTO JURUÁ
I
Expedição de João da Cunha Corrêa até o Juruá-mirim (1857).
II
Expedição de Antônio Marques de Meneses atinge o Estirão dos Nauas (1884).
III
Exploração patrocinada pelos “italianos” Antonio Marcilio e Luiz Paschoal até a foz do Juruámirim. Primeira expedição com fim de povoamento (1884).
IV
Exploração de Ismael Galdino da Paixão e Domingos Pereira de Sousa até a foz do Juruámirim (1885).
V
Exploração do rio Moa (1888).
VI
Exploração da foz do Juruá-mirim ao rio das Minas (1889).
VII
Exploração até a foz do Igarapé Triunfo (1890).
VIII
Exploração da foz do Tejo à foz do Breu (1890). Exploração do rio Tejo (1890).
IX
Exploração do rio Azul, afluente do Moa (1893).
X
Exploração do alto Liberdade por Pedro Juvêncio Barroso (1894).
O relato do shoitiya Mani sintetiza dois dos primeiros modos de troca direta entre os povos nativos e os exploradores de látex. O primeiro – as correrias – foi necessário para a objetivação do segundo – um sistema hierárquico de dívidas cujo denominador comum era a borracha: Os peruanos queriam matar os índios, vinham pra levar as mulheres, o índio ia atrás de novo e tomava elas deles (...) O índio viu o branco mariscando no rio, o índio foi atrás dele e ofereceu cinco mulheres pra poder trabalhar com ele. Assim acabou as correria (Mani, aldeia Samaúma - abril de 2006).
Este primeiro patrão, como registrado acima, tinha o nome de Manoel de Pinho, Toshpiya entre os Katukina. A inserção de peruanos entre o povo Noke Koï – Katukina – se deu a partir da traição de um parente. Segundo a narrativa do romeya Kosti, traduzida por seu filho Aro, Kamarati foi quem, ao se aliar aos caucheiros, sucessivamente ou a trazê-los para efetuarem os ataques de extermínio masculino e captura de mulheres. Parente Noke Koï foi morar junto com peruano e ele trazia muito peruano pra matar povo Noke Koï. Kamarati que foi morar junto com peruano, ele era muito preguiçoso, dai tá com medo de caba, ai irmão dele derrubou caba pra ferrar. Só irmão dele que caba ferrava, dai cunhado dele jogou ele no meio das cabas que ferraram Kamarati, dai que ele transformou, ficou muito valente, foi morar convidado do peruano e trazia muito peruano pra matar Noke Koï. Virou inimigo, dai que começou peruano matar povo Noke Koï (...) Não ganhava nada era só mesmo matar povo. Ele tomava mulher e levava pro peruano e quando ele encontrava com o povo mandava desce pra deita com mulher dele, ai Noke Koï tava com medo, morava em todo canto com medo de morrer. Quando ficou velho veio morar com Noke Koï de novo, deixou peruano e veio de novo, dai povo matou ele. Ele foi criança e voltou velho, durou muito tempo, vida dele ele perseguiu Noke Koï, dai que mato ele, já tinha matado muita gente e povo não gostava, daí mataram ele (Kosti tradução de Aro, aldeia Kamanawa, janeiro de 2009). 75
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O tempo estimado por Kosti para essas correrias foi de algumas décadas ininterruptas, uma vez que Kamarati teria saído jovem e voltado velho para seu povo. O fim do tempo dos peruanos só se efetivou com a chegada cada vez em maior número de seringalistas brasileiros, aos quais os indígenas aos poucos começaram a se aliar. Com a contínua e crescente demanda pelo látex no mercado estrangeiro, as últimas décadas do século XIX foram marcadas pela chegada crescente de brasileiros – financiados por Companhias aviadoras localizadas primeiramente em Belém e depois também em Manaus – buscando a exploração dos recursos da região. Este movimento proporcionou um modo de ocupação territorial distinto do modelo caucheiro, pois, sendo a seringueira uma árvore que, quando realizado manejo adequado, produz perenemente por decênios, a exploração seringueira exigiu um sistema sedentário que esteve na base do desenvolvimento do sistema de aviamento. O funcionamento do sistema de aviamento em regiões como estas, muito distantes dos grandes centros, tinha em sua ponta os seringueiros de origem predominantemente nordestina e aos quais, instalado o seringal, cabia abrir as estradas que ligavam os dispersos exemplares da árvore para diariamente coletar seu produto. Diretamente acima deles estava o dono do barracão, que fornecia as mercadorias necessárias à manutenção dos seringueiros (espingardas, querosene, alimentos, roupas) e que em troca recebia o látex bruto que negociaria com o regatão de alguma companhia aviadora situada nos centros amazônicos. É como descreve Manuela Carneiro da Cunha: Aqui, o sistema desposava a própria geografia: os negociantes ingleses adiantavam as mercadorias para os negociantes de Belém, que as reavam para os de Manaus, que as forneciam aos “patrões” dos rios caucheiros, que abasteciam seus subpatrões, que por sua vez as transferiam aos seus próprios subpatrões, concluindo-se o conjunto com adiantamentos em mercadorias feitos aos seringueiros. Esta cadeia toda estava fundada sobre o aviamento, o crédito e a dívida; salvo nas extremidades (isto é, os peixes pequenos das cabeceiras e os grandes de Belém e de Liverpool), cada qual era credor a montante e devedor a jusante (CARNEIRO DA CUNHA, 1998, p. 3-4).
A exploração econômica sistemática de brasileiros na chamada alta Amazônia ocorre, portanto, tardiamente. Antes do ciclo da borracha havia um mercado brasileiro limitado de produtos florestais como castanha-dopará, ovos de tartaruga, copaíba, jarina, etc. bastante à região de Belém. Em 1870, a cidade de Manaus registrava apenas 5.000 habitantes (WEISTEIN, 1993, p. 73). Mas, com a alta constante no preço da borracha, desde os primeiros anos da década de 1870, o oeste amazônico a então a fazer parte do quadro econômico brasileiro. A primeira linha regular, gerida pela Companhia Fluvial do Amazonas, que alcançava o médio Purus, iniciou suas atividades em 1869 (CUNHA, 1907, p. 54), começando a fomentar um cres76
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cimento populacional ainda não presenciado na região. Em dez anos (18771887), Euclides da Cunha estima que mais de 60.000 nordestinos migraram para essas regiões. Este fluxo continuado de migrantes por cerca de três décadas impulsionou algumas frações de grupos indígenas sobreviventes das correrias a optarem por desfrutar do status de “amansados” em troca de uma estabilidade maior e do o às mercadorias. A expansão vertiginosa da demanda de indústrias inglesas, alemãs e estadunidenses pelo látex, combinada a períodos de fortes secas no Nordeste em 1989, 1898 e 1900, gerou uma verdadeira onda migratória que atingiu a alta Amazônia até as regiões de colonização espanhola, onde foram comuns disputas territoriais entre caucheiros e seringalistas. Os principais afluentes do lado direito do Solimões começam a ser sistematicamente explorados por volta de 1880 e a região das cabeceiras destes rios, que dispunha de seringueiras em número e qualidade excepcionais, é atingida sistematicamente por brasileiros somente em 1890. Mauro Almeida e Cristina Wolff (2002b, p. 108) calculam que, entre 1880 e 1910, cerca de 20 mil seringueiros por década entraram no oeste amazônico, sendo que no Alto Juruá – território então pretendido por Bolívia, Peru e Brasil – a ocupação brasileira coincidiu com a configuração botânica, sendo o território acreano, de certa forma, delimitado pela presença da Hevea. Euclides da Cunha, mandado ao Purus como o líder da parte brasileira da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus para contribuir na delimitação da fronteira entre Brasil e Peru nos anos de 1903 e 1904, pôde enumerar alguns grupos Pano e Arawak, com os quais esses seringueiros começaram a se deparar. Realmente, tôda a zona em que se traça, ainda pontuada, a linha limítrofe brasílio-peruana, e irradiam para os quadrantes os formadores do Purus e do Juruá, as vertentes mais setentrionais do Urubamba e os últimos esgalhos do Madre de Diós, figurava entre as mais desconhecidas da América, menos em virtude de suas condições físicas excepcionais, vencidas em 1844 por F. Castelnau, que pelo renome temeroso das tribos que a povoam (...) Discordes nos hábitos e na procedência, lá se comprimem em ajuntamento forçado; os amauacas mansos que se agregam aos puestos dos extratores do caucho; os coronauas indomáveis, senhores das cabeceiras do Curanja; os piros acobreados, de rebrilhantes dentes tintos de resina escura que lhes dão aos rostos, quando sorriem, indefiníveis traços de ameaças sombrias; os barbudos caxibos afeitos ao extermínio em correrias de duzentos anos sôbre os destroços das missões do Pachitéa; os conibos de crânios deformados e bustos espantadamente listrados de vermelho e azul; os setebos, sipibos e iurimauas; os mashcos corpulentos, do Mano, evocando no desconforme da estatura os gigantes fabulados pelos primeiros cartógrafos da Amazônia; e, sôbre todos, suplantando-os na fama e no valor, os campas aguerridos do Urubamba. A variedade das cabildas em área tão reduzida trai a pressão estranha que as constringe. O ajuntamento é forçado (CUNHA, 1909, p. 25). 77
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O relato é muito abrangente, mas o argumento de que o grande número e variedade dos povos indígenas da região se devem ao ajuntamento forçado não é de todo preciso, o que revela mais sobre o ponto de vista dos brasileiros e peruanos do que sobre a história das sociedades da região. De fato houve migrações indígenas às montantes e interflúvios mesmo antes de contatos diretos dos povos nativos e exploradores de látex. Contato que viera a forçar os Ashaninka (Arawak), conhecidos genericamente como Kampa, a ali se refugiarem, partindo dos contrafortes andinos após séculos de resistência à invasão espanhola. Resistência que findou com a chegada da Winchester8 e dos caucheiros (RENARD-CASEWITZ, 1992, p. 198 e seguintes). No entanto, há de se considerar também que a região descrita por Euclides da Cunha já possui populações bastante afeitas aos processos de descentralização política e de diferenciação corporal9, característica do próprio ethos de seus povos autóctones. Essa característica dos grupos que compõem a família linguística Pano, ora definida como “caleidoscópica”, ora chamada de “nebulosa” (ERIKSON, 1993; TOWNSLEY, 1988), onde fronteiras identitárias extremamente complexas e fluidas geram formações sociais compostas, cujas organizações, muitas vezes, têm como base vários “povos” dentro de um só etnônimo geral, foi tornada ainda mais intensa quando da objetivação do sistema de aviamento. Ao destruir as redes sociais indígenas, via guerras, cativeiro e doenças, a expansão demográfica vertiginosa das décadas finais do XIX, provocando o extermínio de muitos grupos, desestruturou as redes mais amplas de trocas interétnicas, gerando um processo de fragmentação física e simbólica destas populações. Às frações de grupos que sobreviviam aos ataques impunha-se a necessidade de desenvolver diferentes estratégias de defesa, sendo que em muitos casos coube a grandes chefes articular territorialmente – e por consequência matrimonialmente e economicamente – grupos distintos. Tal articulação territorial como, por exemplo, nos casos de João Tuxáua para os Marubo (RUEDAS, 2001, p. 722), Pekarua, Pekarasu e Antonio Luis no caso Yawanawa (CARID NAVEIRA, 1999, p. 30) – e, como veremos, do seringalista Manoel de Pinho para o caso Katukina –, refletia-se na economia e na política dos grupos, pois uma vez que as redes de alianças matrimoniais já existentes eram expandidas por intermédio do convívio com outras famílias extensas, as obrigações produtivas (agricultura, pesca e caça) entre genros, sogros, irmãos e cunhados, acabavam por também se estender para além destas redes, gerando, a partir da partilha territorial articulada por um chefe, uma nova configuração política e em alguns casos até mesmo étnica. No caso Kaxinawa, povo relativamente bastante numeroso, houve uma dispersão e parte da população se articulou ao trabalho da seringa ao longo de 8 Rifle de repetição conhecido nos E.U.A. como a “arma que conquistou o oeste”. 9 Além dos crânios deformados dos Conibo e dos dentes enegrecidos dos Piro descritos por Euclides da Cunha, podemos citar os “bigodes” Matis, que mimetizam onças.
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vários rios acreanos, enquanto outra migrou para as cabeceiras do Curanja – atual território do Peru –, onde a escassez de matéria-prima os permitiu usufruir de relativa autonomia do sistema de aviamento. O canibalismo guerreiro e funerário e as técnicas de transformação corporal, se assim é possível dizer, externas (tatuagens, deformações, ornamentos, pinturas) – ou aquelas não ligadas aos processos de transformação diretamente xamânicos (via ingestão de plantas, observação de dietas, etc.) – foram quase completamente abandonados tão logo o mercado da borracha se estabeleceu. O missionário francês da Congregação do Espírito Santo Constant Tastevin, em 1924, descreve a tatuagem facial utilizada pelo Noke (Katukina-Pano) do rio da Liberdade10, rio que teria sido explorado pela primeira vez em 188311: A tatuagem distintiva da tribo é uma linha azul que desenha os contornos da boca, e que, do canto dos lábios, se junta à base da orelha: parecem arreados por um freio. Para traçar estas linhas, que têm uma regularidade perfeita, eles se servem de um longo espinho da palmeira pupunha (Guglielma speciosa), “wani”, na sua língua, e derramam na picada o suco da fruta chamada génipa, em língua tupi. Somente os homens e as mulheres acima de trinta anos portavam esta marca nacional que lhes foi imprimida em baixa idade. Isto significa que depois que eles entraram em contato com os brancos, em torno de 1888, os Katukina abandonaram este costume bárbaro (TASTEVIN, 1924, p. 4).
O próprio missionário sustenta que a denominação Katukina veio a ser incorporada por este grupo como estratégia de sobrevivência. Dada a fama de ferozes que possuíam os Nawas (Pano), os yara (que é como os Katukina denominam os não-índios) empreendiam numerosas e violentas correrias para dizimá-los, diferente do que acontecia com os Kanamari e Djopa, da família Katukina, localizados rio abaixo, que eram tidos como índios “mansos” (COFFACI DE LIMA, 1994, p. 16). Esta estratégia de “autoamansamento”, se de fato a leitura de Tastevin é correta, diz muito sobre a lógica que permeava as relações entre brasileiros e indígenas nas décadas finais do século XIX no Alto Juruá.
Nawas e nordestinos As pessoas que subiam em vapores eram abandonadas na margem do rio, sem haver o menor abrigo, tendo aos pés o rio e a mata, com os seus habitantes primitivos. Logo ao saltar o “brabo” tinha que construir um 10 “(...) Barracão “Liberdade”. As más línguas dizem que ele deveria ser chamado de “Riozinho da Escravidão”, em razão do forte domínio que faziam pesar sobre os trabalhadores os proprietários da feitoria Liberdade” (TASTEVIN, 1928, p. 206). 11 “Foi em 1883 que homens à procura de látex chegaram à foz do Riozinho da Liberdade (afluente do Juruá). O rio era rico em seringueiras: foi feita a sua conquista paralelamente à do Juruá e à do Gregório. Em 1900, encontramos os peruanos instalados na desembocadura do Caxingó; eles até levaram um barco a vapor, o único a ter ado do Forquilha até agora, e fizeram um carregamento de goma de Catilloa elastica, o caucho propriamente dito. Quando da criação do território do Acre, em 1904, o Liberdade foi dividido em dois pedaços; o inferior ficando na Amazônia e o superior, quer dizer dois terços dele, no novo território” (TASTEVIN, 1928, p. 10).
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“tapiri”, ligeira construção de madeira e palhas, para que não ficassem ao relento e poder resguardar as mercadorias que conduzia e instrumentos indispensáveis à caça, sua defesa e o material necessário à abertura de varadouros destinados à ligação de madeira donde se extraem o leite, para o fabrico da borracha (CASTELLO BRANCO SOBRINHO, 2005 (1930), p. 27 – grifo meu).
As categorias de “brabos” e “mansos”, para se referir aos indígenas, estiveram constantemente presentes na legislação colonial (CARNEIRO DA CUNHA, 1992, p. 134 e seguintes), algo que ressoou também nas práticas dos exploradores que chegavam aos territórios Pano. O tratamento relegado ao índio “bravo”, na história brasileira, em geral oscilou entre o extermínio para ocupação territorial e a “domesticação” através da catequese e do trabalho forçado a fim de inseri-lo na sociedade colonial. O caso do Alto Juruá apresenta algumas diferenças neste quadro, devido às distâncias geográficas dos grandes centros e aos modos de relações interétnicas que ali foram estabelecidos por conta do caráter rigorosamente mercantil que impulsionou a ocupação em suas primeiras décadas. Refiro-me ao papel exercido pelas companhias aviadoras, sem as quais não poderia tamanho número de nordestinos ter alcançado essas áreas em busca de um modo de vida alternativo à precariedade que atravessavam em tempos de forte secas no sertão nordestino. As especificidades desta conjuntura emergem, portanto, do fato de que não houve na geração pioneira a participação daqueles atributos identificados por Pierre Bourdieu como característicos de modos de dominação objetivados, a saber: “sistema de ensino, de aparelho jurídico e de Estado” (BOURDIEU, 2006, p. 193), pois até 190412 sequer se haviam delimitado os limites de Peru, Bolívia e Brasil. Juridicamente, todo território que abrange o Alto Juruá e Purus foi construído como um espaço vazio – as chamadas terras devolutas tão recorrentes na história agrária do país –, o que implicava na imposição de invisibilidade à territorialidade indígena. Na prática ava, nesse tempo, a ser ocupado predominantemente por brasileiros. Este modo de ocupação gerou, obviamente, implicações nas estruturas de poder regionais, em especial em relação à posição usufruída pelo patrão seringalista, pois o lugar que ocupava nos processos da rede de aviamento permitia que monopolizasse a cadeia de trocas mercantis em nível mais local, gerando lucro a partir de dois movimentos: superfaturava o valor das mercadorias, ao mesmo tempo em que forçava o preço da borracha para baixo. O limite de lucros lhe era imposto tão-somente pela possibilidade do seringueiro garantir a subsistência com a caça e a pesca, algo que faria se os preços dos alimentos não estivessem íveis. Instituições como a Igreja e o sistema istrativo e jurídico do Estado vieram a ocupar um território conquistado pelos seringais, que, por sua vez, eram controlados por regimentos internos definidos por aquele a 12 No departamento do Alto Juruá são de 1904 a fundação do primeiro jornal e também da primeira escola e do próprio município de Cruzeiro do Sul (CASTELLO BRANCO SOBRINHO, 2005, p. 80, 92 e 151).
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quem caberia realizar o intermédio da troca. A catequese cumpriu um papel bastante secundário nesta região explorada majoritariamente pela iniciativa privada; o “brabo” aqui, nas primeiras décadas de ocupação branca, antes era aquele que deveria ser morto para que fosse possível a implantação do seringal. Na margem oposta do rio, de frente ao seringal Redenção, moravam os catuquinas. Atacaram uma barraca de seringueiro do lugar Primavera, próximo do nosso. Mataram três pessoas e roubaram o que haviam encontrado. De pronto foi organizada uma correria. Era preciso ação pronta, decidida, urgente. Compunha-se de vinte homens com trezentos cartuchos Winchester cada um. Redenção forneceu quatro rapazes, o resto foi arranjado de outros seringais. Penetrando na mata foram dar com as malocas depois de terem andado por quase três dias. (...) Tomaram chegada às seis horas, hora que o selvagem costuma estar em casa reunido. Dormiram a certa distância do aceiro. Às cinco horas da manhã atacaram formando cerrado tiroteio. Aos gritos alarmantes, saiam os índios correndo por uma porta e outra e, nesse momento, os tiros certeiros dos atacantes punha-os por terra. A mortandade foi grande mais escafederam-se muitos. Aproximando-se do barracão conseguiram prender uns quinze colomins de oito a dez anos (...) No regresso os prisioneiros começaram a gritar demais, sendo preciso abandoná-los, deixando-os à toa, perdidos. Outros praticavam selvageria destampando a cabeça dos inocentes com balas. Assim a maloca inteira se deslocou para lugares distantes sem mais voltar a massacrar os trabalhadores dali (CABRAL, 1984 (1949), p. 61-2).
Esta correria ocorrida em 1902 na região do alto Tarauacá e narrada pelo ex-seringueiro Alfredo Lustosa Cabral em seu livro Dez anos no Amazonas, publicado em 1949, retrata um pouco o contexto de tensão em que seringueiros e grupos nawa viviam. Não é possível afirmar com plena certeza que se trata dos mesmos Katukina referidos há pouco13; no entanto, a informação é extremamente sugestiva, dada a proximidade geográfica do rio Tarauacá com o rio Gregório, local aonde esses vieram a se estabelecer poucas décadas depois, e também ao fato de haver indicações na memória de alguns Katukina que Shinã – liderança do grupo “no tempo de Manoel de Pinho” (que é lembrado como primeiro patrão do grupo) – ter estado no igarapé Primavera, afluente esquerdo do Tarauacá. A narrativa de Alfredo Cabral contempla vários aspectos da configuração tensa em que seringueiros e grupos indígenas estavam inseridos e descreve os procedimentos de uma correria que são recorrentes em outras narrativas sobre estas incursões guerreiras. Considerando a grande probabilidade de serem esses Katukina os mesmos que hoje habitam as TI do Campinas e Gregório, é possível afirmar que o ataque ao seringal ocorreu em um momento em que a população Katukina já havia deixado as proximi13 Há de se levar em conta também que há um grupo Shanenawa localizado no município de Feijó e que na época das correrias também era conhecido pelo nome de Katukina.
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dades da colocação Guarani14 no rio da Liberdade e transitava em busca de outro patrão, um momento de não aliança com os brancos que os tornara potencialmente perigosos aos seringalistas. De qualquer forma, destaca-se nesse relato a ação “pronta, decidida e urgente”, articulada entre diferentes seringalistas, como forma de represália ao ataque indígena, uma vez que tais estratégias não diferiam radicalmente daquelas utilizadas nos ataques guerreiros anteriores à presença de não indígenas. Noções de “índio brabo” e “índio manso” operavam neste contexto como um sistema classificatório hierarquizante. Índio “brabo”, na linguagem do seringueiro, era aquele com quem se guerreava, matando-se os homens e muitas vezes, se possível, aprisionando-se mulheres15 e crianças. “Brabo” também era aquele pertencente a um grupo indígena desconhecido do seringalista ou que houvesse se retraído das negociações que envolviam trocas de serviços por mercadorias. “Manso”, por sua vez, era aquele grupo com quem havia se estabelecido algum tipo de aliança. Muitas vezes esse oferecia trabalhos – como aberturas de roçados, caça e pesca – em troca de mercadorias, tais como espingardas, chumbo, roupas e querosene. O índio “manso” também poderia ser um aliado guerreiro, na medida em que algumas vezes os patrões faziam uso dos melhores conhecimentos que os indígenas possuíam sobre a região, de forma a contribuírem no rastreamento, no cerco e na captura de outros povos não aliados. Há registros de prisioneiros Amahuaca capturados e vendidos pelos Ashaninka (WOLFF, 1999, p. 161). Estas noções eram tão fluidas quanto era inconstante uma aliança entre um seringalista e o(s) chefe(s) de um grupo indígena, e um mesmo grupo era ível de ser considerado ora “brabo” ora “manso”, de acordo com o contexto de relações interétnicas. É de se notar também que tais categorias estão relacionadas ao grau de inserção na cadeia produtiva e mercantil da borracha, sendo os “mansos” aqueles que estabelecem uma relação mais direta com este sistema comercial. Afinal, se populações tão distintas como nordestinos e ameríndios poderiam ser considerados “brabos”16, não era senão pela forma como seu trabalho era mobilizado dentro de um sistema de trocas hierarquizado. O cearense, “brabo” por inexperiência, era facilmente “amansado” tão logo a convivência com seringueiros mais experientes o habituasse ao cotidiano e às técnicas empregadas na floresta. O nativo, “brabo” por sua “natureza” – na realidade pela grande alteridade que representava –, consistia em 14 “Guarani – Seringal existente no rio Liberdade, entre o Forquilha e Liverpool, propriedade (em 1924) de F. F. de Carvalho, com 150 estradas de seringueiras e capacidade para produzir 25.000 quilogramas de borracha. Sua população é de umas 100 pessoas” (CASTELLO BRANCO SOBRINHO, 2005 (1924), p. 41). Em publicação de 1928, Tastevin contou 109 pessoas no seringal Guarani. 15 Almeida (2002b, p. 117) relata que as índias eram trazidas amarradas e com um pedaço de pau na boca “para não morder”. 16 O nordestino recém-chegado que desconhecia o ambiente e as técnicas de extração do látex era também considerado um “brabo”.
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um desafio maior ao “amansamento”; por isto, em geral era morto, dando espaço a uma incorporação com objetivos antes reprodutivos (crianças e mulheres) do que propriamente produtivos (mão de obra). Os primeiros embates entre indígenas e brancos, necessários à instalação dos seringais, tinham origem já no reconhecimento da área a ser explorada. Em florestas densas como as da região, a invisibilidade foi um fator estratégico para ofensores brasileiros e nawa17. Essa característica dos confrontos guerreiros tornava a presença de grupos indígenas não aliados nas proximidades das estradas de seringa um fator que impossibilitava a ocupação e exploração econômica de determinada área. Cada estrada de seringa, para ser razoavelmente conservada, era aberta com cerca de 1m - 1,5m de largura e invariavelmente ligava as árvores exploradas por determinado patrão a algum núcleo residencial seringueiro, algo que os tornava sobremaneira visíveis e expostos às incursões guerreiras indígenas. Como consequência destas características do modo seringueiro de ocupação, para o bom funcionamento de um seringal era necessário matar os homens dos povos não aliados que habitavam aquela região, até o ponto que seu número fosse insuficiente para que causassem prejuízos aos barracões. É como sintetiza Pantoja: neste sentido, as correrias seriam mitos da criação da nação seringueira (2004, p. 140-1), pois apenas desta forma se poderia garantir, como atesta o depoimento de Alfredo Lustosa Cabral acima citado, que aqueles que sobreviviam iriam se recolher em áreas mais remotas das florestas – à custa do abandono de práticas agrícolas e rituais que os tornariam também visíveis e, portanto, sujeitos a novas perseguições –, ou iriam se render às alianças com os seringalistas – de forma a oferecer serviços e conhecimentos em troca de mercadorias e relativa proteção. No dizer dos primeiros exploradores, alguns dos quais ainda vivos, havia outrora relativamente muitos índios no Riozinho da Liberdade. Hoje eles quase desapareceram. Os civilizados, peruanos “caucheiros”, e brasileiros “seringueiros”, exterminaram um grande número deles nas expedições ou “correrias” sem perdão. Chegou-se até a arremessar pequenos índios ao ar para recebê-los sobre a ponta de um punhal (...) o índio era tomado por um animal malvado, incapaz de civilização, e esta ideia, preconizada pelos homens influentes, deveria produzir este triste resultado: o extermínio de uma raça de excelentes agricultores (TASTEVIN, 1928, p. 8).
A relação de fidelidade forçada, que existia entre o patrão e o seringueiro, garantida muitas vezes pela figura do amansador e pela tradicional utilização do “tronco”18, estende-se até os grupos mais arredios, com os quais a única linguagem era a guerra, ando pelas relações com grupos aman17 Ainda hoje a invisibilidade é parte fundamental das estratégias de proteção de grupos indígenas arredios ao contato e o modo de ocupação – malocas dispostas linearmente, roçados muito próximos às casas, mínimo impacto sobre a cobertura florestal, etc. – demonstra isso. 18 Instrumento de tortura muito recorrente no período colonial também incorporado pelos seringalistas. Ver Wolff (1999, p. 203).
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sados e, quando esses desfrutavam da mínima possibilidade de organização, eram mediadas por seus caciques19. Estes se tornavam então uma espécie de patrões internos aos grupos, extremidades mais longínquas do sistema de aviamento, uma vez que mediavam o trabalho indígena e a entrada e distribuição de mercadorias. Entre o grupo indígena aliado e o seringueiro, a relação com o dono do barracão diferia no sentido de que, no primeiro caso, esta era uma relação com uma comunidade nativa que, muitas vezes, desconhecia em grande parte o português, sendo, no segundo, uma relação com indivíduos solteiros ou chefes de família e que, portanto, no decorrer dos primeiros decênios da exploração da borracha no Alto Juruá, possuíam uma mínima expressão política. Os conhecimentos do vasto território tornavam as migrações uma estratégia quase sempre possível aos grupos indígenas. O preparo e distribuição em lugares específicos de um composto alimentar que regionalmente é chamado “pão-de-índio”20 (Yawa Jaminawa Arara, Cruzeiro do Sul – junho de 2007), fazia parte das estratégias de povos que, em tempos de correrias, eram obrigados a permanecer em fuga constante e nos dá exemplo de como estes grupos conseguiam se defender sem abandonar aquela que consideravam sua territorialidade. O chamado “pão de índio” só tinha razão de ser devido ao fato de sempre se retornar a certos locais eleitos pelo grupo. O relato de Washime, chefe Nokekoivo21 (Katukina) por cerca de 40 anos, sobre as fugas e sobre o encontro com o primeiro seringalista diz um pouco desta instabilidade das alianças entre grupos indígenas e patrões: Os yara (brancos) usavam roupas e os índios queriam roupas e comida porque viviam que nem bando de porco, fugindo de um lado pro outro. O primeiro patrão estabeleceu no rio Branco, mas ele começou a enganar os índios e saímos buscar outro patrão. (Washime, aldeia Campinas – julho de 2006).
Como vimos, o primeiro patrão foi Manoel de Pinho – Toshpiya – e sua “aldeia” (assim se referia Pe’o ao rememorar o que lhe contava sua mãe) era chamada Tajúba, no centro, sendo que a colocação Guarani ficava na beira do rio Liberdade de onde a borracha era escoada. Como apontado pelo trabalho de Jardim (2007, p. 18), Toshpya – assim chamado pelos Katukina por conta de uma verruga – foi contatado por Maná e Rekichoi, lideranças Katukina que ofereceram quatro mulheres em troca de trabalho. O próprio Washime descende indiretamente de Manoel de Pinho, uma vez que seu pai e importante liderança, Shinã (Oscar), foi criado pelo seringalista (a linha diagonal aponta filiação não biológica), como indicado no diagrama a seguir. 19 A palavra cacique não corresponde ao referente de liderança nessas épocas, mas é utilizada atualmente para designar chefia. 20 Preparado composto pela mistura de vários tubérculos e grãos cuja característica principal é se conservar comestível por anos mesmo em ambientes pouco favoráveis (queimadas, chuvas intensas, etc.). 21 Autodenominação bastante recente adotada por várias lideranças Katukina.
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?
Varisai
Manoel de Pinho
Mami Pe’ino Penanai Shere Apatxori Yuxin Varinawa (Damião) (Joaquim)
Kana
Ro’a
Pana
Shere
Memi
?
?
?
?
Teima Waninawa
?
Rami Vinhã Wano Teima Shinã Vo’a Txapa Txo’o Varinawa (Joaquim) Satanawa (Oscar)
Varikene Varinawa (Antonio Rosa)
Shara Wachime Kamanawa Kamanawa (Rita)
Yaka
Itsomi
Kapy
Tete Satanawa
Ijupa Wano Satanawa Kamanawa (Sérgio)
Rami
?
Rona
Vinho Kamanawa (Orlando)
Wachime Rami
Rona
Txore
As versões relacionadas ao fim do trabalho com Toshpya variam. Alguns afirmam que este vendeu a colocação e foi embora para Manaus, outros dizem que Toshpya foi enfeitiçado por um pajé e há ainda aqueles que dizem simplesmente que os Katukina os abandonaram em busca de outro patrão. Em todos os casos, Toshpya é lembrado como um patrão que maltratava os índios, forçando o trabalho através da coerção física e violentando as mulheres. Independente das motivações que impulsionaram os Katukina a migrar, coube a Oscar Shinã fazer contato com Antonio Carioca no rio Gregório. Há quem sugira que foi este o primeiro contato dos Katukina com os Yawanawa, contato que culminou em algumas alianças que, no entanto, jamais deixaram de ser precárias. Shinã cumpriu à sua época um papel análogo ao que seu filho viria a fazer a partir dos anos 50, uma vez que, fluente no português e com a confiança do patrão Antonio Carioca, chegara a ir a Manaus buscar mercadorias. Os eventos em torno de sua morte atualizam rivalidades com os vizinhos Yawanawa. Como tantos outros relatos de feitiçaria, as versões abundam, mas muitas delas narram que, em uma destas viagens em que trazia mercadorias no batelão, Shinã teria sido morto por um feitiço feito pela então principal liderança dos Yawanawa, Hoshonawa (Antonio Luiz) (os Yawanawa são ainda hoje reconhecidos como feiticeiros pelos Katukina). Se considerarmos a geração de Shere, Vinõ e Ijupa (respectivamente, atuais lideranças das aldeias Samaúma, Masheya e Campinas da TI Katukina/ Campinas) como sendo 0 (zero), poderíamos dizer aproximadamente que a geração +3 (de Varisaï e Tei’ma, por exemplo), que firmou a primeira aliança com um seringalista, habitava o rio Liberdade e seus afluentes (como os Igarapés Forquilha e Miolo); a geração +2 (Shinã), por sua vez, migrou do rio Liberdade para afluentes do Tarauacá o depois para o rio Gregório; sen85
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do que a geração +1 (de Washime, Ro’a, Pe’o, Mani) saiu do Gregório e seus afluentes para se estabelecer, após algumas décadas de intensa migração, entre o igarapé Vai e Vem e o rio Campinas, onde atualmente está localizada a Terra Indígena Katukina do Campinas. Obviamente, esta sistematização é aproximativa e a migração para um novo território não pressupunha o abandono completo da localidade anterior. A forte tendência à fragmentação que a dinâmica social Katukina operava nesse período implicava na manutenção de territorialidades simultâneas, que podem ser compreendidas mesmo como estratégias de garantia da autonomia relativa ao sistema de aviamento. Essas relações tênues com os territórios e a inconstância nas relações com os seringalistas constituem um mesmo fenômeno, que perde intensidade apenas com a demarcação da Terra Indígena já na década de 1980. Retomando a trajetória de Oscar Shinã, transcrevo as palavras de Mani e Pe’o: Cacique do tempo de Manoel de Pinho era o Oscar, era Varinawa, Manoel de Pinho que ensinou ele, que criou ele, era muito sabido. Oscar era patrão no tempo de Manoel de Pinho, deixou Manoel e foi até o Gregório, ele foi pra cá na boca do Primavera. Oscar foi pra Manaus buscar mercadoria, muita mercadoria, no meio de viagem morreu. Shinã, Varishinã, era nome dele, que era Varinawa, Shinãvopinho (...) Manoel de Pinho casou com mãe dele e criou ele, era filho de criação. (Mani e Pe’o, aldeia Varinawa – novembro de 2008).
A morte de Shinã foi explicitada com maiores detalhes por Txoki e Ni’i em outra ocasião. Txoki: Shinã comprou muita mercadoria, dizia papai que quando ele foi pra Manaus foi primeiro Katukina que saiu, foi com Manoel de Pinho. Levava muita mercadoria, quando ele voltou, por causa dessas mercadorias que os próprios Yawanawa botaram feitiço nele. Mercadoria veio até boca do (rio) Tauari, eram quatro barcos grandes cheios de mercadorias. Foi lá que parece o patrão dele soube que ele tinha morrido e de lá mesmo voltou pra Manaus. Paulo: Quem que jogou o feitiço nele? Txoki: Foi Antonio Luís. Papai diz que morreu de repente, botou de manhã quando foi de tarde já foi. Yawanawa tem feitiço que não dura nem cinco horas. Até nós usava esse feitiço, se por acaso se você fez raiva comigo, ai botava feitiço em você, você não aguentava nem cinco horas. Assim de primeiro usava muito, próprio Yawanawa ainda tão usando, nós não, por que aqueles velhos que sabiam morreram tudo. Ni’i: Chama rao o feitiço. Raonti é remédio. Meu cunhado (que é Yawanawa) sabe. Pega folha da mata machuca, você pode estar onde tiver que pega, ele sabe mesmo fazer, mas não faz mais não. Ele é casado com minha irmã e ela mora lá (TI Gregório). Próprio feitiço Katukina acabou, não aprenderam nada. 86
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Paulo: Quando mataram Shinã não quiseram matar Antonio Luis? Txoki: Pessoal quis matar por isso dividiu, por isso estamos aqui. Depois que mataram Shinã outros mais velhos quiseram matar Antonio Luis, ficaram com raiva mesmo dai dividiram, papai fala que nesse tempo Katukina morava perto do Yawanawa ai foram mais longe e até hoje tem essa divisão né? Ni’i: Minha irmã que mora lá, cadê que vou visitar? Tenho irmão também, to com trinta anos que não visito lá, o ano ado que minha irmã veio em casa, pra mim ir lá não vou. Tenho muito parente dentro do Yawanawa, sobrinha, meu irmão tem aldeia mesmo só da família dele (aldeia Escondido) ali é só meus parente, tenho sobrinho e sobrinha.
É notável que os ataques xamânicos não tenham sido retribuídos e a opção Katukina não tenha sido a vingança e sim a migração. Ao longo deste trabalho irei retomar este dado para a discussão sobre a relação entre ethos guerreiro e territorialidade a partir de dados Katukina. Washime, filho de Shinã, teve uma trajetória parecida com a de seu pai, pois ele também fora apadrinhado por um seringalista (Antonio Carioca, do seringal Kaxinawa, no rio Gregório) quando ainda novo. Aprendeu português e veio a se tornar o mediador entre os patrões seringalistas e parte das famílias Katukina. Falecido em 2007, com mais de 80 anos de idade, Washime foi a principal liderança de várias famílias Katukina em uma série de migrações de seringal em seringal por uma área que se estende dos afluentes esquerdos do rio Tarauacá, ando pelos rios Gregório, Liberdade e Campinas e chegando em alguns momentos ao Juruá. Segundo a lembrança de Washime, foi por volta de 1945 que Antonio Carioca o levou do seringal Sete Estrelas, onde vivia com seus parentes, para o seringal Kaxinawa. O jovem então, sob tutela do seringalista – que certamente foi o patrão mais bem sucedido entre os Katukina –, aprendeu a falar português e fazer contas básicas de matemática. Estes conhecimentos o colocaram em posição estratégica de negociação entre seringalistas e os agrupamentos Katukina, delegando-o a posição de destaque na mediação entre os serviços prestados pelos indígenas (em especial a abertura de roçados, a caça e pesca e o conhecimento de plantas) aos patrões e a entrada das mercadorias desejadas pelos indígenas (munição, espingardas, querosene, café, açúcar, sabão e roupas, principalmente). A saída de Carioca, cuja presença na região se estendeu por várias décadas, reintroduziu os Katukina aos movimentos constantes. Em meados da década de 1960, o seringalista chamado Zacarias assumiu os seringais de Carioca, mas, descontente com as negociações (esse teria roubado mais de 500 kg de borracha), Washime propôs abandonar seu seringal. A decisão tomada por Washime não foi acatada por todos os agrupamentos Katukina, porém algumas famílias aderiram à decisão, iniciando mais uma série de migrações. Como apontado pela memória desta liderança, entre meados de 1950 e 1970, foram nada menos do que seis patrões de seis seringais diferentes 87
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com os quais essas famílias Katukina trabalharam. Os relatos demonstram que alguns povos eram capazes de desenvolver estratégias que oscilavam entre a aproximação e retração, e tais estratégias foram estendidas mesmo a períodos tardios do ciclo da borracha. Sem pretender continuar as fugas constantes e fugindo assim do status de “brabos”, os Katukina, diferente de povos vizinhos, tais como Yawanawa e boa parte dos Kaxinawa, conseguiram desfrutar do status de “mansos” ainda que isto não implicasse na subordinação a um patrão especifico – algo que lhes viera a garantir certa autonomia e que possibilitou a manutenção da língua e de rituais que outros povos foram sistematicamente impedidos de realizar. Tal como os Yawanawa, os Nokekoivo (Katukina) narram que a iniciativa de fazer aliança com um seringalista foi deles. No caso dos belicosos Yawanawa, a iniciativa teria sido de Antonio Luis, grande chefe e pajé desse povo, casado com 12 mulheres de pelo menos cinco grupos Pano distintos, inclusive duas Katukina. A oferta de carne de caça aos seringueiros em troca de farinha de mandioca teria sido a primeira forma de contato pacífico com os brancos (CARID NAVEIRA, 1999, p. 25). Entre os Katukina, que já haviam sofrido com a violência de caucheiros peruanos antes mesmo da chegada dos brasileiros, a oferta, como relatou o agente de saúde indígena Aro, foi bem mais “generosa” do que a de seus vizinhos Yawanawa: (Foi) primeiro contato, maior seringalista do Brasil. Naquela época povo Katukina não usava essas roupas no corpo, somente tradicional mesmo, quando Manoel de Pinho descobriu, (foi) primeiro contato, tinha duas mulheres Katukina que o cacique deu pra ele (...) Antigamente Keni, é o seguinte, o povo Katukina não comia sal, quando comia tomava kampo pra joga fora22, se comia arroz, feijão, tomava kampo e jogava fora. Quando Manoel de Pinho apareceu na aldeia ele que amansou os Katukina (Aro, aldeia Varinawa, novembro de 2008).
A oferta de mulheres como forma de aliança com o seringalista foi também acionada pelo já citado Mani: O índio viu o branco mariscando no rio, o índio foi atrás dele e ofereceu cinco mulheres pra poder trabalhar com ele. Assim acabaram as correrias. Estas falas inserem questões bastante recorrentes na etnologia amazônica. A oferta destas mulheres Katukina, ainda que seu número destoe entre uma narrativa e outra, é rememorada como um momento que fundamentou a (primeira) aliança pacífica com os brancos, sendo, portanto, o marco do “amansamento”, ou “descobrimento” do grupo. Até então, o o de brasileiros e peruanos às mulheres indígenas era dado tão-somente através da violência e do sequestro, situação que perdurou até o ponto em que a população Katukina se encontrou em estado de tamanha fragilidade que se viu forçada a estabelecer esta aliança. 22 O uso da secreção do kampo (anfíbio do gênero phyllomedusa) como emético para afastar possíveis malefícios causados pelos alimentos dos brancos já fora registrado em Coffaci de Lima (1994, p. 122) e Martins (2006, p. 138).
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A partir deste momento, o grupo a a ser considerado como sendo “de” Manoel de Pinho e é digno de nota que, na lembrança desse tempo, Mani tenha se referido aos antigos adicionando “Pinho” aos seus nomes, utilizando, assim, o sobrenome de Manoel de Pinho como um classificador: Arovopinho, Te’imavopinho, Vo’avopinho, Shinãvopinho (Mani, aldeia Varinawa, novembro de 2008).
Sobre o cativeiro feminino Começou mais de caboclo aqui, o cearense vinha do Ceará, vinha solteiro aí se juntava, não tinha mulher, esse pegador de caboclo, amansador trazia as caboclas e se juntava, tem muito cara aí que se ajuntou com cabocla, os cearenses com cabocla... daí foi aumentando mais (PINHEIRO, José Rubens, 1995, citado por WOLFF, 1999, p. 192, grifo meu).
A colonização seringueira, como já dito, diferiu daquela implementada pelo caucho, pois prescindiu de mão de obra masculina indígena. Isso acarretou num modo de ocupação onde as correrias visavam o extermínio dos homens, a conquista territorial e o rapto de mulheres, em lugar de forçar o trabalho nativo – como ocorrera muitas vezes no contexto do caucho. Isto não significa que não houve escravidão da mão de obra indígena. Há certo número de registros sobre escravidão e comércio de índios no Vale do Juruá (PANTOJA, 2004, p. 137). No entanto, de maneira geral a sociedade seringueira não foi uma sociedade escravagista no sentido de gerar riquezas a partir do trabalho e comércio de cativos. A estrutura dos primeiros seringais e a necessidade de áreas extremamente amplas de floresta para a extração da borracha tornava impraticáveis modos de controle social diretamente coercitivos sobre a mão de obra. Em um sistema onde o controle do trabalho de seringueiros e indígenas era, sobretudo, econômico, fruto da cadeia de dívidas e do monopólio do seringalista sobre a borracha extraída nas estradas de sua abrangência, um outro fator tornava dispensável o trabalho indígena masculino: a demanda dos migrantes nordestinos por mercadorias e alimentos era muito maior que a dos indígenas, uma vez que a subsistência daqueles dependia, nos primeiros anos de ocupação, quase que exclusivamente das relações mercantis articuladas pela extração da borracha, o que, consequentemente, possibilitava sua dedicação exclusiva a essas atividades, além de criar maior necessidade dos bens de consumo oferecidos pelos seringalistas. Por outro lado, os nawa, mesmo quando incorporados aos trabalhos dos seringais, jamais abandonaram atividades de caça e pesca e apenas transitoriamente deixaram de exercer atividades agrícolas para sua própria subsistência, o que lhes garantiu no decorrer do ciclo da borracha maior autonomia. Sendo que a proporção entre mulheres e homens migrantes esteve nas primeiras décadas de ocupação na razão de uma para quatro, fato ainda mui89
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to presente na memória de seringueiros antigos, foi essencial à consolidação deste modo de exploração a servidão feminina. Muitos seringais desfrutavam dos serviços dos “chefes de correria” ou “amansadores de caboclo”, que se consistiam em espécie de soldados a serviço dos patrões. Aos “chefes de correria” cabia organizar as incursões contra as malocas indígenas e capturar mulheres e crianças, que então viriam a ser “amansadas” para posteriormente serem vendidas a seringueiros solteiros. O amansamento consistia em amarrar e amordaçar a mulher até que a fome as forçasse a aceitar a submissão. Wolff (1999, p. 171) relata o caso de uma índia Kapanawa que, mesmo após dez anos “casada” com um seringueiro, preparava diariamente duas comidas: uma salgada para seu captor e outra para si, sem sal. O caso é muito significativo, dada a importância atribuída à comensalidade no mundo indígena. Se consanguíneos são aqueles que partilham substâncias e alimentos (VILLAÇA, 1996), o que a índia Kapanawa fazia diariamente era demonstrar o quão forçada era aquela relação com o caríu, e que ela, apesar de dez anos de convivência, não o considerava parente. Também é possível em um parêntese apontar para o trabalho de Erikson (1996) sobre a importância dos sabores entre os Matis e povos Pano em geral, considerando que o sal, como também alimentos doces, são considerados vata em contraposição às substâncias muka que, sendo amargas, contribuem para fazer o corpo mais forte. Mulheres e crianças indígenas capturadas em geral eram pessoas que haviam presenciado o extermínio de seus próprios parentes e que acabavam por ser incorporadas forçosamente à sociedade seringueira via casamentos, exercendo, tal como em suas sociedades de origem, as atividades domésticas e agrícolas. Mais uma vez Tastevin fornece um relato dos mecanismos utilizados pelos não-índios. Esta história de massacre é terrível. Um conquistador conseguira convencer uns sessenta Papavos a estabelecer-se durante algum tempo no meio dos seus índios amansados. Depois de alguns meses estes pobres selvagens sentiram falta da sua independência e liberdade: quiseram se retirar (...) Foi indicada aos Papavo a direção do porto que podia ser aquela das ubás que deveriam levá-los para casa: mas antes que eles tivessem ultraado os 50 ou 100 metros que os separavam delas eles foram colocados na mira, excetuando-se as jovens mulheres, que foram guardadas para os pretensos civilizados; só um homem conseguiu escapar (1926, p. 52).
O fato de grande parte destas mulheres capturadas serem mais jovens que seus captores23 implicava um nível maior de submissão e um obstáculo a menos em seu processo de incorporação. Meillassoux já observara, para casos africanos, que a incorporação de mulheres púberes é mais vantajosa e mais simples (1995, p. 25). De modo que seus descendentes, mesmo quando 23 Entre indígenas e seringueiros, ainda é comum o casamento de meninas recém-chegadas à puberdade.
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reconhecem a ascendência indígena, ordinariamente relatam o tempo das correrias a partir da visão daquele que capturava os indígenas e não do capturado (WOLFF, 1999, p. 167). Mesmo em casos de irmãs que continuaram a viver juntas dentro dos seringais, o conhecimento da língua indígena não foi transmitido para as outras gerações, sendo difícil precisar os mecanismos que impediram ou as desestimularam a fazê-lo. A maneira um pouco dúbia com que Dona Mariana, filha de uma índia Kontanawa “pega no mato”, relata o tempo das correrias, expressa certa solidariedade com os indígenas, ao mesmo que demarca uma identidade seringueira. Os índios eram perversos também, o índio era perverso. Os índios sofreram muito, mas a gente diz assim, Mariana: eles eram perversos, mas os brancos estavam tomando o que era deles; era por isso. (Dona Mariana, Foz do Machadinho, setembro de 1994, citada em PANTOJA, 2004, p. 171).
A dubiedade com que D. Mariana expressa a questão conflituosa entre índios e seringueiros é atualizada contemporaneamente com a mobilização de seus descendentes, que, após décadas integrando a Reserva Extrativista do Alto Juruá enquanto seringueiros, am a reivindicar uma identidade e uma territorialidade própria, enquanto Kontanawa. O sistema de aviamento impôs um modo de servidão de mulheres indígenas com particularidades que permitem a um só tempo encontrar similaridades com a servidão típica das “sociedades de parentesco” descritas por Meillassoux (1995) e o tipo de cativeiro e exploração comercial da mão de obra que vigora em sociedades propriamente escravistas. O próprio antropólogo já descreve a posição ambígua da mulher capturada como sendo a da “prefiguração do escravo” (1999, p. 25). Não havendo no Alto Juruá-Purus a instituição de um comércio de cativas24, ainda que essas fossem comercializadas, tampouco atividades produtivas que devessem ser exclusivamente exercidas por elas, a violência do “amansamento” das mulheres neste contexto diferencia-se também do tipo de servidão de “parentesco”, pois se trata de uma incorporação sistemática que, apesar do caráter doméstico, viabilizava diretamente a manutenção de uma classe exploradora via guerras de captura. Sem as mulheres indígenas e com uma proporção tão baixa de migrantes do sexo feminino, o processo de sedentarização de nordestinos – e por sua vez a consolidação da sociedade seringueira no atual território acreano – seria inviável. A figura recorrente de empregados especializados na captura de crianças e púberes, tais como os “amansadores de caboclo”, exemplifica essa especificidade do lugar delegado às cativas, e o termo “amansador” ainda pôde ser operado pelos captores de forma a justificar tal violência, uma vez que a selvageria era então atribuída à condição indígena da qual eram retira24 “O preço variava, e podia ser o de uma espingarda, ou (...) quatrocentos a quinhentos quilos de borracha, o que equivalia à produção anual de um seringueiro médio” (WOLFF, 1999, p.164).
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das. Espécie de atitude para com a alteridade que talvez possua motivações menos contextuais do que à primeira vista possa transparecer.
Entre o chefe e o Inka: apontamentos sobre o lugar do patrão na política indígena Nesse tempo não existia cacique (...) Cacique não organizava nada, nesse tempo não tinha patrão, não tinha cacique, estavam fazendo correria, estava tudo espalhado. Como ia ter cacique? Se tivesse cacique iam matar de bala. Que jeito ia ter cacique? Nesse tempo (Katukina) não tem nada, não conhece nada, só anda pelo mato mesmo. Depois que encontrou Manoel de Pinho que vão trabalhar. Manoel de Pinho ensinava ele (Katukina). Ia pra lá só fazer roçado, quando roçado deste tamanho o peruano fez correria nele e deixaram sem roça: “– Vai embora pra outro canto!”. (Txano e Pe’o, aldeia Varinawa, novembro de 2008). Pedro Biló não amansava caboclo. Pedro Biló matava caboclo. Pedro Biló amansou Manel Papavo porque deu um tiro na mãe dele e ele era bem novinho. A bala ainda marcou o braço dele... Felizardo Cerqueira amansava caboclo, dava mercadoria pra nós caboclos. Agradava o velho o menino. Felizardo e Ângelo Ferreira amansava caboclo pra trabaiá pra ele, Nós tudo aqui trabaiemo com Felizardo. Ele dizia que tinha mais de 80 filhos com as caboclas. Felizardo amansava caboclo e depois botava a marca (FC) pra saber que era dele, que foi ele que amansou (...) Picava o braço com quatro agulha e ava tinta que é genipapo misturado com pólvora e tisna preta de sernambi. (Kaxinawa do Jordão não identificado, – citado em AQUINO, 1982, p. 68-9),
A figura do patrão do seringal é, como tantas outras figuras que compõem estes mosaicos interétnicos, extremamente ambígua. Devemos considerar que a maior ou menor capacidade de um seringalista em prover mercadorias e de liderar seus arrendatários em incursões guerreiras, algo que nos primeiros anos da instalação da empresa seringalista no curso dos altos rios foi frequente, poderia aproximá-lo estruturalmente da posição de chefia prevista pelo modo de organização política de certos grupos Pano. Miguel Carid Naveira cita a narrativa de Raimundo Yawanawa, filho de uma Katukina com um chefe Yawanawa, o qual relata a chegada do patrão cearense Ângelo Ferreira às proximidades do rio Gregório por volta de 1905, quando foi apresentado a esse grupo por intermédio dos Katukina. No momento da primeira aproximação desse caríu, então desconhecido dos Yawanawa, os Katukina teriam dito: Não o matem! Ele não é quem matou seus filhos, é homem de paz, é um líder que nem vocês, não vem pra matar ninguém, é um líder (1999, p. 29). De forma análoga ocorreu com o também cearense, seringalista, maçom e ayahuasqueiro Felizardo Cerqueira (IGLESIAS, 2008, p. 2), que, após 92
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o assassinato do patrão Ângelo Ferreira em 1909, do qual fora empregado, levou parte dos Kaxinawa “amansados” consigo até o rio Jordão, onde ou a organizá-los em correrias contra índios “brabos” a serviço dos patrões locais. Tempos depois, Cerqueira começou a gerenciar seu próprio seringal, aonde viera a se tornar famoso regionalmente por gravar a pele daqueles que “amansava” com as iniciais de seu nome. Os Kaxinawa, por sua vez, atribuíam a ele uma série de poderes espirituais, tais como a capacidade de curar brancos e índios e de “fechar o corpo” próprio e daqueles que o acompanhavam nos ataques às malocas dos “brabos” através de “orações fortes”. No dizer de Romão Sales Kaxinawa: Era o magnetismo. O magnetismo parece que é espiritismo. Ele se concentrava, rezava pra ir dormir. A gente dormia mesmo. Ele cantava. Era caboclo mesmo, caboclo guerreiro, caboclo flecheiro. Tinha muita coisa mesmo (Romão Sales, Aldeia Boa Vista, 28/5/2005 citado em IGLESIAS, p. 2008, p. 2).
Além destes atributos, Cerqueira, por ser um bem sucedido “amansador de caboclos”, teve o a várias mulheres Kaxinawa, o que no decorrer das décadas inseriu-o em larga medida na rede de parentesco indígena. Tastevin se refere a Felizardo, o qual diz ser discípulo de Ângelo Ferreira: Este homem conseguiu fanatizar os índios, que estão todos prontos a derramar o próprio sangue por ele. Ele possui um harém de nove mulheres que coloca à disposição dos seus companheiros civilizados, durante o tempo em que ficarem com ele. Ele não ite que alguém seja celibatário no meio dos seus índios (1924, p. 47).
O já citado Manoel de Pinho, Ângelo Ferreira e Felizardo Cerqueira são exemplos – talvez extremos – de como, ao mesmo tempo em que os indígenas eram forçosamente inseridos marginalmente na estrutura de aviamento (de outra forma caberia-lhes continuar fugindo, uma vez que a abertura de roçados deixava-os vulneráveis à violência das correrias), os cearenses e outros patrões de pequenos rios à montante, por vezes, entravam em certa medida na lógica política, matrimonial e cosmológica Pano, assumindo, em alguns casos, um comportamento análogo ao de grandes chefes indígenas, os quais agregavam famílias em torno de uma territorialidade criada a partir da maloca. No caso Katukina, como descrito acima, por conta da situação bastante debilitada em que as sucessivas correrias, realizadas por peruanos e brasileiros, os delegou, Manoel de Pinho é rememorado mesmo como um agente de agregação. Se estendermos a análise de Carid Naveira (2007, p. 99) sobre a organização Yaminawa ou a de Ruedas (2001) para o caso Marubo, podemos considerar que em tempos anteriores à exploração da borracha caberia ao chefe indígena articular e mesmo consolidar um corpo de parentes através da construção e manutenção da maloca. Diante do vertiginoso decréscimo 93
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populacional, somado às doenças e fugas constantes, os Katukina se viram obrigados a se aliar ao seringalista em torno da colocação Guarani, que por sua vez acabou por articular territorialmente as frações restantes de Kamanawas, Satanawas, Varinawas, etc. que haviam adotado o nome genérico de Katukina. Os poderes mágicos que em alguns casos eram atribuídos a patrões como esses em menor medida também contribuíam e encorajavam os indígenas a estabelecerem alianças; no entanto, isto não aliviava o impacto das inovações que acabavam por ser inseridas pela sociedade seringueira. Inovações tais como o ímpeto de conquista territorial, que se somava ao já praticado rapto de mulheres, e a manutenção de um sistema de dominação que permitia o abastecimento regular de mercadorias, as quais os nativos iam incorporando como necessárias ao seu cotidiano. A capacidade dos diversos grupos Nawa/Pano de localizarem uma posição estrutural a este tipo radical de alteridade que se inseria em seus territórios com a exploração da borracha possuiu, em parte, sustentação na própria mitologia e quiçá em experiências históricas anteriores. Em determinados grupos Pano, ainda que com ênfases e interpretações diferentes, a figura sobre-humana do Inka é recorrentemente associada ao de um sovina (CALÁVIA SAEZ, 2000) – no caso Katukina, essa posição é aparentemente ocupada pelos Yohashikonawa25, coletividade que, como o Inka, representa uma alteridade “negativa” no sentido de serem sovinas emblemáticos26, pois possuem grandes roçados, mas apenas fornecem as sementes torradas ou cozidas de forma que não se possa cultivá-las. Ao mesmo tempo em que o Inka é alguém que possui muitos bens, grandes roçados e grandes conhecimentos, ele reluta em compartilhá-los com a humanidade. O Inka é o “afim impossível” (Idem, p. 18) que jamais permite o às mulheres de seu grupo e que, no entanto, quando se casa com as mulheres humanas, as retira de sua rede de parentesco, efetivamente roubando-as. Na elegante conclusão do seu artigo de 1992, Bárbara Keifenheim sintetiza a oposição entre a filosofia social dos Kaxinawá e a do homem branco que os assedia: “A mensagem ‘todos os homens são irmãos’ encontrava um mundo onde a expressão mais nobre das relações humanas é a relação de cunhados!” (...) Essa oposição entre os “irmãos” e os “cunhados” ecoa alguns tópicos lévi-straussianos, e ninguém negaria que as culturas do Novo Mundo se ocupam muito mais dos cunhados – ou dos afins em geral – que as do Velho. Mas na comparação de Keifenheim deveríamos incluir uma outra torção: o que governa esse mundo dos cunhados não é, necessariamente, um amor universal como o que se espera da fraternidade cristã. Longe disso, se 25 “Yohashikonawavo era outra tribo, fomos lá atrás de milho pra planta, ai Yohashikonawa deu milho cozinhado, milho torrado, daí quando chegava na aldeia plantava e não dava nada, daí o cara foi de novo (...) Não casava com eles não, eram brabo, daí roubou semente dele, txãbo (grilo) foi que roubou o milho deles”. (Mani, aldeia Varinawa – novembro de 2008). 26 Coffaci de Lima foi a primeira a registrar narrativas sobre este “sovina paradigmático” entre os Katukina. Ainda segundo a autora, yohashi é a palavra Katukina para sovina, sendo yohai, mentiroso (2000, p. 10).
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ENTRE “BRABOS”: ÍNDIOS E SERINGUEIROS NO ALTO JURUÁ
as sociologias ameríndias se ocupam tanto da afinidade é, em boa medida, para sublinhar sua pesada ambivalência. Casar é necessário para fundar uma sociedade, mas é ao mesmo tempo uma condenação a viver perpetuamente “no meio dos outros” (CALÁVIA SAEZ, 2000, p. 20).
A ambivalência de algo tão fundamental ao mundo indígena como a afinidade, neste contexto histórico, se atualiza na posição dúbia ocupada pelo patrão. A alteridade extrema que os brancos representaram, a relativa abundância de objetos e mercadorias que dispõe, a frequente impossibilidade dos indígenas terem o às mulheres brancas e o frequente rapto de mulheres indígenas, são características que aproximam estruturalmente os patrões da posição que os Inkas ou os Yohashikonawa ocupam nas mitologias de alguns destes povos. Não se trata de narrativas sobre coletividades que representem a figura do branco. O próprio Oscar Calávia já alerta para o perigo de tais racionalizações; antes se trata de uma posição estrutural análoga, narrada pelas histórias dos antigos, que possibilitou que a interação com a espécie de diferença encarnada pela sociedade seringueira não consistisse em algo completamente inovador aos olhos das populações indígenas. A filosofia hierárquica e englobante de matriz cristã que, ao reconhecer a humanidade indígena, só poderia fazê-lo relegando-os a uma categoria inferior (caboclo), contrasta, nesta miríade de guerras e raptos, com a filosofia social da afinidade ameríndia. Pois essa, ao reconhecer a priori humanidade e valor na alteridade (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 164), encontra na relação com o branco a tensão de uma diferença extrema que oscila entre a aliança e a guerra, dada a impossibilidade de consanguinização imposta por estes que, tais como os Inkas e outros sovinas paradigmáticos dos shenipavo Pano, apresentaram-se como “afins impossíveis”. As guerras entre “cunhados”27, que faziam parte da dinâmica matrimonial e política dos povos Pano antes da ocupação de caucheiros e seringueiros, foram transformadas em guerras por subordinados.
27 Cunhados em potencial considerando a dinâmica, guerreira ou não, de circulação de pessoas entre os diferentes povos.
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Parte II
Agencialidades
PARCEIROS DE TROCA, PARCEIROS DE PROJETOS.
O AYOMPARI E SUAS VARIAÇÕES ENTRE ASHANINKA DO ALTO JURUÁ
José Pimenta1 “If friends make gifts, gifts make friends.” Marshall Sahlins (Stone Age Economics)
O
s Ashaninka são o principal componente do grupo etnolinguístico dos Arawak do piemonte pré-andino ou subandino2. Habitam, de modo descontínuo, um vasto território, ecologicamente muito variado, que se estende da região da Selva Central no Peru ao alto curso do rio Juruá no Brasil, no estado do Acre. A presença dos Ashaninka no Brasil data do final do século XIX e é hoje estimada em cerca de mil pessoas, o que representa uma ínfima minoria desse povo indígena, considerado um dos contingentes nativos mais numerosos da região amazônica. Este artigo trata essencialmente dos Ashaninka do rio Amônia, um afluente de margem esquerda do rio Juruá. Cerca de quatrocentos e cinquenta índios habitam a Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, ou seja, perto da metade da diáspora ashaninka no Brasil. Após uma longa luta contra a exploração madeireira na década de 1980, os Ashaninka do rio Amônia conseguiram, em 1992, a demarcação e homologação de sua terra. Como alternativa à exploração madeireira, criaram uma cooperativa indígena na aldeia Apiwtxa3 e começaram a desenvolver, com diversos parceiros, projetos econômicos dentro do paradigma do “desenvolvimento sustentável”. Como outras populações nativas da Amazônia, os Ashaninka do rio Amônia se lançaram progressivamente no “mercado 1 Professor Adjunto. Departamento de Antropologia – Universidade de Brasília (DAN/UnB). 2 Em razão da grande maleabilidade das fronteiras étnicas e linguísticas, a composição do conjunto dos Arawak do piemonte pré-andino ou subandino ainda é objeto de controvérsias acadêmicas entre linguistas e antropólogos. Embora não exista consenso, esse conjunto Arawak pode ser caracterizado pelos Ashaninka, Ashéninka, Matsiguenga, Nomatsiguenga, Yanesha, Piro (Yine) e alguns povos menores (SANTOS; BARCLAY, 2005, p. XV). Até a década de 1980, muitos desses grupos ainda eram chamados pelo termo genérico “Campa”; a autodenominação Ashaninka ou Asheninka se impôs progressivamente por exigência dos próprios índios (SHÄFER, 1982). A distinção entre Ashaninka e Asheninka também é problemática. Se existem diferenças linguísticas entre os dois grupos, essas diferenças não impedem a comunicação e ainda se discute se os Ashaninka e os Asheninka formariam dois grupos étnicos distintos ou segmentos de um único grupo. Do ponto de vista linguístico, a grande maioria dos índios do rio Amônia são falantes da língua asheninka. No entanto, opto por usar o termo Ashaninka (e não Asheninka) para me referir aos índios com os quais trabalhei no rio Amônia. Uso esse termo em sua concepção mais abrangente, ou seja, designando tanto os Ashaninka como os Asheninka. Os Asheninka do rio Amônia dizem que os Ashaninka são o mesmo povo, apenas “falam errado”. 3 Os Ashaninka do Amônia traduzem esse termo por “todos juntos” ou “todos unidos” e deram esse nome à sua aldeia e à associação que criaram em 1992. “Apiwtxa” tornou-se o símbolo da solidariedade interfamiliar e da luta política (ver Pimenta, 2008). Usarei o termo em minúscula para me referir à aldeia e em maiúscula para fazer referência à associação.
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FACES DA INDIANIDADE
de projetos” (ALBERT, 2000). A exemplo dos Kayapó (DE ROBERT, 2002), adotaram o termo “projeto” para se referir às atividades de “desenvolvimento sustentável” que realizam hoje em parceria com diferentes atores do indigenismo4. O “projeto” tornou-se o principal meio de o aos bens industriais. No contexto atual, a palavra se refere à produção e comercialização de artesanato, mas, como dizem os índios, pode designar “qualquer trabalho com os brancos” em troca do qual os Ashaninka obtêm bens industriais. Este artigo discute as relações entre o sistema tradicional de trocas dos Ashaninka, chamado ayompari na língua nativa, e os projetos de “desenvolvimento sustentável”, principalmente a comercialização de artesanato indígena – que representa a principal fonte de renda da comunidade Apiwtxa. Articulando uma perspectiva histórica e etnográfica, procurou-se explorar as semelhanças e diferenças entre o ayompari e os novos projetos de “desenvolvimento sustentável”.
Um povo comerciante Na literatura etnográfica, os Ashaninka são descritos como um povo guerreiro e comerciante. Em vários artigos, Renard-Casevitz (1985, 1991, 1992, 1993) investigou a história das relações interétnicas na região da Selva Central procurando identificar os aspectos culturais do Arawak subandinos. Ao salientar as complexas relações guerreiras e comerciais entre esses grupos e os Pano, o Império incaico e, posteriormente, os brancos, os trabalhos de Renard-Casevitz oferecem informações importantes sobre a história indígena da Selva Central peruana, uma das regiões mais bem documentadas da Amazônia, e nos servirão de guia para salientar a importância do comércio na história ashaninka. Renard-Casevitz apresenta um panorama da Selva Central pré-colombiana onde as relações entre os três grandes conjuntos culturais – Inca, Pano e Arawak subandinos – oscilavam, segundo as circunstâncias históricas, entre períodos de hostilidade e guerra e tempos de paz e cooperação baseados no comércio interétnico. Antes da chegada dos europeus, existiam importantes redes comerciais entre os povos amazônicos da região e as populações andinas do Império incaico. Produtos da floresta (peles de animais silvestres, penas, madeiras, plantas medicinais, etc.) eram trocados contra bens possuídos pelos índios das terras altas, principalmente objetos em metal, e, posteriormente, distribuídos nas redes de comércio entre os povos amazônicos. Além das trocas entre índios das terras baixas e populações andinas, existia um importante comércio intra-amazônico entre Arawak subandinos e grupos Pano, por exemplo. Uma complexa rede de relações sociais, podendo atingir milhares de quilômetros, edificada sobre as relações comerciais, conduzia, em função das circunstâncias, à guerra entre rivais ou à cooperação 4 Por indigenismo entende-se as relações dos Ashaninka com vários atores que atuam na questão indígena (FUNAI, ONGs, movimento indígena, etc.). Para uma definição desse termo, ver Ramos (1998).
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entre aliados. As alianças baseadas no comércio eram um meio privilegiado para garantir a paz entre os povos da floresta e, frente à intensificação da ameaça dos andinos, mobilizavam a solidariedade dos amazônicos e desencadeavam uma aliança política pan-étnica contra o inimigo comum. Durante séculos, as redes comerciais serviram de base à mobilização guerreira dos povos da Selva Central peruana contra as tentativas expansionistas incaicas e, posteriormente, europeias. Nesse sistema comercial e guerreiro, os Arawak subandinos e particularmente os Ashaninka exerciam uma função primordial. Essa situação privilegiada resultava de sua localização estratégica entre os andinos e muitos grupos de língua Pano, o que lhes permitia ativar a mobilização política dos povos amazônicos frente à ameaça dos invasores, mas se explicava, sobretudo, pelo o privilegiado à produção de sal, principal produto de troca e referência monetária do comércio intra-amazônico5. Situado em território ashaninka, nos arredores do rio Perene, o Cerro de la Sal era a principal região produtora de sal e o centro político, econômico e espiritual dos Arawak subandinos6. Antes da colonização espanhola, a região era periodicamente objeto de conflitos entre Arawaks e Pano para o controle das minas salinas e, consequentemente, do comércio amazônico7. Entre os povos da Selva Central pré-colombiana, comércio interétnico e guerra se alternavam em função das circunstâncias históricas. Quando o Império incaico ameaçava, as hostilidades entre amazônicos cessavam temporariamente e os parceiros comerciais transformavam-se em aliados políticos, criando alianças interétnicas para impedir as tentativas expansionistas dos andinos em direção ao oriente. As redes comerciais amazônicas foram progressivamente desarticuladas pela colonização europeia. Conscientes da importância estratégica do Cerro de la Sal na organização do comércio amazônico, os espanhóis começaram a estabelecer missões em pontos estratégicos para controlar as rotas comerciais indígenas8. A partir do final do século XIX, a economia da borracha continuou o processo de desmantelamento dessas redes e do comércio intra e interétnico. O Cerro de la Sal ou a ser controlado pelos peruanos, que iniciaram a exploração comercial do produto. Símbolo da luta contra os invasores, a perda das minas salinas constitui para os Ashaninka a perda do controle do comércio interamazônico, um “evento-crítico” (DAS, 1996) de sua história que inaugura a relação de dependência econômica frente aos brancos: 5 Para os índios da Selva Central, o sal era um produto muito cobiçado pelo gosto que dava à comida e, sobretudo, por constituir o principal meio de conservação dos alimentos no clima quente e úmido da floresta amazônica (RENARD-CASEVITZ, 1991). 6 Segundo Renard-Casevitz (1993, p. 29-30), diversos mitos dos Arawak subandinos contam que a deusa Pareni teria se transformado em sal do Cerro de la Sal, oferecendo dessa maneira o seu corpo aos homens. 7 Segundo Espinosa (1993, p. 47), os Ashaninka enfrentaram, sobretudo, a hostilidade dos Conibo. 8 Ver, por exemplo, Matarazzo (1990) para uma análise da estratégia de conquista do missionário franciscano Manuel de Biedma na Selva Central peruana.
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FACES DA INDIANIDADE
Quando peruano chegou, o wirakotxa [branco] peruano, ele quis o sal dos Ashaninka… Ele roubou o sal e botou polícia para cuidar, para os Ashaninka não tirarem mais, não mexer mais. Botaram soldados cuidando e agora dizem que botaram tudo numa casa grande (…). Fizeram um armazém grande, uma casa grande, taparam tudo mesmo, botaram maquinário deles e não deixam mais entrar Ashaninka para tirar sal. Primeiro era aberto, agora tomaram o sal dos Ashaninka. Ainda tem sal lá, mas agora tem que trabalhar para poder comprar dois quilos, três quilos… Agora, Ashaninka tem que trabalhar para comprar sal. Temos que comprar porque o branco peruano ficou, roubou o sal e ele está cuidando sozinho. Ele está guardando o sal só para ele. (Aricêmio, xamã dos Ashaninka do rio Amônia).
No contexto histórico da colonização do Acre, o contato dos Ashaninka com os brancos se produziu de modo muito singular. Embora tenham participado ativamente do extrativismo itinerante do caucho9, os Ashaninka, contrariamente a muitos grupos Pano da região, nunca foram sedentarizados nos seringais. No final do século XIX e início do século XX, durante o auge da borracha, os Ashaninka do Alto Juruá, principalmente do rio Amônia, procuraram valorizar suas qualidades guerreiras e comerciais em suas relações com os colonos. Atuando, sobretudo, como guerreiros e parceiros de troca dos novos patrões brancos, eles dizimaram os “índios brabos” da região, principalmente os Amahuaka10, garantindo a segurança dos seringais e comercializando produtos da floresta contra bens industriais. Em troca de caucho, carne e peles de animais silvestres (caititu, queixada, onça, gato selvagem, etc.), os índios recebiam produtos industrializados: terçados, facas, espingardas, munição, as, etc. Entre essas mercadorias, o sal, doravante em mãos dos brancos, continuava ocupando uma posição privilegiada, sendo o produto essencial dessa relação de comércio. O declínio da economia da borracha e a extinção progressiva dos Amahuaka no Alto Juruá brasileiro não alteraram muito esse quadro geral. Durante a maior parte do século XX, os Ashaninka do rio Amônia continuaram mantendo um comércio regular, mas intermitente, com pequenos patrões da região. A relação comercial entre os patrões brancos e os índios era regulada pelo regime do aviamento, característico da economia da borracha11. 9 Principalmente na Amazônia peruana, o caucho era raro na região do Alto Juruá brasileiro, onde encontramos, sobretudo, a seringa. O caucho, goma extraída da árvore Castilloa ellastica, é de qualidade inferior à seringa (Hevéa brasiliensis). A frente de expansão do caucho marcou profundamente a Amazônia peruana e se distingue também pelo caráter itinerante de sua produção. Contrariamente à seringa, cujo leite é extraído sem necessidade de derrubar a árvore, a produção de caucho necessita do corte da árvore, o que levava à mobilidade permanente da mão de obra em busca de novas áreas a serem exploradas. 10 Os Ashaninka consideram os Amahuaka como seus inimigos tradicionais e associam a esse grupo Pano todos os estereótipos do “índio selvagem”: ferocidade, nudez, canibalismo, etc. No Amônia, o termo é usado como um equivalente genérico para “índio brabo”, independentemente da identidade étnica específica de cada povo. 11 Não cabe aqui explicar em detalhes o regime do aviamento, que já foi objeto de uma vasta literatura. Em linhas gerais, sua estrutura é formada por uma cadeia hierarquizada de dívidas ligando os diferentes protagonistas da cadeia de produção. Na base desse sistema, o dinheiro geralmente não circula, servindo apenas como referencial abstrato para o estabelecimento de uma dívida, reativada permanentemente através da aquisição e fornecimento de novas mercadorias em troca do produto desejado. Embora o regime do aviamento seja característico da economia da borracha, ele também serviu (e continua servindo em alguns lugares) de referencial para muitas relações comerciais na Amazônia. Para descrições e análises do regime do aviamento no Acre, ver, por exemplo, Aquino (1977), Alegretti Zanoni (1979), Almeida (1992) e Geffray (1995).
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A partir dos anos 1970 e, sobretudo, na década de 80, as florestas do rio Amônia, ricas em madeiras nobres, principalmente cedro e mogno, foram objeto da cobiça madeireira. A exploração intensiva de madeira em território ashaninka teve consequências desastrosas para o meio ambiente e desarticulou profundamente a vida social dos índios. Para obter os bens industriais dos quais tinham se tornado progressivamente dependentes, os Ashaninka trabalharam como mão de obra para as madeireiras no regime do aviamento. Aos poucos, apoiados por funcionários da FUNAI, antropólogos e ONGs, os Ashaninka começaram a participar da “Aliança dos Povos da Floresta” e se organizaram para se liberar do sistema patronal madeireiro e garantir a demarcação de seu território (PIMENTA, 2007). A demarcação e homologação da Terra Indígena Kampa do rio Amônia, em 1992, marcam a entrada dos Ashaninka na arena política do indigenismo contemporâneo e no “mercado de projetos” (ALBERT, 2000) do novo paradigma do “desenvolvimento sustentável”. Ao longo das últimas duas décadas, organizados em uma cooperativa e na associação APIWTXA, os Ashaninka buscaram modelos de desenvolvimento não predatório que lhes permitisse garantir o o aos bens industriais e o equilíbrio ambiental de seu território. Encontraram em vários projetos de “desenvolvimento sustentável” uma resposta às suas expectativas. Executados em parceria com diversos setores do indigenismo (FUNAI, ONGs, cooperação internacional, empresas verdes...), esses projetos permitiram aos Ashaninka do rio Amônia criar uma política de gestão dos recursos naturais de seu território e melhorar suas condições materiais de existência, com maior o aos bens industriais. Essas experiências também propiciaram uma visibilidade crescente dos Ashaninka no cenário indigenista nacional e até internacional. Em menos de duas décadas, esse povo indígena ou de uma denominação negativa de “caboclo” ao arquétipo do “índio ecológico” (PIMENTA, 2004, 2007). Os projetos de “desenvolvimento sustentável” executados pelos Ashaninka nos últimos anos apresentam uma variedade impressionante: criação de sistemas agroflorestais, produção de mudas e sementes para reflorestamentos, manejo da caça, criação de quelônios, piscicultura, apicultura, produção de matéria-prima para a indústria cosmética e farmacêutica, etc. Nesse leque de atividades, a produção de artesanato ocupa um lugar de destaque. A venda de artesanato permite à maior parte dos Ashaninka adquirir a maioria dos bens industriais que possuem. O artesanato, que os índios produzem de maneira tradicional, explorando os recursos do meio ambiente de forma não predatória, tornou-se o principal meio de obtenção de mercadorias e é uma atividade cotidiana para muitas famílias. Ao trocar seu artesanato com os bens industriais dos brancos, os Ashaninka procedem a uma reinterpretarão e atualização de seu sistema de trocas tradicional: o ayompari. Para entender as analogias e diferenças entre a troca tradicional e a comercialização 105
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de artesanato, é necessário apresentar, inicialmente, o lugar ocupado pelos brancos e os bens industriais na mitologia indígena.
O Inka, os brancos e os bens industriais Uma das numerosas influências incaicas visíveis na mitologia dos Arawaks subandinos e em certos povos Pano do oeste amazônico diz respeito à crença de um herói cultural chamado Inka, geralmente associado ao poder tecnológico e à chegada dos brancos12. A figura do Inka também esta presente na mitologia ashaninka e é fundamental para entender as relações desse povo indígena com os brancos e com os projetos de “desenvolvimento sustentável” que se tornaram o principal meio de o aos bens industriais. Na mitologia ashaninka, o Inka é um poderoso tasorentsi13, responsável pela chegada dos brancos na Terra. Em seus mitos de origem, os índios do Amônia contam que o Deus Pawa criou o universo separando os Ashaninka dos brancos, reservando aos primeiros a Terra e escondendo os segundos no mundo aquático, subterrâneo e lúgubre, em companhia dos espíritos maléficos (kamari). Um dia, desobedecendo ao seu pai, Inka se dirigiu a um lago, situado num lugar impreciso do Ucayali, para pescar. Involuntariamente, pescou o homem branco (Wirakotxa). Este se multiplicou e invadiu a Terra, onde ou a viver definitivamente, semeando terror e espoliando os Ashaninka. Para os índios, o Inka não é apenas responsável por alterar a ordem natural do universo; ele também deu aos ocidentais os poderes que Pawa destinava originalmente aos Ashaninka. Os índios do rio Amônia contam que Pawa era todo-poderoso e possuía todas as formas de saber. Nos tempos primordiais, o Deus encarregou seu filho Inka de transmitir a integralidade de seus conhecimentos aos Ashaninka, mas, após desobedecer aos conselhos do pai, aventurando-se no lago proibido, o Inka pescou o branco e lhe transmitiu o saber de Pawa. Algumas versões afirmam que, após ter surgido do fundo do lago, os brancos capturaram o Inka e o guardam prisioneiro até hoje em detrimento dos Ashaninka. Outras, como no relato abaixo recolhido no rio Amônia, apresentam o filho de Pawa como um traidor que teria simplesmente esquecido seu povo e optado por viver em companhia dos ocidentais: O Inka sabia fazer mercadorias, fazer a, terçado, sabia fazer motor. Aí, ensinou o wirakotxa a fazer. Pawa ensinou Inka, depois Inka ensinou wirakotxa a fazer, ensinou tudo: ensinou casa, ensinou avião, ensinou tudo (...). Inka gostou de wirakotxa, está morando com ele agora (....). Não sei onde ele foi. Eles são amigos parece. Ele foi embora com branco para ensinar 12 No caso dos Pano, Erikson refere-se, sobretudo, aos Kaxinawá, Cashibo, Conibo e aos mitos Shipibo que evocam explicitamente o tempo em que os Shipibo “viviam sob a dominação do Inka” (ERIKSON, 1992, p. 245). 13 Os tasorentsi são deuses ashaninkas, filhos do Deus-Criador Pawa, com poderes sobrenaturais. Eles têm, por exemplo, o poder de transformar o mundo visível através do sopro.
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tudo para ele. Agora, Ashaninka não sabe por que ninguém ensinou para ele. (Alípio, Ashaninka do rio Amônia)
A associação Pawa/Inka/Brancos/bens industriais não é nenhuma novidade nas etnografias realizadas com os Ashaninka do Peru. Em sua tese de doutorado, Weiss, por exemplo, já afirmava: The Campa believe this superiority [superioridade tecnológica] is due not to the inventive efforts of the Caucasians themselves but to the unfortunate circumstance that they were be able to capture a Campa technological genius whose name is Inka (WEISS, 1969, p. 348).
Para alguns autores, o dono das mercadorias e dos bens de metal é referido como Pachakamaite, um deus da cultura andina também identificado pelos Ashaninka como Pawa. Matarazzo apresenta um mito contemporâneo, onde a identificação de Pachakamaite com Pawa (Pavá na grafia da autora) é explicita: Pachakamaite es Pavá (padre y dios), vive rio abajo. El no es Viracocha no es Chori. Es hijo del Sol y Mamatziki es su esposa. Pachakamaite hace todo: machetes, ollas, pólvora, cartuchos, sal, escopetas, municiones, hachas. Porque antes los Asháninka, eran pobres, no tenían nada, no tenían hachas, machetes, nada. ¿De donde sacaban los Asháninka todas las cosas? Entonce iban allá donde Pachakamaite y conseguían todo. Así era antes, ahora no sabemos. Antes los Asháninka sabían (MATARAZZO, 1990, p 295-296).
Apesar das variações, todas as versões convergem em apresentar os bens industriais tendo uma origem autóctone e o Inka (ou Pawá/Pachakamaite) como uma divindade ashaninka que ensinou tudo aos brancos. Para os índios, a superioridade tecnológica e econômica do mundo ocidental é apresentada como o resultado do roubo de um conhecimento sagrado destinado originalmente aos Ashaninka. Ela é a consequência imoral de um comportamento social inaceitável na sociedade indígena14, mas em conformidade com as principais características do branco: ladrão e sovino. Pawá estava ensinando tudo. Ele estava escrevendo, anotando tudo. Todas as coisas estavam dentro da cabeça dele. Deus estava estudando tudo, tudo, tudo (...). Ele sabia como fazer flecha, como fazer remo para poder remar. Estava explicando isso para Inka. Estava tudo anotado no livro dele: como fazer máquina para fabricar roupa, como fazer motor com gasolina para poder andar, como fazer avião. Deus sabia fazer tudo. Ele anotava tudo num papel. Aí, quando wirakotxa chegou, ele pegou o papel que estava anotado, escrito, pegou tudo (...). Foi o branco que tomou. Pawa deixou para o Inka ensinar a nós e ele [Inka] se misturou com branco e o branco, ele pegou esse papel de Deus. Estava tudo anotado: para fazer avião, para fazer terçado, para fazer a, fazer prato, fazer espingarda, fazer qualquer coisa. Agora, o branco sabe fazer porque ele pegou o livro de Deus (...). Por isso, o 14 Para os Ashaninka, o roubo é um comportamento intolerável. Os índios dizem que, no ado, os indivíduos que se arriscavam nessa prática eram castigados com as mãos cortadas.
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branco, ele tem fábrica, tem tudo; ele sabe tudo porque ele tomou o papel de Deus. Deus, ele pensava deixar isso para nós, Ashaninka, para nós saber fazer tudo: fazer uma lata, fazer uma faca, um motor (...). Agora, Ashaninka não pode fazer. Ele não sabe por que ele não aprendeu, por que ele não sabia nem ler. O branco era mais sabido, ele sabia ler e escrever. Kamparia não sabia nada. Ele só sabia fazer canoa a remo e varejar, caçar no mato (...). Branco, ele tem mercadoria porque ele roubou de Deus (Aricêmio).
É interessante notar essa associação entre a supremacia econômica dos brancos e o saber letrado. Como afirma o xamã Aricêmio no relato acima, Pawa não somente criou o universo e seus habitantes, mas também dominava a escrita e escreveu cuidadosamente todo o seu saber num livro que deixou aos cuidados do Inka. Ao capturar o Inka, os brancos se apropriaram do livro, estudaram seu conteúdo e começaram a controlar o processo de fabricação dos bens industriais, deixando os Ashaninka na ignorância desse saber e economicamente dependentes. Hoje, graças à escola, ao aprendizado da leitura e da escrita, os índios esforçam-se para reverter a história e superar essa carência que eles consideram uma das causas de sua dependência econômica. Nesse processo de espoliação do saber nativo, os Ashaninka do rio Amônia atribuem uma responsabilidade maior aos americanos chamados genericamente de gringos, interpretando, à sua maneira, a supremacia dos Estados Unidos sobre a economia mundial. Embora todos os brancos sejam capazes de produzir bens industriais, os gringos são considerados os principais detentores do saber tecnológico e os instrutores dos outros brancos na produção desses bens: Quando Inka pegou branco, o branco aumentou. Tinha muito, de toda as qualidades. Aí chegou gringo americano e Inka deu o poder (...). É aquele gringo americano. Ele estudou com o Inka e aprendeu tudo. Ele é inteligente mesmo, sabido mesmo, mas ele só ensina para outro wirakotxa (...). Naquele tempo, os Ashaninka não sabiam, o gringo sabia. Os Ashaninka não sabiam ler, não sabiam escrever, não sabiam quase nada. O gringo roubou o saber dos Ashaninka. Agora ele tem mercadoria e Ashaninka tem que comprar dele. Naquele tempo, o wirakotxa roubou e por isso ele tem dinheiro. Ele aprendeu a fazer ferro, a trabalhar com fogo. É o gringo quem sabe fazer máquinas de ferro. Ele tem muito poder (Shomõtse, Ashaninka do rio Amônia).
As imagens construídas pelos Ashaninka sobre os gringos são fascinantes. Hoje, os americanos e europeus podem se apresentar aos Ashaninka do rio Amônia com diversas caras (membros de ONGs, jornalistas, cineastas, antropólogos, etc.), mas as representações que os índios têm dos gringos são historicamente associadas à visão que eles elaboraram sobre os missionários americanos. 108
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Apoiadas pelo Estado, as missões norte-americanas se multiplicaram na Amazônia peruana durante o século XX. Com o Summer Institute of Linguistics, o South American Indians Missions, o Seventh-Day Adventist e outros, a presença missionária se intensificou entre os Ashaninka do Peru. Embora essas missões tenham constituído, em alguns casos, uma forma de proteção contra os colonos e o trabalho escravo, elas também transformaram profundamente o modo de vida dos índios: proibição da poligamia, do uso de ayahuasca, integração forçada ao mercado, etc. Não pretendo aqui analisar as relações dos Ashaninka com as missões norte-americanas15, pois o interesse desse artigo limita-se a explorar a visão que os Ashaninka do rio Amônia constroem dos gringos. Segundo Gow (1991, p. 69), a agem das haciendas (grandes propriedades), caracterizadas por um trabalho semiescravo para um patrão, à comunidad, dirigida por missionários, marca, na visão dos Piro, a agem da “selvageria” para a “civilização”. Não surpreenderia muito encontrar essa mesma ideia em muitas comunidades ashaninkas peruanas que viveram (ou ainda vivem) sob domínio das missões. Todavia, para os Ashaninka do rio Amônia, cuja experiência de vida nas missões é mínima para alguns e inexistente para a maioria16, as características atribuídas aos missionários são essencialmente negativas. Apesar de pouca ou nenhuma experiência com as missões, todos os Ashaninka do rio Amônia elaboraram uma imagem clara dos gringos, caracterizada pelo medo e pela violência que eles inspiram. Os índios afirmam que os gringos matam os Ashaninka para, em seguida, se apropriar e utilizar a banha de seus corpos na produção de motores, principalmente de aviões17. Esse comportamento violento e predador associado aos gringos encontra-se em outros grupos indígenas e nos ajuda a entender a explicação nativa da superioridade tecnológica dos brancos sobre os Ashaninka. Em seu livro sobre a colonização do Putumayo na Amazônia colombiana, Taussig (1986) mostrou que as virtudes mágicas atribuídas à banha dos corpos possuem uma longa história. Durante a colonização, os espanhóis imaginavam que a banha extraída dos corpos saudáveis dos índios podia ser aplicada nos ferimentos dos soldados e curá-los. Essa banha também era usada na fabricação de remédios. Segundo Taussig (Ibid.), nos Andes Centrais a crença popular faz referência à existência de um fantasma chamado Nakaq ou Pistaco que usa o sangue, a banha e a pele das vítimas para fazer remédios, derreter os sinos das igrejas ou lubrificar motores. Entre os Piro, apesar de seu papel civilizatório, os missionários americanos ocupam um lu15 Nesse ponto, ver, particularmente, o trabalho de Bodley (1971). 16 Os Ashaninka do rio Amônia são originários de horizontes muito diferentes. Alguns chegaram ao Brasil apenas na década de 1990, fugindo das missões norte-americanas e das violências dos “comunistas”, termo genérico usado pelos Ashaninka para designar os membros de guerrilha de esquerda (Movimentos Revolucionários Tupac Amaru e Sendero Luminoso). De uma maneira geral, a experiência de vida nas missões é muito limitada entre os Ashaninka do rio Amônia. 17 Meio de transporte o mais utilizado pelos missionários americanos.
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gar ambíguo, pois também são associados ao Pelacra, um ser predador que atinge a imortalidade roubando periodicamente a pele dos índios para rejuvenescer e revigorar seu corpo (GOW, 1991, p. 245). Lópes Garcés (2000) também afirma que os Tikuna veem os gringos como antropófagos que, após se alimentar da carne dos índios, utilizam o cérebro de suas vítimas para fazer funcionar seus aviões e máquinas. Banha dos Ashaninka, pele dos Piro ou cérebro dos Tikuna, em todos esses casos a superioridade ocidental é alcançada através da violência de um comportamento considerado predador, antissocial e inumano: a absorção canibal das virtudes indígenas. Nesse contexto, os Ashaninka não se apresentam como simples vítimas do Ocidente. Ao contrário, mesmo desprovidos de seu poder, eles continuam sendo os principais atores da história. Além de provocarem o surgimento dos brancos na terra (pescado num lago), também estão na origem do poder dos missionários e dos ocidentais em geral.
O sistema de trocas ayompari Apesar da rica literatura histórica e etnográfica sobre os Arawak subandinos em geral e os Ashaninka em particular apresentar várias referências ao intercâmbio de bens e ao comércio intra e interétnico, os estudos sobre o ayompari são relativamente escassos. A maioria dos antropólogos se refere ao sistema nativo de comércio e intercâmbio, mas poucos pesquisadores se dedicaram a uma análise etnográfica do ayompari. Nesse sentido, o esforço pioneiro de Varese (1968) e, principalmente, de Bodley (1973, 1981) merece destaque. Baseado em seu trabalho de campo com os Ashaninka do Gran Pajonal, Pichis e Ucayali, na década de 1960, Bodley foi o primeiro antropólogo a definir o sistema de trocas tradicional dos Ashaninka como um “intercâmbio deferido”. O ayompari também foi objeto de reflexões de Shäfer (1991) e, mais recentemente, de Hvalkof e Veber (2005, p. 226-235), Pimenta (2006) e Killick (2008). Provavelmente introduzida na Selva Central peruana por indígenas falantes de quíchua, a palavra ayompari parece derivar do termo espanhol “compadre”, que na língua quíchua se converte em cumpari; este, por sua vez, se “arawakaniza” foneticamente na forma de yumpari ou yompari (SCHÄFER, 1991, p. 45-46; HVALKOF; VEBER, 2005, p. 228). À semelhança da palavra “ashaninka”, que pode ser traduzida por “nós, os parentes”, ayompari é composto pelo prefixo inclusivo da primeira pessoa do plural “a” (“nós”) seguido do termo “yompari” (“amigo”, “parceiro”). Na sua forma genérica, o termo pode ser traduzido em português por “amigo” e/ou “parceiro de troca”, sendo que um homem ashaninka recorrerá à forma inclusiva da primeira pessoa do singular para se referir ao seu ayompari específico como nyompari (“meu amigo”, “meu parceiro de troca”). 110
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Os Ashaninka do rio Amônia afirmam que palavra “ayompari” possui diferentes significados e pode ser usada em diversos contextos. Pode expressar, por exemplo, uma forma de interação social amistosa entre indivíduos ashaninkas que não se conhecem pessoalmente. Se todos os Ashaninka se consideram de certa forma “parentes”18, em razão de sua identidade étnica comum que os distingue dos outros índios e dos brancos, não existem necessariamente relações reais de parentesco (consanguinidade ou afinidade) entre dois indivíduos. Assim, os índios do Amônia dizem que o termo ayompari pode ser usado para se referir a outros ashaninkas, membros de um nampitsi19 ou de uma comunidade onde eles não têm laços efetivos de parentesco, mas que são potencialmente “amigos”. Por exemplo, durante uma viagem a um rio distante no qual o visitante não tem parentes, ele anuncia sua chegada pelo termo ayompari. Nesse contexto, a palavra se apresenta como uma “carta de visita” que atesta o pertencimento étnico do visitante e sua intenção amistosa. Ao mesmo tempo “parente” e “desconhecido”, nesse contexto, o ayompari pode ser definido como um “outro – semelhante”. Quando tentam traduzir o termo para o português, os Ashaninka do rio Amônia usam também as palavras “amigo” ou “parceiro de troca”, o que nos conduz a uma definição mais restrita do ayompari. Embora possa ser simplesmente usada como uma “carta de visita”, ou seja, para caracterizar uma formalidade de interação social entre indivíduos ashaninkas que não se conhecem e não estão ligados por laços de parentesco, o termo ayompari também designa uma estreita relação entre duas pessoas que decidem “fazer ayompari”, ou seja, tornar-se “verdadeiros amigos” e “parceiros de troca”. Embora de origem alógena, ayompari é o nome dado pelos Ashaninka para se referir ao seu sistema tradicional de trocas. É esse sentido mais , mas também mais comum, de ayompari como “amigo” e “parceiro de troca” que nos interessa aqui. A instituição do ayompari permite a um homem estabelecer, através da troca de bens, relações de amizade e parceria com outro indivíduo situado fora da esfera de parentesco. A troca de bens entre parceiros é um aspecto importante da relação ayompari. Assim, como no Gran Pajonal (SHÄFER, 1991, p. 50), os Ashaninka do rio Amônia apresentam o ayompari como um “amigo que me dá coisas”. Como as expedições comerciais apresentadas por Renard-Casevitz, as visitas ayompari são realizadas, geralmente, na estação seca. Os produtos trocados são muito variados e podem ser divididos em duas categorias: 18 Como vimos, essa ideia está presente no próprio etnônimo que os Ashaninka do rio Amônia traduzem geralmente como “nós, os parentes”, “nós, a família” ou “nós, o povo”. No entanto, cabe salientar que, dependendo do contexto de enunciação, o significado da palavra “ashaninka” pode ser muito variável e designar vários níveis de inclusão/exclusão social, desde o grupo local do falante ao grupo etnolinguístico como um todo. 19 Podemos definir rapidamente o nampitsi como o “território político” composto de uma ou mais famílias extensas (MENDES, 1991, p. 26). Ele corresponde raramente à comunidade ou aldeia, que são realidades alógenas, impostas pelo contato e incorporadas progressivamente pelos Ashaninka.
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os objetos da cultura material indígena (kushma20, txoshiki21, arcos e flechas, cachimbos, bolsas, etc.) e bens industriais (facões, espingardas, cartuchos, etc.). Como salientou Bodley (1973), a transação ayompari é uma troca diferida. Geralmente, a retribuição ocorre no ano ou nos dois anos que seguem a dádiva. Nessa ocasião, o devedor visita seu parceiro para lhe oferecer um “presente”, alimentando, com sua contraprestação, a continuidade da relação de troca e de amizade. Os objetos trocados entre ayompari podem ser oferecidos a outros parceiros e circular, de mão em mão, numa vasta rede de centenas de quilômetros de extensão. Um homem ashaninka pode ter um ou vários parceiros de troca. O número varia em função do interesse e do prestígio dos indivíduos, mas é, todavia, limitado. No rio Amônia, os índios dizem que três ou quatro ayompari é um número razoável, na medida em que um único parceiro reduz consideravelmente a possibilidade de troca e que um número exagerado pode colocar em risco a relação na medida em que torna difícil o cumprimento da exigência de reciprocidade. Segundo Shäfer (1991, p. 61), os Ashaninka do Gran Pajonal têm, em média, três a cinco parceiros de troca, mas alguns líderes podem ter mais de dez ayompari, preferencialmente outros líderes em territórios próximos e distantes. No Peru, alguns desses líderes se especializaram nas viagens ayompari, deslocando-se frequentemente por longas distâncias para visitar seus parceiros (SHÄFER (1991); HVALKOV; VEBER, p. 2005, p. 231). A relação ayompari não se limita a essa dimensão econômica. A dádiva de um objeto estabelece a dívida do donatário de tal maneira que o ayompari obedece estreitamente à regra moral da tríplice obrigação de “dar, receber e retribuir”, definida por Mauss (1995). Os parceiros aderem a um contrato moral implícito e alimentam uma estreita relação interpessoal na qual o prestígio e a honra são dimensões fundamentais. O não cumprimento da regra de reciprocidade é interpretado como um sinal de recusa da amizade, uma atitude egoísta, característica dos brancos, e fortemente condenada na sociedade ashaninka. Shäfer (1991, p. 54) teve o mérito de enfatizar os aspectos sociais, culturais e emocionais da relação ayompari, regida por regras preestabelecidas de comportamento. Além da troca de bens, os parceiros obedecem a um código moral comum e se devem proteção e assistência mútua. Ao chegar ao território do seu ayompari, por exemplo, o visitante deve ser recebido como uma pessoa importante. O anfitrião tem a obrigação de pro20 Essa palavra de origem quéchua designa a túnica tradicional dos Ashaninka que é chamada na língua nativa de kitharentsi. No rio Amônia, como no Peru, a vestimenta é usada como um poderoso símbolo de identidade e apenas as kushmas masculinas, tecidas a mão pelas mulheres são consideradas objeto legítimo de troca. Embora as mulheres possam trocar tecidos industriais com suas parceiras, a troca de kushma femininas, hoje produzidas com esse tecido, é rara e pouco valorizada. É interessante notar que todos os estudiosos apresentam a kushma como o artefato indígena mais importante do comércio ayompari. Segundo Hvalkov e Veber (2005, p. 230-231), os Ashaninka do Pajonal, que desde a década de 1980 têm um o importante aos bens industriais, trocam muitos desses produtos por kushmas produzidas por seus vizinhos ocidentais dos rios Perene, Pichis, Tambo e Ene. 21 Grandes colares confeccionados a partir de sementes da região, de uso exclusivo dos homens, que o usam a tiracolo por cima da kushma.
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videnciar casa, comida e, geralmente, organiza um piyarentsi22 para homenagear seu parceiro. Confiança, lealdade, honestidade e generosidade são virtudes essenciais de um ayompari e o desrespeito do contrato moral leva a reclamações do parceiro lesado e pode se traduzir pelo fim da relação – uma situação extremamente constrangedora para o acusado, cujo comportamento é objeto de duras críticas e da reprovação social. Os Ashaninka do rio Amônia afirmam que o sistema ayompari também existe entre mulheres. Nesse caso, os produtos trocados são, sobretudo, tecidos, cestas, as, etc. Em sua versão feminina, o sistema é chamado de ayompao, termo também usado pelas mulheres para designar suas “parceiras de troca” ou “amigas” (nyompao)23. A colonização da Selva Central e a progressiva sedentarização dos índios impede, muitas vezes, a concretização da troca ayompari, principalmente para a diáspora ashaninka do Brasil. Sem uma investigação etnográfica mais profunda, seria errôneo afirmar que o ayompari desapareceu totalmente em sua forma “tradicional” entre os Ashaninka do rio Amônia, mas enfrentou, com certeza, muitas mudanças ao longo das últimas décadas. Os Ashaninka mais idosos do rio Amônia continuam afirmando que possuem seus ayompari em outras terras indígenas, tanto no Brasil como no Peru. Todavia, a demarcação territorial, a presença do Sendero Luminoso na Selva Central, a ameaça do narcotráfico e a intensificação da exploração madeireira na Amazônia peruana nos últimos anos aumentaram a sedentarização das famílias indígenas do rio Amônia, reduzindo consideravelmente as viagens para o Peru e, consequentemente, as visitas aos seus ayompari24. Além dessas razões, os Ashaninka do rio Amônia também alegam o pouco tempo disponível para viagens em razão de sua ocupação em “projetos”, a escolarização dos filhos e a idade avançada de alguns – que torna cansativa a realização de longos deslocamentos. Muitos dizem aguardar a visita de seus ayompari e responsabilizam seus parceiros pelo não cumprimento das regras de reciprocidade. Embora não tenham encontrado seus ayompari há muitos anos, os Ashaninka do rio Amônia não esqueceram os fortes laços pessoais que os unem aos seus parceiros de troca e amigos. Os depoimentos recolhidos em campo sobre o ayompari apresentam 22 Ritual durante o qual os Ashaninka consomem sua bebida de mandioca fermentada, conhecida por vários nomes na Amazônia: masato no Peru, “caissuma” no Acre, “caxiri” em outras regiões, etc. Entre os Ashaninka do Amônia, o termo piyarentsi designa ao mesmo tempo o nome do ritual e a bebida. 23 Na literatura etnográfica, as referências à versão feminina do ayompari são muito escassas. O sistema ayompao parece ocorrer com menos frequência. Shäfer (1991, p. 50, nota 15) e Hvalkof e Veber (2005, p. 230) sinalizam que o intercâmbio de bens entre mulheres se daria, sobretudo, com bens de menor valor econômico e entre parceiras da vizinhança imediata, enquanto as viagens distantes seriam uma atividade, principalmente, masculina. Na aldeia Apiwtxa, uma mulher ashaninka afirmou ter várias ayompao no rio Envira e no Peru, mas, como no caso da troca masculina, fazia vários anos que não via suas amigas e parceiras. 24 Hvalkov e Veber também constataram a diminuição das visitas ayompari entre os Ashaninka dos rios Perené, Tambo, Pangoa e Ene no final da década de 1980 e início da década de 1990 em razão da violência do Sendero Luminoso (HVALKOV; VEBER, 2005, p. 239). Nesse sentido, é interessante notar o paradoxo salientado por esses autores: a guerrilha, em nome de uma ideologia anticapitalista, procurou sistematicamente destruir um sistema baseado em trocas horizontais e substituí-lo por relações econômicas hierárquicas e capitalistas (Ibid.).
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muitas contradições, dificultando saber até que ponto o sistema tradicional de trocas ainda atua entre os Ashaninka do rio Amônia. Ao mesmo tempo em que os índios se referem aos seus ayompari no presente e remetem a um futuro incerto a realização de suas visitas, os relatos concretos de trocas tradicionais narram eventos que aconteceram num ado já longínquo (geralmente mais de vinte anos), rememorado com saudade. No ano 2000, durante os onze meses que permaneci em campo para realização da minha pesquisa de doutorado25 e nas curtas visitas que realizei posteriormente, nunca presenciei uma visita ayompari. Obviamente, isso não significa que elas tenham deixado de existir. De qualquer forma, o sistema tradicional de trocas encontra-se ainda muito presente na memória coletiva e é, atualmente, objeto de reinterpretações e ajustamentos para lidar e se adaptar ao contexto interétnico contemporâneo do desenvolvimento amazônico. O ayompari continua sendo o quadro interpretativo mobilizado pelos Ashaninka do rio Amônia para definir as parcerias comerciais que eles estabelecem com diferentes “outros”, principalmente com os brancos, hoje parceiros forçosos de troca. Ao estabelecer alianças comerciais com diferentes “outros”, o ayompari permite aos Ashaninka recuperar as mercadorias roubadas pelos brancos no tempo mítico. Definido inicialmente como um sistema de trocas ritualizado e interno ao povo, o ayompari é reinterpretado em função das contingências históricas para incluir outros grupos indígenas e brancos. Entre os Ashaninka do rio Amônia, os diferentes protagonistas do “desenvolvimento sustentável” com seus “projetos” tornaram-se os parceiros privilegiados do comércio interétnico. Em seu artigo pioneiro de 1973, Bodley já afirmava que o ayompari permitia aos Ashaninka mais isolados do mundo ocidental mobilizar as vastas redes de comércio intraétnico para obter produtos industriais, que ocupavam um lugar predominante nas transações: Over half of the exchanges involved Campa goods for White manufactured goods, while in less than a fourth Campa goods were traded for other Campa goods; but there were no exchanges recorded of manufactured goods for other manufactured goods (...). The important point is that even though at the present time the Campa are ultimately dependent on outside sources for their metal tools they are essential elements of their “traditional” culture. Campa who wishes to avoid face to face with Whites and the entanglements of debt relationships with patrons who demand labor as payment for goods, can now obtain their tools by trading only with other Campa. In part this explains why metal tools figure so prominently in the ayompari exchanges (BODLEY, 1973, p. 593)
Os Ashaninka do rio Amônia apresentam o ayompari como um sistema de trocas que na origem é interno ao grupo, mas sua definição é, no entanto, flexível e pode incorporar indivíduos não-ashaninkas. Membros de outros gru25 Ver Pimenta (2002).
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pos indígenas e até brancos podem integrar o sistema e serem considerados como ayompari. As relações comerciais entre os Ashaninka e os outros povos indígenas da Selva Central, antes e depois da chegada dos espanhóis, apresentavam características do ayompari. Embora não se refira explicitamente a esse termo, Renard-Casevitz (1991) mostra que as expedições comerciais entre índios amazônicos também se estendiam, em tempo de paz, às populações andinas vizinhas, podendo levar ao estabelecimento de estreitas relações pessoais entre parceiros de troca que se tornavam “verdadeiros amigos” (RENARD-CASEVITZ, 1991). Podemos supor que, para os Ashaninka, essas trocas já eram interpretadas a partir de um código cultural peculiar que definia parâmetros éticos e morais reguladores de uma conduta social específica. Posteriormente, esse sistema de troca ou a ser referido como ayompari. Hoje, os Ashaninka do Amônia afirmam que, antes de conhecer os brancos, seus anteados já “faziam ayompari” com outros índios. Os Kaxinawa e os Piro são os povos mais frequentemente mencionados. O desenvolvimento do comércio interétnico parece ter contribuído para a abertura das fronteiras do ayompari para a alteridade. Um processo semelhante de extensão e reinterpretação da troca tradicional foi realizado com os brancos. Em algumas situações históricas, os Ashaninka apreendem suas relações comerciais com os não-índios a partir de seu sistema de trocas tradicional, criando, dessa forma, uma espécie de “ayompari interétnico”. Para adquirir os bens industriais, hoje produzidos pelos brancos em razão do desvio imoral do saber indígena, os Ashaninka do rio Amônia afirmam que tiveram que aprender a comercializar com eles. O relativo sucesso desse grupo no comércio interétnico e com os atuais projetos de “desenvolvimento sustentável” pode ser explicado, pelo menos em parte, pela flexibilidade do ayompari, o sistema de trocas tradicional.
O projeto como ayompari interétnico Em seus artigos sobre a troca tradicional entre os Ashaninka, Bodley já tinha sinalizado a proximidade entre o ayompari e o sistema do aviamento, conhecido no Peru como habilitación: The ayompari system with its deferred exchanges strongly resembles the patron system which developed with the rubber boom in the late nineteenth century. In the patron system Indians accept goods from White settlers or traders and promise to pay with labor or goods in the future. For the most part the Campa are scrupulously honest with their patrons and rarely fail to deliver what is demanded of them (...). The fact that niompari “my trading partner” is sometimes translated as “my patron” indicates that the Campa are clearly aware of the similarities between the two relationships (BODLEY, 1973, p. 595). 115
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Apesar dessas semelhanças, Bodley via o sistema do aviamento como altamente destruidor do modo de vida indígena. Para ele, “o sistema econômico do patrão” constituía uma etapa de transição no inexorável processo de adaptação dos Ashaninka ao mercado capitalista (BODLEY, 1971, p. 2324). Na Amazônia peruana, o sistema do aviamento permanece muito atual. Em um artigo recente, Killick (2008) mostrou que os pequenos patrões mestiços tornaram-se os ayompari privilegiados dos Asheninka do Ucayali. Focalizando as relações dos índios com os pequenos patrões mestiços, o autor mostra como cada grupo apreende sua inserção no sistema madeireiro a partir de seu código cultural peculiar, levando a diferentes compreensões da relação social. Enquanto os Asheninka usam a linguagem do ayompari, os patrões mestiços interpretam sua relação com os índios em termos do compadrio (compadrazgo). Killick mostra que ambos os sistemas enfatizam os laços sociais e que o termo espanhol patrón é geralmente usado pelos índios como sinônimo de amigo (KILLICK, 2008, p. 314). As observações de Killick encontram ressonância com a situação dos Ashaninka do rio Amônia e com muitos dos argumentos aqui expostos. Os dirigentes da associação APIWTXA reconhecem que a economia madeireira, que explorou intensamente a mão de obra de muitos homens ashaninkas na década de 1980, foi facilitada pela familiaridade dos índios com o sistema de trocas diferenciado do ayompari. Vistas a partir do sistema tradicional e da concepção nativa da troca, as transações com os patrões não podem ser reduzidas a uma dimensão puramente econômica. No ayompari, o valor de mercado dos produtos trocados constitui apenas um dos aspectos da relação. Durante o auge da exploração madeireira em seu território, os Ashaninka chegaram a trocar toras de madeira por ninharias. Uma tora de mogno, por exemplo, podia ser trocada por um quilo de sabão. Como no auge da borracha, os patrões madeireiros usaram a mão de obra nativa no regime do aviamento, que aprisionou os índios numa relação de dependência e semiescravidão. Não cabe aqui minimizar as consequências dramáticas desse sistema do aviamento para as populações tradicionais da Amazônia, sejam elas indígenas ou não. O aviamento já foi denunciado, com razão, por uma vasta literatura. No sistema madeireiro, baseado no regime do aviamento, a exploração da mão de obra indígena é inquestionável, tanto no plano moral como no econômico. As próprias lideranças dos Ashaninka do rio Amônia, hoje familiarizadas com as regras da economia de mercado, processaram as empresas madeireiras pelos danos ambientais e sociais realizados na década de 1980 em seu território sob o regime do aviamento26. Reconhecer essa exploração não significa negar a agencialidade histórica dos Ashaninka e apresentá-los como meras vítimas de um processo alheio. 26 No ano 2000, os réus foram condenados em primeira instância, mas o processo continua se arrastando na justiça brasileira.
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Embora tenham se inserido progressivamente no sistema capitalista como produtores e consumidores, também apresentam sua compreensão própria do sistema. Nessa inserção peculiar, a dimensão social e o código moral que a sustenta continuam de extrema importância. Muitos Ashaninka do rio Amônia ressaltam, por exemplo, que eles se sentiam mais frustrados pelo desrespeito à obrigação de reciprocidade, quando, por exemplo, um patrão não honrava seu compromisso e não trazia o bem prometido, que pela desigualdade econômica das transações e o diferencial de valor dos produtos objetos da troca. Como no ayompari, no sistema madeireiro, as transações eram realizadas entre dois parceiros: o patrão (geralmente o seu representante) e um homem ashaninka, chefe de família ou kuraka27. Ambos os sistemas se caracterizam pela ausência do dinheiro e por uma troca deferida de produtos (madeira contra bens industriais) que pressupõe o estabelecimento de uma relação mínima de confiança entre os parceiros. Como o ayompari para os grupos isolados, o sistema madeireiro se apresentou para os Ashaninka do rio Amônia, nos anos 70 e 80, como o único meio para aquisição de bens industriais. Sem reduzir um sistema ao outro, podemos considerar que, em muitos aspectos, as relações dos Ashaninka com os patrões se assemelhavam à troca tradicional e podem ser vistas como reinterpretações do ayompari. Para os índios, o principal objetivo da troca com os patrões era obter de volta os bens industriais roubados pelos brancos no tempo mítico. Hoje, os Ashaninka do rio Amônia adquirem a maior parte de seus bens industriais via cooperativa e os projetos que a associação APIWTXA negocia com diferentes parceiros do indigenismo. Para os índios, a palavra “projeto” integrou totalmente o vocabulário e a política interétnica. De uso corriqueiro na aldeia, ela tornou-se um sinônimo de “mercadoria”. Como antigamente, os produtos industriais do mundo ocidental chegam aos Ashaninka, geralmente, através de trocas nas quais o dinheiro não circula28. Embora os preços dos principais produtos e peças de artesanato sejam conhecidos, o dinheiro como moeda de uso está ausente na relação dos Ashaninka com sua cooperativa, servindo, simplesmente, como referência simbólica que permite definir um valor de mercado para os bens trocados. Na maioria das vezes, a cooperativa indígena também funciona como uma troca diferenciada. No caso do artesanato, por exemplo, que constitui a principal atividade de “desenvolvimento sustentável”, as famílias entregam, num primeiro momento, sua produção à cooperativa, e só retiram as 27 A palavra kuraka (ou curaca, no Peru) é de origem quéchua e pode ser traduzida em português como “chefe”. 28 Cabe notar que nos últimos anos uma importante fonte de renda veio se somar aos recursos oferecidos pelos projetos: aposentadorias, pagamentos de professores, agentes de saúde, auxílios governamentais diversos, etc. Embora possua poucos elementos etnográficos para discutir essa nova situação entre os Ashaninka, ela aparenta ser bastante diferente dos “projetos” na medida em que envolve uma troca direta e explicitamente monetária.
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mercadorias alguns meses depois, uma vez realizada a venda29. O bom funcionamento da cooperativa supõe também uma relação de confiança entre as famílias associadas e os es, que também são os líderes políticos da comunidade. Como a venda de artesanato, os outros “projetos”, na medida em que se materializam pelo aumento da oferta de bens industriais disponíveis na cooperativa, também são percebidos pelos Ashaninka como uma nova forma de ayompari: É ayompari mesmo, é a mesma coisa. Primeiro, você entrega artesanato na cooperativa: txoshiki, tambor, assim qualquer coisa. Assim, você tem um saldo e você pode pegar mercadoria: sal, faca, tecido para mulher fazer sua kushma (...) Agora, aqui não tem ayompari como antigamente (...). Naquele tempo, não tinha branco, era só Ashaninka mesmo que trocava, trocava com outro índio também. Era bom mesmo. Agora, tem que fazer ayompari com branco mesmo. Tem branco amigo, que quer ajudar. Aí faz projeto e troca com Ashaninka (...). Projeto é como ayompari. Primeiro, você vai ver a FUNAI30, lá em Brasília. Em seguida, escreve um projeto com o pessoal lá. Você pode fazer filme, fazer artesanato, pode fazer qualquer trabalho. Quando acaba, pode ir pegar mercadoria na cooperativa. Não custa nada de dinheiro (Aricêmio).
Outro evento ocorrido em julho de 2000 na Aldeia Apiwtxa dos Ashaninka do rio Amônia nos ajuda a entender a importância do ayompari como referência interpretativa das relações de troca com os brancos. Já na terceira idade, Aricêmio é o xamã da comunidade e um homem muito respeitado em razão de seu conhecimento das tradições e da história de seu povo. Apesar de pouco familiarizado com as instituições contemporâneas da política interétnica, ele foi um dos meus interlocutores privilegiados e o principal protagonista de um episódio que me permitiu entender melhor as relações que os Ashaninka estabelecem entre seu sistema de trocas tradicional e os novos projetos de “desenvolvimento sustentável”. Durante o meu trabalho de campo de doutorado, tive que deixar a aldeia em alguns momentos, por razões de saúde, para me abastecer em mercadorias ou simplesmente para acompanhar as lideranças indígenas em seus deslocamentos a Cruzeiro do Sul, principal cidade da região do Alto Juruá. Durante essas curtas estadias na cidade, usava parte de meus escassos recursos para comprar algumas ninharias (isqueiros, tabacos, espelhos, anzóis, material de costura, etc.). De volta à aldeia, distribuía pessoalmente esses 29 Mesmo se a cooperativa dispõe de um pequeno capital de giro, na maior parte do tempo seus dirigentes geralmente esperam a venda de peças de artesanato ou a chegada de fundos de projetos para comprar mercadorias. Durante o trabalho de campo, testemunhou-se reclamações de alguns índios contra os prazos longos da cooperativa. Todavia, de modo geral, a cooperativa ashaninka funciona muito bem. Comparada com outras cooperativas indígenas da região, ela é uma das mais eficientes. Talvez o ayompari tenha possibilitado aos Ashaninka um melhor entendimento do modo de funcionamento da cooperativa e uma maior tolerância com os prazos de recebimento das mercadorias, por vezes demorados. 30 Muitos Ashaninka não distinguem claramente os diferentes atores do indigenismo. Interlocutor mais antigo, a FUNAI é o parceiro mais facilmente identificado e a maior parte dos índios considera todos os projetos como resultado de suas relações com o órgão indigenista estatal.
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modestos “presentes” para agradecer a hospitalidade dos meus anfitriões e a contribuição que os Ashaninka davam ao avanço da minha pesquisa. Após a desconfiança inicial que muitos índios expressam frente aos estrangeiros e, particularmente, aos brancos, Aricêmio e eu criamos certa cumplicidade. Embora procurasse ser cauteloso para não criar favorecimentos entre as famílias, em razão da importante contribuição que ele dava para a minha pesquisa e dos laços pessoais que foram progressivamente se construindo, Aricêmio foi um dos principais beneficiados pela distribuição dos meus “presentes”. Progressivamente, em contrapartida das mercadorias que eu lhe dava, percebi que, algumas semanas depois, ele retribuía com algum “presente”, na maioria das vezes uma pequena peça de artesanato: colar, pulseira, cachimbo, flauta, etc. Um dia, durante uma festa de piyarentsi, em busca de dados etnográficos sobre a troca tradicional, iniciei uma conversa com Aricêmio e um pequeno grupo de homens da aldeia. Surpreendentemente, Aricêmio tomou a nossa relação como exemplo para me explicar de maneira simples o que era o sistema ayompari. Relembrando as nossas transações (ninharias contra peças de artesanato), ele me explicava que, agora, éramos ayompari, ou seja, “verdadeiros amigos” e “parceiros de troca”. Prestando atenção na explicação de Aricêmio, os outros homens do nosso pequeno grupo iniciaram uma discussão animada em ashaninka, cujo sentido tentava desesperadamente captar. Minhas deficiências linguísticas e a dificuldade de obter uma tradução fidedigna dos argumentos dos diversos protagonistas limitaram, sem dúvida alguma, a minha compreensão desse momento etnográfico crucial. Ajudados pela embriaguez da cerveja de mandioca, o pequeno grupo discutia num animado debate a analogia feita por Aricêmio. A grande pergunta que entusiasmava todos era saber se eu podia realmente ser qualificado de ayompari, ou seja, se a aplicação desse termo a um branco era legítima. Como num parlamento improvisado, as opiniões contraditórias se expressavam livremente e cada um fazia valer seus argumentos. Shomontse, o índio mais idoso da aldeia, achava a comparação de Aricêmio exagerada. Para ele, um ayompari era necessariamente Ashaninka. Aricêmio, menos radical, tentava explicitar sua analogia, explicando que, embora não fosse um “verdadeiro ayompari”, eu poderia ser considerado “como ayompari”. Os outros homens acabavam se divertindo com a conversa, acrescentavam seus comentários pessoais e alimentavam o debate com um tom irônico típico dos Ashaninka. Ser ou não ser ayompari? A complexidade da questão acabou levando a muitas gargalhadas. Finalmente, encerrou-se a discussão que, na verdade, só interessava ao antropólogo, e continuamos a beber as cuias de piyarentsi acompanhados pelo ritmo dos tambores indígenas. No dia seguinte, buscando satisfazer minha curiosidade etnográfica e preencher minhas lacunas linguísticas, procurei obter, junto aos protagonistas do episódio, os detalhes das conversas e os argumentos de cada 119
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um. Ninguém entendeu as razões pelas quais eu dava tanta importância a essa questão. Minhas perguntas pareciam estranhas aos meus interlocutores e os esforços foram em vão. Tive que me satisfazer com uma conclusão ao mesmo tempo simples e desconcertante. Todos foram unânimes para me responder que, no final das contas, todos eles tinham razão. Eu não era um ayompari como aqueles que existiam antigamente, mas os tempos tinham mudado e os ayompari também. Como eu era visto como uma pessoa “boa”, poderia ser considerado ayompari, se tal fosse meu desejo31. Outros exemplos testemunham a associação feita pelos Ashaninka entre o seu sistema ayompari e suas relações com os brancos. Em outubro de 1999, os dirigentes da associação APIWTXA e o então regional da FUNAI no Acre, Antônio Pereira Neto, elaboraram um projeto propondo o nome dos Ashaninka do rio Amônia para as festividades do Moitará32 do ano 2000. A ideia foi acolhida favoravelmente pelo presidente da FUNAI e, no ano em que se celebravam os 500 anos da chegada de Cabral ao Brasil, os Ashaninka adquiriram grande visibilidade no cenário nacional. Durante uma semana, de 16 a 23 de abril de 2000, um pequeno grupo da aldeia Apiwtxa – formado por homens, mulheres e crianças – foi à capital federal para contar sua história e, como dizem, “mostrar sua cultura”: confecção, exposição e venda de artesanato, realização de um piyarentsi, construção de uma casa tradicional, representações musicais, etc. A preparação dessas festividades mobilizou durante vários meses a aldeia Apiwtxa. Mesmo se muitos índios tiveram dificuldades para entender os significados reais do projeto, para as lideranças da associação indígena o Moitará foi um enorme sucesso e um evento inédito da política interétnica, projetando os Ashaninka na cena do indigenismo nacional. A única venda de artesanato ligada a esse projeto rendeu mais de quarenta mil reais à comunidade, um número recorde, essencialmente destinado a alimentar a cooperativa com produtos industriais (sal, munição, terçados, isqueiros, lanternas, etc.). Ora, é interessante notar que o projeto do Moitará proposto pela APIWTXA tinha justamente por título: “Ayompari: um sistema de trocas ashaninka”. A referência explícita à troca tradicional é constante na redação do projeto, escrito pelo regional da FUNAI com orientação dos líderes da associação indígena. Em sua apresentação, o texto afirma: O Moitará 2000 será um ayompari onde os Ashaninka da Terra Indígena Kampa do rio Amônia oferecerão sua arte material (imagem, som e artesanato), nós retribuiremos com o pagamento desses bens, com o reconhecimento da importância e beleza dos mesmos, e os elementos da sociedade nacional que tiverem o privilégio de conhecer, reconhecer 31 Killick (2005, p. 314-316) também narra um interessante evento ocorrido durante o seu trabalho de campo que o envolveu numa relação ayompari com um de seus informantes. 32 Na origem, o termo “moitará” designa um sistema de trocas tradicionais dos índios do Xingu. A palavra foi adotada pela FUNAI para qualificar as festividades que ela organiza anualmente durante a semana do índio, dia 19 de abril. Um grupo indígena do Brasil é escolhido para apresentar sua cultura e modo de vida, promovendo a diversidade étnica do país.
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e participar do evento, com certeza entenderão a beleza da pluralidade cultural e étnica que vem formando o nosso país (PERREIRA NETO, 1999).
Em 2003, a própria cooperativa dos Ashaninka do rio Amônia, que funciona desde o final da década de 1980, foi cadastrada no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) com o nome “Cooperativa Agroextrativista Asheninka do Rio Amônia – Ayõpare”. O nome ayõpare é simplesmente uma nova grafia que o grupo, com o desenvolvimento da escolarização em língua nativa, vem adotando para ayompari33. Além do Moitará, num primeiro nível de análise, podemos dizer que os Ashaninka veem os novos projetos de “desenvolvimento sustentável” como uma forma moderna de ayompari. Mesmo se, em certas atividades, a relação projeto/mercadoria aparece menos visível34, todos os projetos oferecem direta ou indiretamente a possibilidade de obter bens industriais. Para os índios, o “projeto” tornou-se o principal meio de o aos bens industriais que os brancos começaram a produzir, após terem furtado os conhecimentos que Pawa destinou aos Ashaninka na criação do mundo e guardam sovinamente. Embora não possamos afirmar que eles substituíram os ayompari tradicionais, no cenário político contemporâneo, os diferentes atores do indigenismo (FUNAI, ONGs, Governo do Acre, antropólogos, etc.) tornaram-se os principais parceiros de troca dos Ashaninka do rio Amônia. Todavia, apesar das analogias entre a troca tradicional e os “projetos”, existem diferenças essenciais entre esses dois sistemas.
Os limites do ayompari com os brancos Em seu artigo, Bodley já havia notado que, apesar das semelhanças com o sistema da habilitación (troca diferenciada, etc.), o ayompari não deve ser confundido com ele: The resemblance between one’s patron and one’s ayompari is only superficial, however. A patron is always treated with deference and respect, while one’s ayompari is supposed to be argued with (BODLEY, 1973, p. 595).
Killick (2008) também nos adverte para analogias precipitadas entre o ayompari dos Asheninka do Ucayali e o sistema regional do compadrio. 33 Neste trabalho, optou-se pela grafia ayompari pelo fato do caracter “õ” (pronunciado como [on] ou [om]) não existir na língua portuguesa e no desejo de homogeneizar as diferentes grafias que podem ser encontradas tanto na literatura etnográfica como nos documentos indígenas: ayompari, ayompare, ayõpare, ayõpari, ayómpari, etc. Essas diferentes grafias continuam sendo usadas pelos Ashaninka do rio Amônia, embora a forma ayõpari tenha tendência a se cristalizar como “grafia oficial”. Segundo os professores indígenas, o registro da cooperativa como “ayõpare” se deve a um erro de ortografia, sendo ayõpari o termo correto. Uma modificação semelhante na grafia ocorreu com as palavras ashaninka e asheninka ou piyarentsi, que são grafadas na língua nativa como ashanĩka, ashenĩka e piyar~etsi. 34 Por exemplo, a criação de sistemas agroflorestais. Nesse caso, os objetivos dos projetos são, essencialmente, ambientais, mas guardam uma dimensão econômica. Com efeito, sua execução também prevê a distribuição de bens industriais para os índios (instrumentos de trabalho, por exemplo,) e podem levar à comercialização de parte da produção: mudas, etc.
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Apesar de ambos salientarem a dimensão social da relação, o autor mostra que existe uma diferença fundamental entre os dois sistemas. Enquanto o ayompari se baseia numa relação entre iguais, a relação de compadrio é essencialmente hierárquica, fundamentada num modelo paternalista caracterizado pela diferença de status entre os compadres, tanto do ponto de vista econômico como social. Hoje, quando os Ashaninka do rio Amônia fazem referência à exploração madeireira dos anos 80, eles são unânimes a afirmar que não se tratava de relações ayompari porque “o patrão roubava e um ayompari não rouba”. Essa explicação testemunha a nova consciência política dos índios, construída progressivamente com a luta pela demarcação da terra e fortificada ao longo dos últimos vinte anos. Embora não se deva esquecer as semelhanças apontadas entre os dois sistemas, também devemos evitar analogias precipitadas e ficar atentos às especificidades do ayompari e das trocas com os brancos na concepção indígena. Embora os brancos possam ser apresentados como ayompari, existe uma diferença fundamental entre o que poderíamos chamar de “ayompari tradicional” (entre indivíduos ashaninkas) e o “ayompari com os brancos”. O sistema de trocas entre os Ashaninka é altamente ritualizado. Os parceiros se envolvem numa relação interpessoal onde os objetos trocados veiculam a honra dos indivíduos e são considerados como uma extensão da pessoa, implicando a observação e o respeito de normas éticas peculiares que regulam as transações. Os Ashaninka do Amônia lembram do ritual que acompanha, define e singulariza a troca tradicional35. Durante as visitas entre ayompari, os parceiros ficavam de pé, trocando acusações e insultos durante horas. O credor cobrava do devedor com veemência o atraso da dívida, o pouco de importância que este atribuía às suas obrigações morais e exigia o pagamento imediato da dívida. Por sua vez, o parceiro, objeto das acusações, adotava uma estratégia para convencer seu amigo de sua honestidade, procurava pretextos para justificar o atraso. Após horas de um diálogo caracterizado por insultos, acusações e negociações, os parceiros chegavam a um entendimento e o devedor realizava sua obrigação social e moral de retribuição. Esses rituais entre parceiros de troca foram identificados na literatura etnográfica como “rituais cerimoniais” e podem ser vistos em diferentes grupos indígenas da Amazônia. Embora, em certos casos, possa haver fortes relações pessoais entre um Ashaninka e um branco (no sistema patronal, por exemplo), as trocas com os representantes do mundo ocidental nunca atingem as dimensões afetivas e simbólicas presentes no ayompari. Como afirma Bodley, no sistema patronal as relações dos Ashaninka com o seu patrão são baseadas no respeito e na consideração, ou seja, totalmente opostas às relações que caracterizam o 35 Ver também Bodley (1973).
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ritual entre ayompari ashaninka. Os “projetos” e, mais geralmente, as trocas com os brancos, ignoram as dimensões simbólicas do ritual e não partilham o código cultural que dá sentido à troca tradicional. A ausência de ritual nas transações com os brancos cria uma situação ambígua que explica a reação, às vezes confusa e contraditória, expressa pelos Ashaninka quando procuram caracterizar essas trocas. Se, por um lado, suas relações com os brancos se definem também por uma troca diferenciada (patrão, cooperativa, projetos e antropólogo) e não monetária (“não custa nada de dinheiro”), por outro, a ausência de ritual mediador torna essas trocas superficiais e essencialmente econômicas. Embora a dimensão social (e às vezes até afetiva) não esteja ausente, a troca com os brancos não partilha o código moral e o ritual do ayompari e se resume, basicamente, a uma simples transação de produtos, por exemplo, uma peça de artesanato contra um bem industrial. Em sua tentativa de me explicar o ayompari como exemplo da nossa relação de troca, Aricêmio procurava, sobretudo, facilitar o meu entendimento do assunto. Como fornecedor de bens industriais, eu podia exercer a função de um ayompari, mas o meu interlocutor sabia perfeitamente que eu era apenas um “simulacro de ayompari” por não ser Ashaninka e não partilhar o código simbólico que estrutura a troca indígena. A ausência de um código cultural comum pode levar a situações conflituosas na arena interétnica. Partindo do estudo de um rumor, Ramos (1996), por exemplo, mostrou como as diferentes concepções da troca entre os Sanumá (subgrupo Yanomami), dos Mayongong (Ye’kuana) e dos brancos se inscrevem, cada uma, num código cultural específico cuja ignorância pode desencadear eventos dramáticos. No caso dos Ashaninka do rio Amônia, o ayompari pode ser usado como pano de fundo interpretativo para qualificar as relações de troca desse grupo indígena com os brancos, particularmente nos projetos de “desenvolvimento sustentável”. Todavia, essa analogia não deve esconder as diferenças profundas entre os dois sistemas. Para os índios, o projeto se resume aos bens industriais que ele possibilita. Mesmo se a troca com os brancos possui uma dimensão social importante, a lógica que guia os projetos de “desenvolvimento sustentável” é essencialmente econômica. Contrariamente ao ayompari, o projeto não tem cara específica (“qualquer trabalho com a FUNAI”) e ignora o código cultural e o ritual que regula a troca tradicional. Longe das atitudes muitas vezes paternalistas dos atores do novo desenvolvimento amazônico (Estado, ONGs, cooperação internacional, etc.) que reduzem geralmente as populações indígenas a meras vítimas do sistema capitalista ocidental, os Ashaninka nunca foram os figurantes ivos da história e continuam afirmando de maneira criativa e original sua presença no mundo. Nos seus encontros com os brancos, eles mobilizam permanentemente seu universo cultural e procedem a complexas reinterpretações simbólicas para dar sentido as suas ações no mundo e construir seu futuro. 123
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Como mostrou Sahlins (1981, 1985), o diálogo entre história e estrutura nos ajuda a apreender a dinâmica cultural em curso no encontro interétnico. Entender o sentido da noção de “projeto” para os Ashaninka permite compreender melhor a atitude desse povo indígena frente aos brancos e aos bens industriais. O respeito e a consideração que caracterizam a relação dos índios com seus “ayompari brancos” não devem se confundir com um sentimento de inferioridade. Apesar de muito desejados, os bens industriais são geralmente aceitos pelos Ashaninka com uma frieza surpreendente e desconcertante para um observador externo. Quando oferecia um “presente” a um “informante”, ele retribuía, às vezes, com uma peça de artesanato, mas nunca mostrava sinais de entusiasmo, muito menos agradecia. Essa atitude, que pode parecer desagradável e até ingrata aos nossos olhos, explica-se facilmente se tentarmos apreender o sentido que os Ashaninka dão a essas trocas com os brancos. Tendo se beneficiado, nos tempos míticos, da cumplicidade do Inka para roubar vergonhosamente o saber de Pawa, os brancos não podem ser apresentados hoje como “verdadeiros ayompari” e oferecer “presentes” aos Ashaninka porque os bens industriais pertenciam originalmente aos índios. Apesar de seus esforços para provar sua generosidade e solidariedade, através dos projetos de “desenvolvimento sustentável”, por exemplo, os brancos só fazem redistribuir, a conta-gotas, aquilo que pertence naturalmente (melhor dizer culturalmente) aos Ashaninka. Mesmo se, ao longo de sua história, os Ashaninka aprenderam a distinguir vários tipos de branco36, eles continuam estreitamente associados, na cosmologia indígena, à categoria dos espíritos maléficos (kamari) que se opõem aos espíritos bons, também chamados de ashaninka. Mesmo tendo se tornado o principal fornecedor de bens industriais, o comportamento imoral e egoísta do branco, presente de maneira explícita na cosmologia indígena, ainda contrasta fortemente com a honestidade e a generosidade, qualidades ideais de todo ashaninka e virtudes indispensáveis de todo ayompari, o tradicional parceiro de troca e verdadeiro amigo.
36 Em razão de casamentos interétnicos, alguns brancos se tornaram até parentes.
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PARCEIROS DE TROCA, PARCEIROS DE PROJETOS
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Karenina Vieira Andrade2 A profecia O povo Ye’kuana está destinado a desaparecer. Nós, Ye’kuana, vamos nos misturar com os brancos e será o começo do fim. Na realidade, já não existem mais Ye’kuana de verdade. Estamos misturados com Maaku e Mawiisha. Nós fizemos guerra com eles, roubamos suas crianças e mulheres e nos casamos com elas. Os antigos pajés nos contaram como tudo iria acontecer. Os brancos chegarão com suas armas, aviões, livros. Os Ye’kuana aprenderão a língua deles e então começará o fim deste ciclo. Já falamos o português, nossos parentes na Venezuela falam espanhol. Os brancos estão por todos os lados, em nossas terras e ao nosso redor. O fim desta era, como nos disseram nossos föwai3, já está em curso. Os brancos trouxeram doenças e, depois, remédios. Fomos deixando de lado nossos próprios medicamentos. A escola chegou, nossas crianças estudam a história dos brancos e esquecem nossa própria história. Os jovens não sabem mais o que os antigos sabiam, fazer canoas, ralos, preparar remédios, cantar e dançar para celebrar os ensinamentos de Wanaadi4 . Os antigos föwai viram tudo e nos contaram. Somente um föwai é capaz de deixar seu corpo e viajar até o futuro. A chegada dos brancos ao território Ye’kuana marcará o fim deste ciclo e o início de um novo. Cada vez mais nos misturaremos aos brancos e deixaremos de ser Ye’kuana. Nós seremos os primeiros a acabar, antes do fim deste mundo. Wanaadi poupará seu povo do sofrimento final. Os brancos ficarão na terra e sofrerão até o fim. Primeiro, perderemos nossa cultura, nossa história. Esqueceremos nossa língua casando com os brancos e adotando seus valores, sua língua, sua cultura. Os Ye’kuana vão se misturar cada vez mais, até que não haja mais nenhum, somente filhos de Ye’kuana com brancos. O pessoal vai esquecer como se faz artesanato. O sol, criado por Wanaadi para vigiar esta terra, está assistindo a tudo lá de cima. Wanaadi sempre pergunta a ele, então, ainda há beiju secando?5 O sol responde 1 Este trabalho é resultado de pesquisa de campo realizada dentre os Ye’kuana de Auaris (Terra Indígena Yanomami, extremo norte de Roraima) ao longo de 14 meses, entre os anos de 2005 e 2006, para elaboração de minha tese de doutorado. Os Ye’kuana, de língua Caribe, estão em parte no território brasileiro (três aldeias no norte de Roraima, totalizando pouco mais de 400 pessoas) e parte no território venezuelano (59 aldeias, totalizando cerca de 4.500 pessoas). Ver Andrade, 2007. 2 Bolsista Prodoc/CAPES, Professora e pesquisadora colaboradora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. 3 Xamãs ye’kuana. 4 Demiurgo, herói do ciclo de criação Wätunnä. 5 O beiju de mandioca é a base da alimentação Ye’kuana. Além do beiju preparado diariamente antes das refeições, as mulheres separam alguns beijus que deixam secar ao sol até que fiquem duros, como se houvessem sido torrados. Depois desse processo, os beijus podem ser armazenados por dias sem que estraguem.
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que ainda há. O sol sempre vê se há beiju aqui na terra, secando, para saber se ainda há so’to6. Quando não houver mais beijus secando ao sol é porque não há mais Ye’kuana. Por isso, as mulheres sempre colocam beiju ao sol, em cima dos telhados das casas, para que sequem. Chegará o dia em que Wanaadi chamará o sol mais uma vez e este dirá: acabaram-se os beijus, e então Wanaadi saberá que os Ye’kuana acabaram. Ele enviará o sol para queimar a terra. Depois, virá o dilúvio e a água cobrirá tudo. Quando a chuva cessar e a terra secar completamente, um novo ciclo será iniciado. Wanaadi chamará de volta os que morreram. No novo mundo não haverá cobras, doença, brigas, nada de ruim. Todos viverão bem. Existem muitos sinais que indicam que o fim está cada vez mais próximo. Os antigos diziam: quando os brancos trouxerem escola, vocês perderão a vida de Ye’kuana. Catástrofes e guerras ocorrerão pelo mundo. Quando este mundo acabar, lua e estrela morrerão também, cairão do céu aqui na terra. Durante muito tempo, nada irá acontecer, até quando Wanaadi retornar à Terra7. Os velhos voltarão jovens, não haverá mais doenças, tudo será novamente como foi um dia. Odo’sha8 morrerá junto com este mundo. Cajushäwa morrerá. Por isso, Wanaadi mandará o dilúvio depois do fogo, para matar Odo’sha, que vive em cavernas. Não restará mais nada. Quando o novo ciclo começar, os Ye’kuana retornarão como senhores desta terra. Os brancos sofrerão como sofrem os índios hoje. Eles tiveram sua chance e fizeram tudo errado, não seguiram os ensinamentos de Wanaadi. É chegada a hora do povo Ye’kuana.
Wätunnä O ciclo de histórias wätunnä, tradição oral ye’kuana ada através das gerações, encerra-se com a profecia narrada acima, quando o mundo existente dará lugar a um novo mundo e ao início de um novo ciclo. Podemos dizer que a profecia é o último ato de um espetáculo sempre inacabado porque, como um moto-contínuo, nunca se encerra. Prova disso é que, segundo contam os sábios e historiadores ye’kuana, este não é o primeiro ciclo, mas o terceiro. Houve outras duas tentativas de criar um mundo povoado por seres que estivessem à altura de representar na terra o reino celeste de Wanaadi, mas este, insatisfeito com o resultado, destruiu-os pouco depois de sua criação. A análise da profecia contida em wätunnä revela não só a perspectiva de futuro dos Ye’kuana, mas toca em pontos fundamentais para o entendimento de seu ethos. É na profecia que está a chave para o entendimento da lógica ye’kuana, segundo a qual a vida na terra, embora eivada de sofrimento, é fundamental para o futuro glorioso que os espera. Por um lado, se o povo de Wanaadi já possui o conhecimento do que é o comportamento 6 Gente ou pessoa, conceito relativo apenas aos Ye’kuana. 7 Há uma versão em que, embora o conteúdo da profecia seja o mesmo, quem retornará será Kuyujani, herói enviado à Terra por Wanaadi para demarcar o território tradicional Ye’kuana (JIMÉNEZ, 1994). 8 Cajushäwa, o opositor de Wanaadi, representa a força negativa. Odo’sha são seres malignos, que podem assumir formas diversas, comandados por Cajushäwa para exercer o mal, aparecendo ora no plural, ora no singular. Cajushäwa é reconhecido como a entidade negativa superior, o anti-herói que comanda seu “exército do mal”.
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adequado a um verdadeiro ser humano, revelado em wätunnä, por outro falta-lhe o conhecimento técnico para dominar o mundo no qual viverão este futuro glorioso. Este conhecimento técnico é adquirido a duras penas no convívio com os brancos, com os quais aprendem também quais erros devem evitar, para que Wanaadi não fique insatisfeito e, mais uma vez, ponha fim ao mundo em que, finalmente, triunfarão. Existir neste mundo para os Ye’kuana é sofrer, aprender e acumular conhecimento. Wanaadi distribuiu a posse de bens aos diversos povos que criou. Assim como cada povo recebeu um território e uma língua, recebeu também alguns bens e matérias-primas que traziam consigo o conhecimento sobre sua produção e uso. Sendo assim, os povos deveriam trocar de bom grado presentes entre si; trocar bens, trocar conhecimento. A profecia de wätunnä incita os Ye’kuana a buscar o conhecimento que está nas mãos do Outro. No começo de sua jornada neste mundo, os humanos precisaram conquistar bens e saberes dos animais; posteriormente, fezse necessário negociá-los entre os próprios humanos. É preciso ver, saber, conhecer, acumular – assim lhes diz wätunnä. Tal acumulação, num capitalismo à la Ye’kuana, dá-se no sentido de prover um corpo de conhecimento que funciona como pré-requisito à posição que ocuparão no próximo ciclo. De acordo com a conduta ideal ye’kuana, em que a agressividade não tem lugar, a conquista desse conhecimento deve seguir o princípio do pacifismo. Para cumprir tal tarefa com sucesso, os Ye’kuana partiam em expedições carregando as armas adequadas – ralos, wajaa (tipo de balaio), tipitis e demais bens cuja posse lhes foi dada por Wanaadi. Munidos destes bens, os Ye’kuana empreendiam as trocas necessárias ao seu propósito de obter o conhecimento de tudo aquilo que Wanaadi criou e distribuiu entre os povos. A necessidade ye’kuana de acumular conhecimento, saberes e práticas, traduziu-se em longas viagens comerciais através das quais, embarcados em suas renomadas canoas, mantinham contato com uma vastíssima rede de parceiros pelo maciço das Guianas e além, consolidada ao longo do tempo, incluindo, mais recentemente, o comércio com os brancos. Impulsionados por uma ética calcada na ascese pelo trabalho, esses argonautas do Orenoco e seus afluentes empreendiam extensas jornadas comerciais muito antes da chegada dos colonizadores (ARVELO-JIMÉNEZ, 1989; 2001). Em um primeiro momento, quando o tom das relações ainda era amistoso, estes aram a ser apenas novos parceiros situados em sua rede de comércio. Com a dispersão dos Ye’kuana, outra modalidade de comércio ganhou fôlego: as trocas entre os próprios Ye’kuana, para fazer circular os bens estrangeiros a que alguns tiveram o, trocando também saberes e informações. Todas as negociações comerciais nas quais se engajam os Ye’kuana são orientadas pela ética moral de wätunnä e sua profecia. Examinaremos como os Ye’kuana levam adiante tais premissas, situando novos atores na rede de relações tecida a partir das trocas e o seu significado na cosmologia. 129
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Modalidades de comércio O comércio intertribal Embora não existam dados sobre as relações comerciais antes da chegada dos colonizadores entre as diferentes etnias que ocuparam a região do extremo sul da Venezuela, coração do atual território ye’kuana, há indícios suficientemente fortes de que tais relações comerciais datam de há muito (ARVELO-JIMÉNEZ, 1989, 2001), sobretudo, nos relatos dos próprios Ye’kuana. Arvelo-Jiménez, pioneira na análise dessas relações, denomina tal rede de SIRO, Sistema Regional de Interdependencia del Orinoco, e afirma que ela marcava um sistema de interdependência que alternava ações cooperativas não só de luta face a um inimigo comum, mas trocas materiais, matrimoniais e religiosas, com ações bélicas de baixo impacto para o restabelecimento de limites e fronteiras diacríticas que evitavam a ruptura da rede (2001b). Com a chegada dos colonizadores, essa rede comercial sofreu grande revés, sobretudo com a dispersão e fuga de muitos povos diante do temor da escravização. Entretanto, os Ye’kuana seguiam fazendo comércio, seja com os parceiros que lhes restavam, seja com novos parceiros, dentre os quais os próprios colonizadores, demonstrando que a necessidade de trocar se sobrepunha a qualquer adversidade, pois, através das trocas, era possível a obtenção do conhecimento que estava em mãos estrangeiras. Fontes históricas apontam os Ye’kuana como povo cuja fama de grandes comerciantes se espalhava pela região do Orenoco. Koch-Grünberg (1982 [1924]) reafirma o caráter eminentemente comercial dos Ye’kuana, tendo acompanhado suas trocas com outros povos, tais como os Arekuna, Maku e Piaroa. Na memória dos Ye’kuana de Auaris está gravado o comércio com os Piaroa na Venezuela e, do lado brasileiro, com os Macuxi, Waiwai e Wapishana. Mais recentemente, os Sanumá foram inseridos na rede de trocas. Segundo os Ye’kuana mais velhos de Auaris, cujas viagens comerciais são relembradas em longos relatos, o comércio com os Macuxi era intenso até um ado recente. Nas suas transações, o principal produto ye’kuana eram os famosos ralos de mandioca, confeccionados pelas mulheres, trocados por bens industrializados aos quais os Macuxi tinham maior o. Mais tarde, com as viagens dos Ye’kuana a Boa Vista e o estabelecimento de relações mercantis e de trabalho com os brancos, o comércio com os Macuxi foi perdendo importância; também os ralos ye’kuana vêm sendo substituídos por máquinas de ralar. Os etnógrafos dos Ye’kuana do lado venezuelano também relatam trocas comerciais com povos vizinhos onde os ralos, juntamente com as canoas, tinham papel de destaque (COPPENS, 1981; BARANDIARÁN, 1981; FRECHIONE, 1981). Os Ye’kuana afirmam que os ralos eram seu dinheiro, ou seja, funcionavam como principal objeto de troca nas relações comerciais não só com outros povos, mas, muitas vezes, entre Ye’kuana de diferentes aldeias. 130
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A importância desses ralos, cuja técnica de fabricação não era dominada por muitos povos, está ligada ao trabalho cuidadoso e sistemático das mulheres. Cada minúsculo fragmento de osso ou pedra no ado, e agora de alumínio, era meticulosamente trabalhado de forma que todos os pequenos “dentes” do ralo tivessem igual tamanho. Eram então encaixados em uma tábua de madeira especialmente escolhida para esse fim e, depois do encaixe de todos os pedaços, o ralo era pintado com uma tinta preparada com resina vegetal, para aumentar sua durabilidade. Os ralos tinham grande valor no mercado regional. Koch-Grünberg (op. cit.) descreve uma negociação de ralos entre um Ye’kuana e um Taulipang, analisando a postura do primeiro ao barganhar um melhor preço, seguro do valor de sua mercadoria, enquanto o Taulipang tentava conseguir tais objetos, tão necessários. Ao final, a troca foi realizada e ambos mostravamse satisfeitos com suas conquistas. A demanda pelos ralos incluía a prática da revenda, por exemplo, pelos Maku. O processo de fabricação continua o mesmo, mas agora são fabricados também ralos pequenos, vendidos aos brancos como peças de artesanato. Os ralos ye’kuana ainda circulam na rede de comércio que envolve povos do Maciço Guianense, como Macuxi e Piaroa, e com destaque, no caso de Auaris, para os Sanumá. Excetuando estes últimos, com o declínio das viagens comerciais, os Ye’kuana de Auaris trocam hoje seus produtos com outras etnias praticamente em duas ocasiões: quando viajam a Boa Vista e lá encontram outros indígenas, por exemplo, na Casa do Índio (CASAI) – onde ficam internados para tratamento de saúde –, e quando eventualmente viajam à Venezuela para visitar parentes e têm a oportunidade de encontrar outras etnias. O mais usual são as trocas na CASAI, embora esporádicas e não programadas. O que ocorre na maioria das vezes é que as internações na CASAI se prolongam por largos períodos, muitas vezes por meses, dada a dificuldade de fazer exames e consultas em Boa Vista. Por conta disso, os Ye’kuana, principalmente as mulheres, quando saem de Auaris para Boa Vista, levam material para trabalhar na confecção de produtos, minimizando, assim, o desconforto da entediante internação. O comércio com os Sanumá é mais recente, mas anterior à fixação destes em Auaris. Segundo me foi relatado, os Sanumá costumavam ar por Auaris em viagens de caça. Algumas vezes, aproximavam-se dos Ye’kuana e empreendiam com estes trocas comerciais. Os Ye’kuana compravam dos Sanumá bolas de algodão com que fabricavam suas vestimentas tradicionais, dando em troca pedaços de pano já tecidos ou produtos industrializados. Naquela época, não existiam grandes tensões entre ambos os grupos, porque os Sanumá costumavam partir logo em seguida. Foi com a chegada dos brancos a Auaris que os Sanumá começaram a fixar-se na região, em busca de produtos industrializados e de atendimento de saúde. Apesar do desejo de estabelecer relações comerciais em busca de novos bens e saberes, os Ye’kuana reconhecem os perigos do comércio com 131
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outras etnias. Néri, o tuxaua de Fuduwaaduinha, contou-me sobre a morte de seu pai em uma dessas viagens, apontada na época como resultado de feitiçaria Macuxi. Segundo ele, quando viviam na fronteira com a Venezuela, bem na cabeceira do Rio Auaris, em um igarapé chamado Ta’dakune, seu pai, líder da comunidade, reuniu alguns homens e desceu o rio de canoa com destino a Boa Vista. Durante o trajeto, repentinamente, ele morreu. O diagnóstico posterior foi feitiçaria de um xamã Macuxi, a quem o pai de Néri devia um ralo. A caminho de Boa Vista, ao se encontrarem, o xamã Macuxi teria cobrado a dívida. Diante da falta de pagamento, ele vingou-se, matando o outro durante a noite. Néri relembra que, naquela época, não havia Sanumá nas proximidades e os grandes parceiros comerciais dos Ye’kuana eram os Macuxi, apesar do temor que inspiravam seus xamãs. Trocavam ralos, zarabatanas e remos por espingardas que os Macuxi compravam dos brancos. Ao longo das últimas décadas, a importância do comércio intertribal tem caído vertiginosamente, tanto do lado brasileiro quanto do lado venezuelano. Coppens (1981) apontava, no início da década de 1980, que as trocas intertribais dos Ye’kuana já estavam perdendo importância desde fins dos anos 1960, quando realizou sua pesquisa. Naquela época os Ye’kuana ainda mantinham relações comerciais com os Piaroa, Pemón e Sanumá. Essa diminuição deve-se, principalmente, à mudança de interesse dos Ye’kuana, cada vez mais atraídos por produtos industrializados. O comércio com os Sanumá em Auaris, muito mais que a troca de bens, ou a privilegiar mais recentemente a troca de serviços, que dá o tom da interação entre ambos os grupos, com destaque para os serviços xamânicos e funerários até hoje prestados aos Ye’kuana pelos Sanumá (RAMOS, 1980). Os serviços funerários são sempre requisitados, dado o temor que têm os Ye’kuana do poder de contaminação dos cadáveres. Para os Sanumá, que tomam ritualmente as cinzas dos seus mortos (algo inconcebível a um Ye’kuana), não há nenhum problema em manipular cadáveres, e, portanto, não hesitam em enterrar os mortos ye’kuana em troca de pagamentos em mercadorias, às vezes produtos tradicionais, outras vezes produtos industrializados. Há uma infinidade de outros pequenos serviços que os Sanumá prestam aos Ye’kuana. Quando fazem viagens mais longas, por exemplo, estes costumam levar consigo um ou dois Sanumá para auxiliar a carregar bagagens e arrastar canoas. No cotidiano de Fuduwaaduinha é comum encontrar algum Sanumá trabalhando com os Ye’kuana em reparos nas residências, limpando o mato ao redor das casas, mediante pequenos pagamentos. Costumam aparecer na comunidade oferecendo-se para esses serviços. Os Ye’kuana tomam isso e o interesse por ralos, por exemplo, como reconhecimento por parte dos Sanumá da superioridade Ye’kuana. Várias mulheres me diziam que só trocam os ralos quando querem algo dos Sanumá; se não, simplesmente recusam-se a trocar. Tive a oportunidade de observar diversas ocasiões em que os Sanumá chegavam a Fuduwaaduinha oferecendo carne 132
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de caça ou peixe moqueado em troca de produtos ye’kuana. Boa parte das vezes as mulheres ye’kuana acabavam efetuando as trocas. São as mulheres ye’kuana que geralmente efetuam (ou não) estes negócios, porque os homens, via de regra, não estão em casa. Uma das primeiras negociações que acompanhei se deu enquanto algumas delas ralavam mandioca em uma casa de farinha. Duas mulheres Sanumá chegaram trazendo um grande cesto cheio de kudu9 moqueado e um grande tipiti novo (que, ironicamente, havia sido trançado pelo marido ye’kuana de uma delas). As mulheres queriam uma rede em troca das mercadorias. Depois de conversarem entre si, discutindo a qualidade do tipiti e a quantidade de kudu trazido, mãe e filha ye’kuana aceitaram o negócio e deram em pagamento uma rede usada, mas em bom estado. Antes de partir, as mulheres sanumá pediram um pouco de beiju com pimenta, que lhes foi prontamente oferecido. O homem ye’kuana casado com a mulher sanumá envolvida na negociação vive na casa do sogro, em uma comunidade a cerca de trinta minutos de canoa rio abaixo, Katarrinha. Este homem, filho de pai Ye’kuana e mãe Sanumá, fluente em ambas as línguas, mantém boas relações com os Ye’kuana, embora um tanto distantes. Visita Fuduwaaduinha, mas, em geral, apenas quando tem negócios a tratar. Quanto à contratação de serviços xamânicos, durante os catorze meses que ei em campo, apenas em duas ocasiões vi os serviços xamânicos sanumá serem requisitados. A primeira foi para a realização de um ritual de cura de uma mulher ye’kuana que sentia fortes dores por todo o corpo, principalmente braços e pernas. Essa mulher, casada com um dos filhos de Lourenço, o Ye’kuana que fora casado com uma mulher sanumá, morto em confronto com garimpeiros (RAMOS, 1980, 1990), já havia sido atendida várias vezes pela equipe de saúde, fora a Boa Vista fazer exames, mas não existia nenhum diagnóstico e as dores atormentavam-na há muito tempo. Sua família resolveu chamar um dos xamãs sanumá de Auaris, que depois foi pago com anzóis e terçado. A outra ocasião foi no fim de 2005, próximo às comemorações do Ano Novo, quando os Ye’kuana fazem uma grande festa. Um outro xamã sanumá foi convidado, realizou várias sessões de cura e foi pago com roupas usadas. Nas prestações de serviços, os exemplos que acompanhei são inúmeros: auxílio no conserto do telhado de uma casa (pago com anzóis e um pedaço de chumbo); reparos em uma pequena casa de um só cômodo, onde vive uma mulher madura com sua filha deficiente física (pago com ralo, roupas usadas e terçado), e reparo de buracos na parede de uma casa. As relações de troca com os Sanumá, analisadas por Ramos (1980), envolvem a manipulação de imagem que cada etnia constrói de si e do outro. O sentimento de superioridade que os Ye’kuana cultivam com relação aos 9 Um tipo de minhoca, de enorme comprimento, muito apreciado pelos Ye’kuana, que só aparece no período de fortes chuvas, com seu auge no mês de julho. Quando chove forte, mulheres e crianças saem para os locais onde há terra encharcada, principalmente barrancos, onde aparecem kudu.
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Sanumá, ainda que estes não aceitem o lugar inferior a que os Ye’kuana querem relegá-los, reflete-se nas relações comerciais entre eles (RAMOS, 1980, 1990, 1996). Nas trocas de mercadorias ou serviços com os Sanumá, o pagamento em geral é feito imediatamente, apesar da proximidade das aldeias. Embora às vezes ocorressem trocas a prazo com os antigos parceiros comerciais (a exemplo dos Macuxi), o ideal era que a dívida fosse saldada o quanto antes, sob pena de se ficar à mercê de consequências desastrosas, como vimos com o pai de Néri. No caso dos Sanumá, a desconfiança faz com que os Ye’kuana prefiram pagar no ato da troca. Os homens me relataram que as poucas vezes em que as trocas foram feitas a prazo, na hora de quitar a dívida, os Sanumá exigiam mercadorias diferentes das que haviam sido previamente combinadas ou uma maior quantidade de mercadorias, pedidos que eram atendidos por medo de feitiçaria. O comércio com os brancos Iudeeke e Shichamöna, na forma de peixes-gêmeos, viram Amadu, uma garça branca, pescando no rio com anzóis10. Iudeeke e Shichamöna transformaramse em piranhas e foram cortando os anzóis de Amadu. O último anzol fisgou Shichamöna, que não conseguiu cortá-lo. Amadu colocou Shichamöna dentro da canoa, que ficou meio morto, sem poder respirar fora d’água. Iudeeke, na tentativa de salvar o irmão, transformou-se em um gavião, sobrevoou a canoa de Amadu e fez cocô em cima de Shichamöna. Amadu, irritado, tomou Shichamöna nas mãos, praguejando contra o gavião, e pôs o peixe na água para lavá-lo, mas Shichamöna conseguiu escapar. Os anzóis de Amadu acabaram e ele resolveu buscar mais. Ele era um iadanaawi [homem branco], tomou sua forma humana e preparou-se para a viagem. Iudeeke e Shichamöna transformaram-se em grilos e entraram no jamachim cheio de beiju de Amadu, que não percebeu, porque grilo é pequeno e não pesa. Amadu pôs o jamachim nas costas e partiu em busca dos anzóis, na cidade. Quando chegaram lá, Iudeeke e Shichamöna tomaram a forma humana outra vez e seguiram Amadu, para ver onde ele iria comprar os anzóis. Havia muita gente na cidade e Amadu não conhecia os gêmeos em suas formas humanas, por isso eles puderam segui-lo e entrar na loja junto com ele. Eles viram tudo e ficaram sabendo o caminho para a cidade e onde poderiam comprar os anzóis. Quando Amadu voltou para casa, eles tomaram a forma de grilos de novo e retornaram com ele11.
A história acima, além de ilustrar a busca pela fonte de um novo bem – os anzóis – por parte dos heróis gêmeos, deixa ainda a lição de que, para manter o equilíbrio da ordem estabelecida por Wanaadi neste mundo, é preciso adquirir conhecimento através das trocas. Um dos gêmeos é punido, quase perdendo a vida, ao desobedecer a essa ordem, na tentativa de subtrair os anzóis de iadanaawi sem nada oferecer em troca. Aprendida a lição, 10 Na cosmologia ye’kuana, Iadanaawi, o homem branco, é identificado com ajiisha, a garça branca. 11 Para outra versão dessa wätunnä, cf. Civireux, 1980.
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ambos partem disfarçados em viagem, seguindo iadanaawi até a fonte dos anzóis. Descobrem o caminho da cidade e, assim, ficam estabelecidas as relações comerciais com os brancos, após o encontro. São essas trocas comerciais que darão o tom inicial das relações do colonizador com os Ye’kuana. Os brancos são “cosmologizados” pelos Ye’kuana, que os inserem na rede de relações comerciais com povos estrangeiros, na incessante busca por conhecimento, parte de sua preparação para o novo ciclo. Como entre os Xikrin, também para os Ye’kuana as mercadorias dos brancos “foram antes causa que efeito do contato” (GORDON, 2006). Os Ye’kuana assumem plenamente a posição de agentes da situação de contato com os brancos, pois têm a possibilidade de escolher quanto contato querem ter, graças às condições favoráveis de sua situação territorial. Ramos mostrou que: (...) ao menos em Auaris, a substituição de certos hábitos originais por outros, como o vestuário, a alfabetização crescente em português, a dependência irreversível de instrumentos de aço, a transformação de suas habitações, não tem sido acompanhada de modificações radicais no sistema de valores, nas práticas mágico-religiosas, na manutenção da língua, como elemento conservador de identidade grupal ou no funcionamento básico de sua organização social (...) Isso só é possível na medida em que os Maiongong [Ye’kuana] continuem a poder manter controle sobre a intensidade do contato com populações brancas (1980, p. 100-101).
O contato com os brancos, que começou no território ye’kuana do lado venezuelano, teve várias fases distintas. Uma das mais recentes e marcantes, que afeta ainda hoje a imagem que têm dos brancos, foi o boom da borracha. No fim do século XVIII e meados do século XIX, o contato com os ameríndios na região do Alto Orenoco tinha perdido importância e o interesse criollo na região só volta a crescer com o boom da borracha que, na Venezuela, começou por volta de 1860. Do período de exploração da borracha, os Ye’kuana guardam terríveis lembranças de escravização e morte, condensadas no nome de Tomás Funes, citado nos relatos ye’kuana coletados por etnógrafos nas mais diversas comunidades da Venezuela (BARANDIARÁN, 1981; COPPENS, 1981; FRECHIONE, 1981; ARVELO-JIMÉNEZ, 1974) e também em Auaris. Durante quatro décadas, de aproximadamente 1880 a 1920, o Alto Orenoco sofreu com a intensa exploração da borracha em terras indígenas, comandada por Tomás Funes, ex-militar que se tornou o “barão da borracha” e ou a controlar a região. A ascensão de Funes se dá quando ele assassina o governador do Território Federal Amazonas, Roberto Pulido, em 1913. Ao longo de quase oito anos, Funes foi governador e não há até hoje na história oficial (exceto menções de etnólogos e indigenistas ou historiadores estudiosos do tema) dados relativos ao genocídio indígena levado a cabo por Funes (BARANDIARÁN, 1981; COPPENS, 1981). De 1913 a 1921, Funes marcou o momento mais negro de toda a história ye’kuana. Não apenas escravizou 135
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e matou ye’kuana, mas também outros povos da imensa região do Orenoco ao Uaupés, como os Wakuénai da tríplice fronteira Brasil-Venezuela-Colômbia (HILL, 1984). Um dos relatos que obtive sobre a fuga dos Ye’kuana, aterrorizados por Funes, revela como parte de uma família, que formaria anos depois a comunidade ye’kuana do Rio Auaris, chegou à região. Antigamente, os Ye’kuana viviam nas cabeceiras dos rios, no coração de seu território tradicional. Quando Funes e seus aliados começaram suas incursões para aprisionar índios, eles se espalharam em fuga. Segundo relato de um homem ye’kuana na faixa dos 60 anos, naquela época sua avó paterna estava grávida de seu pai. A família fugiu para o lado brasileiro da fronteira, para um pequeno igarapé próximo ao Rio Olomai, onde o pai nasceu. Tempos depois, resolveram mudar-se para o Tucuximenha, logo abaixo da cachoeira do Tucuxim, próximo à confluência dos rios Auaris e Parima. Lá eles permaneceram por um longo período. Havia alguns Maaku naquela região, que chegaram a se juntar aos Ye’kuana para combater e matar aliados de Funes que conseguiram aproximar-se. Assim, puderam continuar a viver na região, em segredo. De lá saíram alguns Ye’kuana que fundaram outra comunidade bem mais ao sul, próximo à Ilha de Maracá. O restante permaneceu em Tucuximenha, mas, depois de conflitos com os Yanomami, mudaram-se para as proximidades da fronteira com a Venezuela, onde nasceria. Com a morte do líder da comunidade, anos depois, os demais partiram para Auaris para juntar-se à comunidade que daria origem a Fuduwaaduinha. Peri, líder de Auaris juntamente com o irmão Néri, também relembrou as aterrorizantes histórias que ouvia dos pais sobre Funes. Os brancos aliados de Funes espalharam-se pela região em busca dos Ye’kuana. Parte de sua família conseguiu escapar do aprisionamento, pois, depois de capturados, foram deixados sob a vigilância de apenas um branco, enquanto os demais partiam em incursões na mata procurando novas vítimas. Aproveitando-se da distração do vigia, conseguiram enganá-lo e fugir. Peri ouvia o pai contar que, por causa de Funes, os Ye’kuana deixaram de viver juntos e separaramse em fuga. A cada retorno das viagens comerciais a Boa Vista, os homens relatavam a conduta dos brancos, amistosos. As mulheres, que nunca tomavam parte nessas viagens, permaneciam incrédulas e desconfiadas de tal conduta, pois sabiam que, embora os brancos se mostrassem inicialmente amigos, depois, corrompidos por Odo’sha, voltavam-se contra os Ye’kuana. Os espanhóis no ado remoto, os traidores Fañudu, e Funes e seus comparsas mais tarde, marcam definitivamente a imagem do homem branco na cosmologia ye’kuana, com reflexos nas relações comerciais. No ado, os Ye’kuana já haviam abandonado o comércio em Angostura por causa das batalhas com os espanhóis, que traíram a sua amizade inicial. No caso de Funes, agregou136
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se um nível inédito de violência, o que acabou transando a cosmologia ye’kuana de wätunnä (BARANDIARÁN, 1981): os Fañudu (espanhóis) traíram os Ye’kuana porque atenderam ao chamado de Odo’sha, tornando-se uma versão corrompida dos Iadanaawi. Mas Funes não era um espanhol, um Fañudu, e sim um criollo e, como tal, deveria ser contra Fañudu. Agindo como inimigo, Funes confundiu toda a mitologia de wätunnä. Segundo Medina (2003), ao romper o mandato de Wanaadi, buscando conquistar o território ye’kuana, os brancos alteraram toda a ordem cósmica, gerando grandes conflitos. Apenas com a crise da borracha e a descoberta de vastas reservas de petróleo em outras regiões da Venezuela, o Amazonas deixa de ser foco de interesses econômicos nacionais. Aos poucos, as relações comerciais vão se restabelecendo com cidades próximas às aldeias ye’kuana e novos atores, como os missionários evangélicos da MNT (Missão Novas Tribos), pesquisadores e antropólogos, am a fazer parte do cenário de interação dos Ye’kuana na Venezuela. No Brasil, as viagens comerciais voltam-se para Boa Vista e para as fazendas de gado situadas nas cercanias daquela vila – transformada em cidade em 1890. Muitos homens de Auaris relembram as viagens de canoa que fizeram no ado, quando eram jovens ou ainda crianças, em companhia de pais e outros parentes. A viagem até Boa Vista durava dois meses e era longa e difícil, pois o rio Auaris é entrecortado por inúmeras corredeiras e quedas d’água; em vários trechos, é preciso arrastar as canoas por estreitas trilhas abertas na mata íngreme. Nessas viagens comerciais, os principais produtos adquiridos eram sabão, sal, munição, espingardas, terçados, miçangas. Quando os viajantes retornavam abastecidos de mercadorias, eram recepcionados com grande festa. Depois, o tuxaua da comunidade cuidaria da partilha das mercadorias, pois os viajantes traziam diversas encomendas para os que ficaram, pagas com produtos na ocasião da partida da expedição. No início, os Ye’kuana trabalhavam em troca de mercadorias, pois dizem que ainda não sabiam lidar com dinheiro. A duração das expedições dependia das condições de cada viagem e do que se queria adquirir, podendo o trabalho nas fazendas dos arredores de Boa Vista durar um ano ou mais. O relato de uma dessas viagens ilustra o que os Ye’kuana esperavam delas: Em 1961 fui para Boa Vista com mais cinco ye’kuana. Chegamos à fazenda Canadá e ficamos lá, trabalhando na roça. Lá nós também fizemos uma canoa, que trocamos por espingardas. Apareciam outros fazendeiros, que queriam nos encomendar canoas e pagavam com mercadorias que desejávamos. Nós todos que estávamos lá trabalhávamos juntos fazendo canoas. Depois, apareceu lá um fazendeiro e nos chamou para trabalhar na plantação de arroz e nós fomos, ficamos lá por quase um ano. Depois, fizemos canoa para a volta, compramos farinha para a viagem e começamos a voltar. Nessa época a gente nem foi 137
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na cidade mesmo, ficamos só nas fazendas. Boa Vista era cidade pequena e os fazendeiros levavam até nós as mercadorias que a gente pedia como pagamento.
Não apenas as trocas, mas o trabalho remunerado para os brancos era bastante comum. Isso não alterava em nada o lugar das expedições na cosmologia ye’kuana, pois tais relações de trabalho eram uma oportunidade de ar períodos junto aos brancos, acumulando conhecimento, inclusive da língua portuguesa. Em uma das viagens a Boa Vista, os Ye’kuana encontraram militares no caminho e acabaram trabalhando na abertura de diversas pistas de pouso. Durante um período de aproximadamente dez anos, entretanto, os Ye’kuana deixaram de empreender as viagens a Boa Vista por medo dos Yanomami que viviam no Uraricoera, agem obrigatória para a cidade. Naquele período, havia duas comunidades ye’kuana além da do médio Auaris: a comunidade de Tucuximenha, formada por Ye’kuana fugidos de Funes, e outra, já no Uraricoera, formada por uma facção dissidente de Tucuximenha. Apesar da fissão, ambas as comunidades eram amigas e, dada a proximidade, costumavam visitar-se mutuamente. Um dos homens, cujos pais viviam em Tucuximenha, narrou-me com detalhes a história que tantas vezes ouviu o pai contar sobre a guerra com os Yanomami. Depois das escaramuças com os Yanomami, ninguém mais tinha coragem de descer o rio Auaris. Assim como no ado, em que a briga com os espanhóis os levou a abandonar a rota comercial de Angostura e adotar o caminho alternativo até a Guiana Inglesa, os Ye’kuana abandonaram a rota do Auaris e voltaram-se para o comércio interno e para as viagens à Guiana, apesar da imensa distância a ser percorrida. Somente cerca de dez anos depois a rota do Auaris foi retomada, quando um Ye’kuana da Venezuela resolveu viajar para Boa Vista. Naquela época, a comunidade do Auaris estava localizada na cabeceira do rio, onde hoje é Pedra Branca, e de lá se juntaram a ele outros Ye’kuana que conheciam o caminho. Apesar da morte do pai de Peri na viagem, a rota foi retomada porque o diagnóstico foi feitiçaria macuxi e não problemas com os Yanomami. Poucos anos depois, Peri faria a viagem com outros Ye’kuana até Boa Vista, no início dos anos 1960, quando eles encontraram os militares e trabalharam na abertura de pistas, retornando depois a Auaris. Na viagem seguinte, Peri resolveu ficar trabalhando em uma fazenda da região de Boa Vista, pois “já era homem e precisava aprender português”. Peri conta que os fazendeiros gostavam de contratar os Ye’kuana, pois eles “trabalhavam bem”. Por causa da grande mobilidade, os Ye’kuana já tinham formado uma rede de relações com diversos fazendeiros da região e não lhes faltava oportunidade de trabalho. Nos anos 1980, a presença do garimpo converteu-se em uma fonte de renda para os Ye’kuana. Em Auaris não havia garimpo, mas havia em Waikás, comunidade ye’kuana no Uraricoera. Para eles, o ouro não era novidade. Os 138
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mais velhos contam que na Venezuela já havia o hábito de retirar ouro e levar para vender na cidade. Entretanto, seguindo os princípios da ética de contenção, extraía-se apenas uma quantidade mínima com que pudessem comprar o que necessitavam no momento. Apenas os homens mais velhos da comunidade sabiam onde o ouro estava, pois os jovens, mais propícios à sedução dos bens, não tinham maturidade suficiente para se conter. Alguns dos homens de Auaris eram chamados pelos parentes para ir a Waikás trabalhar junto aos garimpeiros. Um deles, microscopista da Funasa que vivia em Boa Vista com as duas mulheres e filha, concedeu-me uma entrevista em sua última visita a Auaris, que durou apenas duas semanas. Três meses depois, ele morreria em São Paulo, com suspeita de câncer de pulmão, após um longo período de tratamento de tuberculose em Boa Vista. Este homem falava português fluentemente, por isso fora chamado pelo irmão que morava em Waikás quando os garimpeiros invadiram a área. Naquela época, os garimpeiros pagavam à comunidade pedágio para garimparem. Eu e meu irmão também juntamos dinheiro e compramos uma máquina para garimpar. Ganhamos dinheiro com o garimpo, eu comprei uma casa em Boa Vista e a comunidade também comprou uma casa para os estudantes ye’kuana que não tinham onde morar. A convivência com os garimpeiros em geral era tranquila, mas às vezes eles faziam ameaças. Até que a FUNAI resolveu tirar os garimpeiros da área, nós tivemos que fazer com eles relatório de quantos garimpeiros estavam lá e começou a retirada.
A compra da casa de apoio, como é chamada a casa no centro de Boa Vista, é sempre lembrada quando se fala do garimpo. Lá aram a viver os jovens que já estavam estudando na cidade, mas moravam em quartos alugados ou em casas de conhecidos. Foi uma importante aquisição para os Ye’kuana, porque permitiu que mais jovens pudessem ir estudar, aprender português, trabalhar na cidade, podendo também acolher os homens que vinham das aldeias em viagens de negócios. Além da compra da casa de apoio, foram adquiridos motores de popa e outros bens de consumo. Um dos ye’kuana que também trabalhou com os garimpeiros em Waikás conta que cobravam o pedágio por balsa. O ouro do pedágio era guardado pelos velhos, que decidiam o destino do dinheiro. Depois de muita discussão, decidiram pela compra da casa. Um dos jovens que morava em Boa Vista, hoje professor em Auaris, trabalhava junto aos garimpeiros na venda de ouro e ficou responsável por vender o ouro do pedágio. A casa foi posta em seu nome, como permanece até hoje. Os homens contam que, antes da chegada dos garimpeiros, os Ye’kuana haviam encontrado ouro na cachoeira do Waikás. Eles acreditam que a notícia se espalhou, provavelmente, através dos Macuxi, com quem faziam comércio, e os garimpeiros chegaram aos bandos. Logo cedo, pela manhã, começavam a descer os aviões na pista de pouso de Waikás, e isso se repetia inúmeras vezes ao longo do dia. Formaram-se 139
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acampamentos ao longo da pista onde vendiam de tudo: carne, sabão, até cachaça. Muitos garimpeiros morreram bêbados, de tiro, brigando por ouro. Um branco aconselhou o tuxaua a cobrar pelos pousos e pelas balsas. Alguns garimpeiros não queriam pagar, mas outros pagavam e eles recebiam o ouro. Nesse tempo, eu vivi três anos em uma região ali pertinho, no Aracaçá. O Aracaçá fica debaixo da cachoeira do Tucuxim. Outro ye’kuana com sua mulher e filhos também viviam lá com a gente. Tinha um garimpo do outro lado do rio, onde ficavam os garimpeiros. Nós tínhamos motor de popa e levávamos o “rancho” [alimentação] e a gasolina que chegava pra eles. O movimento era grande. Nós caçávamos e pescávamos para os garimpeiros, havia muita caça e muito peixe, eles nos pagavam com gasolina. Vários Ye’kuana faziam isso em Waikás. Quando a Polícia Federal chegou para tirar os garimpeiros, nós fomos lá ajudar a levá-los para a pista de pouso, onde eram embarcados. A polícia apreendia as armas deles, as espingardas.
O professor ye’kuana que trabalhou junto aos garimpeiros, também relembra a agitação desse período: Era muita gente, mais de 400 balsas, era como uma cidade. Aconteciam muitos acidentes, os motores se chocavam, os garimpeiros bebiam muito e brigavam, ocorriam mortes entre eles, os Ye’kuana viam os corpos boiando no rio. Eles não mexiam com as mulheres ye’kuana, mas havia muita malária e tantas brigas. Quando a casa foi comprada em Boa Vista, eu fiquei como o responsável, arrumei um emprego na Tapajós Metais, vendendo e comprando ouro. Era muito ouro, vinte, trinta quilos. O tuxaua de Waikás também mandava ouro dos pedágios para pagar as despesas da casa, água, luz, comida.
Com a retirada dos garimpeiros, os Ye’kuana retomaram suas atividades normais e aqueles que haviam partido de Auaris retornaram a Fuduwaaduinha. Embora não tenham tido problemas de brigas, disputas e confrontos com os garimpeiros, como a tragédia que aconteceu no Olomai e resultou no assassinato de Lourenço Ye’kuana e seu filho (RAMOS, 1990, 1996), os garimpeiros causavam transtornos, como a experiência de ver corpos boiando no rio, algo terrível na cosmologia ye’kuana, segundo a qual corpos são fonte de poluição e morte e a simples visão de um cadáver pode causar sérios riscos, principalmente a crianças e mulheres grávidas. É importante ressaltar que o discurso dos Ye’kuana sobre o período do auge do garimpo não contempla o horror que se instalou na área Yanomami com a corrida do ouro. Embora os garimpeiros não tenham permanecido fisicamente em Auaris, a mera agem deles pela região foi suficiente para causar tragédia e mortes, através das epidemias de malária, que fizeram muitas vítimas (RAMOS, 1991, 1995). Parece que esse período nebuloso, por motivos que me escapam, não ficou guardado na memória dos Ye’kuana, ou ao menos não apareceu explicitamente nos discursos sobre o tema. O marco da corrida do ouro foi o assassinato por garimpeiros, em 1987, de quatro líderes indígenas Yanomami que bloqueavam o o às jazidas da região, ocorrido no posto indígena da Funai no alto rio Mucajaí, região 140
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conhecida como Paapiú, dando início à invasão maciça de garimpeiros. Em apenas dois anos, no território Yanomami de Roraima, a presença dos garimpeiros cresceu assustadoramente. O número estimado era de cerca de quarenta mil garimpeiros (cinco vezes a população Yanomami em Roraima), cento e cinquenta garimpos e oitenta e duas pistas de pouso clandestinas. Cerca de 20% da população yanomami morreu em decorrência das muitas epidemias que grassaram pela área (além da malária, gripe, sarampo, coqueluche, hepatite e tuberculose), a rede hidrográfica foi poluída, a fuga da caça e o desmatamento indiscriminado comprometeram a sobrevivência física e cultural das aldeias (ALBERT, 2000; RAMOS, 1998). Com a conivência do governo de Roraima (cujo governador na época, Romero Jucá, era a favor da legalização do garimpo12), dos militares e da Funai, os garimpos se alastraram pela área. Somente com uma forte pressão internacional, somada à pressão interna de ativistas e demais atores políticos que abraçaram a causa, a Polícia Federal, em ação conjunta com a Funai, iniciou a operação de retirada dos garimpeiros da área e destruição das pistas clandestinas (RAMOS, 1998). No período do garimpo, as viagens comerciais dos Ye’kuana já estavam em decadência. Com a presença de outros atores na área, como os militares, a Funasa, Funai, além missionários da MEVA, notícias e bens chegavam até Auaris sem que os Ye’kuana precisassem se deslocar de canoa até Boa Vista. Foi também nessa década que um grupo de jovens foi para Boa Vista para estudar, permanecendo inicialmente na casa de conhecidos dos pais, amizades cultivadas justamente através das viagens comerciais e do trabalho nas fazendas. Esses jovens aram a ser o maior elo de ligação entre o mundo da cidade e Auaris. Com o crescimento da escola de Auaris, fundada em 1983 por uma missionária da MEVA, as viagens fluviais foram, finalmente, deixadas de lado. Os jovens aram a estudar por meio período e não tinham mais o tempo necessário para dedicar-se às longas viagens. Inaugura-se uma nova maneira de adquirir conhecimento, já que os bens chegam com os brancos, que se tornaram presença regular na área. O comércio deixa de ser o único meio de aquisição de bens industrializados, ando a coexistir com novas fontes de riqueza, com as profissões introduzidas na realidade ye’kuana através das três principais instituições presentes na área: exército, escola e saúde. O comércio com os brancos ganha nova dimensão não só com a introdução do trabalho assalariado, quando deixa de ser fonte exclusiva de o a bens, mas com a presença regular dos brancos. Na área, os produtos confeccionados pelos Ye’kuana já são bem conhecidos e existe um sistema de encomendas, feitas, principalmente, pelos funcionários da FUNASA e militares. Os funcionários da equipe de saúde não só encomendam cestos para si, como trazem encomendas de pessoas de Boa Vista ou funcionários da Fu12 Romero Jucá, atual senador pelo Estado de Roraima, continua brigando pela legalização de garimpo em terras indígenas. Há um projeto de lei de sua autoria sobre o tema, hoje paralisado no Congresso.
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nasa que trabalham em outras regiões da área Yanomami. Um dos homens ye’kuana, na casa dos quarenta anos, dedica-se exclusivamente ao trabalho com os cestos, ofício que aprendeu com o pai, já falecido. Sua mulher também confecciona cestos, que têm boa vendagem, mas o trabalho na roça e o cuidado com os filhos deixam pouco tempo livre para que ela se dedique mais à atividade. Os cestos dele são vendidos exclusivamente por dinheiro e têm preço fixo. A procura é tão grande que muitas vezes o pagamento é adiantado, para evitar que depois de pronta a encomenda seja vendida a um eventual visitante, porque é comum, principalmente nos fins de semana, que militares do 5º Pelotão de Fronteira, localizado na cabeceira da pista de pouso, na outra margem do rio, façam visitas à comunidade em busca de artesanato para presentear parentes e amigos em Boa Vista. Ao contrário dos Sanumá –que costumam visitar o quartel, o posto da Funasa e a casa dos missionários levando produtos de artesanato ou cachos de banana para vender –, os Ye’kuana preferem trabalhar com o sistema de encomendas. Apesar de seu interesse comercial, os Ye’kuana condenam o assédio aos brancos, marcando assim, mais uma vez, a diferença entre eles e seus vizinhos Sanumá. Com o contato entre as duas etnias, os Sanumá acabaram aprendendo a tecer wajaa e cestos artesanais, mas os Ye’kuana não perdem a oportunidade de apontar defeitos na qualidade desses trabalhos (sobre isso afirmou Koch-Grünberg: “Nenhum historiador, nenhum etnólogo desconhece o ardor ao trabalho bem realizado dos índios Makiritare”). Isso não se dá apenas com o artesanato sanumá, mas também entre os próprios artesãos ye’kuana. O perfeccionismo certamente é um ideal do trabalho ye’kuana e os próprios artesãos reconhecem aqueles que têm a capacidade de produzir um trabalho de qualidade superior. Muitas vezes ouvi de rapazes a frase “eu não sei fazer wajaa”, mesmo diante de um trabalho pronto, executado por eles mesmos. Só se sabe fazer algo quando se considera que o produto final é aprovado pela qualidade, e os Ye’kuana são bastante exigentes nesse sentido. Isso vale também para outros tipos de habilidade, como o conhecimento de wätunnä ou mesmo a fluência em português13. Várias vezes, também vi mulheres desmanchando belos colares de miçanga porque não estavam adequados ao padrão de qualidade esperado. Esse perfeccionismo está de acordo com sua ética ascética do trabalho permanente, incessante. Os Ye’kuana acreditam que, graças a esse perfeccionismo, os brancos procuram seus produtos. O mesmo acontece com a farinha e a goma de tapioca. Assim como os cestos, os funcionários da saúde costumam encomendar grandes quantidades de farinha (em geral, as enco13 Fui surpreendida várias vezes com a afirmação de diversos Ye’kuana que me diziam “não, eu não sei falar português, não”, mesmo quando falavam com fluência, sem cometer muitos dos erros de conjugação comumente cometidos por brasileiros. Então, completavam a frase, dizendo “quem sabe português é Henrique, Reinaldo...”, professores ye’kuana que completaram o magistério em Boa Vista e hoje cursam a Licenciatura Intercultural na Universidade Federal de Roraima, parte de um núcleo criado para capacitar professores indígenas, de nível superior, que poderão ministrar aulas de 2.º grau nas escolas indígenas.
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mendas são de dez quilos cada) para levar para Boa Vista. Os Ye’kuana fazem um tipo de farinha leve, crocante e saborosa, vendida como iguaria. Embora a venda dos produtos aos brancos na área seja muitas vezes efetuada em dinheiro, alguns Ye’kuana, entretanto, preferem trocar por produtos industrializados, principalmente no caso das mulheres, que costumam trocar os cestos por miçangas. Nesses casos, quando se trata de funcionários da Funasa, elas vendem o cesto, o funcionário anota os produtos pedidos em pagamento, que trará na sua próxima entrada na área. O comércio entre os Ye’kuana
As relações comerciais entre os próprios Ye’kuana ganharam novos contornos com a dispersão pós-contato. A tradição oral ye’kuana nos diz que, no ado, todos os ye’kuana viviam no coração do território tradicional, nas cabeceiras dos rios que formam a bacia do Orenoco. Com a chegada dos colonizadores, a dispersão se iniciou e ganhou fôlego com as investidas de Funes na busca de mão de obra escrava para o trabalho nos seringais. Apesar da dispersão, os elos que unem as comunidades ye’kuana não foram quebrados. Com uma mesma língua e um conjunto de narrativas históricocosmológicas, os Ye’kuana continuaram partilhando também o sentimento de pertença a um mesmo grupo. Isso não impediu, todavia, que algumas diferenciações surgissem entre as comunidades agora espalhadas por um território consideravelmente amplo, no Brasil e na Venezuela. Em linhas gerais, as comunidades que permaneceram nas cabeceiras vêem a si mesmas como seguidoras do verdadeiro modo de vida tradicional e as demais, especialmente aquelas mais próximas das cidades, como aculturadas. Por sua vez, as comunidades que desceram o rio consideram-se abertas às mudanças, mas sem perder sua marca étnica, seus valores culturais, ao contrário do que pensam seus parentes das cabeceiras, que resistem às mudanças trazidas por uma nova realidade com a qual é preciso saber lidar. As comunidades das cabeceiras tentam preservar seu modo de vida tradicional isolando-se do contato com os brancos. Diante da necessidade de adquirir bens industrializados, elas mantêm relações de trocas comerciais com os próprios parentes das outras comunidades. Além da rede de trocas intertribal e da rede de trocas com os brancos, outra rede envolve as comunidades ye’kuana, fazendo circular os bens e a riqueza adquiridos de outros povos, principalmente dos brancos. No ado, quando havia ainda uma intensa mobilidade14, os ye’kuana visitavam outras comunidades levando notícias, bens e conhecimento ritual. Nessas visitas, que invariavelmente eram encabeçadas pelo tuxaua, a comunidade anfitriã preparava uma grande festa para receber os parentes que 14 A mobilidade ye’kuana sofreu grande impacto com a sedentarização da população. Não só as expedições comerciais entraram em decadência, como vimos, mas a mobilidade de indivíduos que circulavam pelo território ye’kuana, visitando parentes que viviam em outras comunidades, caiu vertiginosamente com a implantação das escolas nas aldeias.
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vinham de longe. Estes traziam carne de caça de presente e eram recebidos com muito caxiri. Durante dois ou três dias, os tuxauas das duas comunidades se reuniam para trocar notícias, informações e também conhecimento tradicional sobre a’chudi, as canções sagradas. Também nessas ocasiões aconteciam os famosos diálogos cerimoniais, de que ninguém mais tem conhecimento e apenas os mais velhos têm uma vaga lembrança do que ouviram quando crianças. Com o contato, as visitas a outras comunidades ye’kuana continuam tendo como base a troca, mas com outro conteúdo. Com a descoberta dos produtos industrializados, os Ye’kuana trataram de encaixá-los na rede de trocas. Inicialmente a sistemática das trocas intratribais não se modificou, pois aqueles que viajavam para fazer comércio avam adiante, ao retornar das viagens, parte dos produtos adquiridos diretamente dos brancos ou indiretamente de um dos parceiros de comércio (por exemplo, dos Macuxi). A demanda por produtos industrializados cresceu cada vez mais não só entre os Ye’kuana, mas na maioria dos povos indígenas, incluindo aí seus parceiros de comércio. Simultaneamente a este aumento da demanda, houve uma aproximação maior entre vilas e povoados brancos e aldeias ye’kuana venezuelanas, seja pela própria fundação de tais vilas e povoados na região do território tradicional, seja pela fundação de missões, como foi o caso das aldeias ye’kuana de Jiwitiña e La Esmeralda (BARANDIARÁN, 1981; COPPENS, 1981). Foi esse conjunto de fatores que trouxe algumas pequenas mudanças no comércio interaldeia. As comunidades tradicionais das cabeceiras desejam ter os bens industrializados, porém, sem ar pela incômoda convivência com os brancos. Por causa disso, adquirem esses bens, principalmente, através da troca com as aldeias ye’kuana que têm relações estreitas com os brancos. A questão é: o que essas comunidades tradicionais têm para oferecer em pagamento pelos bens industrializados? Se as aldeias das cabeceiras têm o a matériasprimas escassas, são estas a moeda de troca. Entretanto, muitas vezes o meio ambiente em que vivem não é diferente daquele onde estão as aldeias dos que desceram o rio, com as quais vão trocar. Nós trocamos com outros Ye’kuana ralo, remo, rede, corda de rede. Até ralo tem que trocar, porque ralo é como o dinheiro ye’kuana, não pode dizer que não quer. Se não for Ye’kuana, se for outro índio, o dono da mercadoria só troca se quiser. Não se negocia com outro Ye’kuana, não tem troco. Quando um Ye’kuana propõe negócio a outro, ele aceita. Quando vem muita gente da Venezuela aqui eles querem levar terçado, rede, machado, pólvora, pagam com artesanato, cesto, remo. Tem comunidade lá que fica muito longe da cidade. Às vezes alguns pagam com lanterna daquelas que amarra na cabeça, ou mosquiteiro da Colômbia, que é muito bom. Motor de popa e solar também é mais barato lá na Venezuela do que em Boa Vista, às vezes uma pessoa daqui pode viajar lá pra trocar. 144
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A profecia de wätunnä leva os Ye’kuana a desenvolver seu espírito empresarial através das trocas comerciais, buscando adquirir o conhecimento dos brancos para que assumam seu lugar no próximo ciclo. Essa mesma ética descrita em wätunnä determina que é preciso compartilhar esse conhecimento com todos os Ye’kuana, ao contrário do que fazem os brancos, que são avaros com os seus próprios semelhantes. Cada comunidade Ye’kuana assumiu uma posição na rede de trocas entre as aldeias. Algumas aldeias mais próximas das cidades na Venezuela, tendo fácil o aos bens industrializados, atuam como intermediárias nas trocas desses bens com as comunidades mais isoladas. Em outros casos, pode haver uma especialização em determinado produto a que se tem o – painéis solares ou mosquiteiros colombianos. A rede de trocas e o papel de cada comunidade nela imersa são construídos de forma a fazer circular por todas as aldeias os diversos tipos de bens. Aqueles oferecidos como pagamento pelas comunidades mais isoladas podem variar, como vimos, desde matéria-prima escassa (há, por exemplo, uma planta mágica que só cresce no fundo de um trecho do Rio Cunucunuma) a bens adquiridos de outras etnias indígenas (caso de comunidades do Rio Ventuari, que trocam com outras aldeias ye’kuana curare e resina adquiridos dos Piaroa) ou simplesmente bens tradicionais, como os ralos. Coppens (1981) analisa as relações comerciais da comunidade ye’kuana Jiwitiña (Santa Maria de Erebato), na margem esquerda do Rio Erebato, afluente do Rio Caura, fundada em 1959, junto aos missionários da Congregação Católica Fraternidade de Foucauld. O autor traz dados que ilustram bem essa questão: Hemos podido corroborar repetidamente en esta área que el intercambio de bienes no se efectúa siempre en términos de disponibilidad complementaria de materia prima. Si bien es comercialmente previsible que los Ye’kuana de Lapasodiña acepten rallos de yuca a guisa de pago, ya que la madera apropiada para la fabricación de este artículo no se encuentra en las inmediaciones del pueblo, es menos comprensible – por lo menos desde un punto de vista estrictamente mercantil – que aun los de Jiwitiña se hagan pagar con rallos en compensación para productos que ellos venden a Asaduña, otro pueblo Ye’kuana del Paragua. Es de advertir que los hombres de Jiwitiña no tratan de revender estos rallos a sus clientes Pemón, sino que los llevan a Jiwitiña donde no hay ninguna escasez de madera de cedro. Cuando ciertas transacciones no se orientan hacia el intercambio de bienes escasos, puede conjeturarse que el criterio social es determinante para que los respectivos partidos entablen relaciones comerciales (...) Sugerimos que aquellas transacciones en que uno de los partidos se muestra dispuesto a recibir artículos duplicados y, en cierto sentido, económicamente superfluos, constituyen una de las posibles manifestaciones de la política intratribal por la cual el intercambio de bienes puede incidir directamente en el intercambio de esposos. Dicho de otra manera: las relaciones de parentesco pueden funcionar como relaciones de producción económica (COPPENS, 1981, p. 66). 145
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Embora a questão do parentesco possa ter influência notável nas relações comerciais entre aldeias, não é só ele que leva ao tipo de comércio descrito por Coppens. Na realidade, as próprias alianças de parentesco são uma atualização do código moral que, assim como dita casamentos, também rege as relações comerciais. Em última instância, são as histórias wätunnä o laço mais forte que une todos os Ye’kuana, pois aí estão contemplados todos os mecanismos de coesão social existentes (relações de parentesco/aliança, unidade linguística, valores morais, relações comerciais), que funcionam como estratégias, como ferramentas que transformam em prática cotidiana os princípios da ética so’to. É wätunnä que instiga e regula ao mesmo tempo o comércio entre as aldeias ye’kuana, fazendo circular bens e saberes. Circulação de bens dentro da aldeia
A família extensa forma a unidade doméstica e produtiva da aldeia. Até fins dos anos 1960, vivia-se em uma grande casa comunal em Auaris, a attä, uma construção cônico-circular dividida internamente em “apartamentos” onde viviam as famílias extensas, com paredes feitas de entrecasca. Com o crescimento da população, os Ye’kuana aram a construir várias casas separadas umas das outras. Hoje existem 26 habitações desse tipo em Auaris, que abrigam 272 pessoas15. Cada casa é, em geral, composta por um casal, seus filhos e filhas solteiros, as filhas casadas e suas respectivas famílias. Todos os que vivem em uma mesma unidade habitacional fazem suas refeições juntos e se servem das mesmas roças. Via de regra, cada mulher casada tem sua própria roça, mesmo vivendo junto aos pais e outras irmãs casadas. Na refeição da família extensa, cada uma delas contribui com parte do que será consumido por todos. Os homens co-residentes, filhos solteiros e genros do cabeça da família, saem para caçar juntos ou se revezam. Quanto à produção de bens, podemos diferenciar duas modalidades de cooperação: o trabalho comunitário e o trabalho dos co-residentes. Apesar das mudanças recentes do padrão de assentamento na aldeia de Auaris, o trabalho comunal continua sendo praticado em larga escala, mobilizando todos os moradores da aldeia e servindo como fator crucial de manutenção da coesão social. Os líderes locais têm papel de destaque na organização dos trabalhos comunais, pois decidem quando o trabalho começa e quando termina e de que maneira será realizado. O trabalho comunitário é recrutado tanto para a execução de atividades mais simples, como a limpeza do gramado que circunda a aldeia, quanto para atividades mais trabalhosas, como a derrubada da mata para o plantio de novas roças. O primeiro o para a execução de um trabalho comunitário é dado dentro da casa comunal, onde os homens se encontram todas as noites para fumar e conversar. Por volta das sete e meia da noite, depois do jantar, é possível ver a movimentação de lanternas em direção à casa comunal. Os pri15 Censo realizado por mim, atualizado em dezembro de 2006.
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meiros a chegar sentam-se ao redor da grande mesa que fica num dos cantos e começam a enrolar um cigarro. Logo outros entram, balbuciam a saudação inicial e tomam assento. A princípio, as conversas são tímidas; alguns homens dormitam nos bancos espalhados ao redor da mesa, os mais jovens organizam partidas de baralho. Pouco depois das oito, a maioria dos homens já chegou, a conversa prossegue quase sempre no mesmo ritmo sonolento, entrecortada pelas pilhérias dos mais jovens, que não perdem a oportunidade de troçar uns com os outros. Comentam-se os acontecimentos do dia e as notícias de Boa Vista e das outras comunidades ye’kuana ouvidas pelo rádio à tardinha. Então, quase de maneira displicente, um dos homens comenta que a canoa que está fazendo há semanas, na mata, está pronta para ser arrastada para a beira do rio, onde será finalizado o processo de fabricação. Imediatamente o assunto a a ser discutido e, ao final da noite, provavelmente já há um acordo sobre quem e quando auxiliará o dono da canoa. Outro tipo de situação envolve os trabalhos sazonais, como a limpeza da trilha dos postes que trazem energia da microusina construída pelo Exército, ou a derrubada da mata para plantio de novas roças. Nesses casos, o assunto é discutido por semanas. No caso das roças novas, primeiro é feita uma lista de quais chefes de família desejam abrir novas roças (nesse momento, a roça é assunto masculino). Depois, decide-se que pedaço de mata será derrubado para cada homem – dentro do consenso de que as novas roças são pedaços da mata adjacentes às roças mais antigas daquela mesma família. É estabelecida uma data para o início da derrubada e, a partir de então, o responsável pela direção dos trabalhos toma a iniciativa, comunicando a todos os envolvidos o que foi decidido e supervisionando os serviços. Há em Auaris um líder designado para os trabalhos comunais. No caso da limpeza da trilha de postes de energia, por exemplo, é ele quem negocia com o comandante do pelotão os detalhes do trabalho. Todo o trajeto da trilha é dividido entre os beneficiários da energia gerada pela microusina: os Sanumá, os Ye’kuana, os missionários, Funai, Funasa e Exército. A divisão é feita de acordo com o número de beneficiários e os Ye’kuana, sendo mais numerosos, ficam com o maior e mais perigoso trecho, em que os postes estão situados em barrancos de terra onde o perigo de queda é constante, o que dá margem a enormes discussões e tensas negociações com os outros beneficiários. As mulheres, por sua vez, também organizam trabalhos comunais, mas de outra maneira. Uma determinada mulher pode convidar outras para auxiliá-la na limpeza de sua roça. Em geral, ela começa convidando suas irmãs e cunhadas que, por sua vez, estendem o convite a outras. Acompanhei a convocação para o trabalho comunitário nas seguintes tarefas: arrastar canoa, abrir e plantar novas roças, construir uma casa, podar a grama que circunda a aldeia, limpar a trilha dos postes, pescar com timbó, capinar as roças. Nos trabalhos masculinos, as mulheres participam como coadjuvantes, levando comida aos trabalhadores. Os reparos no prédio da esco147
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la também foram feitos em mutirão: os professores compraram cimento com parte de seus salários, um grupo de homens fez os bancos novos, outro grupo, as mesas. É a certeza da contrapartida que mobiliza os Ye’kuana para o trabalho comunitário. Em outubro de 2005, na época da derrubada anual das novas roças, logo cedo os rapazes reuniam-se com grande algazarra, chamando uns aos outros por alegres assovios. Pintavam os rostos antes de partir para a mata, enfeitavam-se com miçangas como proteção contra acidentes e, alegres, agiam como se fossem para uma festa. Ao longo de todo o dia na mata, as mulheres serviam caxiri e xibé, o que, segundo os homens, faz com que trabalhem com mais disposição. O caxiri é a compensação imediata do esforço empreendido; o maior conforto é saber-se beneficiado pela ajuda dos outros, quando chegar a sua vez. O resultado do trabalho comunitário beneficiará imediatamente apenas o dono, como no caso de uma canoa que será vendida, e aqueles que trabalharam não receberão parte do pagamento, porque a ênfase está na troca de favores a médio e longo prazo, não em ganhos imediatos. No ado, quando se decidia construir uma nova casa comunitária, era comum convidar pessoas que residiam em outras comunidades ye’kuana mais próximas, na Venezuela16, principalmente quando existiam laços de parentesco com elas. Da mesma maneira, quando há visitantes na comunidade e algum trabalho comunal for organizado, estes também tomam parte, retribuindo a gentileza de seus anfitriões. Certa feita, ouvi de um dos meus informantes, um velho líder de Auaris: “Não se deve cobrar ajuda entre so’to, é proibido, do mesmo jeito que é proibido cobrar comida e hospedagem dos visitantes, como fazem os brancos na cidade, mesmo que não sejam parentes mesmo [fömma neene, parentes de verdade, consanguíneos], porque na verdade todos os so’to são parentes [fömma, parentes, grupo formado por todos os Ye’kuana] são gente de Wanaadi”. A falta de hospitalidade dos brancos é vista por esse homem como algo sem sentido. Na cidade, até mesmo os outros brancos precisam pagar por comida e um lugar para dormir. No âmbito da família extensa, as tarefas cotidianas são divididas entre os sexos e a produção e consumo de alimentos é conjunta. No ado, quando viviam em uma casa comunal, toda a aldeia formava uma só unidade de produção e consumo e as refeições eram comunais. Mas, com a adoção do novo padrão de residência e o crescimento demográfico, cada casa constitui-se em uma destas unidades e o laço que une as unidades hoje é o trabalho comunitário. Com relação à aquisição e distribuição dos bens industrializados, a lógica é a mesma: os membros da família extensa que têm salário, aposentadoria17 ou ganham dinheiro com o comércio, adquirem tanto bens de uso co16 Uma das comunidades venezuelanas fica a apenas um dia de caminhada de Auaris. 17 Alguns Ye’kuana em Auaris têm aposentadoria rural.
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mum (combustível para os motores de popa, ferramentas usadas nas roças, utensílios domésticos, munição, anzóis, etc.) quanto bens pessoais (roupas e miçangas, por exemplo) para os demais.
A linguagem das relações comerciais Até aqui, não tive a preocupação em distinguir relações de “comércio” de relações de “troca”. Entretanto, os Ye’kuana usam verbos distintos para cada uma dessas operações, produzindo um vocabulário próprio para esse campo econômico. Primeiro, temos o verbo ejeemadö, usado em operações nas quais mercadorias fabricadas com fins comerciais servem de pagamento, por exemplo, quando viajavam em expedições comerciais levando ralos e wajaa (balaios) para trocar, ou quando se aceitava a encomenda de uma canoa. Atualmente, ejeemadö é o verbo que se usa nas transações que envolvem dinheiro; podemos traduzí-lo como “comprar” e ele se aplica, portanto, às transações que envolvem barganha e desejo de lucro – ou seja, ao comércio. Diz-se de algo feito para vender que é täjemajonö (lit. “para vender”). As operações que ocorrem entre os próprios Ye’kuana, que não põem o lucro em primeiro plano, são kiamjiakadö (ou innwakamadö, menos usual), em que tanto aquele que propôs a troca quanto o que aceitou, oferecendo o produto desejado, usam o mesmo verbo para descrever a relação – que chamarei aqui de troca. Sahlins (1974) oferece uma tipologia das relações de troca em termos de reciprocidade que ajuda a entender a situação ye’kuana. A reciprocidade generalizada, em que as relações são baseadas em linhas de assistência gratuita e, se possível, retribuída, engloba os presentes obrigatórios a chefes e parentes, em que a expectativa de retribuição não é especificada. Seria, para Sahlins, uma forma extrema de dádiva, que somente ocorre entre parentes próximos ou com os chefes. A reciprocidade equilibrada envolve as trocas diretas, em que há uma retribuição imediata e equivalente dos bens recebidos. Em sua forma mais flexível, pode ser aplicada a pagamentos de curto prazo. Entre os Ye’kuana, ambas as formas de reciprocidade ocorrem em situações de kiamjiakadö, dependendo do contexto e dos indivíduos que dela tomam parte. No próprio léxico, os Ye’kuana diferenciam as relações de intercâmbio nas quais se envolvem, dados os diferentes propósitos de cada uma delas. O idioma da dádiva é empregado no contexto da família, do parentesco (ou seja, na unidade de produção e consumo), mas também nas relações interaldeias. Enquanto no primeiro caso há uma reciprocidade generalizada, no segundo, que abarca as trocas entre aldeias ye’kuana, podemos afirmar que há reciprocidade equilibrada, em que, muitas vezes, se aceita como pagamento coisas das quais não se necessita. Aqui não há espaço para barganha, não tem troco, como vimos um homem afirmar, ou ainda nas palavras de um outro ye’kuana sobre o tuxaua de Auaris, Néri diz, vocês têm que trocar com 149
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eles [outros Ye’kuana que visitam Auaris], são nossos amigos, nossa gente. Se você não tiver o que ele precisa, você paga outro dia, ele espera. Nesse tipo de troca não se paga com dinheiro. Além disso, o tempo é fator importante; não se quita uma dívida nem tão rápido nem tão devagar; as trocas a prazo (delayed exchange, nos termos de Sahlins) seguem um ritmo próprio de forma a manter os laços entre as aldeias envolvidas. Já a reciprocidade negativa proposta por Sahlins abarca as transações em que há a tentativa de obter algo sem dar nada em troca ou oferecendo o mínimo possível. A barganha, neste caso, é a forma mais sociável deste tipo de relação, em que a melhor chance, o melhor negócio é procurado. Este tipo de relação só ocorre com estrangeiros, pois somente destes é possível tirar proveito sem que haja uma sanção moral. Essa modalidade equivale ao ejeemadö ye’kuana. Embora autores como Marilyn Strathern (1992) e Humphrey e Hugh-Jones (1992) tenham razão em aconselhar cautela contra uma rígida separação conceitual entre a economia da dádiva (gift) e da mercadoria (commodity) e propor maior atenção a análises contextuais, o material ye’kuana aponta para uma fronteira bem delineada entre estas duas modalidades de intercâmbio. O fato de os Ye’kuana terem elaborado dois conceitos bem definidos – ejeemadö (comércio) e seus correlatos (ejeemane, eu comprei, tu’wemö, vender ou täjemajonö, para vender), e kiamjiakadö (troca) – torna evidente que há, sim, uma divisão entre objetos e seu destino: os primeiros são para lucro, os segundos são para lubrificar os laços sociais internos à própria sociedade ye’kuana. Os dados sobre as relações comerciais ye’kuana mostram que, muito antes do contato com os brancos, já existia o conceito de dinheiro, embora este ainda não existisse enquanto objeto. A tradição das viagens nas quais se engajavam em relações econômicas com outros povos, que não se caracterizavam, em hipótese alguma, como dádiva, mostram que os Ye’kuana há muito praticam o comércio, no sentido mercantil do termo, ou seja, para obter lucro com o menor custo possível. A preferência pela quitação imediata da compra e o uso dos ralos como moeda de troca apontam nessa direção. É o resultado daquele comércio que dá o tom desse “capitalismo a la ye’kuana”, pois, ao mesmo tempo em que se busca o lucro, a acumulação resultante não reverte em riqueza individual, mas prosperidade coletiva: os beneficiários são todos os Ye’kuana, ou seja, o bem maior não é o próprio capital, mas a rede humana que o gera. Tanto as relações comerciais quanto as relações de troca sempre estiveram informadas pela ética de wätunnä. Um professor ye’kuana afirmou certa vez: Sempre fomos comerciantes, por isso somos bons de troca. Quando os brancos surgem em cena, os Ye’kuana encaixam-nos na rede de relações comerciais, como todos os outros povos estrangeiros com os quais tinham contato. Tanto os brancos quanto o seu dinheiro são, portanto, inseridos 150
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em um nicho cultural preexistente. A grande tradição comercial, o “espírito empreendedor” ye’kuana informou suas incursões no mundo capitalista. Na época do ouro garimpeiro, enquanto sanumás usavam ouro para reforçar relações sociais, garimpeiros dissipavam-no nos bordéis e os empresários do garimpo igualmente esbanjavam a riqueza fácil, eram os Ye’kuana que o aplicavam em investimentos comunitários de longo prazo: compra de casa e outros bens estratégicos para a sua economia, saúde e educação. É essa grande tradição comercial que explica o relativo êxito dos Ye’kuana no campo dos empreendimentos sociais.
A ética ye’kuana e o espírito empresarial Os principais valores que compõem a ética ye’kuana são a contenção, o pacifismo e o trabalho ascético, que se desenvolve a partir da ideia de que os corpos precisam ser humanizados, construídos socialmente através dos rituais, da alimentação adequada e do trabalho incessante. Os valores últimos da cultura ye’kuana, condensados em wätunnä, impulsionam os indivíduos não apenas a trabalhar incessantemente, mas a transformar o trabalho em instrumento para acumular conhecimento, preparando-se para o ciclo que está por vir. Há que se resgatar o conhecimento que está disperso pelos povos estrangeiros, conhecimento que não se tem tradicionalmente e é preciso acumular. No ado, conquistou-se o conhecimento dos animais, retirando-lhes a condição de humanidade da qual os homens então se apoderaram com exclusividade, usando truques ou mesmo a força. Agora, é necessário conquistar o conhecimento que não se tem, mas de maneira pacífica. Foi o ideal pacifista que fez com que os Ye’kuana embarcassem em suas canoas para comerciar com outros povos. O resultado do acúmulo de conhecimento e bens adquiridos através do comércio deve ser ível a todos. A lição de Wanaadi é clara: no ciclo vindouro, os Ye’kuana terão todo o conhecimento e bens a seu serviço, assim como os brancos têm no presente; entretanto, comportando-se de forma avara com seus semelhantes, como fazem os brancos, os Ye’kuana perderão tudo, pois Wanaadi não hesitaria em encerrar mais uma vez o ciclo; por isso, esses bens e conhecimento devem ser usados em benefício de todos. As relações com outros povos e o modo como os Ye’kuana conduzem seu destino só podem, pois, ser interpretados à luz de wätunnä. No momento em que as trocas tradicionais perdem espaço para outras formas de geração de renda e riqueza, é preciso analisar o significado destas novas fontes na tradição moral. Cada vez mais em Auaris, e em outras comunidades da Venezuela, tem-se buscado uma inserção no mundo das profissões ocidentais, com remuneração assalariada, em substituição às antigas expedições comerciais enquanto fonte geradora de conhecimento adquirido dos brancos. É uma tendência que está em curso, mas isso não significa total abandono da antiga tradição comercial; muitas famílias ainda se dedicam ao comércio 151
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como fonte privilegiada de riqueza; entretanto, o número de famílias em que há assalariados cresce a cada dia, a ponto de que, em algumas residências, diversos homens trabalham em profissões mediante salário. Por ora, são três as possibilidades de escolher uma profissão sem deixar Auaris: o trabalho na saúde, na escola e no Exército. Mas, qual é o sentido de buscar uma profissão que exige uma formação escolar que, por sua vez, acarreta em todos os sinais da destruição e morte cultural, condensados na presença do branco? A crescente demanda dos povos indígenas por bens industrializados não é novidade na literatura etnográfica (RAMOS, 1990; HOWARD, 2000; GORDON, 2006). Entretanto, cada povo imprime a essa demanda um sentido próprio, através dos significados que assumem os bens e a riqueza postos em circulação. O modo Ye’kuana de interagir com o Outro é incorporando seus bens materiais (mercadorias) e imateriais (conhecimento). As trocas e aquisição desses bens não se dão apenas para suprir necessidades de subsistência, mas vão muito além. Para os Ye’kuana, é preciso apropriar-se do saber branco para tomar seu lugar no futuro. O pacifismo através do qual se dá essa apropriação evoca não a humanidade compartilhada entre os povos, mas a humanidade exclusiva dos Ye’kuana, pois apenas animais ou semi-humanos comportam-se agressivamente (gente de Odo’sha, Sanumá e os demais Yanomami e Mawiisha). A guerra com esses seres era justificada, justamente, pelo fato de não serem considerados completamente humanos. O mesmo ocorreu mais tarde com os Fañudu, espanhóis que se deixaram corromper por Odo’sha. Em um dos trabalhos fundamentais para a elaboração desta análise, Ramos (1996) analisa um conflito armado ocorrido entre índios e garimpeiros na comunidade de Olomai, no médio Rio Auaris, conflito esse resultante de um mal-entendido entre as partes, com vítimas de ambos os lados. A autora mostra que essa situação só pode ser de fato compreendida quando se entende o que exatamente estava em jogo – e para isso volta-se à análise das relações de cada um dos atores envolvidos com o garimpo e a riqueza por este produzida (Ye’kuana, Sanumá, empresários do garimpo e garimpeiros). Analisando o que cada um deles faz com o ouro, a autora conclui que são os Ye’kuana que com maior racionalidade empregam essa riqueza. Enquanto os Sanumá veem no ouro a possibilidade de reforçar suas relações sociais através das trocas do tipo dádiva, os garimpeiros o usam para esbanjar na cidade e os empresários, de maneira igualmente perdulária, investem em riqueza fácil e rápida, os Ye’kuana acumulam-no para investir em educação, saúde e conforto dos membros de suas comunidades. O que nos interessa aqui é a relação dos Ye’kuana com o dinheiro adquirido através do garimpo. Embora parte de todo bem produzido seja empregado em benefício da família extensa, seja ele tradicional (alimentos, conhecimento ritual, comércio com outras etnias) ou não (dinheiro e bens industrializados), há a produção voltada para o consumo e benefício 152
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de toda a comunidade. Com o garimpo não foi diferente. Alguns Ye’kuana trabalharam individualmente para os garimpeiros como guias, barqueiros e fornecedores de carne de caça, e o dinheiro e bens obtidos eram revertidos em benefício de suas próprias famílias. Entretanto, o dinheiro ganho com a cobrança de pedágio pelo pouso dos aviões e pelas balsas foi usado para finalidades tais como a compra de uma casa em Boa Vista e uma quantidade de bens para uso das aldeias (motores de popa, microscópios, espingardas, máquinas de costura, de ralar mandioca, etc.), ou seja, bens de uso coletivo. A ética ye’kuana levou-os – e ainda leva – a investir o dinheiro obtido através do comércio, do garimpo e, mais tarde, do trabalho remunerado, não só no bem-estar da comunidade, mas em instrumentos que possibilitem a aquisição de conhecimento. Para os Ye’kuana, o consumo é o meio para chegar a um fim: prepararse para o ciclo futuro, profetizado por wätunnä. Como? Adquirindo o poder dos brancos que se manifesta no acúmulo de bens. Para os Ye’kuana, a aquisição de bens e perspectiva de reinar no próximo ciclo pela apropriação do poder dos brancos só é possível com o acúmulo de conhecimento, aliado ao trabalho. Sobre tais questões, afirmou um dos professores de Auaris: Desde o começo, desde o primeiro homem, os Ye’kuana sempre procuraram ser inteligentes e desenvolver a comunidade. Ser inteligente é desenvolver habilidades é saber fazer as coisas, construir sua casa, suas roças, sua canoa. Sempre fomos comerciantes, por isso somos bons de troca. Os antigos andaram muito, aprenderam muito, eles que começaram tudo. O valor do trabalho é importante pra nós, quem não tem canoa não vai pra frente! Antes um jovem não podia casar por causa disso, se ele não soubesse fazer tudo, trabalhar bem, não casava. Ninguém casava muito novinho, porque o pai da moça pegava no corpo do rapaz e dizia: não, esse aqui não está pronto, precisa ficar mais forte, precisa trabalhar.
Creio que é na valorização do conhecimento, seja ele o conhecimento tradicional ou o adquirido na relação com outros povos, que a ética ye’kuana se baseia. Ninguém sabe tudo e todos sabem alguma coisa, o que fornece status a todos os homens, ou a todos os que trabalham e procuram o conhecimento. É por isso que ter o conhecimento dos brancos não confere status maior aos jovens professores do que aos velhos líderes detentores do saber tradicional. Na medida em que os jovens professores se dedicaram a aprender as coisas dos brancos, não puderam se aprofundar no conhecimento tradicional, resguardado pelos velhos sábios. Os jovens dedicam-se à aprendizagem do conhecimento necessário ao próximo ciclo, mas, ao mesmo tempo, para levar adiante tal empresa, tornam-se portadores dos sinais da morte cultural – especialmente através das escolas. Para retardar a morte iminente, os jovens aprendizes precisam do conhecimento tradicional dos anciãos. As duas metades complementam-se, necessitam uma da outra para sobreviver como verdadeiros Ye’kuana, antes que Wanaadi ponha fim ao ciclo atual. 153
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Maria Inês Smiljanic Introdução dia 19 de abril foi escolhido para homenagear os povos indígenas americanos em 1940, durante o I Congreso Indigenista Interamericano, em Patzcuaro, México. No Brasil, foi incorporado ao calendário comemorativo oficial pelo Decreto-Lei 5.540, assinado por Getúlio Vargas em 2 de junho de 1943. Em Maturacá, o Dia do Índio, em 2000, foi uma data especial, comemorada na escola onde estudam crianças e jovens das três comunidades Yanomami da região e no município de São Gabriel da Cachoeira, onde foi realizada uma grande festa com participação da população indígena e não-indígena2. Convidados pelos políticos locais para participar das comemorações na cidade, os Yanomami organizaram-se para levar parte da produção local de laranja, farinha e banana para São Gabriel da Cachoeira. As lideranças receberam gasolina para transportar os moradores de Maturacá em seus barcos até a Frente Sul, ponto localizado na BR 307, que liga São Gabriel da Cachoeira a Cucuí, e a prefeitura responsabilizou-se pelo transporte dos Yanomami dali para a cidade. A comemoração do Dia do Índio na escola de Maturacá foi antecipada para que as famílias pudessem viajar para a cidade. A organização do evento ficou sob a responsabilidade da esposa de um militar, voluntária na escola, que contou com a colaboração dos moradores das comunidades de Ariabu, Maturacá e Maria Auxiliadora, missionários e militares do 5.º Pelotão Especial de Fronteira (5.º PEF). Foi com certo estranhamento que acompanhei as comemorações do Dia do Índio numa escola onde, afinal, todo dia era dia de índio. Proponho-me aqui a refletir sobre a comemoração do Dia do Índio em Maturacá com o objetivo de situar este evento no contexto mais amplo da história de contato dos Masiripiwëiteri com a sociedade nacional, demonstrando como, ao objetificarem a cultura e a tradição yanomami no contexto da escola, os Masiripiwëiteri expressam a complexidade de sua situação de
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1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no GT 26 – Narrativas e percepções nativas das relações de contato com os brancos, coordenado por Valéria Soares de Assis e Deise Montardo, com mediação de Alcida Ramos, na 26.ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 1.º e 4 de junho de 2008, em Porto Seguro, Bahia, Brasil. 2 A população Yanomami é aproximadamente de 25.000 pessoas, 15.000 na Venezuela e 10.000 no Brasil. Vivem em uma área de cerca de 20.000.000 hectares, entre as coordenadas 0 e 5 graus norte e 61 e 67 graus oeste, sendo que no Brasil foi demarcada uma área de 9.664.975 hectares durante o governo Collor, em 1992. Constituem uma família linguística isolada, composta por, pelo menos, quatro línguas diferentes: Yanomami, Yanomam, Sanumá e Yanam, cuja diferenciação linguística mais antiga dataria de 7 séculos (MIGLIAZZA, 1972). Uma nova classificação foi proposta por Ramirez (2001): O Yanomam e Yanomami seriam uma mesma língua, o Ninam e o Sanumá permanecem como duas línguas distintas e o dialeto da área do Ajarani, Apiaú, baixo Mucajaí e médiobaixo Catrimani é classificado como uma quarta língua.
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índios civilizados, com todos os perigos que dela decorrem dentro da lógica predatória que rege a relação dos Yanomami com seus Outros.
A experiência escolar entre os Yanomami de Maturacá A escola de Maturacá está localizada nas instalações da missão salesiana, próximo da aldeia de Ariabu, na margem esquerda do rio Maturacá. É uma construção de madeira gigantesca, coberta de zinco, que comporta ainda a residência dos padres, a cantina e a Igreja. Entre as aldeias de Maturacá e Ariabu, na margem esquerda do rio, está a missão. Na casa dos padres funcionava a cozinha, onde era feita a merenda escolar que era enviada, porém de forma muito irregular, pela prefeitura de São Gabriel. Na cantina, composta por dois cômodos, estando a agem para o segundo obstruída por uma pequena mesa, um irmão leigo vendia artigos variados: alimentos, roupas, sapatos, carnes salgadas, etc. A igreja é um salão amplo e confortável, com bancos de madeira e um altar ao centro, com uma pintura representando a conversão dos Yanomami. A porta da igreja está voltada para um grande pátio, onde estão um bebedouro e mesas de jogos que ficam ali para serem utilizadas pelas crianças no recreio escolar. É neste pátio que ocorre a maior parte das atividades festivas e das reuniões que envolvem membros da sociedade nacional e de outras etnias indígenas. Logo após o bebedouro, começam as instalações da escola: um pequeno escritório com computador e livros, a sala dos professores e na lateral, em posição simétrica à igreja, um corredor, protegido por uma portinhola de madeira, que leva até as salas de aulas. A escola em Maturacá, como as demais escolas salesianas na região do Rio Negro, dedicava-se à alfabetização em língua portuguesa, à catequização e à inserção das comunidades indígenas na sociedade nacional. Para melhor atingir seus objetivos, os missionários, durante os primeiros anos entre os Masiripiwëiteri, afastaram crianças de suas famílias, enviando-as para internatos salesianos, onde elas permaneceram até atingirem a maturidade3. Segundo Santos (1983), o primeiro internato salesiano foi fundado em São Gabriel da Cachoeira no ano de 1914, sendo seguido pelos de Barcelos (1916), Taracuá (1925), Yaraweté (1928), Pari-Cachoeira (1942), Tapuraquara (1946), Içana (1955) e Cauaboris (1967). O relato de uma mulher, hoje residente da aldeia de Nazaré, que foi levada pelos salesianos em 1959 e que apenas retornou para o meio dos seus em 1971, ilustra a trajetória destas crianças no mundo dos brancos. Ela conta que pensou, juntamente com seus familiares, que estava apenas saindo para mais um eio de barco com os missionários. Entretanto, foi levada para um internato, onde foi proibida de falar sua língua nativa e onde convivia predomi3 Seguindo os preceitos da congregação salesiana, que foi fundada por São João Bosco em 1869, em Turim, Itália, com o objetivo de evangelizar e educar crianças e jovens carentes com o objetivo de integrá-los à sociedade, grande parte do trabalho dos salesianos na região esteve voltado para a educação com finalidade aculturativa e integracionista (SMILJANIC, 2002). Para informações sobre a atuação salesiana em outras regiões, ver Caiuby, 1993 e 1999.
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nantemente com mulheres da etnia Tucano. Para não esquecer o Yanomami, falava consigo mesma, quando se deitava pela noite. Depois de vários anos no internato, ela foi enviada, por intermédio dos salesianos, para trabalhar como doméstica em Belém, no Pará, na casa de uma família, só conseguindo retornar para sua aldeia de origem anos depois. Diante da violência com a qual suas crianças lhes foram subtraídas, os Yanomami exigiram o fim da prática do internato muito antes que eles fossem fechados. Nos anos 1980, a escola que funcionava em Maturacá ou a oferecer cursos profissionalizantes: corte e costura, técnicas agrícolas, mecânica e marcenaria. Os ex-alunos contam que aprendiam mecânica principalmente voltada para o conserto de motores de barcos. Nos anos 1990, os cursos profissionalizantes cederam espaço aos cursos regulares, que em nada se diferenciavam dos cursos oferecidos nas escolas não-indígenas. Em 2000, um missionário mais jovem buscava adequar a escola a uma nova realidade, tentando implementar uma educação diferenciada, com ensino bilíngue nos primeiros anos. Ele demonstrava também preocupação em produzir um material didático mais adequado. Entretanto, pouco havia sido feito até então. Embora a missão tivesse ampliado o número de professores yanomami na escola, o material didático utilizado pelos professores era o mesmo fornecido pela prefeitura para as demais escolas da região, a alfabetização ainda era realizada na língua portuguesa e a escola ava, inclusive, por sérias dificuldades, havendo atraso no pagamento dos professores e no ree de verbas e de merenda escolar. Os internatos salesianos formaram os primeiros professores yanomami de Maturacá: uma mulher e um homem. A professora ainda trabalhava na escola em 2000. O professor havia sido demitido pelos missionários por ter desposado uma jovem que trabalhava na missão, já sendo casado no religioso com uma mulher yanomami. Os cursos de mecânica formaram práticos, ou seja, pessoas aptas à condução dos barcos. Alguns destes práticos trabalhavam para os missionários e para as organizações não-governamentais que atuavam na região. Os salários dos Yanomami que aram a trabalhar para os brancos contribuíram para que seus filhos, depois de concluírem o ensino fundamental na escola da missão, fossem enviados para prosseguir seus estudos em São Gabriel da Cachoeira e Manaus. Em 2000, os Yanomami contavam ainda com o auxílio da FUNAI para estudarem e um pai permitiu que o padrinho da criança, um pesquisador do INPA, adotasse o jovem para que ele continuasse os estudos em Manaus, retornando para casa durante as férias.
A comemoração do Dia do Índio em Maturacá Para a comemoração do Dia do Índio, a escola foi decorada pelos militares, pelos professores e pelos Yanomami – que atenderam prontamente ao pedido da organizadora do evento e de um irmão leigo da missão. O pátio 157
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coberto do grande galpão onde funciona a escola foi enfeitado com folhas de palmeira, que os soldados carregaram no trator do pelotão do final da pista de pouso do 5.º PEF até o pátio da escola, compondo um cenário com folhagens exuberantes. As paredes foram enfeitadas com pequenos cestos yanomami – xoto – trançados pelas mulheres, longos arcos e flechas masculinos e cartazes. Um dos cartazes, fixado na parede central do pátio, trazia escrito em pincel atômico os seguintes dizeres: Hoje a escola está em festa resgatando suas tradições, sua história. As mesas de jogos foram retiradas do pátio e foram colocados bancos para os pais, alunos e demais espectadores. Alunos, pais e professores yanomami ajudaram na confecção de enfeites para a festa, providenciaram adornos adequados para a ocasião e comida. Foram os pais das crianças, inclusive, que pediram para que a festa fosse realizada antes do dia 19, para que pudessem assistir às apresentações de seus filhos, antes de deslocarem-se para São Gabriel da Cachoeira, onde participariam das comemorações do Dia do Índio organizadas pela prefeitura. No dia da comemoração, as crianças levantaram-se cedo, banharam-se no rio e voltaram para casa para serem pintadas pelos pais. Enquanto isso, os pais mais desprevenidos procuravam mel, castanha, tinta de jenipapo e urucum na casa de seus parentes para adornarem seus filhos. Em Maturacá, o mel e o óleo extraído da castanha mascada são misturados à tinta preta do jenipapo e ao urucum. Desta forma, as pinturas, que possuem padrões variados, exalam um agradável perfume adocicado. O rosto é geralmente avermelhado com o urucum e são pintados motivos com a tinta preta de jenipapo4. O restante do corpo pode ser esfregado com urucum e/ou pintado com longas listras ou com grandes círculos vermelhos. Os pais também pintaram-se, o que não é comum no dia a dia dos Yanomami de Maturacá, onde as pinturas e demais adornos corporais são reservados para uso nas assembleias da Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA), para as reuniões com políticos e para os ritos fúnebres, hoje raros. Alguns homens pintaram-se com jenipapo, cobrindo grande parte do rosto e do corpo com sua tinta preta, pintura que, segundo eles, era comum em tempos de guerra. As mulheres enfeitaram as orelhas com penas e flores. Os homens mais velhos portam seus watoxi – coroa de penas de arara que é geralmente utilizada como enfeite xamânico – e seus braceletes de pena de mutum. Foi desta forma, devidamente trajados para a ocasião, que todos se reuniram na escola, por volta das 9 horas da manhã. Alunos, pais e professores yanomami esperaram com certa ansiedade pela festa. Na escola, os alunos foram divididos por turmas e a professora, esposa de militar, ou a coordenar o evento, anunciando a entrada das crianças, segundo a programação estabelecida, por um microfone ligado a uma grande caixa de som que era utilizada pelos padres durante as missas e nas 4 Padrões de pintura típicos dos Yanomami podem ser encontrados em Cocco (1972) e Laudato (1998).
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reuniões que ocorriam no galpão da missão. Logo depois ao anúncio, as apresentações eram traduzidas por um dos professores yanomami. As crianças, divididas em grupos e enfileiradas no corredor situado depois da pequena porta que separa o pátio da escola das salas de aula, faziam sua entrada triunfal à medida que eram anunciadas. As apresentações consistiam na seleção de músicas e danças yanomami. Primeiro, um grupo de meninas apresentou uma pequena seleção musical. Logo depois, foi a vez dos meninos, com os rostos pintados de preto, entrarem dançando em círculos e brandindo arcos e flecha. No caminho, eles eram interceptados por meninas, vestidas com saias feitas de sacos de estopa desfiados, que tentavam pegá-los para quebrar as pequenas flautas de bambu que traziam à mão. Por fim, foi anunciado o último grupo. As crianças entraram fazendo algazarra, deram uma volta no pátio, atravessaram os bancos onde estavam sentados os espectadores, chegando até a pilastra onde, por trás de um grande latão de lixo, estava um monte de ramos escondidos pela professora yanomami. Depositaram as folhas no centro do pátio e correram para seus pais, sob aplausos. Durante todo o evento, a professora responsável pela organização do evento pedia pelo microfone, insistentemente, que os pais não rissem das crianças, que elas estavam representando a cultura e a tradição yanomami e que não deveriam sentir vergonha por isso. Quando foi anunciado o último número, ela pediu desculpas aos presentes, pois este grupo de alunos não havia participado dos ensaios e, por isso, a apresentação poderia deixar a desejar. Quando as crianças deixaram o pátio, a professora, surpresa, constatou que havia dado tudo certo. Encerrou, então, a comemoração dizendo, mais uma vez, que era muito importante os Yanomami resgatarem sua cultura e não sentirem vergonha de serem índios. Os Yanomami, por sua vez, faziam comentários em sua própria língua, avaliando as apresentações e comparando-as às situações cotidianas sobre as quais elas faziam referência e que situavam a comemoração do Dia do Índio não apenas no contexto da vida escolar em Maturacá, mas dentro do contexto mais amplo da história de contato dos Masiripiwëiteri com a sociedade nacional.
A Missão Nossa Senhora de Lourdes e as mudanças engendradas no sistema sociocultural dos Yanomami de Maturacá A maior parte dos habitantes das comunidades de Maturacá formam, juntamente com os moradores da aldeia de Nazaré, um bloco histórico que se autoidentifica como Masiripiwëiteri. Eles são conhecidos na literatura sobre os Yanomami como Kohoroxiteri, Kohoroxitari ou Kohoroxiwëtari (VALERO, 1984) e, juntamente com os Karawëtari, foram os primeiros Yanomami a cruzar o Orinoco e migrar para a região de Mavaca, em decorrência de brigas com os Xamatari, chegando às cabeceiras do Cauaburis e Marauiá aproximadamente em 1920 (COCCO, 1972). 159
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Os Masiripiwëiteri tiveram contatos esporádicos e geralmente hostis com representantes da população regional que exploravam sítios nas imediações do Cauaburis até 1952, quando estabeleceram contato com o Pe. salesiano Antônio Góes que, em 1954, fundou a Missão Nossa Senhora de Lourdes às margens do canal de Maturacá, atraindo os Masiripiwëiteri que, em 1956, mudaram-se definitivamente para as proximidades da missão onde se encontram até hoje. A presença salesiana entre os Masiripiwëiteri contribuiu para emergência de uma estrutura de conjuntura peculiar entre os grupos Yanomami situados no Brasil (SAHLINS, 1981, 1990)5. O tamanho das aldeias na região destoa daquele observado na maior parte da área Yanomami. Geralmente, uma comunidade yanomami possui entre 50 a 100 moradores. Em 2000, os moradores das comunidades de Maturacá já somavam mais de 800 pessoas, algumas oriundas de outros grupos Yanomami que também se mudaram para a região, estabelecendo alianças matrimoniais com os Masiripiwëiteri. As mudanças no padrão de assentamento e a sedentarização dos grupos contribuíram para que os recursos próximos à missão se esgotassem. Hoje, os Masiripiwëiteri am parte do tempo em sítios, onde estão localizadas suas roças e onde a caça é um pouco mais abundante. Durante estas cinco décadas de contato com a sociedade nacional, o sistema sociorritual dos Yanomami de Maturacá também ou por mudanças significativas. Os Yanomami têm o costume de cremar os cadáveres em uma grande pira, feita de gravetos e lenha. Os ossos, calcinados e pilados, são guardados em recipientes próprios, geralmente feitos com um tipo cabaça, que tem a boca vedada com cera de abelha, que são divididos entre parentes do morto – que se tornam responsáveis por organizar as festas em homenagem ao falecido. Os missionários salesianos intervieram nos ritos funerários dos Yanomami com o intuito de impedir a cremação dos corpos, prática funerária que foi permitida pela igreja católica apenas em 1964, por um Decreto do Santo Ofício, assinado pelo cardeal Alfredo Ottaviani (KNOBLOCH, 1970, p. 156). Desta forma, os salesianos buscaram sistematicamente, desde os primeiros anos de funcionamento da missão, introduzir o enterro cristão em Maturacá (KNOBLOCH, 1975, p. 156-157). Durante anos, os Yanomami confrontaram os missionários, cremando seus mortos. Mas, por fim, um casal, criado em internatos salesianos, concordou com o enterro do filho e tornou-se um hábito nas aldeias dessa região o enterro dos corpos das crianças e jovens em cemitérios próximos às aldeias. Atualmente, apenas as pessoas mais velhas e influentes são cremadas para que sejam realizados os ritos fúnebres. A cremação, geralmente, é realizada logo após a morte numa grande pira feita de gravetos e lenha. Os recipientes contendo os ossos calcinados e pulverizados são divididos entre parentes do morto que se tornam responsáveis por organizarem as festas. Em 5 Para mais informações sobre este processo, ver Smiljanic, 2002.
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Aldeias de Maturacá, Ariabu e adjacências em 2000 Rio Maturacá Quadra de vôlei Casa de farinha 5°.PEF
Novo Centro Comunitário
Aldeia de Maturacá Aldeia de Ariabu Pista de pouso
Antigo Centro Comunitário Cemitério
Posto de Saúde
Missão de Maturacá
Casas Yanomami Posto da Funai
Campo de futebol Casas Yanomami
Casa para hóspedes Antiga fábrica de farinha
Maturacá, esta pessoa geralmente fornece chumbo e pólvora para os caçadores e a comida vegetal consumida no último dia de festa. Os ritos fúnebres são um momento importante, no qual a abertura das comunidades yanomami para o exterior se revela. As festas em homenagem aos mortos são um fator de agregação dos diferentes grupos aliados, sendo um motivo importante para a visita de pessoas de uma localidade a outra. As alterações nos ritos fúnebres contribuíram para que os deslocamentos e contatos com grupos Yanomami localizados em outras regiões se tornassem cada vez mais escassos. Estas mudanças levaram a uma mudança progressiva no caráter das relações intracomunitárias e das diferentes formas de predação circunscritas ao gradiente de alteridade no qual as outras comunidades yanomami eram dispostas. Os Yanomami de Maturacá descrevem uma feitiçaria amorosa, de baixa letalidade, que pode ser praticada por grupos próximos, que se visitam (hama tëpë) e que, ocasionalmente, realizam trocas matrimoniais; uma feitiçaria guerreira, praticada por inimigos de outras comunidades (õka) que viajam pelas diferentes regiões, realizando ataques noturnos com substâncias letais, e a caça de duplos animais (norexi), exercida por Yanomami de comunidades distantes e desconhecidas. O norexi é um alter ego animal que cada Yanomami possui e que tem uma existência paralela ao indivíduo, nascendo e morrendo no mesmo momento que ele. Desta forma, a morte do duplo animal de uma pessoa leva à sua própria morte. 161
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Em decorrência da incorporação de indivíduos de comunidades vizinhas, os Masiripiwëiteri tiveram que se confrontar com o problema de terem transformado em co-residentes pessoas que poderiam causar-lhes malefícios e surgiram acusações de feitiçaria e de xamanismo agressivo dentro da própria comunidade. Aos poucos, os Yanomami de Maturacá aram a realizar trocas com membros da sociedade nacional. A extensão do sistema de trocas à sociedade nacional levou também à extensão da dimensão negativa que essas trocas expressam, ou seja, a predação. Os Yanomami da região de Maturacá relatam a ocorrência de ataques por uma nova categoria de õka. São os napë õka6, descritos como caboclos que habitam as margens do Rio Negro e que tomam o chá de uma planta desconhecida dos Yanomami para se transformarem em animais. Estes feiticeiros tomam geralmente a forma de pássaros e sobrevoam as aldeias ao anoitecer em busca de vítimas, sobre as quais jogam seus dardos venenosos e letais ou cuja comida envenenam. Embora essas mudanças tenham levado à incorporação de novos agentes agressores, elas não minaram o sistema de classificação das relações intercomunitárias e das trocas que ele implica. Entretanto, uma dimensão temporal foi acrescida à classificação sociopolítica das demais comunidades. Os povos que vivem em comunidades distantes aram a ser englobados, juntamente com os anteados dos Masiripiwëiteri, pela categoria xomayaiwë, uma expressão cujo significado sugere a junção de duas categorias distintas: inimigos potenciais de outros grupos Yanomami e antigos co-residentes mortos. É neste contexto que as festas devem ser ressignificadas. Se, por um lado, as comunidades de Maturacá se fecharam para muitas das comunidades Yanomami com as quais mantinham relações, por outro, elas se abriram para novos agentes – que aram a ocupar o lugar de seus Outros. Os Yanomami de Maturacá, como os demais povos indígenas do alto Rio Negro, estão inseridos na vida citadina e participam com frequência das festividades que ocorrem em São Gabriel da Cachoeira. Os Yanomami consideram de extrema importância ocupar todos os espaços abertos em decorrência do contato com a sociedade nacional. Acham importante a presença de um indígena na direção da Funai em São Gabriel da Cachoeira e a nomeação de chefes de posto indígenas, embora até o momento nenhum Yanomami exerça cargo na Funai local. Dentre os Yanomami do alto Cauaburis, ouvi relato apenas de um Wawanawëteri, comunidade localizada no rio Maiá, contratado como tradutor pela Funai, em Boa Vista. Ao discutirem política, discutem com entusiasmo a possibilidade de que em breve a Prefeitura e a Câmara de São Gabriel da Cachoeira sejam ocupadas por indígenas. 6 Napë, entre os Yanomam e os Yanomami, é um termo polissêmico que pode designar tanto os inimigos, Yanomami ou não, quanto os brancos. Entre os Sanumá, que possuem uma história de contato distinta, o termo nabi designa os Maiongong (grupo Caribe), sendo os brancos designados pelo termo setenabi (RAMOS, 1990).
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De volta à escola O cotidiano dos Masiripiwëiteri está hoje dividido entre a vida nos sítios e a vida nas aldeias. O que demarca estes dois momentos é o calendário escolar, motivo pelo qual os Yanomami estavam, naquela ocasião, renegociando o período letivo para poderem ar um período maior de estadia nos sítios. A escola é percebida por eles como um local onde as capacidades necessárias para ocuparem os espaços advindos do contato são adquiridas. Desta forma, para os Yanomami, como observou Lasmar (2005) para os Tucano, a escola tornou-se um espaço importante para circulação de atributos associados aos brancos. Ao adquirirem as capacidades agentivas dos brancos, os Masiripiwëiteri acabaram por tornar-se, eles próprios, outros. Os Masiripiwëiteri definem a si próprios como civilizados e se contrapõem aos seus anteados e aos demais Yanomami que, como afirmei anteriormente, englobam pela categoria xomayaiwë. Por ser civilizado, termo corrente entre aqueles Yanomami que já viveram na cidade, eles entendem a adoção do cristianismo, especialmente do catolicismo, do uso de roupas, do domínio da língua portuguesa e dos saberes próprios ao mundo dos brancos. Porém, diferentemente do que se observa nas comunidades das demais etnias do alto Rio Negro, onde existe um grande fluxo migratório para a cidade, os Yanomami se voltaram para a sociedade nacional, mantendo uma base territorial e incorporando a cidade ao gradiente espacial no qual se encontram dispersos seus Outros7. Ser civilizado refere-se ainda às relações estabelecidas entre os Yanomami com outros povos indígenas do alto Rio Negro e com segmentos da população local: Tucano, caboclos, missionários, comerciantes, militares, etc. As visitas à cidade carregam perigos similares àqueles que envolviam a visita às outras comunidades Yanomami no ado. O estado catatônico de uma jovem da comunidade de Ariabu era atribuído, por uns, a um susto e, por outros, a uma espécie de feitiçaria realizada durante um ritual evangélico em São Gabriel da Cachoeira, onde trabalhou como doméstica. Da mesma forma, os Yanomami relatam que é comum o uso de puçangas amorosas nas festas que ocorrem na cidade. Estas puçangas, no dizer deles, podem “estragar” a pessoa e até mesmo levar à morte. As apresentações escolhidas pelos próprios Yanomami para a comemoração do Dia do Índio na escola de Maturacá remetem diretamente aos contextos rituais de interação com seus Outros. Os cantos apresentados imitavam o coro Yanomami que havia sido criado pelos missionários para as missas dominicais, mas, para os Yanomami, são eles também uma forma privilegiada de comunicação entre os vivos e os mortos, entre os xamãs e os ancestrais da humanidade atual. A brincadeira dos meninos com arco e flecha e das meninas que tentavam quebrá-los re7 Sobre as demais etnias do alto Rio Negro, ver Andrello, 2006.
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produzia a entrada dos convidados para a festa realizada recentemente em homenagem a um grande xamã morto. A última apresentação, que tanto surpreendeu a esposa do militar, reproduzia um ritual realizado pelas mulheres para restituírem o no uhutupë das crianças, que abandona seus corpos temporariamente em decorrência de uma agressão ou acidente envolvendo o duplo animal, norexi. As crianças são especialmente vulneráveis à agressão de seus duplos animais por inimigos, pois, por serem ainda filhotes, eles são presas fáceis. Quando um xamã diagnostica que o mal do qual padece uma criança é decorrente do estado de vulnerabilidade no qual se encontra seu duplo animal, a mãe da criança esconde folhas, que simbolizam o no uhutupë de seu filho, em algum ponto da floresta e convida as outras mulheres da aldeia para resgatarem estas folhas e trazê-las de volta até o centro da aldeia, restituindo, desta forma, o princípio vital de seu filho8. Desta forma, ao objetificarem, no contexto da escola, a cultura e a tradição yanomami, os Masiripiwëiteri expressaram a complexidade de sua situação de índios civilizados com todos os perigos que ela representa dentro de uma “economia simbólica da alteridade” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 335). A comemoração do Dia do Índio em Maturacá expressa a forma peculiar como os Masiripiwëiteri incorporaram a civilização “(...) a uma ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo” (SAHLINS, 1997a, p. 52).
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A COMEMORAÇÃO DO DIA DO ÍNDIO ENTRE OS YANOMAMI DE MATURACÁ (AM)
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Parte III Políticas
“ESPERANDO PARA SER JULGADO”: INDÍGENAS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO DE BOA VISTA EM RORAIMA Stephen Grant Baines1
N
este trabalho, examino a situação prisional de indígenas nas instituições penitenciárias da cidade de Boa Vista, em Roraima, a partir de um levantamento de pesquisa realizada naquela cidade2 nas penitenciárias, em janeiro de 2008 e 2009. Iniciei o levantamento sobre índios presos estabelecendo contatos em Boa Vista com diversos órgãos e entidades governamentais e não-governamentais3. O objetivo deste trabalho é apresentar alguns dados preliminares sobre a situação prisional de indígenas. Posteriormente, examinarei alguns depoimentos de índios presos e os agentes carcerários que compartilham o mesmo espaço institucional para examinar como os índios expressam sua própria experiência de privação de liberdade dentro de uma “instituição total” (GOFFMAN, 1990). Este mesmo autor define a penitenciária como um tipo de “instituição total” que compartilha as características de existir “uma divisão básica entre um grande grupo controlado, que podemos denominar o grupo de internados, e uma pequena equipe de supervisão” (GOFFMAN, 1990, p. 18). A penitenciária é caracterizada por um grande grupo de detentos internados e uma pequena equipe dirigente de agentes penitenciários ou carcerários, em uma instituição total do Estado que visa à ressocialização do indivíduo. Foucault descreve a instituição-prisão como: 1 Professor Associado do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília; pesquisador do CNPq. 2 O levantamento foi realizado entre 15/01/2008 e 02/02/2008, e entre 18/01/2009 e 02/02/2009. No final de 2007, fui convidado pelo Professor do CEPPAC/UnB, Cristhian Teófilo da Silva, então tesoureiro da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a coordenar um levantamento sobre a situação prisional de índios em Roraima dentro do projeto de pesquisa coordenado pelo mesmo por meio de um convênio entre a ABA e a Escola Superior do Ministério Público Federal, intitulado: “Criminalização e Situação Prisional de Índios no Brasil (Edital Projeto de Pesquisa ESMPU nº19/2006)”, Procuradoria Geral da República (PGR). A primeira parte do levantamento foi realizada dentro deste projeto de pesquisa (ABA, 2009). As duas etapas foram financiadas com recursos da minha bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq. 3 No levantamento, visitei a Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania (SEJUC); a Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESP); a Organização de Indígenas na Cidade (ODIC); a Secretaria do Estado do Índio (SEI); a Diocese de Roraima; o Centro de Migrações e Direitos Humanos (CMDH); a Pastoral Carcerária da Igreja Católica; o Conselho Indígena de Roraima (CIR); a Universidade Federal de Roraima (UFRR); a Polícia Civil do Estado de Roraima; a Polícia Federal; e as instituições penitenciárias do Estado de Roraima em Boa Vista. Uma visita foi realizada também ao Centro Sócio-Educativo Homero de Sousa Cruz Filho, instituição vinculada à Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social do Governo do Estado de Roraima (SETRABES), que atende menores que estão “cumprindo medidas”. Visitei também o Ministério Público em Boa Vista.
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Os processos para repartir os indivíduos, fixá-los, tirar dele o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação, registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como a pena por excelência (1991, p. 207).
Acrescenta Foucault que “o encarceramento penal, desde o início do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos indivíduos” (Idem, p. 209). Desta maneira, afirma Foucault, A prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; [...] a prisão é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta; disciplina incessante. Enfim, ela dá um poder quase total sobre os detentos; tem seus mecanismos internos de repressão e de castigo: disciplina despótica (1991, p.211).
Foucault também assegura que “Se é verdade que a prisão sanciona a delinquência, esta no essencial é fabricada num encarceramento [...] A delinquência é um produto da instituição” (1991, p. 263). Em pesquisa sobre a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista, Roraima, afirma Santos que “Hoje é notório que a penitenciária é escola para a manutenção, reprodução e até aperfeiçoamento de condutas criminosas” (2004, p. 63). Os objetivos oficiais da instituição penitenciária, de ressocializar a população de detentos, estão reificados no linguajar penitenciário, que fala em “reeducandos” e “medidas corretivas”. Esta pesquisa sobre a situação prisional de indígenas em Roraima coincide com alguns objetivos da pesquisa que venho desenvolvendo neste mesmo Estado, desde o ano de 2001, sobre nacionalidade e etnicidade entre povos indígenas em fronteiras. Apesar da grande maioria dos indígenas presos em Roraima ter nascido neste Estado, um pequeno número de indígenas presos tem nacionalidade guianense, outros são indígenas de origem guianense que vivem no Brasil há muitos anos e outros ainda são descendentes de indígenas guianenses. Para os indígenas da região de fronteira, estas diferenças têm pouca relevância, considerando que as fronteiras políticas dos Estados nacionais foram impostas sobre seus territórios. Estes se apresentam como habitantes de um território cuja demarcação fronteiriça, no caso da fronteira entre o Brasil e a Guiana, veio a ser definida apenas em 1904 (RIVIÈRE, 1995). 170
“ESPERANDO PARA SER JULGADO”: INDÍGENAS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO DE BOA VISTA EM RORAIMA
A questão dos indígenas presos A prática de encarceramento de indígenas na área atualmente abrangida pelo Estado de Roraima não é nova. A ocupação colonial portuguesa dessa região teve início na década de 1770 e foi propositadamente uma ocupação estratégico-militar. Os portugueses preocuparam-se em assegurar a posse dessa área limítrofe e evitar possíveis invasões por espanhóis e holandeses vindo do norte (FARAGE, 1991). Desde o início da colonização os índios desta região foram presos e disciplinados em aldeamentos que apresentaram as características de uma “instituição total” da colônia portuguesa. O processo de disciplinamento de índios pelos portugueses em “aldeamentos [...] compostos multietnicamente” (1991, p. 125), na segunda metade do século XVIII, é descrito por Farage, que usa fontes históricas para revelar que houve uma série de revoltas nas últimas décadas, resposta à “superexploração do trabalho dos índios aldeados” (Ibid., p. 131). Farage também relata fugas maciças que se alastraram nos referidos aldeamentos “na razão direta da violência utilizada pelos portugueses para reprimi-los” (Ibid.). Para esta mesma autora, “O recrutamento de mão de obra, tal como previa o parágrafo 62 do Diretório, era feito através de ‘principais’ índios, que deveriam apresentar a seu tempo os trabalhadores requisitados pelos portugueses” (Ibid.). Farage relata nesta mesma obra que: Mais prisões de principais vieram a ocorrer no ano de 1780. Pixaú e Aramaná, principais Paraviana do aldeamento de N. Sa. da Conceição, foram presos pela simples suspeita de que se preparavam para fugir. Sua prisão de fato detonou a fuga de grande parte dos índios de N. Sa. da Conceição, e ainda daqueles aldeados em Santo Antônio e Almas, apavorados diante da visão da escolta levando os principais presos em ferros [...] Tão repetidas prisões causaram alarme na esfera do governo colonial (Ibid., p. 132).
O parecer do governador da Capitania de São José do Rio Negro, Manuel da Gama Lobo D’Almada, “junto a Lisboa era pela declaração de guerra aos insurrectos, que deveriam ser capturados e reduzidos à obediência” (Ibid., p. 134). Diante do levante indígena de 1790, o mesmo governador, que antes havia defendido preceitos de coloração humanista no trato com os índios, foi “a primeira voz a lembrar a necessidade da ‘demonstração de castigo com os delinquentes’” (Ibid., p. 165). Quando as repetidas tentativas de fixar índios em aldeamentos no rio Branco fracassaram, os portugueses aram a levá-los presos para servir de mão de obra em outras regiões da Amazônia de onde a fuga foi impossível. Em outro momento histórico, os povos indígenas desta região foram submetidos à privação da sua liberdade e medidas punitivas. 171
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A legislação nacional e internacional sobre indígenas presos Considerando que a presença de indígenas no sistema penitenciário hoje em dia é um fato, examino a legislação atual. Do ponto de vista dos artigos 56 e 57 da Lei n.º 6.001, de 19.12.1973 (Estatuto do Índio): “Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola. Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do condenado.” “Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.” A Constituição Federal do Brasil de 1988, em seu artigo 231, assegura aos índios o direito à diferença, ou seja, o direito de serem diferentes e de serem tratados de forma diferenciada. Em caso de execução de pena privativa de liberdade ou de prisão provisória de índios, é impositivo o cumprimento do normatizado pelos artigos 56 e 57 do Estatuto do Índio. No caso de indígenas presos, afirma a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do qual o Brasil é signatário, no parágrafo 2 do seu artigo 10: “Se deve dar preferência a tipo de punição outros que o encarceramento”. Um problema é que o processo de criminalização de indígenas presos age no sentido de negar a etnicidade a partir da pressuposição do senso comum que todos devem ser tratados de forma igual diante da lei, e frequentemente os próprios índios se identificam com os argumentos dos agentes policiais, carcerários e penitenciários, negando sua própria identidade indígena, e uma grande parte dos índios presos não tem o a informações quanto aos seus direitos de um tratamento diferenciado e de receber outros tipos de punição que o encarceramento. Um levantamento do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) realizado em Mato Grosso do Sul, junto com a Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), revela que está havendo um desrespeito aos direitos humanos desde a fase de inquérito policial. Muitos dos índios no sistema penitenciário não dominam a língua portuguesa, o que dificulta a compreensão das acusações e do processo de defesa, desconhecendo a situação processual e as regras do sistema prisional. As enormes desvantagens enfrentadas por aborígines em sistemas judiciários nacionais foram examinadas por vários autores, como Eades (1997, 2000, 2007), que examina exemplos da Austrália. Garzón e Valle (2002) frisam que o problema dos direitos indígenas não consiste mais no seu reconhecimento jurídico, mas em sua aplicação real, considerando a enorme distância entre os direitos reconhecidos e a sua aplicação. 172
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Roraima e o Sistema Penitenciário Roraima localiza-se no extremo norte do Brasil e tem como limites a Venezuela ao norte e noroeste e a Guiana ao leste. Ocupa uma área de 224.298,980 km2 e possui 1.922 quilômetros de fronteiras internacionais. A região foi desmembrada do Estado do Amazonas em 1943 e inicialmente chamado de “Território Federal do Rio Branco”. As primeiras expedições portuguesas na região remontam ao início da década de 1660, em busca de drogas do sertão, metais e pedras preciosas, e de indígenas para o apresamento. A partir de 1725, missionários Carmelitas aram a atuar na região. A criação da Capitania Real de São José do Rio Negro, pela Carta régia de 3 de março de 1755, foi fruto da preocupação da Coroa portuguesa com as fronteiras do rio Negro e do rio Branco, com medo de ocupações holandesas da bacia amazônica a partir da colônia holandesa no litoral atlântico (FARAGE, 1991). Com o estabelecimento do Forte de São Joaquim do Rio Branco a partir de 1775, diversos aldeamentos de indígenas foram estabelecidos, entre os quais a povoação de Nossa Senhora do Carmo, fundada por religiosos Carmelitas. Durante o Brasil Império, esta foi elevada a vila e sede de freguesia com o nome de Boa Vista (1858). Com a proclamação da República (1889), a freguesia foi transformada no município de Boa Vista do Rio Branco (1890), integrante do Estado do Amazonas. A disputa fronteiriça entre a então colônia britânica da Guiana e o Brasil conduziu à chamada Questão do Pirara (1904). Submetida à arbitragem do rei da Itália, a região em litígio foi repartida entre ambas as partes (RIVIÈRE, 1995). A atual região de Roraima foi desmembrada do Estado do Amazonas pelo Decreto-lei n.º 5.812, de 13 de setembro de 1943, que criou o Território Federal do Rio Branco, posteriormente denominado como Território Federal de Roraima (1962), e elevada a Estado pela Constituição Federal de 1988. Os povos indígenas que habitam o Estado de Roraima são falantes das famílias linguísticas Carib, Ianomâmi e Aruaque. Conforme o Instituto Socioambiental (ISA), a população indígena de Roraima em 2008 era de 32.771 indivíduos. Para a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a população indígena seria de 31.265, enquanto para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é de 23.422. Este Estado possui um total de 30 terras indígenas, entre homologadas e registradas. De acordo com o Conselho Indígena de Roraima (CIR),������������������������������������������������������������������� a����������������������������������������������������������������� população indígena deste Estado soma aproximadamente 40 mil pessoas. O censo populacional realizado pelo Convênio entre o CIR e a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) aponta um aumento populacional acelerado na maioria das comunidades. Este crescimento populacional está atribuído a dois fatores principais: o registro mais eficiente a partir da presença das equipes de saúde nas áreas indígenas e a garantia das terras. Em 2001, apenas no Distrito Leste de Roraima, que compreende 10 municípios, as equipes de saúde registraram 25.577 índios. Em 2005, na mesma região, o contingente 173
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atingiu a marca de 33.108. Este aumento demográfico ocorre principalmente na região das Serras, ao Nordeste de Roraima.
A população de Roraima no Censo Nacional de 2007 Conforme dados do IBGE a população do Estado de Roraima era 395.725 habitantes em 20074, dos quais 249.853 vivem no município de Boa Vista5, capital do Estado. No censo de 2000 do IBGE, a população de Roraima é dividida conforme a classificação de “cor/raça” em: Brancos 24,8%; Negros 4,2%; Pardos 61,5%; Indígenas 8,7% Ao discutir os índios nos censos nacionais, um texto destacado sobre o assunto, escrito por Oliveira Filho, revela que as categorias usadas nos censos estão diretamente relacionadas à problemática da construção da nação brasileira (1999, p. 127). Quanto à categoria censitória de “pardo”, Oliveira Filho comenta que com o uso desta “categoria operacional – artificial, arbitrária e de aparência técnico-científica –, na realidade se está inviabilizando o censo como instrumento para uma análise sociológica mais fina e transformandoo em um dócil legitimador do discurso da mestiçagem” (Ibid., p. 128-129). Nas palavras deste mesmo autor, a categoria de pardo “revela-se improdutiva e enganadora, pois subsume de um modo indiferenciado – e não permite distingui-las depois – as categorias étnicas efetivamente utilizadas pela população brasileira” (Ibid.). Ele também acrescenta que é uma “categoria residual, internamente hierarquizada, em parte assimilacionista, em parte segregadora, que se institui somente a partir da mistura de dois termos – os brancos e os negros – e de um termo ausente – os índios” (Ibid., p. 129-130). Desta maneira, Se no Brasil a categoria de “pardo” parece não ter outra função do que a de servir como instrumento do discurso da mestiçagem e reunir evidências numéricas que reforcem as suposições ideológicas quanto à tendência ao “branqueamento” progressivo da população brasileira, no plano de análises regionais leva a confundir em um todo homogêneo fenômenos absolutamente distintos entre si. (OLIVEIRA FILHO, p.131).
Constata Oliveira Filho, o que é muito relevante para o caso do Estado de Roraima, que, O que se registra em cada região como “pardo” tem origem histórica e uma realidade étnica absolutamente distinta e singular. No Norte, para onde não existiu significativa transferência de escravos negros nem convergiram extensos fluxos de imigrantes, a categoria “pardo” evoca predominantemente a ascendência ou a identidade indígena (Ibid., p.134). 4 Fonte: IBGE, Contagem da população 2007. Disponível em:
. o em 15/03/2009. 5 Fonte: IBGE, Tabela 1.1.4 - População recenseada e estimada, segundo os municípios - Roraima – 2007. Disponível em:
.
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“ESPERANDO PARA SER JULGADO”: INDÍGENAS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO DE BOA VISTA EM RORAIMA
Este autor também ressalta que a categoria “pardo” é um indicador genérico para a mistura entre diferentes grupos de cor. Este não é em absoluto o significado da condição de indígena, que remete a um status jurídico diferenciado e não a uma situação de pretensa homogeneidade interna e distintividade externa quanto à cor. Ao declarar-se como “índio” ou “indígena”, o recenseado não está pretendendo inserir-se em uma classificação quanto à cor, mas dizer da especificidade de seus direitos e da sua relação com o Estado (Ibid., p. 134).
Apesar do censo nacional de 1991 abrir um espaço para a categoria “indígena”, sendo tais dados computados separadamente daqueles dos “pardos”, no Estado de Roraima, onde o preconceito contra índios é muito forte e tem sido internalizado por uma parte da população indígena, sobretudo moradores das cidades, a categoria “pardo” esconde muitas pessoas que, em certos contextos, podem se identificar também como indígenas ou caboclos. No sistema penitenciário, muitos funcionários veiculam as categorias do senso comum da sociedade regional, julgando que índios que moram na cidade não sejam mais índios, vendo-os, inclusive, por meio das categorias do próprio censo nacional, incorporadas no software Canaimé do sistema informático penitenciário. Este software foi instalado a partir de 2006 e agrega o nome e endereço do reeducando e dados sobre o crime, regime de detenção em que ele se encontra e etnia. Como os colaboradores do projeto da ABA ressaltaram, “o nome Canaimé provém da mitologia indígena da região. Canaimé é um ser com personalidade maléfica que se presta a punir aqueles que não cumprem as leis da comunidade” (ABA, 2009, p. 16). Acrescentam que “os programadores do software Canaimé [...] não entendem como etnia o grupo a que o reeducando pertence, como Makuxi ou Wapichana [...] Assim, etnia no software Canaimé é semelhante à tradicional classificação de ‘raça’, utilizada pelo IBGE” (Ibid.). Entretanto, a categoria “pardo” não é de uso comum na região fora do contexto do Censo do IBGE, além de ser aplicada para abarcar termos regionais como “caboco”, “índio civilizado”, etc. O uso da categoria “pardo” pode explicar, parcialmente, a estimativa muito baixa da população indígena de Roraima nos dados apresentados pelo IBGE quando comparados com os dados do ISA, da FUNAI e do CIR, levando a um ocultamento de grande parte da população que em outros contextos pode se considerar indígena.
O sistema penitenciário de Roraima As cinco instituições penitenciárias estaduais em Roraima são istradas pela Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania (SEJUC) e incluem: a Cadeia Pública de Boa Vista; a Cadeia Pública de São Luíz do Anauá, Município de São Luíz do Anauá; a Casa do Albergado Professora Aracelis Souto Maior; a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (PAMC), construída em 1989, e a Penitenciária Feminina de Monte Cristo. Está prevista a construção de 175
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outro presídio em Rorainópolis, Rodovia BR-174, Município de Rorainópolis. A Penitenciária Feminina de Monte Cristo localiza-se ao lado da Penitenciária Agrícola do mesmo nome e foi inaugurada em março de 2006. Uma característica que as penitenciárias de Roraima compartilham com outras no sistema nacional é a enorme superlotação. Em todo o Brasil consta uma população prisional de 381.112, com 255.057 vagas no sistema prisional, com um total de 420 detentos cadastrados como indígenas. Conforme dados estatísticos divulgados pelo Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen) para o Estado de Roraima, em junho de 2008 havia uma população total de 384.321 habitantes e 1.435 detentos, dos quais apenas 45 foram cadastrados como indígenas, com 498 vagas no sistema prisional do Estado. Na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, fui informado, em 29/01/2009, que havia capacidade para 414 detentos, com uma nova ala recém-inaugurada, e que havia nesta mesma data 964 detentos. Na referida data, na Penitenciária Feminina de Monte Cristo, fui informado que havia uma capacidade para 72 presos, com 129 reeducandas. Em janeiro de 2008, havia 111 presas femininas (a capacidade era para 72), incluindo 4 em regime aberto, 16 em regime fechado, 34 em regime semiaberto e 57 preventivadas. No mesmo mês havia 174 “reeducandos” na Cadeia Pública, com capacidade para 120 pessoas6. A situação do sistema penitenciário em Roraima é considerada crítica pelas autoridades do judiciário. O Estado tinha, em janeiro de 2008, um déficit de 693 vagas e a superlotação está presente em todas as unidades prisionais. A tabela divulgada pelo InfoPen para o Estado de Roraima em junho de 2008 revela uma desproporção de presos de “cor parda”7, categoria que certamente subsume um número indeterminado de indígenas e explica, em parte, a quantidade reduzida de indígenas presos e o número muito alto de presos “de cor parda”. De um total de 1.359 presos, apenas 240 foram classificados de cor de pele “branca” e 187 de cor de pele “negra”, a grande maioria de 886 sendo de cor de pele “parda”. PERFIL DO PRESO/ QUANTIDADE DE PRESOS POR COR DE PELE/ETNIA (amostra de 80%) Masculino Feminino Total Branca 200 40 240 Negra 172 15 187 Parda 815 71 886 Amarela 1 0 1 Indígena 37 8 45 Outra 0 0 0 1.359 FONTE: InfoPen Disponível em:
. o em: 15/05/2009.
6 O Cabo Carvalho informou-me em janeiro de 2008 que a Cadeia Pública, destinada aos presos preventivados, estava interditada por superlotação e por este motivo os presos preventivados vinham direto das delegacias para a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo. 7 Dados do InfoPen, para junho de 2007, revelam para o Estado de Roraima apenas 26 indígenas sob a rubrica de “cor de pele/etnia”. Entretanto, 690 detentos foram identificados como de “cor de pele parda”.
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Nos dados divulgados pelo InfoPen para junho de 2008 quanto à “Quantidade de crimes tentados/consumados”, em todo o sistema penitenciário do Estado de Roraima, os crimes que predominaram numericamente eram: PERFIL DO PRESO/ QUANTIDADE DE CRIMES TENTADOS/CONSUMADOS (Acima de 50 pessoas criminalizadas) em Junho de 2008 Crime Atentado violento ao pudor (Código Penal – art 214) Estupro (Código Penal – art 158) Furto qualificado (Código Penal – art 155, § 4º e § 5º) Furto simples (Código Penal – art 155) Homicídio simples (Código Penal – 121 Caput) Roubo qualificado (Código Penal – art 157, § 2º) Roubo simples (Código Penal – art 157) Tráfico de entorpecentes (Lei 6.368/76 art 12) Tráfico Internacional de entorpecentes (Lei 6.368 art 18, Inciso 1)
Masculino Feminino Total 52 52 53 53 94 94 154 3 157 65 2 67 131 3 134 58 1 59 199 55 254 128 47 175
FONTE: Dados adaptados do InfoPen Disponível em:
. o em: 15/05/2009.
O perfil dos indígenas presos, no que se refere à quantidade de crimes, segue, de forma geral, o perfil de todos os presos para o Estado de Roraima. Conforme o relatório da ABA sobre Roraima, o primeiro motivo que leva os indígenas a serem detidos é o envolvimento com entorpecentes (30,91%), sendo enquadrados nos artigos 12 da Lei 6.368/76 ou no artigo 33 da lei 11.343/07. Observa-se que “uma reclamação recorrente por parte dos detentos enquadrados nesses crimes é que a falta de o à defesa no início do inquérito policial faz com que vários deles, que se dizem apenas usuários de drogas, acabem sendo presos como ‘traficantes’” (ABA, 2009, p. 22). O segundo motivo que mais leva os indígenas a serem presos (25,45%), são os crimes contemplados no artigo 121 da Constituição de tentativa de homicídio ou homicídio [...] a reclamação dos detentos é de falta de acompanhamento na fase policial do inquérito, que permitiria maior acuidade na apuração dos fatos, demonstrando que a maioria dos crimes foi por legítima defesa (Ibid., p.23).
A terceira causa mais frequente das prisões (20%), diz respeito aos crimes com conotação sexual de estupro e atentado violento ao pudor. Nesses casos a grande maioria dos indígenas não assumiu a autoria dos crimes. Aqui é bom lembrar da necessidade fundamental de se levar em consideração no processo de investigação do crime as formas de organização social e parentesco do grupo do qual faz parte o acusado (Ibid.).
O quarto motivo das detenções é por roubos e furtos (20%) e o restante das prisões de indígenas decorre de acusações por outros crimes (7,27%) (Ibid.). 177
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A tipificação dos crimes considerados graves que resultam em detenções (lembrando que ofensas menores são frequentemente resolvidas dentro das comunidades) inclui: homicídio, tentativa de homicídio, estupro, atentado violento ao pudor, roubo, furto e tráfico de entorpecentes. Poucos dos crimes registrados estão diretamente relacionados a conflitos fundiários; entretanto, o índice de crimes registrados entre indígenas é muito mais alto naquelas comunidades próximas à capital do Estado e em comunidades cujas terras reduzidas estão encurraladas entre fazendas, que estão sofrendo de forma exacerbada conflitos interétnicos e, sobretudo, entre a população indígena que mora em Boa Vista. Apesar do tráfico de entorpecentes constar como um dos crimes mais comuns entre os detentos do sistema penitenciário de Roraima, inclusive entre os reeducandos indígenas acusados deste crime, os indígenas entrevistados que foram presos moram em Boa Vista e em cidades próximas às fronteiras internacionais, sendo uma porcentagem diminuta do total da população indígena do estado de Roraima.
O levantamento de pesquisa O levantamento de pesquisa foi realizado dentro das penitenciárias por meio de entrevistas em condições variadas. Na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, foi-me permitido o para realizar entrevistas em grupo e individuais nos espaços da biblioteca e da igreja no interior da penitenciária. Na Cadeia Pública, os funcionários designaram um espaço em um escritório da istração para realizar entrevistas individuais. Na Penitenciária Feminina de Monte Cristo, realizei entrevistas em grupo e individuais no escritório da istração, com a presença de agentes carcerárias, e em uma sala designada na parte interna da penitenciária, sem a presença de agentes da equipe dirigente. Na Casa de Albergados tive o livre para conversar com os detentos e no Centro Sócio-Educativo Homero de Sousa Cruz Filho (CSE) só foram permitidas entrevistas rápidas, com a presença do diretor daquela instituição. No ambiente das penitenciárias não foi possível realizar pesquisa participativa ou colaborativa e o o aos detentos só foi possível por meio de entrevistas realizadas em períodos de poucas horas de duração. Desde o início do levantamento que realizei em janeiro de 2008, percebi a dificuldade que os próprios agentes do Estado têm em reconhecer os índios presos. Em um primeiro contato com o então diretor do Departamento do Sistema Penitenciário (DESIPE), o capitão da Polícia Militar Sidney Silva dos Santos, na Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania, que autorizou minhas visitas às instituições penitenciárias para realizar pesquisa, recebi a informação de que havia “uns três índios presos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (PAMC)”, e que tanto na Cadeia Pública como na Casa do Albergado Professora Aracelis Souto Maior, “não tem índios”. 178
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Na minha primeira visita à Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em janeiro de 2008, meu o à penitenciária não foi permitido (no primeiro dia de visita combinado) 8, porque dois detentos foram encontrados enforcados. Isto me foi informado por um policial que relatou: “Tem um problema interno. Penduraram dois”. Foi sugerido que eu voltasse no dia seguinte. Neste mesmo dia, na istração da Penitenciária, uma funcionária prestou informações a partir dos dados que havia nos cadastros, nos quais constavam 31 indígenas entre os então 838 detentos, incluindo aqueles em regime fechado, preventivado (aguardando julgamento) e em regime semiaberto. Esta funcionária acrescentou que muitos são indígenas, mas não assumem sua identidade étnica. O cabo da reserva da PM, Raimundo Carvalho, chefe do Serviço de Vigilância Interna (SVI) da penitenciária, que me foi indicado pelo Capitão Sidney Santos, afirmou que não havia dados sobre a origem de muitos detentos, “só falando com eles pessoalmente”, e facilitou minha entrada na Penitenciária para realizar entrevistas. O jornal9 do dia seguinte noticiou que esta foi a terceira vez em menos de um ano que presos fugitivos e recapturados foram encontrados enforcados em dupla. Em 26/11/2008, matérias publicadas em jornais de Boa Vista noticiaram que, por meio de uma operação da Polícia Federal, quinze pessoas foram presas suspeitas de integrar uma quadrilha que comandava o crime organizado no sistema prisional de Roraima, inclusive homicídio, envolvimento com o crime organizado e tráfico de drogas. Entre os presos estavam o ex-diretor do Departamento do Sistema Penitenciário (DESIPE), um policial civil, cinco agentes carcerários, o policial militar da reserva responsável pela segurança interna da penitenciária e presidiários que cumpriam pena na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo. Em 30 de janeiro de 2009, foi divulgada a notícia em um dos jornais locais que mais 25 detentos seriam presos, “acusados de matar e torturar detentos nos presídios do Estado. Os presos eram mortos e tinham os corpos pendurados em cordas para simular suicídios”10. Nove detentos haviam sido presos dois dias antes, somando 34 mandados de prisão. A mesma reportagem afirma que “até o momento, 11 mortes nos presídios estão sendo investigadas. Sete já foram confirmadas como homicídios, ao invés de suicídios como foram simuladas”, e que “tiveram a prisão temporária convertida em preventiva o major da Polícia Militar Sidney Santos, [...] e o cabo reformado da PM Raimundo Carvalho” (Ibid.). Fui informado por um funcionário da penitenciária que um dos índios que entrevistei no ano anterior estava sendo acusado de envolvimento e já havia sido separado em cela especial. 8 Após esperar na entrada interna da penitenciária, pouco depois das 7 horas da manhã, chegaram várias viaturas da polícia, incluindo viatura da Polícia Militar, da Polícia Técnico-Criminalística e polícia especializada. De uma viatura saíram vários policiais fortemente armados com metralhadoras e cães adestrados e entraram na penitenciária devido à morte de dois detentos. 9 Folha de Boa Vista, 22/01/2008, Manchete. 10 Folha de Boa Vista, 30/01/2009, p. 05A.
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Depoimentos de indígenas presos e agentes carcerários11 Em janeiro de 2008, uma agente carcerária, ao ser indagada sobre o número de detentos indígenas, ressaltou a dificuldade de saber quem é indígena: “O problema é de autoidentificação. Se eles não se identificam, a gente não pode colocar”. Nos cadastros carcerários havia apenas 6 pessoas que constavam como indígenas. A agente afirmou que, das mulheres indígenas, algumas foram presas por tráfico internacional de drogas, “a maioria mães, pessoas trabalhadoras que de repente se envolvem com namorado, marido”. Os depoimentos revelam que as estatísticas do InfoPen, que resultam dos levantamentos realizados nos arquivos das penitenciárias de Roraima, não revelam o contingente real de indígenas que estão cumprindo penas. Em janeiro de 2008, constava apenas um indígena na Cadeia Pública, entre 176 homens. Ao solicitar aos agentes carcerários desta unidade averiguar quantas pessoas se autoidentificavam como indígena ou “caboco”, treze pessoas apresentaram seus nomes numa primeira lista. Ao examinar as fotos das pessoas cumprindo penas na Cadeia Pública de Boa Vista, uma agente carcerária que se identifica como indígena confirmou que vários outros são indígenas, um sendo filho de um tuxaua e outro filho de uma indígena. Outros eram de municípios com grande maioria indígena, como Normandia e Bonfim. E ainda outros, que nasceram na cidade de Boa Vista, afirmam ser indígena por ser filho de pai ou mãe indígena. Na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em janeiro de 2008, o Cabo Carvalho propôs trazer os presos indígenas para um escritório da istração onde eu poderia entrevistá-los; entretanto, ao constatar nos cadastros dos 838 homens presos que havia mais de 31 indígenas presos, convidoume a entrar na Penitenciária para entrevistá-los. Informou-me que entre os presos dois eram indígenas guianenses. Conversei com Lúcio12, que se apresentou como indígena guianense da cidade fronteiriça de Lethem, preso por tráfico de entorpecentes. Lúcio resmungou que “é cruel demais. Preso é uma coisa só”, acrescentando que ele foi preso havia 4 meses em Boa Vista e não tinha documentos brasileiros. Fui conduzido por um agente carcerário para a biblioteca da penitenciária, onde fui apresentado a um “chefe da ala”, preso responsável por uma ala da penitenciária. Inicialmente, cerca de quinze presos indígenas foram trazidos para entrevista coletiva. Alguns indígenas não quiseram falar, inibidos pela presença de presos não-indígenas que se juntaram para assistir. Outros comentaram sua situação prisional e permitiram que gravasse seus depoimentos. Os comentários incluem breves histórias de vida, os nomes das comunidades indígenas onde moravam antes de serem presos e frases 11 Fui informado pela mesma agente carcerária que em Roraima há agentes carcerários trabalhando na função de agentes penitenciários por não haver agentes penitenciários concursados. 12 Ao me referir aos indígenas presos, faço uso de pseudônimos para preservar o seu anonimato.
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como: “Fui tratado igual a outros presos”, “O promotor falou que eu não era índio, não. Por causa da minha (que sabia escrever)”, “Eu não sei nem o que é advogado [...] FUNAI não manda nada. Um ano e nove meses!”, “Não tem direito a nada. Um ano e quatro meses e nunca veio um parente meu aqui. Sou da região do Amajari”, “Não sabe quando vai ser julgado, esperando para ser julgado”, “a gente mesmo não pode resolver. Não temos dinheiro para estar mexendo com advogado”, “Principalmente o dinheiro. Quem tem vai procurar, vai mexer com advogado, mas não temos. Nós fica aqui dentro de molho, aí sem saber se vai ar quanto tempo”, “Nós somos índio, mas nós somos ser humano também”, “Aqui dentro na cadeia tudo é comprado. Aí nós fica de molho aí, sem saber que dia, que tempo que vai ar”, “a gente não tem dinheiro”, “a gente não sabe nada, não tem resposta de nada”. “Fica nessa condição parada, sem trabalhar e sem movimentar [...] processo parado”. A maioria dos presos que se identificou como indígena morava em comunidades no interior do Estado de Roraima. Outros haviam morado na capital, Boa Vista, por muitos anos. O que caracteriza os relatos de muitos indígenas presos é a falta de o a dinheiro e a falta de apoio de parentes, sobretudo no caso daqueles que moram em aldeias distantes de Boa Vista, em decorrência da dificuldade de deslocamento da aldeia para a capital do Estado. Outros disseram ter sido abandonados pelas suas famílias e constataram a dificuldade de retornarem às suas aldeias. Afirma Santos que “há detentos que não têm uma fonte de renda, pelo fato de terem sido abandonados pelas famílias ou companheiros. Propõem-se a lavar roupas daqueles(as) que podem pagar” (2004, p. 48). Depoimentos revelam que muitos dos indígenas presos encontram-se em uma situação muito mais precária que a maioria dos presos não-indígenas que têm parentes em Boa Vista. Alguns daqueles que têm familiares em Boa Vista vivem em condições de extrema pobreza. Há, entretanto, algumas exceções, como Darlene, que afirmou que seus parentes haviam contratado um advogado particular para sua defesa. Reclamaram que os presos não-indígenas acusados de crimes muito piores que eles e cujas famílias contratam um advogado particular saem logo da penitenciária, enquanto os presos indígenas ficam meses e até anos esperando para serem julgados, muitas vezes sem entender o motivo da sua detenção. João afirmou que não se lembrava de nada, pois bebeu e: “Acordei na penitenciária. Me disseram (sic) que eu havia assassinado alguém numa briga”. Em janeiro de 2008, na Penitenciária Feminina de Monte Cristo, Anexo 1 da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, seis presas identificadas como indígenas foram conduzidas para que eu as entrevistasse na presença das agentes carcerárias pela manhã. Uma presa identificada como indígena pelas agentes carcerárias afirmou que não era indígena e que tinha havido um equívoco ao classificá-la como tal. Darlene, que teve sua identidade indígena 181
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questionada pelas agentes carcerárias, insistiu que a família da sua mãe era do Surumu e os avós paternos eram cearenses: “Disseram que eu não sou índia por causa da cor. Nasci no Surumu [...] com quatro anos de idade vim para a cidade”. Outra reeducanda, Iracema, afirmou ser filha de índios de Roraima e do Baixo Rio Negro no Estado do Amazonas, porém dizia não saber especificar a quais etnias pertenciam seus pais. Entretanto, as agentes carcerárias não questionaram a identidade de Iracema por ela ter nome “indígena” e características fenotípicas associadas ao estereótipo do indígena, diferente de Darlene, de pele clara e com o segundo grau completo, só reconhecível como indígena a partir da sua autoidentificação verbal. Em janeiro de 2008, Darlene reiterou a dificuldade que enfrentava para ser reconhecida como indígena na penitenciária, afirmando que só é reconhecida como indígena quem fala português com dificuldade e tem pouca formação escolar, dando o exemplo de uma detenta guianense presente que se expressava com muita dificuldade na língua portuguesa. Na Cadeia Pública de Boa Vista, fui autorizado pelo então diretor a ar os cadastros dos presos, além de entrevistar alguns presos indígenas. Uma agente carcerária que se identificava como indígena localizou os cadastros dos presos e identificou diversos presos como indígenas que ela conhecia pessoalmente, prestando dados sobre suas famílias e redes de parentesco, mesmo que muitos não fossem cadastrados como indígenas, mas como “pardos”. Apesar de haver apenas um “reeducando” classificado como indígena, foi possível identificar muitos classificados como “pardos” nascidos em comunidades indígenas e/ou que se identificavam como parentes próximos de indígenas. Muitos não constam como indígenas nem nas fichas carcerárias, nem nas listas de indígenas preparadas para mim por chefes de alas da Cadeia Pública. Para facilitar a identificação de presos que podiam se identificar como indígenas, solicitei os nomes de “reeducandos” que se identificavam também como “cabocos”, “descendentes de índios” ou que tinham “parentes indígenas”, considerando que as maneiras de se identificar são diversas e frequentemente refletem as contradições impostas a estas identidades nos discursos hegemônicos da sociedade nacional. Na Casa do Albergado Professora Aracelis Souto Maior, entrevistei o diretor da unidade, Dr. Ricardo, que demonstrou uma preocupação com a terminologia usada para descrever os reeducandos como “presos” e “homicidas” que possa prejudicá-los. Entre 94 reeducandos em regime aberto, apenas 3 foram cadastrados como “indígenas”. Entretanto, 90 foram classificados como de “cor de pele parda”, 18 como “albino”, 2 como “cor de pele branca”, 6 como “negra” e 2 como “outros”. Na Casa do Albergado, entrevistei um reeducando, cadastrado como William, que se apresentou como índio e pediu para eu registrar no meu caderno seu “nome indígena”, afirmando que nasceu “na maloca”, de pai sergipano e mãe Makuxi, e se criou na cidade. 182
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Logo ele afirmou que não era índio mesmo, mas “caboco” e “mestiço”, porque morava na cidade. Os depoimentos de alguns indígenas presos lançam luz sobre as situações enfrentadas nas instituições penitenciárias. Na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, Hélio, filho de pai Makuxi que havia sido adotado e criado por fazendeiros e de mãe amazonense, afirmou que, quando ele foi preso, acusado de homicídio, “Não fiquei como índio porque eu não sabia como funcionava. Meus pais eram de classe muito humilde. Só depois de sentenciado que fui procurar”13. Revelou seu desconhecimento dos direitos diferenciados. Germano retrucou: “Eles cuidam mais dos civilizados que têm dinheiro [...] Eles dizem ‘não tem dinheiro, não sabe, porque é caboco’ [...] Eu não saio daqui porque não tenho ninguém, então fui esquecido [...] Meus irmãos ficaram contra mim. Ficaram com raiva de mim. Não querem me ver”14. Germano revela os preconceitos que os indígenas enfrentam e o abandono pela família. Flávio15 disse ter nascido na aldeia de Malacaxeta, mas saiu com nove anos de idade, após o falecimento dos seus pais. “Sou Wapichana. Fui criado por fazendeiros”. Relatou que estava na penitenciária havia mais de um ano e não tinha sido julgado. Foi preso por atentado violento ao pudor e assinalou que não teve advogado de defesa nas duas audiências ocorridas. “Fui preso em lote no município de Cantá. Morava com minha mulher e enteado e uma enteada. A mulher está junto com outro peão. Vou fazer negociação. Vender o lote e rachar. Morar lá, não quero. Ela é Wapichana da Serra da Moça”. Flávio acrescentou que “o delegado pediu R$ 1.500,00 para liberar na hora [...] Menina que fez acusação é indígena também. Era para eu ser preso pela (Polícia) Federal. Eu sou indígena, a menina (que fez a acusação) é indígena. Está parado o processo”. Em janeiro de 2008, o diretor da Penitenciária de São Luiz do Anauá, tenente Viegas, afirmou não ter conhecimento de indígenas presos entre os 77 reeducandos em São Luiz, cidade localizada a 336 km de Boa Vista, acrescentando que “registrado não, aparência indigena tem. Não estão registrados como indígenas”. A advogada do CIR, Joênia Wapichana, ressaltou algumas das dificuldades de tentar implantar penas alternativas para os presos indígenas, sobretudo no caso de homicídios e crimes sexuais, quando muitas comunidades indígenas não aceitam que os acusados voltem para as comunidades e os parentes das vítimas frequentemente exigem que cumpram penas na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo. 13 Entrevista em 22/01/2009. 14 Entrevista em 22/01/2009. 15 Entrevista em 22/01/2009.
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Considerações finais As informações levantadas no Estado de Roraima reforçam algumas das conclusões apresentadas nos levantamentos realizados em outros estados da União incluídos na pesquisa da ABA/ESMPU (2008). Em Roraima, observa-se também a descaracterização étnica dos indígenas pelos operadores do Direito (policiais, delegados, procuradores, juízes, secretários estaduais de segurança pública, secretários estaduais de justiça e cidadania, etc.). Este problema resulta numa imprecisão das estatísticas oficiais relativas ao contingente de índios presos e sua “invisibilidade legal” enquanto sujeitos de direitos diferenciados. Existe uma multiplicidade de situações, desde problemas internos às comunidades indígenas tanto em Terras Indígenas como em comunidades indígenas citadinas, até ocorrências que envolvem indígenas e não-indígenas e indígenas nascidos em cidades, vilas e fazendas fora de Terras Indígenas. Há casos que envolvem parentes que aram a maior parte das suas vidas em comunidades indígenas, outros casos que envolvem indígenas deslocados das suas terras, criados em centros urbanos e com longa e intensa convivência na sociedade nacional. Além da descaracterização étnica praticada por operadores do Direito e o problema de falta de documentos da população carcerária, alguns indígenas presos preferem não se identificar e outros assumem os preconceitos pejorativos da sociedade regional a respeito de índios e caboclos, o que Cardoso de Oliveira (1996) chama “caboclismo”. As próprias categorias utilizadas nos Censos Nacionais e adotadas pelo sistema penitenciário contribuem para uma invisibilização dos indígenas presos subsumidos na categoria “pardo”, como também categorias regionais como “caboco”, “caboclo”, “índio civilizado”, “mestiço”, “índio aculturado”, dentre outras, em oposição ao “índio puro”, que são usadas para desqualificar o tratamento diferenciado garantido aos indígenas pela Constituição Federal. Além disso, não existe nenhum tipo de orientação istrativa para sistematizar os presos segundo sua identidade étnica. O projeto de pesquisa “Situação Prisional de Índios em Roraima”, dentro do projeto de pesquisa “Criminalização e Situação Prisional de Índios no Brasil” (Convênio ABA/ESMPU), permitiu levantar algumas informações preliminares. O que fica evidente por meio dos levantamentos realizados é a inconsistência das informações nos cadastros com relação ao perfil étnico indígena da população carcerária. Quase todos os indígenas entrevistados afirmaram não ter recebido nenhum tratamento diferenciado. Tanto a população carcerária indígena que cumpre pena, quanto os menores indígenas que estão cumprindo medidas corretivas, encontram-se invisibilizados nas estatísticas das instituições. A opinião expressa pela maioria dos funcionários é que todos deveriam ser tratados igualmente, independente se ser indígena ou não-indígena, revelando um desconhecimento dos 184
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direitos constitucionais dos povos indígenas. Vários indígenas presos levantaram reivindicações para um tratamento diferenciado, como, por exemplo, penas alternativas cumpridas em Terras Indígenas no caso de ocorrências dentro de Terras Indígenas, com a anuência das comunidades e dos conselhos de tuxauas, e/ou uma ala separada nas instituições penitenciárias. Estes indígenas alegam ser duplamente discriminados pelo fato de serem presos e indígenas. Levando em consideração a estrutura desmedidamente assimétrica do sistema interétnico que subjaz as práticas sociais, policiais e penais, faz-se necessário considerar os obstáculos que os indígenas enfrentam para ter o à Justiça e estudar as possibilidades de criar instituições diferenciadas com penas e medidas alternativas, respeitando seus direitos constitucionais.
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INDÍGENAS NO ENSINO SUPERIOR:
NOVO DESAFIO PARA AS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS E INDIGENISTAS NO BRASIL Gersem Baniwa1
E
ste artigo versa sobre os desafios do atual indigenismo no Brasil relacionados ao papel das organizações indígenas e indigenistas na construção das políticas de educação indígena intercultural universitária no Brasil. O trabalho é parte dos meus atuais estudos e pesquisas em desenvolvimento no âmbito do meu doutoramento em Antropologia Social na Universidade de Brasília, que tem como objetivo analisar as experiências de indígenas no ensino superior na busca por compreender que variáveis sociopolíticas e epistemológicas orientam os jovens indígenas na luta por formação acadêmica. Os movimentos indígenas e indigenistas têm um papel muito importante no convencimento do Estado brasileiro na formulação e na oferta dessas políticas. Serão abordados os movimentos indígenas brasileiros nas últimas décadas, buscando compreender quais são suas principais propostas, que desafios eles têm enfrentado e a ressonância dessas demandas nas vidas dos povos indígenas e nas práticas políticas do Estado brasileiro. Levar-se-á em conta o legado teórico e político da antropologização das lutas étnicas no Brasil e os desafios teóricos e políticos do processo de descolonização dos imperativos metodológicos e filosóficos da antropologia moderna brasileira. Serão analisadas as primeiras incursões de indígenas na formação universitária e, em particular, na formação das ciências sociais em que os primeiros indígenas antropólogos ensaiam uma apropriação cautelosa dos instrumentos metodológicos e conceituais da disciplina, evidenciando a necessidade de se pensar novas metodologias e epistemologias no âmbito da disciplina que sejam capazes de implementar processos efetivos de diálogos interculturais no âmbito da produção e transmissão de conhecimentos que superem o processo de colonização técnico-científica. O cenário em que hoje acontecem as discussões acerca da educação escolar indígena de um modo geral – e em particular do o e permanência ao ensino superior – apresenta várias facetas e implicações históricas, políticas e práticas, as quais procuraremos abordar a partir de experiências observadas e vivenciadas junto aos povos indígenas. Esta abordagem estará focada na análise do que ocorre do lado de cá, ou seja, no interior do indigenismo não-governamental ou a partir do movimento indígena. Isto porque em outros trabalhos focalizei as políticas governamentais, ou seja, a partir das perspectivas do lado de lá. 1 Doutorando em Antropologia Social na Universidade de Brasília (UnB).
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FACES DA INDIANIDADE
Em primeiro lugar, é necessário destacar a importância da antropologia no indigenismo brasileiro contemporâneo. Não só os instrumentos analíticos produzidos ao longo das últimas quatro décadas, que se confundem com os processos históricos vividos pelos povos indígenas, mas os próprios antropólogos – que se confundem com as vozes indígenas na implementação e na orientação de modos de relacionamento entre os povos indígenas, a sociedade nacional e o Estado brasileiro. A antropologia, portanto, tem uma responsabilidade histórica com o indigenismo oficial e não-oficial, seja para justificar os processos de dominação colonial ou, principalmente, contestando essa dominação e propondo novos fundamentos epistemológicos e metodológicos de reorientação da relação índios e brancos. No campo político, foram alguns antropólogos articulados à antropologia e ao indigenismo mexicano dos anos 1970 que, a partir de entidades não-governamentais criadas por eles e de grupos de pesquisadores ligados a setores progressistas das universidades e da Igreja, iniciaram todo o processo de reação e de contestação da política integracionista e genocida do Estado brasileiro, resultando na atual configuração e estágio do movimento indígena organizado operante no país e da luta por uma educação escolar intercultural, específica e diferenciada. Deste modo, não há dúvida de que muitos antropólogos tiveram e continuam tendo um papel relevante no desenvolvimento de modos de percepção e de relacionamento entre os índios e destes com o Estado e com a sociedade global. Os antropólogos e os indigenistas ativos e militantes têm uma importante participação na emergência de novas formas de organização e de luta de resistência e de reafirmação étnica e identitária que têm resultado em perspectivas mais otimistas aos povos indígenas. O movimento e as organizações indígenas são exemplos concretos dos resultados da parceria entre povos indígenas, antropólogos e indigenistas. Esses atores continuam essenciais para o avanço e para a consolidação dessas novas modalidades de luta indígena. Tais aspectos reforçam a percepção, por um lado, da importância dos instrumentos analíticos da antropologia nas conquistas indígenas e, por outro, dos limites e desafios colocados pelas e a partir das realidades e universos socioculturais dos povos indígenas, que entram em choque com a racionalidade das práticas políticas e metodológicas, muitas vezes auspiciados por antropólogos e indigenistas muito bem-intencionados. A atuação de antropólogos no campo do indigenismo governamental e no movimento indígena social sempre esteve mergulhada em contradições, ambiguidades e antagonismos. Do meu ponto de vista, a principal contradição está no fato de que, se, por um lado, a atuação deles foi decisiva para a emergência do movimento indígena resistente, contestatório e organizado – e hoje continua sendo assim para o enfrentamento das ameaças aos seus direitos –, por outro lado, a função de intermediários, porta-vozes ou procuradores dos povos indígenas foi se perpetuando, aprofundando, dificultando ou mesmo inviabilizando o verdadeiro e efetivo protagonismo e 188
INDÍGENAS NO ENSINO SUPERIOR
autonomia desses povos. Não temos no Brasil estudos específicos a respeito, o que demanda iniciativas dessa natureza para um diagnóstico mais preciso sobre essa situação e os impactos nos processos atualmente vivenciados pelos povos indígenas. Uma análise panorâmica de experiências que conheço e acompanho junto a povos e organizações indígenas na Amazônia brasileira sugere duas hipóteses que podem ajudar a pensar provocativamente aspectos que envolvem o campo do indigenismo brasileiro quanto à complexa relação povos indígenas, organizações não-governamentais dirigidas por antropólogos e o Estado. Tais aspectos podem ajudar a compreender os atuais desafios, limites e possibilidades criados a partir do o e da permanência de indígenas no Ensino Superior.
O papel das ONGs na perspectiva da tutela A primeira hipótese diz respeito ao lugar e ao espaço histórico em que se situa o papel das organizações não-governamentais e dos antropólogos nelas atuantes. Não seria absurdo pensar a atuação dessas entidades e atores, em muitos casos, como a terceira etapa da tutela indígena no Brasil. Trato aqui da tutela não tanto como prática política que considera os índios como incapacitados e, logo, legalmente inimputáveis, para justificar o papel paternalista, tutor, dominador, procurador do Estado e, portanto, com o poder legítimo de tomar decisões em nome deles, mas enquanto forma de pensar e agir dos colonizadores que se baseia na ideia de que os índios pertencem a culturas inferiores e, por isso, não são capazes de compreender a complexidade do mundo branco, ou que são povos vencidos na guerra e, portanto, precisam se submeter à vontade dos vencedores e dominadores. Destaco que trato da noção e da prática da tutela não necessariamente no sentido negativo, pois reconheço que a tutela, em muitos casos, foi necessariamente positiva aos povos indígenas na luta por sua sobrevivência frente a uma sociedade nacional e ao Estado hostil aos seus direitos e à sua continuidade histórica. Entre as décadas de 1970 e 1980, por exemplo, a tutela de muitos intelectuais da Academia, da Igreja e das ONGs foi extremamente positiva, necessária e produtiva na defesa dos direitos indígenas, principalmente na negociação e garantia dos direitos no processo de Constituintes que elaborou a atual Constituição Federal, que revolucionou a história dos povos indígenas na relação com a sociedade e com o Estado, inaugurando direitos profundamente avançados. Para que isso acontecesse, os assessores e mediadores tiveram de falar, negociar e decidir em nome dos índios, mesmo que muitas vezes articulados ou não com as lideranças indígenas, na ausência de uma articulação indígena representativa e nacional. Minha crítica, que a seguir esboçarei, refere-se às consequências dessa forma de relação histórica de dependência e tutela para a luta pela autonomia enquanto princípio que possibilita pensamento e tomada de decisão própria. Mas, antes de prosseguir este raciocínio, é importante ponderar que estas qualificações alusivas levam em conta a forma da relação e atuação estabelecida e não os propósitos e compromissos 189
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político-ideológicos dos atores e das instituições, que tratarei mais adiante. Por enquanto, o que interessa mesmo é tratar da relação construída e de seus impactos e resultados na vida dos povos e das organizações indígenas. Do meu ponto de vista, a prática da tutela no Brasil teve diferentes momentos, espaços e modalidades, que impactaram por demais a relação dos povos indígenas com a sociedade nacional e com o Estado. O princípio legal que gerou a prática da tutela teve início com a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910, e com a aprovação da Lei 6.001, de 1976, conhecida como o Estatuto do Índio, que submete os índios à condição de relativamente incapazes, razão pela qual o Estado, por meio do SPI e, depois, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), deveria exercer o papel de tutor e protetor. Ação de tutoria e proteção na prática significava decidir pelos índios, integrandoos forçosamente à comunhão nacional e, dessa forma, apropriar-se de suas terras. Ou seja, se antes do SPI e do Estatuto do Índio o Estado trabalhava na perspectiva de extinção dos povos indígenas por meio da guerra e da violência física, agora, por meio do SPI e posteriormente por meio da FUNAI, essa extinção deveria se dar por meio da integração compulsória. Neste sentido, proteger significava integrar e tutelar significava submeter e dominar. O segundo momento e modalidade da tutela foi implementado pela prática missionária. Esta prática esteve centrada na prática escolar transferida pelo Estado à Igreja. Como as ações do SPI e da FUNAI não foram suficientes para a consumação da integração compulsória, o Estado transferiu também essa tarefa à Igreja, principalmente por meio da catequese e da escola. A catequese e o ensino escolar aram a ser os principais instrumentos de perseguição e negação das culturas indígenas. Poder-se-ia supor que, de certo modo, era uma estratégia bem pensada e articulada, uma vez que a Igreja faria primeiro o trabalho de amansar os índios, enfraquecendo culturalmente os povos indígenas, para que depois o SPI e a FUNAI completassem o processo de integração, incorporando os índios já aldeados à lógica da vida nãoindígena, tornando-os dependentes compulsivos da cadeia econômica do mercado, por meio dos chamados projetos agrícolas – que também visavam à geração de renda, inclusive para a manutenção da política indigenista oficial. Neste momento, a Igreja também ganha o direito de ser a tutora dos povos indígenas, com o poder de representá-los em suas vontades e interesses e tomar decisões por eles. O que aqui mereceria um estudo e aprofundamento maior é quanto à intencionalidade da Igreja e dos missionários nos impactos e nas consequências resultantes das práticas adotadas, na medida em que, se por um lado é possível identificar o papel bem-intencionado dos missionários na proteção dos índios da violência dos colonos, dos comerciantes, dos militares e das tropas de resgates, por outro lado a prática de perseguição e negação das culturas, principalmente das línguas e das cerimônias religiosas tradicionais, resultava igualmente na desintegração dos povos indígenas. Ou seja, tanto a prática tutelar da FUNAI quanto a prática missionária conduziam ao mesmo ponto, que é a extinção dos povos. 190
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O terceiro momento da prática tutelar é o das organizações não-governamentais pró-indígenas dirigidas por antropólogos não-indígenas. O que diferencia essa nova prática tutelar é o seu propósito, mas não a forma. Os antropólogos indigenistas, mais conhecidos pelos povos indígenas como parceiros ou assessores, mudaram substantivamente o modo de relacionamento dos povos indígenas com os não-índios, inclusive com as instituições governamentais. Como afirmei no início deste trabalho, esta atuação dos antropólogos pró-indígenas pode ser analisada de diversos ângulos e certamente com múltiplas percepções, como aqui procuro fazer, a partir de alguns aspectos observados empiricamente em campo. Grosso modo, podemos identificar três momentos na atuação das ONGs, considerando os últimos 30 anos. O primeiro momento corresponde aos modos de atuação dos anos 1970 e 1980, quando a marca principal é a atuação tutelar convencional, no sentido de que elas serviam de porta-vozes, representantes e procuradoras dos povos indígenas junto à sociedade e ao Estado. Para defender os direitos dos povos indígenas, elas falavam em nome dos índios, representavam os índios e tomavam decisões em nome dos povos indígenas. Certamente foi um período rico da história do indigenismo brasileiro, uma vez que muitas conquistas foram alcançadas graças a essa forte atuação dos aliados dos índios, em grande parte antropólogos e indigenistas articulados no interior das entidades de apoio, da Igreja e da Academia. Como exemplo mais claro, podemos citar as históricas conquistas de direitos na Constituição de 1988, que só foram possíveis graças a uma decisiva atuação das entidades indigenistas na negociação com setores conservadores (principalmente militares) da Assembleia Constituinte. O segundo momento teve início com a emergência do movimento indígena constituído por meio de organizações indígenas e lideranças indígenas politizadas que, na verdade, foram resultantes do próprio trabalho das primeiras ONGs e setores progressistas da Igreja e da Academia, que investiram na formação e capacitação dessas novas lideranças. Este momento é marcado pelo discurso e pelo esforço dos antropólogos dirigentes das ONGs em favor do protagonismo e autonomia de pensamento e de prática política dos povos indígenas; porém, na prática, este discurso nunca foi efetivamente seguido por eles. Ou seja, muda-se o discurso e tenta-se mudar a prática, investindo na formação e capacitação dos indígenas, mas não o suficiente para o pleno exercício da autonomia. As razões podem ser diversas, que am por problemas nos instrumentos político-pedagógicos adotados, pela histórica relação de dependência, de paternalismo e de subalternidade construída entre índios e brancos, até estratégias para garantir espaço institucional e de empregos para os assessores e aliados dos povos indígenas. Percebe-se um elevado grau de dificuldade para que as lideranças indígenas saiam da dependência de assessores brancos, não por falta de capacidade ou vontade política, mas por hábito, costume ou comodidade. Depois de quase um sécu191
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lo de tutela institucional profunda, não é fácil as lideranças indígenas retomarem o gosto e o prazer da autonomia de pensamento de ação e de decisão sem depender dos brancos. O terceiro momento, que é o momento atual, expressa essa dificuldade de agem do discurso à prática, tanto por parte dos índios quanto dos dirigentes e membros de ONGs. Minha hipótese é de que há duas razões para essa dificuldade. A primeira diz respeito ao fato de que tanto os índios quanto os assessores não-indígenas não conseguem ou não querem superar o papel tutelar que se estabeleceu ao longo de pelo menos duas décadas (decisão política consciente), por força do hábito e da comodidade construída, razão pela qual os assessores continuam exercendo o papel de porta-vozes dos povos indígenas e reivindicando legitimidade desse papel, e os povos indígenas se acomodam e se sentem mais seguros e protegidos por terceiros a ter que “se virar” para defender seus direitos e interesses. Obviamente que esse papel é hoje assumido com novos perfis, como, por exemplo, o de incorporação junto às equipes das ONGs de alguns setores ou segmentos do movimento indígena, sugerindo uma nova prática da tutela, que eu denomino de semitutela, no sentido de que se ite a capacidade do protagonismo e da autonomia, mas não se criam condições efetivas para esse exercício por parte dos povos indígenas, seja por incapacidade instrumental, seja por uma intenção político-estratégica. A segunda razão é o fato de não terem conseguido ou não quererem transferir suas experiências e conhecimentos acumulados aos povos indígenas, impedindo ou inviabilizando as possibilidades efetivas de protagonismo e autonomia dos povos indígenas, na medida em que eles não ficam de forma permanente nas regiões, mas somente nos períodos de suas pesquisas de campo para conclusão de seus mestrados e doutorados. Disto resulta um processo curioso hoje no seio do indigenismo nacional em vários campos setoriais da política indigenista, qual seja, a existência de dois grupos heterogêneos de interlocutores: por um lado, as organizações indígenas e, por outro, as organizações indigenistas. Estes grupos de interlocutores ou porta-vozes não só apresentam demandas e pautas políticas diversificadas, como muitas vezes apresentam demandas, interesses e pautas políticas antagônicas sobre o mesmo tema: os direitos e interesses indígenas.
Conhecimentos técnico-científicos a serviço da tutela e do colonialismo No âmbito do movimento indígena político, espaço por excelência de conflitos sociopolíticos, a antropologia continua presente e com papel relevante na produção de subsídios argumentativos técnicos e científicos para fundamentar a luta indígena pelos seus direitos, mesmo quando percebemos o uso ideológico da bagagem disciplinar, como o que presenciamos em muitos momentos no órgão indigenista, nas assessorias técnico-políticas prestadas por antropólogos a corporações econômicas (muitas vezes anti-indígenas) ou 192
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mesmo quando percebemos o campo de tensão epistemológica e prática das perspectivas antropológicas e das culturas indígenas. Em muitas situações, o saber antropológico é utilizado mesmo por aliados bem-intencionados para perpetuar a relação tutelar, paternalista e excludente dos povos indígenas, por exemplo, quando se utilizam os instrumentos técnico-científicos para dizer e impor o que é certo e verdadeiro para os povos indígenas. Tomo como orientação pedagógica a necessidade de respeito entre esses diferentes saberes como possibilidade de avanço dos conhecimentos humanos, mas principalmente para que, no caso dos povos indígenas, dispondo de seus próprios conhecimentos, dialoguem de igual para igual para com as autoridades políticas e acadêmicas do mundo não-indígena. Neste sentido, experiências concretas acumuladas permitem deduzir algumas características e pressupostos do sistema que organiza os conhecimentos e a vida indígena, por exemplo, os que permitem compreender a impossibilidade de hierarquização dos conhecimentos. A primeira é a evidência de diferenças entre a visão de mundo e de vida que orienta os povos indígenas e a visão de mundo e de vida dos não-índios orientada e praticada por médicos, antropólogos, sociólogos, economistas e astronautas. Essa diferença de visões do mundo e da vida produz diferentes pressupostos de racionalidades e lógicas que constituem os conhecimentos. Podemos concluir que cada cultura tem forma própria de organizar, produzir, transmitir e aplicar conhecimentos – conhecimentos sempre no plural. Os povos indígenas, em geral, organizam seus conhecimentos a partir da cosmologia ancestral que garante e sustenta a possibilidade de vida. A base primordial é a natureza/mundo. É a cosmologia que estabelece os princípios norteadores e pressupostos básicos da organização social, política, econômica e religiosa. As virtudes, valores e contravalores são definidos desde a criação do mundo, mas cabe ao homem criar condições de suas efetividades. Deste modo, os conhecimentos produzidos e transmitidos recebem essa função social – conhecimentos são socialmente construídos – enquanto aperfeiçoamento da vida. Mas no mundo não-indígena os conhecimentos, ao cumprir função social (objetivo coletivo), constituem um pilar do poder político, sendo, portanto, objeto de disputa e manipulação de grupos e indivíduos, o que acaba criando status de poder diferenciado e uma escala de valores subjetivos hierarquizados. O método preferencial indígena é considerar as coisas na sua totalidade. O indivíduo deve buscar compreender/conhecer ao máximo o funcionamento do mundo/natureza não para dominar e controlar, mas para seguir e respeitar sua lógica, seus limites e potencialidades em benefício de sua vida enquanto ser privilegiado na criação. Os povos indígenas produzem conhecimentos e inovações nas artes, literatura e ciências: desenhos, danças, lendas, músicas, domesticação de animais, manejo de recursos naturais, melhoramento vegetal, medicina natural, astrologia... (SANTOS, 2004). 193
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Outro desafio importante é o choque de conhecimentos. Na universidade, aprendem outras “verdades” que contrapõem ou negam os conhecimentos e valores tradicionais de seu povo e isso cria um mal-estar complicado de se istrar e um conflito de lealdades. Afinal de contas, quem está com a razão? Isso leva muito tempo para equilibrar a convivência com diferentes “verdades”, o que acaba gerando forte relativismo de suas concepções sobre seus valores e conhecimentos tradicionais. Esse relativismo é igualmente complicado e, por vezes, perverso, pois leva a pessoa a duvidar de si mesma enquanto pertencente a um grupo étnico, na medida em que tudo aquilo que lhe fazia indígena – pertencente a determinado povo, cultura e identidade –, agora está em questão, e esse questionamento, do ponto de vista do seu povo, é perigoso e, portanto, você corre o risco de ser repelido, por conta da autodefesa étnica e quebra de lealdade. A experiência pessoal indica que, de fato, essas tensões, inclusive de cunho puramente pessoal, são reais e muito fortes. Trata-se de sentimento confuso entre os seus interesses acadêmicos e profissionais e os interesses, demandas e perspectivas das comunidades de origem, além da sensação de discriminação por parte dos próprios povos indígenas e da sociedade nacional, pela visão e tratamento de que, pelo fato de ascender na carreira acadêmica, o estudante indígena de ensino superior é considerado menos índio e, portanto, menos legítimo para representar os interesses do próprio povo. Isso não é apenas sensação e traduz-se no pouco espaço que lhe é destinado no movimento indígena organizado. Neste sentido, a emergência do tema étnico na Universidade está situada em um contexto caracterizado pelo aparecimento de novos atores, paradigmas teórico-metodológicos e agentes sociais em educação, sendo que uma de suas manifestações é que organizações e sujeitos indígenas no Brasil estejam propondo, negociando e desenvolvendo propostas educativas interculturais construídas a partir da realidade e buscam imprimir aos processos educativos uma ancoragem na identidade étnica e na cultura. Essa dinâmica de negociação dos processos culturais deriva do fato de que os processos de globalização vigentes não supõem de maneira imediata a desagregação das culturas étnicas e das dinâmicas locais, do mesmo modo que não obtiveram a desagregação das comunidades nacionais. Para se compreender o processo histórico das relações estabelecidas entre os povos indígenas e o Estado brasileiro, é importante compreender em que contexto e com que significado e perspectivas são hoje reivindicados pelos povos indígenas o o ao ensino superior e a aceitação por parte do Estado e da sociedade brasileira. Afinal de contas, o projeto coletivo de formação de uma inteligentsia indígena acaba por mexer na lealdade dos acadêmicos indígenas e das coletividades étnicas, à perspectiva acadêmico/ científica ocidental ou às perspectivas de suas comunidades, uma vez que hoje esse é o maior desafio e dilema nesse novo campo de interação dos po194
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vos indígenas, sem um avanço mais pragmático da filosofia e da política de interculturalidade – ainda muito distante dos centros acadêmicos. Os instrumentos analíticos cumulativos da antropologia ainda poderiam contribuir muito mais para o maior equilíbrio nas correlações de forças, mas para isso seria necessário colocar nas mãos dos índios toda essa riqueza acumulada, o que permitiria que entrassem no ambiente de diálogo qualificado em melhores condições. Sem isso, os povos indígenas continuarão fortes objetos de conhecimento e instrumentos e moedas de troca para os interesses das elites políticas e econômicas da sociedade dominante.
Lideranças e acadêmicos indígenas nas sombras da tutela Da relação tutelar construída ao longo do último século sob a orientação colonizadora ora do Estado, ora da Igreja, ora das ONGs, resultaram os principais desafios enfrentados pelas lideranças e acadêmicos indígenas, cada um no seu campo de atuação, distantes ou divergentes entre si, mas enfrentando a mesma causa e efeito, sem que se deem conta disso, pela própria forma como a nova tutela opera de modo consciente ou inconsciente pelos seus praticantes. Não é tão difícil perceber tal situação. Basta analisar o fato de que o interesse dos povos indígenas pelo ensino superior está relacionado à aspiração coletiva de enfrentar as condições de vida e marginalização, na medida em que veem a educação como uma ferramenta para promover suas próprias propostas de desenvolvimento – por meio do fortalecimento de seus conhecimentos originários de suas instituições – e incrementar suas capacidades de negociação, pressão e intervenção dentro e fora de suas comunidades. Por que então, mesmo com os primeiros indígenas egressos das universidades em diferentes especialidades estimados em pelo menos 500, continuam sem sinais claros de mudanças concretas nas possibilidades ou oportunidades? Minha hipótese é de que não basta apenas formar indígenas para garantir seu protagonismo e autonomia, sem romper as diferentes formas de tutela e colonização. Não é uma tarefa fácil, na medida em que na atualidade isso também depende dos próprios índios, uma vez que muitos grupos se tornaram resistentes a isso pela relação de dependência e cumplicidade que foram induzidos a adotar na relação com o Estado, com as Igrejas e com as ONGs. Por conta disso, hoje os acadêmicos e profissionais indígenas sofrem dupla exclusão ou discriminação. São percebidos como ameaças aos postos de lideranças indígenas e ameaças aos postos de assessorias e consultorias para questões indígenas entre os dirigentes e equipes técnicas das ONGs. Em função disso, são excluídos dos processos de discussões, dos espaços de tomadas de decisões e dos espaços de execução de ações e políticas. Quando a ameaça é mais iminente e real, a justificativa para garantir o trabalho e o salário dos assessores não-índios é a concorrência pela qualidade técnicocientífica, além, é claro, do tempo de experiência, sabendo-se que os indí195
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genas egressos das universidades ainda não dispõem desses requisitos e se não lhes forem dadas oportunidades – o que poderia ser com a legítima justificativa de domínio do notório saber – tão cedo não terão condições de concorrer de forma igualitária com os não-índios, já que ainda levarão tempo para ter seus primeiros especialistas reconhecidos nacional ou internacionalmente, mestres e doutores. Mesmo com um número significativo de profissionais indígenas habilitados, as oportunidades e os espaços estratégicos no âmbito interno do movimento indígena e no âmbito das políticas públicas continuam sendo ocupados por profissionais não–indígenas, especialmente os ligados às ONGs indigenistas, na maioria das vezes com apoio das próprias organizações indígenas. A justificativa é sempre que os indígenas não estão suficientemente preparados e qualificados para exercer tais tarefas, pois os cursos universitários não dão conta disso, o que pode ser verdade, mas que poderia ser complementado com cursos específicos, aliás, como fazem para suas equipes técnicas não-indígenas – que também saem das universidades com as mesmas deficiências na formação. Esse depoimento pode parecer radical, mas, vivendo duas décadas em meio ao fogo cruzado, sei bem como as coisas de fato acontecem. Cada um defende o seu espaço, o seu emprego, o seu status quo e ninguém quer criar cobras, muito menos incorporar cobras em sua casa. É óbvio que os indígenas egressos das universidades adotem posturas mais críticas a práticas tutelares viciadas e busquem provocar mudanças – e é isso que incomoda e ameaça as lideranças indígenas, dirigentes e equipes não-indígenas das ONGs. Afinal de contas, os indígenas formados nas universidades acumularam conhecimentos novos que os capacitaram a uma visão crítica e transformadora e, ao retornarem para suas comunidades, estão sedentos de contribuir para as mudanças que precisam ser feitas pela comunidade para melhorar as condições de vidas das pessoas, questionando, enfrentando e denunciando muitas vezes práticas viciadas de corrupção e autoritarismo das velhas lideranças indígenas forjadas pela ideologia tutelar, paternalista e autoritária da prática indigenista da FUNAI. A título de exemplo, cito o caso de caciques indígenas que expulsam seus próprios parentes indígenas de suas terras para arrendálas em proveito próprio, com a cumplicidade ou omissão dos funcionários e dirigentes da FUNAI. Por fim, não basta apenas inovar os instrumentos metodológicos e epistemológicos da antropologia ou das ciências de um modo geral para que os estudantes indígenas não se distanciem dos processos societários dos seus povos. É necessário superar velhas práticas tutelares enraizadas nas nossas instituições, inclusive nas organizações indígenas e indigenistas. Mas, como fazer isso sem romper com os parceiros, aliados e assessores de longas datas, considerando que continuam sendo fundamentais para manutenção e ampliação dos direitos indígenas no Brasil? Talvez essa seja a razão da cumplici196
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dade entre as lideranças das organizações indígenas e dos antropólogos das ONGs em detrimento dos estudantes universitários indígenas que clamam por um espaço, pelo menos em suas próprias comunidades e organizações. Mais uma vez, reitero a minha posição de nada contra os assessores e aliados, mas tudo a favor de uma autonomia e um protagonismo radical dos povos indígenas, com todas as consequências e riscos que isso implica.
Contexto geral da Educação Superior Indígena no Brasil O surgimento de políticas de ações afirmativas nos últimos anos no âmbito das políticas públicas do Brasil está estimulando e oportunizando o ingresso e permanência de jovens indígenas no ensino superior. Estima-se que hoje sejam mais de 5.000 (CEB/CNE, 2007) índios no ensino superior, o que é uma enorme surpresa, uma vez que até uma década atrás esse número não chegava a 500 indígenas. O mais curioso ainda é que esse número representa mais da metade do número de estudantes indígenas no ensino médio, de pouco mais de 7.000 indígenas (INEP, 2007). Se o crescimento atual da oferta no ensino superior e no ensino médio se mantiver nos próximos anos, poderemos ter um fenômeno curioso – de termos mais vagas no ensino superior do que a demanda de indígenas. Este fenômeno reflete o impacto das políticas de ações afirmativas e principalmente dos sistemas de cotas que muitas universidades brasileiras adotaram, ampliando consideravelmente a oferta no ensino superior para indígenas. Mas isso também indica que a oferta no ensino médio não acompanhou a mesma velocidade, por causa da pouca sensibilidade e pouca vontade política dos sistemas estaduais e municipais responsáveis pela oferta do ensino médio. Essa chegada dos indígenas às universidades coincide com a consolidação da luta institucionalizada e articulada do movimento indígena brasileiro, que inclui a organização de professores indígenas como carro-chefe na luta pelos direitos indígenas a partir da Constituição Federal de 1988, incluindo a luta pela educação de qualidade aos povos indígenas em todos os níveis e modalidades de ensino. Portadores de tradições culturais e vivendo histórias específicas, o mais importante é que estes poucos indivíduos, numericamente falando, mas que comportam uma grande diversidade sociocultural, além de serem em tudo muito diferentes entre si, são os ocupantes e possuidores legítimos de mais de 600 terras indígenas reconhecidas até o momento, segundo o Instituto Socioambiental (www.socioambiental.org.br). Em termos gerais, esse número gira em torno de 103.483.167 hectares, que estão situados na sua grande maioria na Amazônia Legal, constituindo-se em aproximadamente 21% de seu território e em mais ou menos 98,61% de todas as terras indígenas do país. As terras indígenas representam 13% do território nacional, que estão sendo legitimamente e de forma competente gerenciadas pelos 223 povos indígenas do país, mas que reivindicam, por direito legítimo e legal, políticas 197
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públicas adequadas para melhorar suas condições de vida e obter maior capacidade na gestão de seus territórios e dos recursos naturais neles existentes, dentre as quais políticas de educação, inclusive educação superior. Até a Constituição de 1988, os indígenas estavam submetidos ao regime tutelar no plano da lei, através do artigo 6.° do Código Civil brasileiro – eram os “silvícolas”, classificados inclusive entre os “relativamente incapazes”, junto a maiores de dezesseis/menores de vinte e um anos, mulheres casadas – em vigor desde 1917. A Constituição de 1988 pôs fim ao regime tutelar e permitiu que outras ações federais junto aos povos indígenas surgissem fora do monopólio tutelar da FUNAI, dando lugar ao delineamento de políticas específicas para os indígenas nos Ministérios da Saúde (MS), da Educação (MEC) e do Meio Ambiente (MMA). Os povos indígenas participam em diversos planos, dentre eles, por intermédio de uma comissão de professores indígenas denominada “Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena” e de uma representação no Conselho Nacional de Educação – CNE – sobre a política elaborada e gerida pelo MEC para a educação escolar indígena diferenciada, preconizada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.o 9.394, de 20 de dezembro de 1996), e executada pelas secretarias estaduais e municipais de educação, rumando para o equacionamento de um ensino médio e reivindicando o o à universidade, de modo a garantir competências para melhor gerir seus territórios. Em face desse quadro é que vão se afirmando as demandas indígenas por educação superior e pelo reconhecimento da necessidade do diálogo da universidade com seus conhecimentos tradicionais. Por meio de suas organizações e outras formas de representação, os povos indígenas, distribuídos entre diversos ministérios, têm reivindicado a universidade enquanto espaço de formação qualificada de quadros não apenas para elaborar e gerir projetos em terras indígenas, mas também para acompanhar a complexa istração da questão indígena no nível governamental. Querem ter condições de dialogar, sem mediadores brancos, pardos ou negros, com estas instâncias istrativas, ocupando os espaços de representação que vão sendo abertos à participação indígena em conselhos, comissões e grupos de trabalho ministeriais em áreas como a educação, saúde, meio ambiente e agricultura, para citar as mais importantes. Desejam poder viver de suas terras, aliando seus conhecimentos com outros oriundos do acervo técnico-científico ocidental, que lhes permitam enfrentar a situação de definição de um território finito. Este debate está apenas iniciando, constituindo um imenso e promissor campo pouco explorado de pesquisas didático-pedagógicas, sobretudo quando se pensa no reconhecimento, hoje, dos direitos coletivos dos povos indígenas sobre seus conhecimentos tradicionais e em sua importância estratégica em áreas científicas de ponta, como a biotecnologia, e em suas potencialidades em disciplinas como a engenharia florestal, agronomia, farmácia e medicina, apenas para mencionar campos em que já existem iniciativas 198
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para incorporar os conhecimentos tradicionais. Desejam, em suma, que sua imensa riqueza sociocultural, bem como dos recursos naturais de que são os legítimos possuidores, reverta-se em bem-estar material de acordo com suas escolhas próprias. Em meio a essa efervescência sociopolítica, um conjunto de políticas, iniciadas na virada do milênio, voltou-se para a formação de indígenas em cursos de licenciatura específicos, em decorrência de normas jurídicas relativas à obrigatoriedade da formação superior de professores – incluindo professores indígenas – e ao ensino escolar intercultural, bilíngue, diferenciado, garantido aos povos indígenas pela Constituição de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.o 9.394, de 20 de dezembro de 1996) e pelo Plano Nacional de Educação (Lei n.o 10.172, de 9 de janeiro de 2001). Entre estas normas, destacou-se a resolução n.o. 3 do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 1999, que estabeleceu como dever dos Estados promover a formação continuada do professorado indígena, bem como instituir e regulamentar a profissionalização e o reconhecimento próprio do magistério indígena. O Plano Nacional de Educação, de 2001, por sua vez, estabeleceu em sua meta n.o 17 a formação de professores indígenas em nível superior, por meio da colaboração entre universidades e instituições de nível equivalente. A exigência de diploma universitário para a atuação de professores a partir da segunda fase do ensino fundamental foi o que desencadeou a criação dos cursos de licenciatura intercultural, com vestibular específico para indígenas, e provocou demandas em outras áreas de conhecimento, principalmente áreas voltadas para o etnodesenvolvimento das comunidades indígenas e para a gestão territorial de suas terras. A escolarização em todos os níveis ou a ser uma das principais bandeiras de luta dos povos indígenas. Esta opção estratégica se deve ao fato de que os povos indígenas consideram a formação escolar como um dos instrumentos importantes de luta pela defesa e promoção dos direitos indígenas, na medida em que permite a apropriação dos conhecimentos e tecnologias do mundo moderno capazes de contribuir para a melhoria das condições de vida em suas aldeias e como possibilidade de participação política, que irá contribuir para formulação e implementação de políticas públicas desejadas. Ou seja, a formação escolar, particularmente o ensino superior, é considerada como uma possibilidade de o à cidadania e recuperação da autonomia étnica, no contexto do mundo moderno e dos Estados nacionais. A crescente demanda indígena pelo ensino superior na atualidade tem diversas origens e motivações. Em primeiro lugar, reflete o processo de interação com o mundo global e uma tendência de incorporação de certos ideais de vida da sociedade moderna. Em segundo lugar, a demanda tem origem no próprio avanço do processo de escolarização cada vez mais crescente dos povos indígenas do Brasil observado nos últimos anos. Esse avanço é bastante tardio se compararmos com os outros países latino-americanos. Expe199
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riências de escolarização, como as do alto rio Negro, no Estado do Amazonas, oferecidas pelos missionários há quase um século segundo princípios assimilacionistas, sugerem que a escolarização, seja qual for a sua modalidade e qualidade, é quase sempre desejada pelos povos indígenas porque acaba sempre contribuindo para o surgimento e acúmulo de capital social e político crítico, capaz de propor e implementar novas formas e estratégias de defesa e garantia dos direitos coletivos dos povos indígenas. No caso do alto rio Negro esse capital social, intelectual e político possibilitou a criação de uma rede de 93 organizações indígenas multiétnicas organizadas em torno de uma Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN), uma das mais articuladas e estruturadas do movimento indígena brasileiro. A terceira motivação parte da necessidade do movimento indígena emergente de qualificar seus quadros para os processos de interlocução e intervenção nas políticas em base a um diálogo menos verticalizado, em favor dos direitos e interesses indígenas. Essa motivação tem a ver com a estratégia adotada pelos povos e organizações indígenas na luta pela apropriação dos instrumentos de poder dos brancos gerados a partir dos conhecimentos científicos e tecnológicos para ajudar na solução de velhos e novos problemas pós-contato enfrentados pelos povos indígenas do Brasil. Por fim, as demandas pelo ensino superior estão relacionadas à maior consciência dos povos indígenas de seus direitos de cidadania, da consciência histórica, política e cultural em que se encontram e das possibilidades de construção de seus projetos étnicos de futuro. No âmbito do poder público, a discussão tem sido intensa, mas as ações concretas têm sido tímidas e pouco claras, talvez por conta da falta de consenso em torno da questão por parte das elites que sustentam os governos. O esforço tem sido na linha das políticas de quotas para os negros e índios nas universidades públicas e privadas. A FUNAI, por exemplo, já há alguns anos vem oferecendo bolsas de estudos para estudantes indígenas em universidades particulares. As outras ações concretas no âmbito das políticas públicas têm a ver com a criação e ampliação da oferta de bolsas como o PROUNI, que tem possibilitado a ampliação do o ao ensino superior por parte dos estudantes de baixa renda, e em menor grau aos estudantes indígenas, que hoje já somam mais de 900 beneficiários, apesar das dificuldades de comunicação e burocrático-istrativas. As iniciativas mais efetivas e de maior relevância na oferta de ensino superior aos povos indígenas, considerando os impactos na vida dos povos indígenas, são os cursos específicos destinados à formação de professores indígenas oferecidos pelas universidades públicas, que estão se multiplicando cada vez mais. Em 2007, estavam funcionando no Brasil 8 licenciaturas interculturais destinadas aos professores indígenas. Estima-se que até o momento mais de 1.500 professores indígenas já concluíram ou estão em fase de conclusão do ensino superior. Destes, 195 haviam se diplomado ainda em 2007, 200
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na Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT), e 120 em 2008, na Universidade Federal de Roraima (Núcleo Inskiran de Formação Indígena) em Licenciatura Intercultural, além de 250 professores que já haviam concluído a graduação no Alto Rio Negro em diferentes cursos de extensão universitária desde a década de 1990, por meio dos cursos pioneiros de interiorização da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), além de tantos outros que estão em curso. Este novo quadro de professores com ensino superior é uma aposta das comunidades indígenas para inovar a prática da educação escolar vigente nas comunidades, capaz de contribuir para os processos de resistência e luta pela retomada da autonomia de seus projetos coletivos. O desafio atual, que começa a ser fortemente pleiteado pelos povos indígenas, é o o a outras modalidades de ensino, principalmente aquele de interesses prioritários e estratégicos, como medicina, direito, engenharia florestal/ ambiental, etc. Assim, os cenários indígenas brasileiros, neste início do século XXI, apontam para a necessidade de diagnósticos aprofundados produzidos pelos próprios povos indígenas e suas organizações sobre a diversidade de situações no país, fornecendo subsídios para que as políticas de ações afirmativas construídas em favor destes povos levem em conta a especificidade das suas demandas e da situação indígena dentro do ordenamento jurídico pós-tutelar atualmente em vigor, e estejam à altura dos desafios práticos por ele colocados, ajudando a questioná-lo, aperfeiçoá-lo e redefini-lo. É essencial ter os próprios indígenas na condução deste processo, o que só ocorrerá quando se deixar de apenas usar sua participação em fóruns variados, de modo a legitimá-los enquanto comprometidos com a defesa da diversidade, ando-se a reconhecer a especificidade de seus interesses e posições. Talvez assim as ações afirmativas para o o de indígenas ao ensino superior, que foram adotadas até o momento sob diferentes formatos por cerca de 30% das universidades públicas no Brasil, possam adquirir sentido ainda mais abrangente.
Algumas conclusões Considerando as experiências concretas em curso no Brasil, o movimento indígena, que inclui os acadêmicos indígenas e o movimento indigenista – que por sua vez inclui antropólogos como seus dirigentes –, enfrentam desafios explícitos e implícitos comuns e incomuns. Antes disso, é importante registrar a conquista do direito de o ao ensino superior, o que por si só abre infinitas possibilidades e oportunidades de mudanças e melhorias na luta e na vida dos povos indígenas. Entretanto, os desafios ainda são muitos e sérios. O principal é como as comunidades e as organizações indígenas podem aproveitar o potencial dos emergentes acadêmicos indígenas. Sustento que, para dar o primeiro o, é necessário romper a muralha tutelar e colonialista dos indigenistas não-indigenas, na sua maioria antropólogos, 201
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que continuam tutores, porta-vozes e consultores para tratar de questões dos povos indígenas, e repensar o novo papel das ONGS. Em segundo lugar, é necessário romper o dogmatismo e o autoritarismo da ciência acadêmica, para dar lugar ao diálogo de saberes diferentes, mas equivalentes. Sem essas mudanças, os povos e organizações indígenas continuam retardando suas autonomias e protagonismos, pois continuam sob o domínio e tutela de não-índios e excluem e discriminam os próprios parentes indígenas formados. Da parte dos acadêmicos indígenas, é necessário forçar mudanças no interior das academias para que eles recebam a formação adequada e desejada pelos estudantes e suas comunidades. Por fim, o modelo atual de oferta do ensino superior aos povos indígenas tem a relevância de elevar a autoestima dos jovens indígenas e de suas famílias e melhorar o patamar de diálogo entre os povos indígenas, a academia e o Estado. Mas também cria situações constrangedoras e desanimadoras aos estudantes, que sofrem múltiplas pressões: da política excludente e pragmática das universidades em seus conteúdos e metodologias adotados, de suas comunidades, pois não conseguem corresponder às suas expectativas e demandas pela inadequação dos cursos realizados, e ainda sofrem discriminação das organizações indígenas por valorizarem prioritariamente técnicos não-indígenas em detrimento dos técnicos indígenas.
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. o em 2006. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. In: Mana, v. 2, n. 2, Rio de Janeiro, 2006. 202
BUKIMUJU, XUKURANK: LIDERANÇAS, POLÍTICA E ETNOPOLÍTICA XAKRIABÁ Alessandro Roberto de Oliveira1 Introdução s eleições municipais realizadas no Brasil no ano ado (2008) revelaram números de um processo que vem ganhando proporções em diversas regiões do país nos últimos anos: a presença crescente de lideranças indígenas disputando e ocupando posições no legislativo e executivo de governos municipais. O número de candidatos indígenas eleitos prefeitos em 2008 dobrou em relação ao pleito eleitoral anterior. Em 1.º de janeiro de 2009 tomaram posse dois primeiros prefeitos indígenas do Estado do Amazonas: Pedro Garcia (PT), do povo Tariano, em São Gabriel da Cachoeira, e Mecias Sateré Mawé (PMN), em Barreirinha. Eliésio Cavalcanti (PT), do povo Makuxi, foi eleito prefeito de Uiramutã e Orlando Oliveira Justino (PSDB), do mesmo povo, foi reeleito prefeito em Normandia. Na Paraíba, em Marcação, foi reeleito Paulo Sérgio (PMDB), do povo Potiguara. A cidade também terá três vereadores indígenas. Baía da Traição, outro município na região do território Potiguara, terá um vice-prefeito indígena, Adelson Deolindo da Silva, e três vereadores indígenas – todos Potiguara. Em São João das Missões, no norte de Minas Gerais, José Nunes, do povo Xakriabá, foi reeleito prefeito municipal pelo PT. Para a Câmara Municipal também foram eleitos seis vereadores Xakriabá e, dentre estes, cinco são integrantes do mesmo partido de José Nunes (Informe n.º 837/CIMI, 09.10.2008). O povo Xakriabá já contava com um vice-prefeito – o Cacique Geral Manoel Gomes de Oliveira, mais conhecido como Cacique Rodrigão – e dois outros caciques vereadores desde a emancipação do município de São João das Missões em 1996. Mas foi em 2004 que caciques, lideranças e um grupo de professores Xakriabá pactuaram o movimento etnopolítico que resultaria na eleição do prefeito e de mais cinco vereadores Xakriabá no município. Destes, quatro vereadores Xakriabá do mesmo partido, o PT2. Em 2008 o prefeito Xakriabá José Nunes de Oliveira foi reeleito com 64,99% dos votos. “Eu
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1 Doutorando em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Antropologia Social, UnB, 2008. Este artigo é uma versão condensada de alguns argumentos desenvolvidos em minha dissertação de mestrado Política e Políticos Indígenas: a Experiência Xakriabá, defendida em março de 2008. A pesquisa que deu origem ao trabalho teve início em 2004 na graduação e foi aprofundada no mestrado. Sou grato ao professor Stephen G. Baines pela orientação atenta e aos participantes da banca, Dr. Henyo T. Barreto Filho e Dr. Cristhian Teófilo da Silva, agradeço aos comentários e observações críticas à dissertação, parcialmente incorporadas neste artigo. 2 Por movimento etnopolítico entende-se: “las afirmaciones protagónicas de la etnicidad, estruturadas em forma de organizaciones no tradicionales orientadas hacia la defensa de los intereses de los grupos étnicos”. (Bartolomé 1996, p. 04)
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acho que nossa vitória é resultado do trabalho que fizemos e do respaldo que o povo, que é maioria na cidade, dá para a gente. E entre os não-índios, mais de 40% aprovam nosso trabalho. A gente tem feito um trabalho de buscar a harmonia”, avalia o prefeito3. Este artigo trata deste processo de politização Xakriabá e pretende situar as transformações da autoridade política decorrentes deste processo, sobretudo nos últimos vinte anos. A ideia é explorar a expansão do conceito de liderança, que parece sincretizar todas as figuras de autoridade (chefe, cacique, pajé) previstas na relação colonial, bem como atualizações centradas na figura do professor e do político para os Xakriabá. O texto está centrado nos relatos de dois líderes, atualmente situados em diferentes posições de autoridade. As vozes das duas lideranças podem ser lidos como retratos do modelo e dos esquemas de distribuição de poder nas relações entre os Xakriabá, e também entre o povo indígena, atores locais e os poderes (executivo e legislativo) de São João das Missões. O povo Xakriabá4 vive hoje em duas Terras Indígenas contíguas homologadas pelo Estado brasileiro e somam 7.665 pessoas (ISA; FUNASA, 2006). São aproximadamente 27 aldeias e 26 subaldeias entre a TI Xakriabá homologada em 1987 e a TI Xakriabá Rancharia, reconhecida em 2003, que somam juntas aproximadamente 53 mil hectares. Atualmente, o território Xakriabá está contido nos 67 mil hectares que constituem o município de São João das Missões. O antigo aldeamento missionário do século XVIII foi emancipado em 1995, quando foi desmembrado do município de Itacarambi. São João das Missões detém hoje uma população de 10.769 moradores (IBGE). O sistema político Xakriabá atual é composto pelo Cacique Geral e por 19 lideranças e 17 vice-lideranças (FUNASA, 2003). Os números deste sistema variam e o status de liderança e vice é diretamente proporcional ao reconhecimento da localidade que se lidera como aldeia ou sub-aldeia pelos outros caciques. O surgimento e/ou reconhecimento da posição envolve fatores diversos como a emergência, nomeação ou transmissão das funções de líder local. 3 Apesar do bom resultado, o processo eleitoral na cidade foi tenso. No dia 10 de agosto, o jovem Xakriabá Edson Dourado Leite, um apoiador de José Nunes foi assassinado a facadas. Apesar da tragédia José Nunes observa: “Não acho que exista uma raiva entre índios e não-índios. É uma facção que comete esses crimes”. 4 Linguisticamente, o povo Xakriabá está filiado ao tronco linguístico Ge, sudivisão Akuên (LOWIE, 1946). Originários da parte meridional das terras entre o rio São Francisco e o rio Tocantins, possuem ancestralidade compartilhada com os índios Xerente e Xavante. Melatti (1993) classifica os Xakriabá como pertencentes ao tronco linguístico Macro-Jê, família Jê, língua Akuên, junto a estes dois outros povos e dialetos. No mapa etno-histórico elaborado por Curt Nimuendaju (1944), no século XVIII, os “Shakriabá” estão situados em aldeamentos na região entre os rios Urucuia e Paracatu, afluentes da margem esquerda do São Francisco; na região do rio Palma, afluente da margem direita do Tocantins em Goiás, e na região do rio Gurgeia, afluente da margem direita do Parnaíba, entre os Estados da Bahia e Piauí. Historicamente, os Xakriabá estão relacionados aos movimentos colonizadores no alto-médio São Francisco, no norte de Minas Gerais. Um documento outorgado pelo bandeirante paulista Januário Cardoso de Almeida, na qualidade de “Deministrador do Indios da Missão do Snr S. João do Riaxo do Itacaramby” (Certidão Verbum-Adverbum – Uma doação), definiu limites das terras ocupadas pelos índios numa carta de doação, protocolada em Cartório, no ano de 1728. Junto com a definição dos limites territoriais, o bandeirante ordenou para que se “ajuntassem” todos os índios que andavam para fora da Missão, para que fossem doutrinados, não furtassem os fazendeiros e virassem trabalhadores de suas fazendas.
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A princípio, lide- 0 35 quilômetros rança é o neotermo para distinguir os caciques de Rio São Francisco suas respectivas comuniSão João das Missões dades locais (outrora cheTI Xakriabá fes) e o Cacique Xakriabá, TI Xakriabá Rancharia figura central desta estrutura política. As chefias sempre foram marcadas eminentemente pelo caráter familiar, derivadas Legenda Bahia da formação dos núcleos Terras Indígenas em MG familiares que se consoBrasília Terra Indígena Xakriabá Estado de lidaram historicamente Minas Gerais Município de São João pela fixação dos filhos(as) das Missões Belo casados no local de moHorizonte radia dos pais de um dos recém-casados, forRio de Janeiro São Paulo mando uma rua de casas (SANTOS, 1996, p. 166). Figura 1 – Localização da TI Xakriabá A unidade da terra e a autoridade de chefes gerais foram configuradas historicamente a partir de negociações na concepção e acomodação de esferas de autoridade e autonomia na relação entre os antigos chefes gerais e chefes locais. Resumindo: o chefe simbolizava a unidade. A negociação de esferas de autoridade viabiliza a existência e a legitimidade do líder central.Como parte dos processos de territorialização estatal, a instalação de um “modelo indígena” pelo órgão indigenista oficial brasileiro nas áreas tradicionalmente ocupadas por índios incluiu basicamente três posições: a de cacique (geral), a de pajé e a de conselheiro tribal, tomadas como “tradicionais” e “autenticamente indígenas”. A indicação/ratificação dos ocupantes destes papéis foi em grande parte realizada por agentes indigenistas locais (como o chefe do Posto Indígena), que de fato ocupava o centro dessa estrutura de poder e era quem distribuía os benefícios provenientes do Estado – de alimentos a empregos, empréstimos ou permissões de uso de instrumentos agrícolas, meios de transporte, etc. (OLIVEIRA FILHO, 1988, p. 14). A figura do Estado tem deixado de exercer o controle das práticas e representações modelares da indianidade nos últimos anos, embora ainda tenha atribuições e competências legais que condicionam esta arena política (OLIVEIRA, 2002; PERES, 2003; BAINES, 2006). O interessante então é perspectivar a atividade propriamente criadora dos povos indígenas (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 115) e delinear como as lideranças Xakriabá fizeram a apropriação-expansão deste modelo, agregando estruturas políticas outras – como os partidos políticos. 205
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De modo geral o fenômeno da politização indígena não é novo. No início dos anos oitenta, diversas lideranças indígenas afiliaram-se a partidos políticos e houve uma “epidemia” de candidaturas indígenas à Câmara dos Deputados às vésperas das eleições para a Assembleia Nacional Constituinte. Alcida Ramos (1990) chamou a atenção dos antropólogos para o processo de politização dos índios e para as diversas facetas da consciência política que é possível detectar no mundo indígena (RAMOS, 1990, p. 136)5. A inserção indígena no plano da política nacional não se revelou uma constante desde a experiência protagonizada por Mário Juruna, mas, como os números dos últimos pleitos municipais indicam, é cada vez maior o número de candidatos e de eleitos indígenas nas esferas públicas locais. Dados como minoria étnica no concerto nacional, os coletivos indígenas estão configurando grupos e maiorias políticas em alguns municípios brasileiros, como é o caso de São João das Missões. Analisar as inflexões da etnopolítica entre os Xakriabá exige uma perspectiva teoricamente contida e etnograficamente aberta às diferentes facetas da consciência política entre os Xakriabá. Nesse sentido, adoto a perspectiva de antropologia política formulada por Pierre Clastres ([1974] 2003, 2004), centrada no problema do exercício do poder, definido como força que cria e sustenta um espaço coletivo e que é acompanhado de forças centrífugas ou contrapoderes que criam um espaço de inflexões inerentes ao próprio sistema político indígena, com a intenção de produzir uma reflexão orientada para as relações diferenciais de constituição política da liderança observáveis na história do povo Xakriabá6. 5 O caso do Xavante Mário Juruna é emblemático do grau de sucesso e os resultados dessa inserção indígena na ossatura do poder público no Brasil. Em 1982, o cacique foi eleito deputado federal pelo PDT do Estado do Rio de Janeiro e ficou famoso por andar em Brasília com um gravador com o qual gravava as promessas feitas por políticos frente às reivindicações indígenas. Conforme a abertura política, Juruna foi perdendo visibilidade e, depois de ser envolvido num escândalo sobre acusações de corrupção, foi sendo descartado da cena política e não se reelegeu em 1986. Aos 58 anos, com a saúde debilitada por problemas de diabetes e hipertensão, o excacique Xavante morreu em 2002, em Brasília. Seu corpo foi velado no salão negro da Câmara dos Deputados e levado, por um avião da FUNAI, para a tribo Xavante Namunkurá, no Estado do Mato Grosso (Folha de São Paulo, 2002). 6 A antropologia política tem como um de seus marcos de origem a publicação da coletânea African Political Systems, organizada por Evans-Pritchard e Fortes (1940). O argumento elaborado pelos autores é que, na ausência do Estado, outras instituições desempenhariam as mesmas funções estatais. Nas chamadas “sociedades segmentares”, as linhagens (essencialmente agnáticas) seriam responsáveis pela mediação entre o “sangue” e o “território”. Ao introduzir a noção de segmentaridade no pensamento antropológico, Evans-Pritchard (com sua atenção aos princípios ideológicos e mentais que comandariam a organização social entre os Nuer) e Fortes (com seu enfoque sociológico sobre as ações de “grupos corporados” entre os Tallensi) acabaram por legar dois fantasmas teóricos gêmeos, dos quais, de certo modo, jamais conseguimos nos livrar: um tipologismo, capaz de abarcar os princípios ideológicos e mentais que comandariam a organização social e um morfologismo – ao determinar um modo específico de organização social que não se confundisse nem com o parentesco e nem com o Estado (cf. GOLDMAN, 2006). As críticas a esta tipologia e a desconsideração pela agência individual foram elaboradas, dentre outros, fundamentalmente por Edmund Leach ([1954] 1996). Em seu estudo comparativo das populações Kachin e Chan na alta Birmânia, Leach criticou as noções de equilíbrio e de estabilidade subjacentes nos trabalhos de seus predecessores. Leach argumentou que a natureza fictícia destes sistemas em equilíbrio fosse francamente reconhecida. Era necessário distinguir modelos concebidos pelos nativos, o modelo criado pelo antropólogo e a instabilidade real dos sistemas políticos. Para Leach, o foco deveria ser a interação entre os indivíduos – onde é possível observar a “estrutura social em situações práticas”. As incongruências evidenciadas em contexto seriam chaves para a compreensão da mudança social.
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Em verdade, não se trata de aplicar o paradigma da chefia sem poder elaborado por Clastres para analisar a esfera política entre os grupos indígenas das Terras Baixas da América do Sul (fundado em três níveis essenciais da sociedade vista como universo comunicativo de troca de bens, de mulheres e de palavras). E muito menos estabelecer relações de diferença ou semelhança entre atributos característicos do chefe (pacificador/generoso/bom orador) identificados pelo autor e aqueles sugeridos pelo contexto etnográfico em tela. Pierre Clastres sustenta que o que seria singular a dinâmica das sociedades indígenas sul-americanas seria a tendência ao sistema de exercício do poder esboçado acima, tendência desigualmente realizada em extensão e profundidade conforme se a de um momento a outro. Este sistema no qual forças centrípetas e centrífugas variam de acordo com circunstâncias concretas – demográficas, religiosas – sendo a distribuição destas forças sempre relativa à dimensão do socius que se considera. A partir desta imagem de Clastres, proponho uma análise sobre as relações diferenciais de constituição da liderança na história Xakriabá e incorporo algumas interrogações do autor, dentre elas, uma em especial: “Será que a natureza do poder político permanece inalterada quando se estende e se fortalece seu campo de aplicação demográfico?” (2003: p. 98) Este artigo estrutura-se neste sentido da combinação de Leach e Clastres: os relatos das lideranças constituem expressões modelares do sistema político Xakriabá. A análise considera ambos os modelos projetados pelas lideranças e a interação entre estas lideranças em uma situação prática de uma reunião comunitária. Os fenômenos aqui analisados provêm do campo da atividade consciente pela qual o grupo elabora seus modelos e é o modelo estrutural da relação dos Xakriabá com o poder político que se pretende sistematizar através da intencionalidade sociológica – lugar da elaboração dos modelos – presente nos discursos de suas lideranças. O texto está divido em três partes. A primeira é dedicada à perspectiva de um líder tradicional, Emílio Gomes de Oliveira, cacique de três aldeias e professor de cultura cuja experiência e trajetória como líder está diretamente associada à luta pela demarcação da terra Xakriabá e que hoje é uma referencia reconhecida como conhecedor da cultura indígena. A segunda parte do texto é dedicada a delinear a etnopolítica Xakriabá por meio da trajetória de um jovem professor indígena, coordenador da educação indígena Xakriabá, tesoureiro do Partido dos Trabalhadores e atual Secretário Municipal de Educação em São João das Missões. A terceira e última parte é dedicada a algumas considerações finais a partir de um debate entre os dois líderes Xakriabá.
História incorporada: cacique e liderança Eu me chamo Emílio Gomes de Oliveira – Caipora. É assim que Emílio se apresenta no livro Com os mais velhos, publicado pelos professores indígenas 207
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Xakriabá em 2005. Emílio é cacique de três aldeias: Pedra Redonda, Riacho Cumprido e Riachinho. Foi liderança atuante na luta pela demarcação da TI Xakriabá, sobretudo na segunda fase do processo, marcada por conflitos diretos na década de 1980. No final dos anos 1960, o governo de Minas Gerais interveio sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos então classificados como “Sucessores dos índios de São João das Missões”, localizados no extremo norte do Estado. O processo de regularização fundiária se estendeu por mais de vinte anos, em razão da dúvida das instituições envolvidas quanto à indianidade da população que reivindicava o reconhecimento étnico frente ao Estado brasileiro, um processo de demarcação de terra que perdurou por quase duas décadas e só foi concluído depois do assassinato de Rosalino Gomes de Oliveira – liderança Xakriabá na luta pela terra – e seus parentes na madrugada do dia 12 de fevereiro de 1987. Cinco meses depois da tragédia, estava consagrado o reconhecimento étnico Xakriabá, através da homologação da Terra Indígena por Decreto Presidencial, com publicação no Diário Oficial da União em 14/07/19877. Chefe de um dos grupos de apresentação do Toré, Emílio muitas vezes é apresentado e conhecido como pajé. Atualmente, além de atuar como representante Xakriabá na organização do curso de formação intercultural de professores indígenas colocado em prática pelo governo estadual entre as etnias presentes em Minas Gerais, Emílio também começou a atuar como professor de cultura (uma categoria distinta de professores recém-criada dentro do programa de educação indígena) nas escolas presentes nas comunidades comandadas por ele. Conheço Emílio desde 2004, quando fui pela primeira vez a TI Xakriabá. Desde então, acumulei alguns registros de entrevistas que Emílio me concedeu em diferentes momentos (2004-2007) e situações (em sua casa, em outras aldeias). Emílio nasceu na aldeia Pedra Redonda em 1951, no interior da que hoje é demarcada como TI Xakriabá. Entre as centenas de famílias nucleares espalhadas pela Terra Indígena, dois principais grupos de descendência são amplamente reconhecidos como detentores dos verdadeiros vínculos com os troncos antigos: Gomes de Oliveira, de origem associada às aldeias Riachinho e Brejo do Mata Fome, e Seixas Ferro, a partir da aldeia Caatinguinha. Entre os dois, os Gomes de Oliveira se sobressaem como a nação, o tronco mais forte da reserva, no dizer dos índios8. 7 Para uma análise detalhada do processo de formação do “povo indígena Xakriabá” como uma nova unidade social e política em meio às disputas através das quais as fronteiras que os individualiza se constituíram, ver dissertação de mestrado defendida por Ana Flávia Moreira Santos (1997). 8 O termo “troncos antigos” recebe em outras áreas e situações no nordeste do Brasil variações como “tronco velho”, “ponta de rama”, “raiz do pau”. Essa semiotização do mundo natural, no caso da flora, transformada em cultura, pode ser interpretada, seguindo Barretto Filho (1994), como expressão de certa concepção do tempo e das relações – de continuidade e de descontinuidade – entre as gerações, atualizando certos princípios de classificação.
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No esboço genealógico relatado por Emílio, o pai, o avô e o bisavô pertencem aos Gomes de Oliveira. Mas a origem de Emílio é uma controvérsia social. Muitos, dentro e fora da TI, têm opiniões diferentes sobre o verdadeiro local de seu nascimento. Ouvi boatos que uma mulher em Missões sabe direitinho a origem de Emílio. Uns dizem que sua origem é baiana, outros dizem que ele é da região, mas que foi adotado de fora pelos índios, vindo do outro lado do município de Januária. Conheci duas explicações para o sobrenome de Emílio. A primeira esclarece que o sobrenome Gomes teria sido transmitido a ele porque foi adotado muito criança por um integrante da família Gomes de Oliveira, que amigou com a mãe dele. Emílio seria filho de uma união anterior e teria sido adotado pela nação, e foi assim que recebeu o sobrenome tradicional. A segunda versão explica a incorporação do sobrenome por meio do casamento. O povo dele não é daqui, é de lá. Ele pode ter traçado o sobrenome porque ele casou com a filha de Joãozinho de Agostinha, que é primo nosso, é Gomes de Oliveira, me relatou um integrante “genuíno” da família referindo-se à origem de Emílio. Para afastar qualquer sombra de sua mistura com brancos ou baianos, Emílio ressalta que o avô materno era caiapó, chamado Felipo pó, um dos únicos da raça que ou pela região. Aos 58 anos de idade, atualmente Emílio é a liderança viva mais antiga entre os representantes que integram o sistema político Xakriabá. Liderança é um termo abrangente e variável, em termos do status atribuído por determinado cacique e/ou liderança em relação a outro líder comunitário no campo político interno. Pode servir para louvar o trabalho de agentes de saúde e a atuação comunitária dos professores indígenas, mas, sobretudo, serve para designar aqueles agentes políticos engajados na istração do cotidiano nas comunidades locais e/ou aqueles que atuam na representação destas em debates exteriores mais amplos relacionados às questões de interesse coletivo do povo indígena. Eu luto há muitos anos, desde o começo da luta eu estou na liderança até hoje. Eu comecei tava com 12 anos, hoje tô com 52 anos, fazendo 53 (em 2004). Tem ano. E nunca achei algum pra me tirar. Eu já quero é sair de liderança, já estou cansado, já estou ficando cocheira da perna. Mas o pior que aqui na minha aldeinha ninguém quer tomar não. Eu tenho uma viceliderança ali, mas é na marra, ele não quer não. Eu tava muito cansado, a aldeia era muito grande pra mim. Eu comandava aqui, vinha lá do Riachão, era eu, aqui Pedra Redonda, Riacho Cumprido e Riachinho. Era muito lugar pra mim moço! Aí Deus ajudou que no Riachão entrou Luís e aqui no Riachinho eu escolhi Divaldo e Maurício e pus lá pra mim, no meu lugar. Mas o povo não atende, só atende se eu tiver no meio. Aí eu falei: “não, eles vão ficar aqui, eu vou acompanhando eles a mesma coisa, qualquer coisa que não concordar com eles, eu tô junto”. 209
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Na memória social dos Xakriabá atuais, o evento fundador da história da luta pela terra é situado no início do século XX, com a derrubada de um curral construído por fazendeiros nas terras dos índios, mas, na memória vivida pelas atuais lideranças, é o processo instaurado a partir do final dos anos 1950, com a intervenção do governo estadual sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios com o objetivo de fazer a regularização fundiária na região. O pesquisador que visita os Xakriabá não tem dificuldades em notar que, quando qualquer Xakriabá dedica-se a recontar a história da luta da terra, ele recorre ao uso de uma sequencia padronizada de eventos e pessoas, uma arquitetura de personagens-símbolos que articula diversos âmbitos da vida social e que veicula ideias particulares sobre autoridade, prestígio e o sentido do trabalho da liderança9. Emílio conta essa história: A RURALMINAS chegou aqui fazendo um cadastro, uma taxa de ocupação do pessoal. Aí chegaram, cercaram e instalaram uns registros, picaram no pé dessa terra aqui todinha.[...] Aí Rodrigo, apareceu Rodrigo, Rodrigo ainda, ele foi criado lá no Paraná. Ele saiu daqui com sete anos, depois ele chegou. Aí quando chegou ele disse: “Nós vamos mexer com a terra”. Foi daí que nos começamos a brigar, mas antes desse cerco nós já vínhamos lutando. [...] Aí o posto (PI da FUNAI) chegou, mas ou muitos anos ainda pra demarcar a terra. E moço, nós amos sofrimento demais! Foi muito! Até chegou nessa data de demarcar essa reserva.[...] Aí felizmente a FUNAI mandou a equipe da Polícia Federal vim aqui fazer uma pesquisa. Aí a Polícia Federal veio, disse assim: “Ó Rodrigo, você sozinho, você nunca vai levantar essa terra, só você sozinho querendo a terra não tem jeito, você tem que fazer umas lideranças e usar o nome do pessoal, usar o nome da família, da comunidade que tem aqui porque senão você sozinho não vai resolver esse problema não”. Aí ele foi e nos escolheu pra ser liderança. Aí foi nessa época que a FUNAI junto com a Polícia Federal tiveram essa ideia. Aí eu fui citado como liderança. Eu sou dessa época, que quitou pra ser liderança, aí era eu, João Didi, Vião, já morreram tudo, João Ezequiel era. O próprio Rodrigo que ainda não era cacique, ele só tava viajando, mas não era cacique ainda. Aqui não tinha cacique, o tratamento era de chefe, depois que ou para cacique. O chefe nosso, o primeiro chefe aqui chamava Jerônimo, era avô dessa mulher minha.[...] Aí nós comecemos, criou essa liderança. Nós combinamos um grupo lá de umas seis pessoas, combinamos que ia meio-dia lá e saímos. No outro dia saímos assim adquirindo uns recursozinho em dinheiro, pessoa foi vender um bezerro que tinha e eu fui tomar dinheiro emprestado pra viajar. Arrumei lá cem conto naquele tempo, cem mirréis, setenta era cem conto hoje.[...] Fugimos daqui e fomos pra Brasília. Aí chegando lá procuramos o Ministro do serviço. Chegando lá, o Ministro: “Nunca vi um Xakriabá na minha vida”. Eu disse: pois é, então está vendo um aqui agora! 9 Para que se tenha em mente o processo de “tradicionalização” da história da luta da terra entre os Xakriabá, seu enredo é tema de redação para os candidatos à vaga no curso de formação de professores indígenas. O assunto foi tópico principal na elaboração do primeiro livro escrito pelos próprios professores indígenas, intitulado O tempo a e a história fica, publicado em 1997.
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“O quê que está acontecendo com os Xakriabá?”. Aí nós contamos a história nossa, o sofrimento que nós amos, as promessas de ser morto dentro da casa, de morrer queimado. “Moço, isso é novidade ué! Muito grande isso aí e foi beleza você chegar aqui, eu estou saindo amanhã pra arrumar minha papeleira pra entregar, mas ainda nós vamos fazer o trabalho seu”. Na hora, o Ministro ligou pra FUNAI em Brasília, ligou pra RURALMINAS, pro INCRA e pra FUNAI em Governador Valadares. A FUNAI assustou quando soube que nós estávamos lá: “o que que esse povo está caçando aí uai?”. Nós estamos caçando é o direito. Aí amos na RURALMINAS, no INCRA e fomos à delegacia de Governador Valadares mais foi a primeira vez, tudo foi a primeira vez. Aí nós começamos essa luta. Aí nós fomos fazer uma derrubada, mutirão, nós fomos tirando gente. Quando aconteceu isso com o finado Roso já tinha ado, já tinha demarcado a terra. Estava até sossegado, ninguém esperava que ia acontecer um negócio daquele não. Os posseiros já tinham saído tudo daqui de dentro, só tinha esse povo do seu Amaro que ainda tava liquidando ainda lá. Eu mesmo não estava lá na hora dos tiros não. Eu cheguei depois que já tinha acontecido. Nós ainda convidamos o finado Roso pra vim pra cá, pra fica mais perto de nós, pra sair de lá e ele falou “não, não saio não”. Aí não levou dias, quando eu tô aqui mais Marcelino, Rodrigo chega aqui: “Moço, mataram o Rosalino”. Que conversa é essa? “Com certeza. Eu vim aqui pra chamar vocês mode verifica lá e tomar umas providências, que Manoelinho tá baleado, ele tá correndo risco de morte, pra você ficar lá.”
Em 1966 uma inspeção do Serviço de Proteção ao Índio – (S.P.I), com a finalidade de “inspeccionar(sic) as terras dos índios ‘GAMELAS’...” o relator afirmava que “...a situação social dominante na região, criada por invasores e posseiros, (...) fugia da alçada do S.P.I., a solução dos problemas decorrentes...” (FUNAI, 1969. Apud SANTOS, 1997, p. 72), tendo em vista que a conclusão foi a inexistência de índios de primeira categoria na região. A posição do relator fundamentou-se nas observações quanto à ausência de organização tribal, de religião e idioma próprios, conforme o relatório de viagem à cidade São João das Missões. A dúvida sobre a indianidade e sobre quem ou quantos “ainda” a detinham protelou o processo de demarcação por mais de vinte anos. A TI Xakriabá só foi homologada pela Presidência da República com a publicação no Diário Oficial da União em 14/07/1987, cinco meses após o trágico assassinato do líder Rosalino Gomes de Oliveira e dois de seus parentes, numa emboscada arquitetada por um dos fazendeiros/grileiros da região.
Bukimuju: cultura e educação No momento “pós-territorialização”, Emílio exerceu participação efetiva nas negociações para implantação de uma educação diferenciada dentro 211
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da TI Xakriabá. Tornou-se coordenador de etnia nas negociações institucionais com o governo estadual. Recentemente, também ou a atuar como Professor de Cultura, uma categoria nova na organização da educação indígena. Como diz Emílio, ele não tem leitura, mas tem o conhecimento. Ele fala e os outros levantam o texto. Hoje, os outros professores, as funcionárias da escola e as crianças, todos são alunos de cultura nas aulas de Emílio10. Emílio é reconhecido como um dos mais velhos da apresentação da cultura, apesar de terem outros, mais velhos que ele, que não aparecem. Os outros mais velhos não aparecem, segundo José Fiuza (cacique da aldeia Itapicuru), porque são de outras ordens. Estas outras ordens estão estruturadas a partir do universo simbólico que recebe o nome de Toré: complexo ritual referente a um conjunto de procedimentos secretos, que envolvem o uso de tabaco e a ingestão e infusão da entrecasca da jurema (Mimosa nigra ou Mimosa hostilis), vegetal encontrado em determinados pontos do território indígena, e comunicação com espíritos encantados, principalmente com a Onça Cabocla, personagem fundante do mito através do qual os Xakriabá organizam a história e o encantamento da terra11. O termo “batalhão” é usado para designar tanto as “coisas” como os grupos envolvidos no ritual. O mestre ou mestra são dirigentes dos trabalhos e o “cozinheiro” é responsável pela arrumação do terreiro e pela preparação da bebida. O Toré tem esta dimensão secreta, pois está intimamente relacionado à presença de baianos e aos resultados negativos da mistura (SANTOS, 1997, p. 191). A outra dimensão externa ou pública do Toré é representada pela performance, que reúne dança e cantigas de evocação à Onça Cabocla realizadas sempre que seja importante demarcar a indianidade Xakriabá. Emílio é chefe de um dos batalhões, conhece o segredo e participa das seções secretas. Mas existem os que o contradizem: Emílio fica falando deste segredo, se ele soubesse mesmo nem falava que sabia, ele quer ser mais índio que os outros. Uma posição sólida no campo etnopolítico, tanto internamente quanto na esfera intersocietária, exige parecer índio, o que requer, além de atributos físicos e ornamentais, a definição de tradições, monitoração dos matrimô10 Nos dados de Gomes (2004, p. 5), atualmente a reserva tem escolas em 26 aldeias e três subaldeias. A organização é gerenciada por duas unidades istrativas: a Escola Estadual Indígena Bukimuju (15 endereços, 56 turmas e 1.187 alunos), primeira escola indígena conquistada pelos Xakriabá, e, posteriormente, a Escola Estadual Indígena Xukurank (14 endereços, 38 turmas e 840 alunos). Dados de 2003 apresentam 104 professores indígenas contratados pelo Estado, a maioria atuando em suas próprias comunidades. Atualmente, contam com o atendimento de 1.ª à 4.ª série em todas as aldeias e de 5.ª à 8.ª série em sistema de nucleação. A diplomação da primeira turma ocorreu em dezembro de 2003. 11 Dentre as variações do mito, a Onça Cabocla é descrita como uma índia que, no intuito de saciar a vontade de sua mãe de comer carne, transformou-se em onça e partiu em busca de caça. Ao retornar com uma novilha para ela, a mãe deveria colocar um ramo na boca da filha para que voltasse à forma humana. Como a mãe não a teria reconhecido ou não teria aguentado, a filha permaneceu para sempre uma onça encantada (PARAÍSO, 1987, p. 42). Iaiá, como a Onça Cabocla também é chamada pelos Xakriabá, ou a ser considerada a guardiã da terra e dos índios, que vem durante os rituais aconselhá-los no enfrentamento de desafios. A garantia legal das terras coincide, no plano mítico, com a volta da Onça Cabocla – distante nos momentos de crise e expropriação fundiária e que hoje vive invisível no território preservado.
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nios, fixação de um conjunto de normas internas, enfim, o respeito a certas condições políticas e culturais de um “sistema índio”. É neste campo que Emílio formula suas ideias programáticas e concentra suas ações políticas em defesa da diferença Xakriabá e confronta alteridades nos mais diversos gradientes. Eu não sou crente e nem católico – diz Emílio. Atualizar uma religião nativa frente à oferta de credos exteriores faz parte da efetivação de seu modelo de regime índio. Atualmente ocorre uma “onda” de conversões à religião evangélica dentro da reserva. Emílio enfrenta os pastores: Eu não mando na aldeia dos outros. Eu determino na minha aldeia. Na minha aldeia não tem nenhum crente. Eu não sou nem crente nem católico. Agora também eu não mando na vida de ninguém. Eu mando na minha. [...] Eu fechei a igreja daqui porque não estava dando certo. Mas desde que me pertence aqui. É aqui na divisa junto comigo aqui já, na minha aldeia [...] Era outro pastor dirigidor, que respeitava o normal nosso. Não tinha nada impedindo não. Agora trocou o dirigidor de culto e esse outro começou a discriminar a gente como feiticeiro, excomungado, que isso era coisa do capeta, que usava cocar. Ai eu fui conversar com o superior dele lá em São Paulo para fechar a igreja. Ai fechou a igreja. Hora que eu falei com eles que ia tomar a atitude de fechar a igreja, ele me ameaçou de morte. Falou na minha cara assim e eu dei uma gaitada. Eu queria era falar com o superior dele para eles mudarem o sistema de tratamento com a comunidade, de respeitar as nossas tradições e a nossa cultura. Mas o cara não deixava eu nem falar nada. O que eu fiz foi mandar o documento para o superior deles em São Paulo e fechou a igreja, aí eles foram dispensados do trabalho deles.
Desde o fechamento das fronteiras territoriais e identitárias em 1987, o casamento interétnico ou a ser um problema de regra entre os Xakriabá. Desde então, o conselho de lideranças e caciques de aldeia tentam controlar o fluxo de relações entre jovens indígenas e jovens das comunidades circundantes e do município. Em janeiro de 2004, Emílio começou a refletir sobre como a mistura foi e pode ser prejudicial ao modo de vida indígena dentro dos limites da cultura e da TI. Naquele contexto, o problema do casamento com pessoas de fora aparecia nos comentários mais curtos e incisivos de Emílio. Eu não sei como é que vai ser esse trem não, que agora entrou esse aí, que está com uma branca mesmo, pernambucana, lá do Pernambuco. Agora eu tô dizendo: “o menino, você tem que bulir com esse trem porque nós de casa somos contra”. Mas nós não podemos chegar lá e falar isso, porque nós não somos parente, somos de fora né, de casa lá dele. A aldeia lá tem cacique, tem liderança, lá tem todo mundo e ninguém liga nada. Como é que nos vamos chegar lá, não é? Agora nós estamos esperando até eles abrir 213
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a boca e pedir a opinião do povo e nós somos contra. Eles lá já disseram que tá concordado, já falaram isso, falaram isso com Edvaldo que chegou lá conversando com ela e ela contou isso.
Em um episódio pessoal, Emílio relata sobre um convite para padrinho de um casamento entre um afilhado e uma mulher não-indígena de um lugarejo fronteiriço da reserva: Eu gosto muito do menino, ele é índio mesmo, eu sei que ele é índio. Ele me considera muito mesmo. Ele nunca me deu uma má resposta. Mas um dia ele me falou, só teve uma má criação. Ele foi pedir autorização para casar. Mas antes dele me falar eu queria saber era o nome do casamento. Um dia eu estava lá no Posto ele veio falar comigo que ia casar. Ele veio pedir a autorização. Nós viemos do Posto ali ele me chamou no rumo da escola e disse que queria conversar um assunto comigo. Ele disse: “eu vou casar e queria chamar o senhor para ser padrinho meu”. Casar? “É, casar, com uma menina branca lá das Traíras”. Gente branca lá das Traíras, é? Aí você me machucou. Você me desculpa, mas eu não posso acompanhar o seu casamento. Ele até é filho do meu compadre, padrinho do meu filho. Eu disse: “você não pode desviar esse casamento não?” Ele falou: “não tem não, não tem não e eu devo casar é com quem eu gosto”. Eu disse: “isso você está certo, mas se você quer casar você tem que cumprir as normas daqui de dentro, ou então tem que morar lá fora. Se você for casar com ela, você tem que morar lá fora”. Ele também calou a boca e não respondeu mais não.
Religião e casamento. A autonomia das almas e o controle na fabricação de corpos são pilares da economia política da moral indígena para Emílio. Como liderança, as ações de Emílio dividem-se entre a chefia de aldeia, a participação nos debates do conselho de lideranças destinados a discutir os problemas internos do povo Xakriabá de maneira geral e, na política extra-aldeã, Emílio concentra-se na interlocução com o governo do Estado, especialmente sobre educação. Ele já esteve envolvido na política municipal em São João das Missões em 1997, quando exerceu uma função de mediador entre as demandas indígenas e o primeiro governo municipal, que contava com o cacique Rodrigo na vice-prefeitura. Um desentendimento com o então prefeito do município fez Emílio deixar o cargo, frustrado com a experiência de envolver-se na política dos brancos, como ele diz. O fato é que quanto mais os Xakriabá foram conquistando espaços na política local, mais Emílio foi se tornando avesso e crítico desta inserção Xakriabá nos poderes locais e aos expedientes da política dos “brancos”. 214
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A gente lutou muito e tem pouco apoio. Da nossa família não tem ninguém no governo. A família deles está tudo. Nossa aldeia de Riachinho, Prata não tem ninguém no governo. (silêncio) Zé Nunes é muito bom, mas ele é muito lento. A gente tem que ser educado e bondoso, mas tem a hora de expressar a realidade das pessoas. A gente tem que ter educação, mas tem a hora que tem que expressar. Na condição que ele está não pode segurar o tempo todo não, tem que expressar o sofrimento da gente. Eu não sirvo pra isso não. Isso é pra quem é uma pessoa mais disposta. Quando eu tenho alguma causa com o companheiro eu descarrego logo, prefiro descarregar logo que ficar guardando. Meu regime é tão esquisito, a expressão que eu tenho com o companheiro eu despejo logo na cara dele e nós vamos ver o que vai dar, eu falo logo. Agora ficar com uma coisa incubada ali, pra mim dói essas coisas. Despejo logo na cara dele! Eles dizem: “esse Emílio, ele é doido”. Eu sou mesmo. Eu já falei para Senador, na cara do Ministro da Educação, cheguei na cara e descarreguei no peito do Ministro da Justiça, descarreguei mesmo e o Ministro teve que baixar a cabeça. Eu já tenho feito isso em Brasília e não é poucas vezes não. Já falei para o Ministro do Interior, eu fui atrás do Ministro quando esta terra estava em confusão. Daí que nós falamos com o Ministro que veio a justiça para esta terra.
Xukurank: educação e política Francisco Xavier dos Santos – Chiquinho Xakriabá – é Professor Indígena, Coordenador da Educação Indígena, representante das etnias indígenas presentes em Minas Gerais na Comissão do Ministério da Educação para a Educação Indígena. Tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT) e atual Secretário de Educação no município de São João das Missões, Chiquinho é integrante do grupo de professores indígenas responsáveis pelo projeto político de conquistar o Poder Executivo e a hegemonia étnica no Poder Legislativo local em São João das Missões. Conheci Chiquinho em 2004 no escritório do CIMI, que então funcionava em São João das Missões. Naquele contexto, um grupo de professores indígenas do qual Chiquinho faz parte estava articulando a criação do Partido dos Trabalhadores no município. Desde então, venho acumulando registros de conversas e entrevistas com Chiquinho sobre a movimentação política dos professores em relação às lideranças mais velhas, o ambiente político municipal, as conexões Xakriabá com o movimento indígena supralocal e a interlocução com outros agentes no cenário indigenista atual. Aqui, a maior parte das ideias e opiniões de Chiquinho que compõem o retrato de sua trajetória e a perspectiva dele sobre o movimento Xakriabá foi extraída principalmente de uma sequência de conversas, em entrevistas concedidas em sua sala na Secretaria de Educação na sede do município, em março de 2007. 215
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Francisco Xavier dos Santos nasceu em maio de 1980 na aldeia Barreiro Preto, TI Xakriabá. Aos seis, sete anos de idade, via seu pai, Valdinho, atual cacique da comunidade, sair para participar dos mutirões de retomada da terra, liderados pelo cacique Rosalino. Chegavam os avisos das convocações do cacique Rosalino, da hora e lugar marcados para o encontro dos homens que, armados com suas ferramentas de trabalho, organizavam-se para os movimentos de retomada e expulsar posseiros. Chiquinho estudou até a 4.ª série com professores leigos em uma escola na própria comunidade do Barreiro Preto. Na época em que foi alfabetizado, diz que a educação não tinha muito valor na sua comunidade. Os pais mandavam os filhos para escola para aprender a ler e escrever, apenas. Como tantos outros jovens da sua geração, depois de alfabetizado Chiquinho deixou a escola e foi trabalhar na roça. Em 1995, o governo estadual deu início ao Programa de Implantação das Escolas Indígenas de Minas Gerais (PIEI-MG), numa parceria entre o movimento indígena organizado no Estado, a Secretária Estadual de Educação (SEE/MG), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Instituto Estadual de Florestas (IEF)12. Entre os Xakriabá, o cacique Rodrigo e algumas lideranças escolheram os jovens da comunidade que iriam participar da primeira turma do programa. No final de 1995, trinta e seis índios constituíram a primeira turma Xakriabá a participar do Curso de Formação de Professores Indígenas do Estado. Chiquinho foi um dos escolhidos para participar do curso. A escolha criou um novo espaço para construção e reconstrução dos significados sobre a identidade, reacendendo lutas adas, escolhas e posições adotadas. O processo de escolha em muitas aldeias transcorreu de forma tranquila, através das indicações por parte das lideranças, enquanto em outras regiões reacendeu divergências, como a oposição entre duas vertentes políticas internas, os acompanhantes do CIMI e aqueles acompanhantes da FUNAI, vigentes desde os últimos capítulos da luta da terra (SANTOS, 2006, p. 93). Com a estadualização das escolas indígenas em 1997, aos 17 anos, Chiquinho ou a atuar como supervisor na escola da aldeia Brejo Mata Fome e como representante junto à Secretaria Estadual de Educação, na coordenação executiva do projeto, acompanhando o processo de implantação das escolas na TI. Entrei no curso e foi daí que eu comecei. Antes disso eu não estava muito envolvido, nem tanto na questão do movimento, nem com a questão da 12 O ponto de partida do processo de implantação das escolas indígenas em Minas Gerais foi dado pela produção de um diagnóstico encomendado a consultores pela SEE/MG, junto às quatro etnias presentes no Estado (Pataxó, Krenak, Maxacali e Xakriabá) que inicialmente participariam do PIEI-MG. O curso foi formatado entre atividades presenciais modulares realizadas sempre nas férias escolares (janeiro, fevereiro e julho) no Parque do Rio Doce, intercaladas por atividades realizadas em área, tais como cursos relacionados ao uso do território, História, Arqueologia e Cultura, além de pesquisas levadas a cabo pelos professores indígenas sobre esses tópicos. Estes trabalhos de pesquisa, conjugados com outros realizados durante as atividades modulares, acabaram se transformando em material didático específico, posteriormente apropriado por cada escola indígena (Cf. GOMES, 2004).
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educação principalmente. Aí começou, no curso, quando assumimos a escola. Aí começa já um pouco do trabalho nosso. Começou ali na escola Bukimuju no Brejo, que era a única escola que comanda todas as outras escolas indígenas. Eu fui, iniciou aqui por essa coordenação de recursos, de compra de merenda, de contratação de professores e a própria supervisão que era feita pelos funcionários da superintendência. O papel nosso era de acompanhar. Depois, junto com o programa de implantação das escolas, criaram a coordenação de educação indígena. (...) Aí eu fui e comecei a participar já da coordenação. Na época começou eu, Zé Nunes, depois veio Marcelo e outras pessoas que também acompanhavam. Ai é que nós começamos. Na época a demanda era a criação da escola indígena, que foi a Bukimuju. Eu, junto com Zé Nunes, fizemos o papel de organizar isso dentro da comunidade, fazendo essa discussão toda. Mandamos o processo e foi aprovação. Na época, com a aprovação, Zé Nunes ou a ser diretor da escola e eu continuei a ser da coordenação do programa. Depois disso teve uma discussão de eleger um vice-diretor. No caso eu ia ser o vice-diretor, mas aí nós percebemos que não seria bom criar essa vice-direção porque estava muito ligada à escola normal e a gente precisava de uma coisa maior do que isso. Ao invés de criarmos o vice-diretor, ampliamos a coordenação. Criamos quatro coordenadores pedagógicos que ajudavam o diretor, no caso Zé Nunes, nos trabalhos de visitar as escolas e fazer o acompanhamento pedagógico, além do acompanhamento das discussões do projeto. Foi assim que nós começamos a abrir espaço na área da educação. Depois disso foi a criação da escola Xukurank no Barreiro. Procedemos da mesma forma e foi aprovada a ampliação da escola. Pra escolher o diretor da escola é que foi diferente. Na época da escola Bukimuju, não houve eleição, Zé Nunes foi indicado pela comunidade através das lideranças. Agora na outra escola, aí foi eu que coordenei mais porque era pra lá, né? Pedi pra lá e acompanhei as discussões todas, conversei com a comunidade, tinha que colher as s.[...] Depois disso, eu fiquei na coordenação como estou até hoje. Aí que o negócio começou a crescer mesmo, nós unificamos os trabalhos das duas escolas, eu, Marcelo e Zé Nunes. [...] A gente reunia bastante e cobrava as coisas: construção de escolas, transporte escolar, ampliação da formação dos professores da primeira turma, depois veio a segunda e já estamos na terceira. Tanto que agora, que no final deste histórico, o que aconteceu foi que Marcelo e Zé Nunes afastaram pela razão da política e eu fiquei só.
Ana Gomes (2003a, 2004) observa que o processo de escolarização entre os Xakriabá foi acelerado com o início do funcionamento das escolas indígenas. Em pouco mais de dois anos, os Xakriabá aram, de uma oferta escolar que atendia menos da metade da demanda, a apresentar 217
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um quadro muito próximo à oferta em Minas Gerais, que garante vagas para quase todas as crianças e adolescentes em idade de cursar o ensino fundamental. A expansão acelerada gerou um contexto escolar marcado por características peculiares às descontinuidades culturais entre as próprias comunidades locais, além de provocar mudanças na estrutura econômica, social, política e cultural na vida Xakriabá como um todo (GOMES, 2003a). A continuidade dessa expansão se atualiza com a abertura de outras modalidades de ensino (educação infantil e educação de jovens e adultos), além da criação do ensino médio e o pleito de o à universidade. Gomes observa “a forma incisiva com que os próprios Xakriabá implementam a expansão da escolarização, sem que se tenha, no momento, uma análise mais clara das implicações de um processo conduzido com tal rapidez” (Idem, 2004, p. 317). Na primeira turma de professores, tem origem o grupo político organizador do projeto de “indigenizar” a esfera pública em São João das Missões. O campo dialógico (entre as lideranças tradicionais, professores e instâncias de Estado), instituído no processo de implementação da educação entre os Xakriabá, abriu espaço para o surgimento de uma “intelligentsia nativa”, que se firmou no campo político interno como lideranças do povo, creditados pelo trabalho no resgate da cultura conjugado à luta na defesa dos direitos indígenas13. Se não há uma análise mais clara sobre as implicações da expansão dos serviços de escolarização entre os Xakriabá, a expansão da agência política dos professores a partir do processo de constituição da educação indígena também é um fenômeno que tem recobrado inflexões das lideranças a respeito de suas implicações. A educação promoveu uma reavaliação funcional da própria categoria liderança na ação política indígena frente ao cenário mais abrangente do indigenismo brasileiro e suas possibilidades de interlocução. Também trouxe impactos significativos na composição socioeconômica da estrutura social interna, na medida em que a profissão de professor é responsável pela injeção de dinheiro no sistema econômico interno, criando alterações de autoridade no seio das famílias e acentuando uma diferenciação de classe no interior das comunidades. Para Chiquinho, de certa maneira, hoje a educação se equivale à luta da terra. A comunidade ou a ver os professores como lideranças. Os mais velhos aram a convidar os professores para os debates importantes para o povo, como as negociações sobre a saúde junto à FUNASA. aram eles a fazer viagens para defender os direitos comunitários – ao Ministério Público, por exemplo. 13 A materialização deste trabalho pode ser conferida na sequência de publicações que as sucessivas turmas de professores indígenas lograram produzir, primeiro na organização de um livro reunindo a história da luta da terra, um conjunto de pequenas histórias, casos e lendas, além de um primeiro levantamento de palavras que eram faladas pelos mais velhos antigamente. Depois um livro sobre o conhecimento tradicional sobre plantas medicinais e, por último, uma coletânea de textos elaborada a partir de conversas com os mais velhos, sobretudo enfatizando as muitas versões da mitologia que cercam a figura da onça cabocla.
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De professor, liderança e político Na memória de Chiquinho, o evento transformador dos professores em lideranças ocorreu no início de 2004, quando foi realizada uma audiência pública na aldeia Brejo do Mata Fome para apurar uma série de denúncias que os líderes Xakriabá haviam levado ao conhecimento da Procuradoria da República, em Minas Gerais. O objetivo da audiência era de ouvir e dar encaminhamento aos problemas reclamados pelos índios: problemas internos como saúde e a educação indígena, além de problemas com o transporte e a segurança dentro dos limites da reserva. Foram discutidos também problemas vividos no contexto interétnico: denúncias de perseguição política, discriminação e desvio de recursos por parte da gestão municipal de São João das Missões. Segundo Chiquinho, foi neste evento que a experiência e o valor da educação foram reconhecidos. As falas do grupo – Chiquinho, Cacique Domingos, Edvaldo (Dé), José Nunes e Marcelo –, afinadas na defesa dos direitos do povo, despertaram a comunidade que, na concepção de Chiquinho, percebeu o avanço da educação e que eles estavam à frente da luta, renovando o trabalho das lideranças. Naquele evento e a partir dele, a figura do grupo conquistou credibilidade e seus integrantes começaram a agir como representantes de forma mais ampla. Os professores fizeram da educação a modalidade sociológica de inscrição como liderança no campo etnopolítico, estruturado a partir da autoridade dos representantes de aldeias. A audiência pública consagrou este novo grupo de líderes. Como afirma Chiquinho, já nos sentíamos responsáveis para participar de qualquer debate. Segundo Chiquinho, a ideia de “entrar” na política surgiu no curso de formação de professores. Entre as idas e vindas do curso, em 2003, um grupo de professores se reuniu na casa de José Nunes para a fundação da comissão provisória do Partido dos Trabalhadores (PT) em São João das Missões. Como observei no início deste texto, os Xakriabá representam maioria no colégio eleitoral de São João das Missões, o que significa que obter o apoio dos índios é um fator decisivo na disputa eleitoral. Os professores conversavam com o cacique Rodrigo, então vice-prefeito no município, sobre a ideia de lançar um candidato à Prefeitura. O cacique geral não simpatizava com a ideia e o risco de levar o projeto adiante foi sempre o de dividir o povo. Poucas lideranças tinham essa perspectiva de agenciar o movimento a partir de suas competências de mobilização comunitária e colocar a credibilidade das chefias locais a serviço de um projeto político destas proporções, e Rodrigo detinha forte influência sobre as decisões dos caciques. O falecimento prematuro de Rodrigo abriu o sistema político Xakriabá à transformação. O filho do cacique Rosalino, Domingos Nunes de Oliveira, foi escolhido 219
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Sede do Posto indígena da FUNAI Sede do Município de São João das Missões Aldeias indígenas Micro-regiões eleitorais
São Domingos Santa Cruz
Sape
Itacarambazinho Olhos d’água Pindaibas Forges Riacho Pedrinhas dos Buritis
TI XAKRIABÁ
Barra do Sumaré
Itapecuru
Riacho do Brejo Morro Falhado Riachão Terra Preta
Brejo Mata Fome
Riacho Comprido
Pedra Redonda Olhos Embauba Riachinho d’água Prata Caatinguinha Barreiro Preto Brejinho Vargens
São João das Missões
Sumaré I
TI XAKRIABÁ RANCHARIA
Sumaré II Sumaré III Peruaçu
Município de Itacarambi
Município de Januaria
Baseado no mapa dos professores Xakriabá Fonte: IBGE, Carta Topográfica 1 250 000 manga (sistema utm, fusa 23)
Município de Miravania
Rancharia
Figura 2: organização geopolítica setorial para a pré-eleição dos candidatos indígenas a vereador nas Eleições 2004
o novo cacique geral Xakriabá. A representação local do Partido dos Trabalhadores foi fundada e José Nunes foi escolhido o candidato a prefeito. José Nunes é o segundo dos seis filhos de Rosalino e sua esposa Dona Anísia. Viveu um breve período em Belo Horizonte, onde trabalhou em uma fábrica, e retornou à aldeia. Ingressou no curso de formação de professores indígenas, foi diretor das escolas Bukimuju por oito anos e deixou a posição de professor e diretor para “entrar” na política14. A maioria dos caciques e lideranças mais velhas aderiu ao projeto etnopolítico. O primeiro o proposto pelos professores foi o rastreamento dos candidatos não-índios eleitos por votação originária da TI. O segundo foi dividir o território em regiões eleitorais e a realização de prévias para auferir os candidatos preferidos por regiões. Os dois líderes locais já vereadores detiveram a prerrogativa de espaço para disputar a reeleição. Outro ponto debatido durante a reunião foi à escolha do candidato a vice-prefeito na chapa de José Nunes. Dois nomes de São João das Missões estavam negociando a parceria com o grupo político dos índios. A posição dos professores foi de permitir que os aliados não-índios decidissem entre si qual seria o melhor nome. Depois de muitas negociações, o nome de José Biriba (conhecido comerciante e fazendeiro do município e adversário histórico do então atual prefeito) foi definido para compor a chapa capitaneada pelos índios. amos da transformação do grupo de professores como li14 O então prefeito de Missões chegou a alertar os extratos superiores do PT em Minas Gerais sobre o risco de a legenda incitar um conflito de etnias, que uma disputa eleitoral entre índios e não-índios “brancos” poderia desencadear no município.
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deranças do povo indígena e, mais especificamente agora, àqueles que hoje são, de alguma forma, os políticos indígenas15. O quadro político-eleitoral foi evidenciado com o final do prazo estipulado pela justiça eleitoral para a oficialização das candidaturas. Duas coligações foram inscritas: Avança Missões!, constituída pelo irmão do cacique geral, filho de Rosalino, José Nunes, candidato a prefeito de São João das Missões pelo PT, numa coligação com o PSC, tendo como vice o não-índio José Biriba, e Novo Tempo, uma coligação ampla entre PMDB/PFL/PDT/PTB/PL/ PSDB, tendo como candidato a prefeito Eusvando Ferreira Filho, Vandinho, conhecido comerciante não-índio de São João das Missões. Como vice, também do mesmo partido, Zé de Rodrigo, filho do falecido cacique Rodrigo. Como na maioria dos pequenos municípios no país, a eleição dividiu a população entre dois grupos em disputa pelo poder local. No município, espalhou-se o boato de que, uma vez vencida a disputa eleitoral, o prefeito indígena faria um governo direcionado exclusivamente para as demandas da comunidade indígena, inclusive apoiando a tomada das terras tradicionalmente ocupadas por pequenos produtores não-indígenas nos limites municipais e que os índios iam invadir a cidade e expulsar os moradores nãoindígenas16. Estes boatos foram estrategicamente estimulados pela oposição. O clima durante a campanha foi marcado por ameaças de morte a Zé Nunes, segundo os índios, feitas por meio de bilhetes anônimos. A imagem do cacique Rodrigo foi extensivamente utilizada pelo grupo adversário. O prefeito alugou o único trio elétrico da região e mandou confeccionar em um banner (como um totem) a imagem do finado cacique, usada para estampar o calendário de 2004 divulgado pela prefeitura. A eleição propriamente dita ocorreu sem registros de conflito ou violência. Na eleição 2004, dos 6.039 eleitores de SJM, 81,6% compareceram às urnas. Dos 4.467 votos válidos, José Nunes foi eleito o primeiro prefeito indígena em Minas Gerais com 2.736 votos (61,25%), contra 1.731 votos de seu adversário. Analistas do CIMI local estimaram que Zé Nunes tenha recebido 15 A definição desta expressão, que classifica os professores indígenas que “entraram” na política eleitoral dos brancos no município, devo às conversas com Jonesvan, professor indígena formado pela segunda turma do programa de educação diferenciada, vereador que viria a romper com o grupo mais adiante. Quando eu tentava elucidar para ele os objetivos do meu trabalho e o meu interesse em contextualizar diferentes perspectivas sobre as transformações políticas recentes, Jonesvan comentou sobre a diferença entre lideranças indígenas que são políticos, isto é, aqueles que hoje estão ocupando posições no executivo ou no legislativo local, e aqueles que não o são, referindo-se aos representantes de aldeia e líderes comunitários internos como outros professores e agentes de saúde. 16 Um exemplo da preocupação de um comerciante não-indígena do município: Ele está fazendo uma gravação do pessoal. Fala aí... do pessoal que tem mais conhecimento sobre a área indígena, sobre aqui, sobre o movimento, sobre as brigas. Expliquei para ele direitinho, como é que foi a situação aqui. A situação aqui é como se diz, graças a Deus, está em paz não é? O que está ocorrendo é que ninguém aqui em Missões hoje, só do povo que mora aqui dentro, o pessoal não dorme, assim, tranquilo, porque aquela proposição toda hora de tomar, não é? “Eles vão tomar!” Tudo que se fala em Missões é que eles só falam de tomar Missões, não é? “Missões, o município de Missões vai ser tomado! Os índios vão tomar conta!”. E o povo fica todo doido de cabeça! Então fica assim, o povo não tem paz (Antonio Maria – comerciante em SJM, fev.2004).
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por volta de 400 votos de eleitores não-indígenas. Cinco vereadores indígenas conquistaram vaga para a Câmara Municipal. Destes, quatro do Partido dos Trabalhadores. Maria Zita Barbosa Lacerda do PDT foi a vereadora mais votada. Zita é vereadora com forte eleitorado na região da TI de Rancharia, desde a emancipação do município. Exerceu os mandatos de vereadora (1997-2000 e 20012004) e exerceu a presidência da Câmara entre 2001 e 2002. É aliada histórica do então prefeito e fez oposição ao grupo político de José Nunes. Rancharia é formada por um povoado que margeia a estrada que chega à sede de São João das Missões. De um lado da estrada é a TI de Rancharia, reconhecida pelo Estado brasileiro em 2003. Do outro, vivem os moradores que não se identificam como indígenas. Do ponto de vista do ordenamento político municipal, Rancharia é um Distrito que engloba tanto a comunidade indígena como a população não-índia do outro lado da estrada. Evanete Evangelista da Silva, moradora do lado não-indígena de Rancharia, foi eleita pelo PT e é aliada da base governista na Câmara Municipal. Domingos Gonçalves de Alkimim é nascido e criado na aldeia Sumaré (região (7) das prévias, vide mapa). Atualmente, Domingos mora em São João das Missões, onde tem um supermercado bastante frequentado pelos índios. Antônio de Araújo Santana é presidente da Associação Indígena do Brejo do Mata Fome e foi bem votado na região “central” da reserva – região (5). Jonesvan Pereira Oliveira faz parte da segunda turma dos professores indígenas. Obteve votação principalmente nas aldeias Itacarambizinho, Forges, Olhos D’Água, Pindaíbas, Poções, Riacho dos Buritis e Pedrinhas – região (8). Segundo Jonesvan, ele representa as comunidades mais distantes do desenvolvimento. Da mesma forma, Jeusani Pinheiro Santana, professora indígena na aldeia de São Domingos, representa a parte de cima da reserva formada pelas aldeias Santa Cruz Morro Falhado e Riacho do Brejo – região (2). Adélia é moradora da sede do município de São João das Missões. Manuel Paixão Flores e Euler Ferreira dos Santos também são comerciantes no município. A arena das eleições não foi constituída por um coro étnico de harmonia política. João de Jovina, cacique da aldeia Sumaré III, sem espaço no grupo político articulado pelos professores, candidatou-se pelo PDT e apoiou a candidatura de Vandinho e Zé de Rodrigo. Outros indígenas também acabaram compondo o grupo político formado a partir do município, como foi o caso do irmão de Valdinho, Liozinho, que disputou votos com o irmão na aldeia Barreiro Preto – região (6). Apareceram candidatos independentes e a votação foi dividida. Valdinho (pai de Chiquinho) ficou na condição de suplente e a região sem representante. Pela coligação adversária, João de Jovina, cacique da aldeia Sumaré III, também ficou como suplente. De maneira geral, o balanço foi positivo para o povo indígena, que ou a contar o prefeito e a representação das comunidades na Câmara foi ampliada. No dia da posse, Zé Nunes lembrou a importância histórica de lideranças como o cacique Rodrigo e a de seu pai, Rosalino. Fez um breve retrospec222
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to da luta do povo indígena Xakriabá, dos desafios e dos preconceitos que os índios tiveram que enfrentar e superar ao longo da história. Finalmente, o prefeito convocava todos a participarem da gestão do município17. Depois de dois anos e meio de mandato do governo indígena, em meados de 2007, a meio caminho das eleições seguintes, Chiquinho fez algumas observações sobre o campo político estruturado pelo grupo de professores: Nós temos uma forma de organizar entre nós que é muito boa, mas quando o grupo cresceu, as coisas começaram a dificultar bastante. [...] O que eu percebo hoje é que o grupo inchou. Essa é uma questão hoje para o debate. As outras pessoas que não são dos cinco percebem que quem vai decidir vai ser o grupo. Eu falei lá, quando eu vim pra cá eu percebi que Zé Nunes deu uma autonomia muito grande para construir uma gestão participativa. Nós Xakriabá, nós cinco temos uma facilidade muito grande de trabalhar no coletivo. Mas o grupo cresceu e as pessoas não estão sabendo trabalhar. Estão confundindo liberdade com autonomia. Negociar com os vereadores a unidade na Câmara não foi uma dificuldade, mas eles estão confundindo essa ideia da participação coletiva. No entendimento deles, Zé Nunes não pode fazer nada sem o consentimento deles. A abertura política que Zé Nunes de, foi para um regime de participação coletiva, democrática. Eu fiquei um pouco chateado e falei na reunião. Em algumas outras reuniões, os vereadores e o vice-prefeito andaram dizendo que nós secretários não mandávamos em nada, que quem manda são eles e o prefeito. Eu escutava aquilo. Eu falei, não vou entrar em detalhes não. Aqui de vez em quando aparecem umas coisas aqui na educação. Eles fizeram promessa de emprego e eu digo que na área da educação não vai ser assim pelo compromisso político não. Tem que ter o perfil, na área da educação tem que ser assim. O vice-prefeito reclamou na reunião, disse: “quem manda aqui é o prefeito, ele é que vai definir e quem vai respaldar são os vereadores”. Eu disse: “vocês me desculpam, na verdade eu não queria falar isso: não me sinto aqui apenas como secretário. Sou mais que isso, sou militante do movimento indígena e do grupo político. Vocês têm que entender que vocês não vão desestruturar o nosso grupo, que sabe trabalhar na coletividade”. Zé Nunes disse que não quer ser um ditador, mas as pessoas não podem ficar confundindo. “Vocês têm que saber que vocês entraram no grupo depois. Nenhum de vocês sabe da história e não tem força não”. Hoje nós consideramos do grupo todos os integrantes do governo. A gente espera que nem toda equipe, mas pelo menos um grupo maior, mais de frente, permaneça. E é nesse grupo que a gente percebe algumas falas e atitudes, por isso Zé Nunes disse que o grupo tem que se definir enquanto grupo mesmo. Ele falou para dar uma sacudida mesmo.
Qualquer governo só se realiza mediante distribuição de espaços e re17 Letra da música tema da vitória da coligação PT/PSC: Hoje é dia de alegria, vamos festejar a nossa vitória / Zé Nunes o prefeito, vice é Zé Biriba / vão ficar na história / O povo escolheu para governar essa cidade / Zé Nunes eleito, é o prefeito de verdade / O treze é competência, o treze é união / vai governar sem distinção / Obrigado irmão índio! / Obrigado irmão não índio! .
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cursos para diferentes grupos de interesse envolvidos. A condução do governo indígena em São João das Missões tem sido um desafio para as lideranças envolvidas de entrar e sair da indianidade enquanto valor nas negociações políticas com seus parentes e aliados para governar sem distinção para índios e não-índios. Durante o trabalho de campo, acompanhei uma reunião entre a comunidade indígena de Rancharia, o prefeito e parte de sua equipe de governo. Segundo as lideranças, a comunidade queria ouvir o prefeito e o desejo comum era pela presença mais efetiva do prefeito na comunidade, permitindo que todos tomassem conhecimento das ações da istração. Na pauta organizada pelas lideranças o primeiro ponto foi justamente o problema da ausência do prefeito na comunidade. Além de cobranças quanto às promessas de campanha – como a realização de exames médicos em Missões, estradas e transporte, manutenção do campo de futebol, exclusividade indígena no uso dos medicamentos oriundos da FUNASA. Como sintetizou o cacique local: O povo gostaria de ver a coisa pessoalmente. Os comentários de Chiquinho e o clima político da reunião na Rancharia são de meados de 2007, aproximadamente um ano antes da nova disputa eleitoral. Naquele contexto, já começava a esboçar-se um mapa político do próximo ano no município. Daí as preocupações de Chiquinho com o inchaço do grupo e a consistência das alianças no interior do próprio governo. O sucesso eleitoral do pleito anterior despertou o desejo de outras lideranças e caciques locais de “entrarem” na política, o que indicava uma inflação interna de candidaturas cujo efeito poderia ser a dispersão dos votos, a redução no número de eleitos e até mesmo cisões internas. De outro lado, o primeiro prefeito de São João das Missões sinalizava interesse de voltar à disputa pelo cargo, o que articulava parcela da população do município, especialmente moradores não-indígenas, mas também algumas lideranças e círculos familiares da TI insatisfeitos com o governo de José Nunes na composição de um grupo opositor à hegemonia orquestrada pelos professores indígenas.
A estrutura social em uma situação prática Em março de 2007, reencontrei Emílio e Chiquinho em uma reunião realizada na aldeia Brejo Mata Fome dedicada a tratar de uma proposta da prefeitura de implantar um projeto de educação para jovens e adultos na TI. O primeiro estava presente como liderança e o segundo, representando a Secretaria Municipal de Educação de SJM. A reunião foi aberta com uma mensagem sobre o significado da diferença cultural entre índios e “brancos”. Essa mensagem é boa pra gente pensar, refletir que ninguém é escravo de ninguém: prefeito, vereador, professor, observou uma professora indígena. Chiquinho abriu sua intervenção dizendo que estava na reunião como representante do município, mas reconheceu que não é possível separar to224
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talmente as coisas porque ele faz parte da organização indígena. A questão que o levava ali na posição de Secretário era uma proposta do município de implantar um projeto de educação na TI. A presença de Chiquinho como representante do município significava respeito ao papel de ouvir a comunidade e deixar claro para os presentes que todos podem e devem cobrar do governo indígena. Na tentativa de clarear o interesse do governo municipal, uma de suas assessoras afirmou que de fato o município estava disputando com o governo estadual o gerenciamento da educação na área indígena. Seguiram-se as reações. Emílio observou que mais uma vez estavam desrespeitando a questão da diferença cultural indígena e se disse preocupado com o futuro da educação Xakriabá. Preocupação que foi corroborada por outros professores e lideranças presentes no evento. O sobrinho de Emílio e atual diretor da escola Bukimuju questionou: E quando vier outro grupo? Um grupo adversário da reserva indígena? Instaurou-se uma série de questionamentos quanto à responsabilidade pela educação indígena. Não se trata de trazer uma armadilha pra comunidade, afirmou Chiquinho de volta. Diante da repercussão, o Secretário disse que ia ar a intervir no debate como professor indígena e fez um prognóstico pessimista quanto à política estadual para a Educação Indígena. A intenção seria estruturar o município para gerir a educação dentro da TI de forma que ela não possa ser alterada futuramente, quando José Nunes e o grupo político da reserva não estiverem mais no poder. Caso contrário, a bagunça vai estar feita. Porque mais cedo ou mais tarde isso vai acontecer – a responsabilidade da educação será transferida do Estado para o município. Chiquinho defendeu a ideia de que ar a responsabilidade da educação indígena para o município poderia ser uma marca da agem indígena no governo local e aproveitou para rebater as críticas de Emílio à sobreposição do interesse da prefeitura em aplicar recursos e o futuro dos índios: Se virem a gente como inimigo, as coisas não funcionam. Tem que ter colaboração e entendimento entre as partes. Enquanto Chiquinho tentava direcionar a discussão para a questão do projeto em si, Emílio bateu na tecla: Desde que o município respeite o direito e as normas da comunidade indígena. Hoje nós temos lá o prefeito índio e a oportunidade melhor que temos de cobrar e de lá ter mais vontade de ajudar. Mas o respeito tem que ser preservado. O clima da reunião ficou tenso. Hilário, presidente de uma das associações mais ativas entre os Xakriabá fez uma intervenção para apaziguar os ânimos com o argumento de que os Xakriabá têm um conceito de luta e de espírito comunitário. Relatou sua experiência no movimento e fez uma observação capital: Às vezes quando você fica dentro e lá fora, os parentes aqui dentro não entendem bem. 225
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As eleições 2008 vieram. O eleitorado de SJM ou de 6.039 eleitores para 7.006 votantes. Destes, 80,7% compareceram às urnas. José Nunes candidatou-se à reeleição pelo PT, tendo como companheiro de chapa o viceprefeito José Biriba na coligação Missões no Caminho Certo, formada pelos partidos PP/PDT/PRB/PSC/PT. De outro lado, Ivan de Souza Correia compôs a chapa de oposição pelo Partido da República – PR, tendo como companheiro de chapa Jonesvan, professor indígena, vereador eleito em 2004 pelo PT, que se transferiu para o PMDB para integrar a coligação Liberdade e Igualdade, formada pelos partidos PTB/PMDB/PR/PPS. Dos 5.102 votos válidos, José Nunes foi reeleito prefeito com 3.316 votos (64,99%), contra 1.786 votos de seu adversário. Seis vereadores indígenas conquistaram vaga para a Câmara Municipal. Destes, cinco do Partido dos Trabalhadores. Maria Zita Barbosa Lacerda, agora pelo PR, foi reeleita vereadora. Entre os vereadores indígenas, dois conseguiram se reeleger: Antônio de Araújo Santana, Toninho de Alípio, reeleito com 393 votos, foi o vereador mais bem votado (região 5). Domingos Gonçalves de Alkimim também foi reeleito com 306 votos (região 7). Jeusani Pinheiro Santana (região 2) não conseguiu a renovação do mandato. João de Jovina, liderança da aldeia Sumaré III (região 7), suplente no pleito anterior pela coligação adversária, ingressou nos quadros do PT e também foi eleito. Hilário Corrêa, Presidente da Associação Indígena da Aldeia Barreiro Preto foi eleito, suprindo o vazio de representação da região 6, que não elegeu vereador nas eleições de 2004. Dão de Rosalvo também alterou o quadro representativo, sendo eleito com 258 votos, boa parte destes originados da região (3). Adélia (PTB), Sãozinho (PR) e Juarez Lima (PDT) completam a lista dos eleitos. De modo geral, mais uma vez o resultado das eleições foi positivo para o povo Xakriabá em termos de representação indígena nos poderes executivo e legislativo municipal. As urnas também comunicaram a aprovação do governo indígena por parte da maioria da população, tanto de indígenas como de não-indígenas. As alterações mais significativas remetem ao novo desenho da representação das diferentes regiões e comunidades no poder legislativo. Este é um ponto importante. As regiões (2) e (8), distantes do centro político da TI localizado na aldeia Brejo Mata Fome, sede do posto da FUNAI e palco das discussões de interesse coletivo, perderam representação. A região (6) reconquistou uma representação, a região (7) ampliou o número de vereadores ligados mais diretamente a estas aldeias para dois. As regiões (1) e (4) – nas quais Emílio é cacique de três aldeias – permaneceram sem representação direta na Câmara. Do ponto de vista de gênero e também geopolítico, a não reeleição de Jeusani é uma perda importante na diversidade do quadro representativo Xakriabá, marcado pela hegemonia dos homens e pela concentração das decisões no eixo Brejo Mata Fome/Barreiro Preto/ Sumaré. 226
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Considerações finais: conceitos de luta e o espírito comunitário Como os números apresentados no início deste artigo indicam, é cada vez maior a presença indígena nos processos eleitorais, principalmente nas esferas municipais, dentre os quais a experiência Xakriabá aparece de maneira mais significativa pelo grau das conquistas de espaço. Este fenômeno da politização indígena implica uma série de questões para a ordem política dos sistemas indígenas e transformações importantes nos regimes de autoridade que estruturam as sociedades indígenas. Nesse sentido, as ideias de Pierre Clastres ([1974] 2003) fornecem a grade para algumas considerações finais. A interrogação de Clastres quanto à lógica de funcionamento da sociedade indígena é interessante na medida em que se pensa “a sociedade” como uma máquina social, sem nenhuma externalidade com as formas de subjetivação que engendra e por meio das quais opera, pois aquilo que faz a maquina funcionar concretamente são as pessoas em interação. Isso funciona pela concorrência de máquinas sociais e figuras subjetivas. Este ângulo de visão nos remete ao problema do exercício do poder, definido como força que cria e sustenta um espaço coletivo e que implica, necessariamente forças centrífugas ou contra-poderes como inflexões inerentes ao próprio sistema político indígena. Escolhi enfatizar os relatos de duas lideranças atualmente em posições distintas de autoridade porque penso que, como Oscar Calávia Saez (2006, p.194/195) tem chamado atenção, o dado autobiográfico pode revelar um bom lugar de encontro entre a estrutura e a história. E é nesta relação que as transformações da autoridade política se exprimem de modo mais evidente e as relações diferenciais de constituição política da liderança podem ser observadas na história do povo Xakriabá. Os esquemas narrativos de Emílio e Chiquinho são semelhantes como registros autobiográficos da história coletiva, mas as histórias (pessoal e coletiva) são significativamente diferentes. A constituição de Emílio como liderança e cacique está diretamente associada à história da luta da terra. A constituição de Chiquinho como liderança se fez essencialmente pela educação. Daí todo o significado da expressão de Valdinho, liderança da aldeia Barreiro Preto, ao chamar atenção das lideranças Xakriabá: A luta política é uma coisa, a luta indígena é a história do povo. A diferença geracional na história e de posições na estrutura são aspectos importantes da organização sociopolítica Xakriabá vista como um sistema de relações entre poderes, que funciona pela concorrência de figuras de autoridade (Chefe, Cacique, caciques comunitários-locais, professores, vereadores, prefeito) e máquinas sociais cuja morfologia e sintaxe se transformam em termos de extensão e profundidade conforme se a de um momento histórico a outro: da luta da terra que é a luta política pelo reconhecimento étnico à etnopolitica que é a luta política pelos poderes municipais. Neste quadro a educação escolar aparece como matriz do atual sistema de forças políticas Xakriabá: i) como modalidade de inscrição de novas lideranças na estrutura política; ii) como forma de reconhecimento de autorida227
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des tradicionais; iii) como setor de atividades, objeto de disputa interna pelo controle na escolha de professores, diretores e programas; iv) como motor de estratificação social, v) como espaço mediador das relações com o exterior, sobretudo frente instâncias de Estado: municipal, estadual, nacional. O debate entre Emílio e Chiquinho, mediado por Hilário, é perene de significados para entender as transformações da autoridade na história política recente feita pelos Xakriabá e do campo aparentemente paradoxal de ideias em que se situa o conceito de liderança quando relacionado a diferentes dimensões do socius: da casa, da aldeia, da comunidade, do povo, do município, da região, do estado, do país. Do povo Xakriabá – megassujeito coletivo composto de 8 mil pessoas e estruturado a partir de aproximadamente 27 aldeias e 26 subaldeias, 20 lideranças e 17 vice-lideranças – apenas uma parcela, entrecortada por efeito de redes relacionais internas e externas, antes que por reciprocidade generalizada, estão experimentando as conquistas da educação escolar e do governo municipal, as duas principais máquinas sociais Xakriabá atualmente. Em outras palavras, existe uma ordem que preside a disposição das linhas de força desta geografia de máquinas sociais produzindo caciques, lideranças, políticos e muitas comunidades e aldeias não estão integradas nesta ordem de associações e projetos e permanecem alheias às redes relacionais hegemônicas, em especial o eixo Brejo Mata Fome, Barreiro Preto, Sumaré. Poderia se dizer, por opção, já que não são poucos os Xakriabá avessos à política interna, que dizer da política interétnica local. Mas penso que não é só por isso. É importante destacar a heterogeneidade no interior do território. Há o povo Xakriabá, mas este é composto de várias comunidades, transadas por interesses familiares, de gerações, de classe, de gênero. O grupo de professores aparece no interior do socius comunitário como força centrípeta de unificação dos poderes locais orquestrado principalmente pelos caciques para um projeto etnopolítico. Este movimento implica, necessariamente, aparição de forças centrífugas, originadas pelos desejos de participação ou contestação de lideranças alheias ao movimento, que podem no limite, conjurar a divisão no seio da sociedade Xakriabá. A ação etnopolítica de hoje se desenvolve sob um corpo de normas e práticas políticas acordadas e partilhadas pela maioria das lideranças do povo indígena. Este espírito comunitário para o qual apela Hilário é responsável por uma “economia política moral” reguladora da ação política das lideranças. Mesmo assim, o sistema é permeado por diferentes tipos de tensões internas, características das relações intragrupais marcadas pela proximidade, baseadas na intensidade das relações intraétnicas e parentais (BARTOLOMÉ, 2006, p.55). Estamos diante de um processo de diferenciação que agora se expressa através de novas formas de ação política e representação coletiva. Homologias com processos estatais de construção nacional, suas comunidades 228
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imaginadas e invenções de tradições são insuficientes para compreender o fenômeno indígena. Trata-se, antes de tudo, de uma comunidade vivida e a economia política desta comunidade é hoje força dominante em São João das Missões. Deste ângulo, a etnopolítica, afigura-se como força centrífuga em relação ao sistema político regional, através das tentativas de empregar um modo diferenciado de exercício do poder conectado aos valores previstos na prática política tradicional dos chefes antigos. Ao mesmo tempo, a diversificação da estrutura política e os reajustamentos internos de distribuição do poder pressionam e redefinem figuras tradicionais de autoridade. Quando se atenta para multiplicidade Xakriabá impressa nos contornos da concepção de liderança em função mesmo das relações intersubjetivas variadas dos que participam e constituem esta figura de autoridade, notamos que a coerência não deriva de um esquema de escolhas sempre excludentes, mas sim de intrincados ordenamentos sócio-lógicos de arenas e campos de ação convergentes. Nas teorizações de Clastres ([1977] 2004, p. 203), nas sociedades indígenas o chefe – indivíduo formalmente distinto dos demais – é colocado no lugar que poderia ser daquele que dá ordens, enuncia regras, detém força, domina – para marcar que o lugar permanece vazio, pois: “o espaço da chefia não é o lugar do poder” (CLASTRES 2003, p. 222/223). As funções do chefe, tal como analisadas por Clastres, não se tratam de funções de autoridade. “O chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade em si mesma – verdadeiro lugar do poder – que exerce como tal sua autoridade sobre o chefe.” (Id., ibid., p. 224). Existem, entretanto, exceções e o processo histórico que estamos vivendo é revelador das transformações da autoridade no interior das sociedades indígenas. A natureza do poder político entre os Xakriabá se alterou significativamente desde que se estendeu e se fortaleceu seu campo de aplicação demográfico, não apenas em termos “internos” a própria sociedade Xakriabá enquanto conjunto, mas também no caso, marcado pela extensão do poder político interno para as relações entre índios e não-índios no cenário municipal, que se traduz pelas posições de autoridade conquistadas pelos professores e o peso destes poderes políticos estruturados entre arranjos sociológicos distintos para os Xakriabá. As sociedades indígenas são contra o Estado enquanto acionamento efetivo da relação de poder dominador porque este poder é contra o grupo. Com efeito, também essa mensagem é boa pra gente pensar, refletir que ninguém é escravo de ninguém: prefeito, vereador, professor, como observou a professora indígena. O desafio político da etnopolítica Xakriabá é exercitar o poder local a favor do grupo, contra a dominação exterior e a re-centralização do sistema indígena no poder público de SJM. Os regimes representativos não escapam ao desejo do povo de ver a coisa pessoalmente. 229
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Parte IV Imagens
IMAGENS DOS YAMINAHUA
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Miguel Carid Estereótipos m se tratando de populações Pano, nada mais normal do que dedicar os primeiros parágrafos – que às vezes viram páginas ou capítulos – ao nome, pois nem sempre ele se corresponde com uma autodenominação2 nem, no caso dos Yaminahua, é possível definir através do nome a grandeza sociológica à qual ele se refere: às vezes, Yaminahua se utiliza como sinônimo de “povo” ou “etnia”, às vezes esse nome é atribuído ao conjunto de pessoas que moram em uma aldeia, a uma facção no interior de uma aldeia, a uma família ou até a um indivíduo. Ainda, e não menos importante, como veremos, esses nomes funcionam como componentes da pessoa, pois eles denominam o vínculo estabelecido entre um indivíduo e os parentes diretos das gerações ascendentes considerados, como ele o será depois por causa disso, “yaminahua”, “bashonahua”, “txitonahua”, etc. De certa forma, essa qualidade fractal dos nomes antecipa a polivalência e a plasticidade que caracteriza a onomástica yaminahua, estabelecendo uma ponte entre pessoas e coletivos. De fato, basta um breve percorrido pelas fontes históricas e etnográficas para perceber que o significado do nome Yaminahua está imbuído de certa ambiguidade, aliás, uma ambiguidade tão significativa como a que opõe o primitivismo da pedra à modernidade do metal. Assim, como mencionam algumas fontes, yami pode ser traduzido por “machado de pedra”, e a tradução para Yaminahua3 seria, portanto, “gente hacha de piedra” (gente machado de pedra) (TORRALBA, 1986, p. 12), ou, pelo contrário, yami pode ser traduzido por “machado de metal” e os Yaminahua aparecerem retratados com um povo especialmente fascinado pelo metal. Não custa relacionar essa polaridade “pedra/metal” com os dois estereótipos utilizados mais frequentemente para significar certo ethos yami-
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1 Uma versão anterior deste texto foi apresentada no GT 26 “Narrativas e percepções nativas do contato com os brancos”, coordenado por Deise Lucy Oliveira Montardo (UFAM) e Valéria Soares de Assis (UEM), na 26.ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 1.º e 4 de junho em Porto Seguro, Bahia. O material etnográfico em que se baseia este texto – que reúne alguns dados etnográficos dispersos em diferentes capítulos de minha tese, agora à luz de uma reflexão sobre o tema proposto neste livro – se refere, concretamente, aos Yaminahua que moram na Amazônia peruana (Rio Mapuya − no Baixo Urubamba − e Alto Juruá), onde fiz trabalho de campo em diversos períodos entre 2000 e 2003. Embora “Yaminawa” seja a grafia mais comum usada no Brasil, preferi utilizar “Yaminahua” por ser a grafia que aparece nos documentos oficiais no Peru e que os Yaminahua familiarizados com a escrita utilizam. Para um conhecimento etnográfico mais extenso dos Yaminahua do rio Mapuya ver: Carid (2007) e Pérez (2006). 2 Como é sabido, fato bastante comum entre os povos amazônicos. Eduardo Viveiros de Castro abordou esse assunto no seu artigo clássico sobre o perspectivismo ameríndio (1996, p. 123-127). 3 Como acontece entre muitas outras populações pano, “-nahua” (ou “-nawa”, como se costuma grafar no Brasil) significa “povo” ou “gente”, mas também pode ser usado como nome para se referir aos inimigos ou estrangeiros; às vezes, até é emblematicamente traduzido por “mestizo” (mestiço). Uma análise profunda dos diversos sentidos desse conceito-chave pode ser consultada em Calavia (2002, p. 35-57).
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nahua. Por um lado, o do índio selvagem, já mencionado por viajantes e missionários como Constantin Tastevin, por exemplo, que no começo do século XX narrava como seus informantes Kaxinawá concediam aos Yaminahua um nível privilegiado na hierarquia do conhecimento da floresta: inventores da ayahuasca, da medicina do sapo e de outras artes valorizadas. Nesse sentido, mas já no presente, os Piro do Baixo Urubamba (Peru) não duvidam em repreender suas crianças chamando-as de “Yaminahua”, provavelmente para resumir numa única e consensual palavra os males da falta de civilização que padece “la gente del monte” (índios bravos) e, eventualmente, as crianças dos “civilizados” – Piro, no caso – (GOW, 1991, p. 6). Entretanto, mais popular na atualidade no contexto indigenista acreano é o segundo estereótipo, que descreveria os Yaminahua como um povo fatalmente aculturado, sem estrutura política ou ritual nítida, com “identidade fraca”, nômade, adito às brigas fragmentadoras e à periferia urbana. Para resumi-lo em um mote conhecido: sem fé, sem lei, sem rei e, como alguns dizem agora, “sem cultura”. Enfim, demasiado aquém ou demasiado além, os Yaminahua parecem estar sempre fora de foco, seja para assumir a imagem de heróis culturais, donos dos segredos da floresta ou da falta da civilização – ou das duas coisas ao mesmo tempo justamente –, seja para servir como exemplo vivo dos desastres da aculturação.
A divisão da pessoa e a formação do grupo Se a definição de “Yaminahua” pode ser significativa por oposição aos brancos ou a outros povos indígenas reconhecidos como não yaminahua, ela perde sua força classificatória quando atinge essa camada da diversidade nominal interna com que atualmente as pessoas se identificam nas comunidades de Raya e do Juruá, no Peru. Juan Pérez (comunidade de San Juan, Alto Juruá) narrava assim a origem do nome que acabou tornando-se o atual etnônimo: “Os madeireiros nos deram o nome de Yaminahua, a gente tinha outro nome. Não sabiam falar, queriam dizer ‘machado’ e diziam ‘yami’. Os madeireiros escutavam: ‘Ah, sim! Yami, vocês são Yami’. Acostumavam-se porque pediam. ‘Olá, Yami’ – diziam. Aí, todos foram nomeados”4. Essa breve narração com um tom um tanto mitológico (encontro de alteridades na floresta; confusão entre o literal e o metafórico, no caso, uma distorção comunicativa que acaba por “confundir” o enunciado – machado – e o sujeito de enunciação – pessoa –; explicação do estado atual de coisas em relação com um ponto de inflexão ado...) é também prenhe de sentido histórico. Afinal, é verdade que Yaminahua é uma denominação geral usada como curinga para referir-se a toda uma plêiade de nomes que, não raro, eles próprios reconhecem como povos concretos, situados no espaço e na história. Diálogos equívocos que confirmam que “as identidades só existem dentro de um sistema – de nomes ou de denominações” (CALAVIA, 2006, p. 260). 4 Os Yaminahua utilizam a palavra yami para referir-se aos machados de metal. Já os machados de pedra são referidos como rowe. As traduções para o português são minhas.
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IMAGENS DOS YAMINAHUA
No caso dos Yaminahua que habitam as cabeceiras do rio Mapuya e do rio Juruá, Baxunahua, Nixinahua, Txitonahua e Amahuaca em maior medida, mas também Xaonahua, Sharanahua, Txanënahua e Kudunahua, são os nomes mais comuns com que as pessoas se identificam. A eles haveria de acrescentarse ainda: Kampa (Ashaninka), Piro (Yene), mestiços e serranos. O que gostaria de destacar aqui é a capacidade cumulativa que os indivíduos possuem para reunir vários desses nomes, signos de uma memória do parentesco que liga uma pessoa a seus ascendentes diretos e que, de alguma forma, diferencia os indivíduos entre si. É importante ressaltar que esse vínculo se transmite de forma cognática e aberta; ou seja, fora o fato de o vínculo ser estabelecido através da concepção e da descendência, não existe um número definido de nomes que uma pessoa possa ou deva acumular nem normas estritas a esse respeito. Os nomes não funcionam como seções no sentido clássico da teoria do parentesco. No entanto, seu aspecto histórico não tira sua importância estrutural, pois, como já mencionei, são os nomes que produzem diferença (portanto, identidades) através de um jogo em que antes parece a história que constrói a estrutura do que o inverso. Embora a memória genealógica dificilmente ultrae mais de três gerações, a inclusão no cálculo tanto da linha matrilateral como patrilateral, assim como o reconhecimento da paternidade múltipla – que os Yaminahua não só não ocultam, como, não raro, gostam de enfatizar –, possibilitam a diversificação nominal das pessoas. Assim, dependendo do contexto, um indivíduo pode se definir ora como Yaminahua (num sentido mais geral ou para opor-se aos brancos, por exemplo), ora como Amahuaca (porque algum ascendente direto o fosse), ora como Baxunahua por parte de pai, ora como Txitonahua, porque um outro homem, por exemplo, manteve relações com sua mãe durante a gravidez5. Não é raro também alguém enumerar vários desses nomes-vínculo conjuntamente. De fato, sempre me chamou a atenção o prazer especial com que meus interlocutores faziam referência a essa diversidade nominal. A breve enumeração das pessoas consideradas não misturadas era feita ou muito rápido, mencionando apenas quatro ou cinco pessoas, como se a lista não tivesse opção de se alargar e se esgotasse em um número reduzido remarcado pela prontidão de seu fechamento, ou em tempo lento e espaçado, com voz grave, como se custasse muito achá-las entre todas aquelas que têm algum grau de mistura. Já os misturados eram contados com fruição: rapidamente e com impaciência, para deixar um “etcétera” implícito na acelerada concatenação dos nomes, ou vagarosamente, para melhor sublinhar e desfrutar, por alguns instantes pelo menos, da multiplicidade aparentemente incomensurável da lista. Veremos a seguir que essa diversidade se liga com o conceito yaminahua de civilização. Mas, antes, o ponto de inflexão que narra a origem desse novo tempo. 5 Scott e Scott falam em mais de vinte nomes para uma povoação marinahua de apenas cem pessoas (1963).
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Lua (Uxë) Narrador: Reteho Txitonahua Todos os dias um homem transava com sua irmã. Para averiguar quem era, ela o sujou com jenipapo. Seus primos foram atrás dele. Quando a irmã o viu manchado de jenipapo, disse: “este que transava comigo, que não volte mais! Que não venha mais, que o matem, que dilacerem seu pescoço e coloquem sua cabeça em sua casa, no meio do pátio!” Assim sucedeu. Cortaram seu pescoço e pam sua cabeça no meio do pátio e o insultaram. Seu irmão olhou pelo buraco da casa e viu a cabeça sentada. “Utxi, utxi (irmão mais velho), me leve! Me leve, cortaram minha cabeça!”. O irmão untou-se com tripas de vaga-lume e entrou na aldeia todo iluminado; pensaram que era diawaa6. “Aí vem seu tunchi”, disseram. Todos taparam suas caras. Assim resgatou a cabeça. Durante a noite toda, a cabeça bebeu água. Seu irmão tinha medo, correu, mas a cabeça o seguia. Depois de várias peripécias, a cabeça chega em casa; não podia ar, e pediu caiçuma e milho ralado para comer. Tudo lhe caía pela garganta. “Que vou ser, Sol ou Lua?”, disse. Finalmente, se converteu em Lua e subiu até o céu pelo rastro que deixa o avião7. “A partir de agora, as mulheres vão menstruar”, disse a cabeça. “Quando cobra morder, os homens morrerão. Quando alguém fizer feitiço, já não vão reviver”. Sua mãe chorou, “meu filho, volta”, disse sua mãe. aram dois dias, e quando Lua apareceu às mulheres, lhes saiu sangue. Daí saíram filhos, criaram muitos. Todos criaram filhos. “Suas irmãs vão transar com outros. Toda a vida, outros vão transar com suas irmãs. Vão casar com nahua, vão criar filhos de nahuahu8. Toda a vida viverão com os nahua”. Nahua e a origem da sociedade Fora o contexto xamânico, onde os elementos míticos possuem um papel concreto, os Yaminahua, em geral, não realizam exegeses extensas de seus mitos. As narrativas, por exemplo, não são centros de referência para a arquitetação institucional ou ritual, como acontece em outras populações amazônicas. Nesse sentido, as últimas frases desta versão que narra a origem de Uxë concentram de forma excepcional uma parte importante da filosofia social yaminahua. Para perceber seu sentido, lembremos que o termo nahua é um marcador de diferença, concretamente de uma diferença, por assim dizer, não neutra: nahua são os missionários, os mestiços, os madeireiros, os antropólogos, os estrangeiros, os inimigos, ou, como sugerem outras versões desta mesma narrativa9, a cabeça do morto incestuoso (nahua mapu), prefiguração de Lua, astro referido em outra versão como Yuxin txaka (espírito/ 6 Diawaa é traduzido ao espanhol por tunchi (alma) ou diablo (diabo). Neste contexto é identificado com a alma do morto que os Yaminahua traduzem ao espanhol por sombra (ou pantalla – pantalha –, como escutei uma vez), componente estreitamente vinculado ao corpo. 7 O narrador se refere às linhas brancas que deixam no céu os aviões a jato. 8 -hu é um sufixo coletivizador. 9 Algumas das reflexões a seguir se apoiam em várias versões da mesma narrativa não incluídas neste artigo.
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feio). Mas também, do ponto de vista dessas frases do exegeta, nahua é de alguma forma o cônjuge. Nesse sentido, difícil na aldeia yaminahua do Mapuya é saber quem é nahua, pois nahua é um conceito relacional e policêntrico; -nahua termina parecendo mais um vetor móbil e retrátil, uma intensidade relacional que origina (e se origina de) a diferença do que um exterior bem definido ou encarnado por determinadas populações. É importante ressaltar que a enumeração dos nomes que compõem o grupo remete ao conceito de Usĩ, “se civilizar”, como dizem em espanhol, e que, no caso, é correlato à noção de mistura. Ou seja, “civilizado” e “misturado” são mencionados como sinônimos. Como já referi acima, a teoria da concepção yaminahua reconhece a participação da mãe, que aporta seu sangue, e do pai na formação da criança. Aliás, todos os homens que tiveram relações sexuais com uma mulher grávida contribuem com seu sêmen à formação do feto no útero e são reconhecidos como pais da criança (ëpa utsa, “outro pai”). Todos eles “tiveram parte” na criança, e os nomes, que representam intensidades relacionais, são incorporados à pessoa. Mas, o que representam afinal esses nomes? Em primeiro lugar, eu apontaria o fato de esses nomes comporem tanto a sociedade como a pessoa; a pessoa yaminahua é então, uma entidade composta. Não é essa a mensagem do mito de Lua, no qual a pessoa, a sociedade e a fertilidade se opõem à autorregeneração de si num sentido individual e social simultaneamente? Não é, como propõe Townsley, talvez apenas por um excesso da representação gráfica do sistema dravidiano, que os filhos tenham uma relação de consanguinidade com o pai e um vínculo de afinidade com a mãe. É que, tendo o pai e a mãe uma relação de afinidade entre si (ou de não parentesco, no caso dos casamentos com pessoas não relacionadas genealogicamente), o filho incorpora uma relação diferencial constituinte. Nesse sentido, como diria Rivière, a sociedade yaminahua poderia ser definida como “agregados de relacionamentos centrados no Ego” (2001, p. 70), porque o Ego é ele próprio um agregado relacional, isto é, ele inclui (e não exclui), já do começo, a relação social. Do começo porque, durante o processo de procriação, são transmitidos ao feto princípios de parentesco e identitários em via cognática e múltipla. Mas esses nomes pertencem a uma série e manifestam, então, a marca de uma diferença. Por outras palavras, os Yaminahua nascem com uma vocação para a “socioalteração”, não para o “sociocentrismo”, já que o indivíduo yaminahua não é, stricto sensu, individual10.
Contatos “... Desceram até abaixo de Cuchillo e fizeram roçado. Lá começou a morrer o pai de Txaiyabawade, e eles se desesperaram. ‘Onde vamos morar agora? Temos que ir até outro lugar, nosso pai já morreu aqui’. Decidiram 10 As reflexões de Marilyn Strathern ligando a noção de pessoa e de social no contexto indígena da Melanésia inspiraram minha reflexão sobre os dados yaminahua (1992, p. 75-104).
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descer mais ainda, até Capirona. ‘O que vamos fazer? Devemos encontrar alguém que nos dê facões’. Foram para outro local. Lá encontraram os Campa, que já estavam civilizados, mas eram pobres como eles. ‘Temos que matá-los’, diziam alguns. ‘Não, temos que chamá-los, ver o que vão nos fazer’. Txaibayawade e outro homem se esconderam. Os Campa estavam tomando caiçuma. Quando ou um, Txaibayawade o agarrou. O Campa começou a gritar: ‘Não me mata, não me mata!’. Esses Campa não tinham nada. Seus cushmas e seus mosquiteiros estavam podres, tomavam caiçuma em cuias de cabaça. Quando viram que tinham agarrado um homem, o resto dos Campa correu para a floresta. Seu próprio parente os chamou para que voltassem: ‘Não corram, eles não vão me matar’. ‘Por que correm?’, disse Txaiyabawade, ‘eu não vou matá-los. Eu não sou animal para matar vocês. Eu só mato animais para comer’. Ficaram lá parados, com medo. ‘Não me matem’. Então, os Campa os convidaram para tomar caiçuma: ‘Quer caiçuma?’ Nunca tinham tomado caiçuma11, estava muito forte. Aceitaram a caiçuma, e os outros já não ficaram com medo; começaram a conversar (...)” “Os Yaminahua voltaram para o Mapuya. Uma pessoa amahuaca (Pano), aquele Camacho, foi procurá-los. ‘Já vieram os mestiços, estão lá embaixo’. ‘Vamos ver que classe de gente é’. Todos os familiares de Txaiyabawade foram para ver os madeireiros, achavam que estavam fazendo o roçado. ‘Eles estão trabalhando a madeira’. ‘O que é madeira?’ Aí começaram a mandá-los trabalhar, deram-lhes machados pequenos. Com isso, trabalhavam a madeira”. Todos os atores do contato se arrogam a iniciativa do mesmo; missionários e madeireiros (com. pess.) dizem terem sido os primeiros a estabelecer relações com os Yaminahua, nos anos cinquenta do século ado, quando ainda eram considerados índios bravos. O autor desta narração, Txaiyabawade, um dos principais cabeças de família na aldeia de Raya, coloca-se também como parte ativa da ação. Ademais desse detalhe, essencial, há nessa narrativa dois elementos mais que gostaria de destacar. Em primeiro lugar, a importância concedida nesse contato com os Ashaninka à caiçuma de mandioca (mãmã). É no contexto de ingestão dessa bebida fermentada que se plasma a relação pacífica com os Ashaninka. Em segundo lugar, a importância das mercadorias e, para retomar nossa reflexão inicial, do metal. Para alguém que conhecesse Raya e os Yaminahua, e não tivesse ouvido essa narração antes, saber que a caiçuma (masato, como se diz no Peru) é um elemento importado recentemente de outro povo indígena pode resultar um tanto chocante12. Afinal, as masateadas (festas jocosas em que se 11 O narrador refere-se à caiçuma fermentada. 12 Obviamente, os Yaminahua não só conheciam como cultivavam a mandioca também no ado. No entanto, todos coincidem em afirmar que a bebida fermentada não era consumida e mencionam três motivos: a impossibilidade de abrir roças de grande tamanho devido à ausência de instrumentos de metal e à mobilidade permanente do grupo; a ideia de que a bebida fermentada fazia mal à saúde; e o gosto desagradável que a caiçuma produzia nos Yaminahua daquele tempo.
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ingerem grandes quantidades de caiçuma fermentada, habitualmente ao ritmo de alguma fita com músicas que animam as pessoas a dançar, tecnocumbia maiormente) são um dos poucos momentos em que todas as famílias se reúnem e a sociedade yaminahua – rala no cotidiano não festivo – se “presentifica” como um todo. Ela bem poderia parecer uma prática ancestral dos Yaminahua justamente porque é um centro de sua vida social atual, mas também, suponho, porque a caiçuma não faz parte dos traços que se pensam fazer parte do ser “civilizado”13. No entanto, as masateadas me parecem concebidas pelos Yaminahua como um dos espaços principais de civilização. Uma prática que vem dos “outros” só poderia tornar os Yaminahua também “outros”14. É nessas festas que homens e mulheres vestem suas melhores roupas, sapatos – que os poucos que os possuem raramente utilizam em outras situações, a não ser na cidade –, relógios, etc. Nelas se dança, como se pode, ao estilo mestiço, e não por acaso é nas masateadas que os madeireiros são muitas vezes os principais convidados. Foi justamente nessas festas quando pude escutar de algum homem bêbado seu projeto pessoal de “virar mestiço”.
O retorno de Lua No presente, como a aldeia de Raya é o único núcleo yaminahua no rio Mapuya15 e devido ao predomínio da exogamia local, os jovens se casam fundamentalmente com seus parentes yaminahua do rio Juruá, onde há atualmente sete aldeias formadas pelas famílias que nas últimas três décadas se deslocaram gradualmente – no sentido espacial e temporal – do rio Mapuya em direção ao Juruá. Mas, no Mapuya, também casam com os mestiços madeireiros que trabalham na região. As uniões das mulheres yaminahua com os mestiços possuem, por vários motivos, um atrativo especial para os Yaminahua: em primeiro lugar, como já vimos, porque esse ideal de mistura remete à fertilidade e ao crescimento populacional, fato valorizado pelos yaminahua. Em segundo lugar, porque essa opção de casamento interétnico permite obviar a residência uxorilocal, podendo permanecer a filha, portanto, tanto junto com sua família consanguínea como ganhar um cunhado/ genro que colaborará nos trabalhos cotidianos sem necessidade de se relacionar com a família deste. Por outro lado, essas uniões são valorizadas tam13 A caiçuma não é o único elemento que os Yaminahua reconhecem terem adquirido de outros povos; os piri piri, plantas cultivadas com eminente vocação mágica, por exemplo, também proveem dos Ashaninka e dos Amahuaca. Na mesma linha, várias mulheres reconheceram terem aprendido a elaboração de abanadores ou esteiras também de seus vizinhos Amahuaca, assim como as características redes de algodão yaminahua. 14 Como bem escreve Laura Pérez, que trabalhou a relação da caiçuma com o xamanismo entre os Yaminahua: “O que se deve levar em conta para entender o significado da caiçuma na vida cotidiana yaminawa e seu papel no projeto de futuro do grupo é que, atualmente, não constitui um alimento exclusivo das sociedades indígenas na região do Ucayali. Os mestiços também costumam consumi-la, especialmente em certas festividades” (CHEVALIER, 1982, p. 224-225). 15 Essa situação já começou a mudar durante os últimos meses de trabalho de campo, quando se podia distinguir na aldeia de Raya duas partes, uma mais associada ao mundo mestiço e madeireiro. Nessa etapa, várias famílias abriram novos núcleos habitacionais rio abaixo, a quinze e trinta minutos de barco do núcleo principal – que continuava sendo Raya.
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bém porque se espera dos mestiços uma maior proximidade com o mundo das mercadorias16. As relações com os madeireiros são bastante fluidas, pois trabalham na cabeceira do Rio Mapuya e suas visitas a Raya são contínuas. As masateadas são momentos aproveitados para o namoro, tanto com os mestiços como entre os Yaminahua. Se as festas, como mencionei acima, ativam de alguma forma esse processo de virar outro, e no presente o mestiço é parte importante desse modelo de transformação, é importante salientar, no entanto, que as masateadas também possibilitam a expressão concentrada de valores, muito prezados pelos Yaminahua, que nem sempre condizem com os ideais do mundo mestiço. Como acontece na Amazônia indígena em geral, a ética da generosidade generalizada e a crítica da mesquinharia são pivôs fundamentais da sociabilidade yaminahua, generosidade que, nas masateadas, é envolvida na alegria e na jocosidade, alcançando sua “forma-potlach” mais exaltada, tanto no que diz respeito à produção como ao consumo. Nesse sentido, a festa significa convite e partilha em torno da bebida, que pode ser elaborada e oferecida por uma única família ou por várias, se desencadeando, nesse último caso, um perambular de casa em casa onde anfitriões e convidados trocam de posição ao longo do dia ou dos dias (com suas noites) que a bebida fermentada durar. A partilha, à diferença do que acontece com outros elementos no cotidiano, é indiscriminada e frequentemente abundante – não por acaso a mandioca é o cultivar principal das roças de todas as famílias. Enfim, tornar-se outro, no caso, não significa abandonar valores fundamentais do ser Yaminahua. Nas festas há mestiços e tecnocumbia, mas também partilha geral e cantos yama yama17, músicas associadas aos valores do parentesco (CARID, 2007, p. 115-190). É essa junção que confere às masateadas sua feição característica. Do ponto de vista da teoria clássica do ritual, essas festas pareceriam anticlimáticas: as masateadas se caracterizam pela desordem, pelo barulho, por certo caos; mistura de vozes e músicas, nelas se encontram elementos frequentemente considerados tradicionais e outros classicamente exógenos. Mas, já vimos que a própria pessoa nasce de uma relação diferencial, ou seja, do acúmulo de componentes que são entre si nahua: não é isso que se a também nas masateadas, momento em que a produção do social se mostra sob uma de suas faces mais globais e concentradas? 16 Os mestiços, por sua vez, incrementam seu poder de mobilização da mão de obra indígena e ganham, além de uma esposa, um lugar estável onde morar em família. 17 Os yama yama são um gênero cantado referencial, isto é, com ênfase tanto em elementos formais musicais e estéticos como em seu conteúdo linguístico-semântico. Seu contexto de interpretação sugere mais a improvisação individual do que a correspondência com um contexto ritual pré-definido – no sentido forte que tem a palavra ritual. Porém, como já mencionei, as músicas interpretadas tanto por homens como por mulheres e sem acompanhamento instrumental se ajustam a padrões musicais, narrativos, performáticos (embora exista bastante liberdade neste aspecto, há também constantes) e semânticos concretos (CARID, 2007, p. 76-77). As temáticas giram em torno da lembrança e da saudade que a separação dos parentes mais queridos provoca no intérprete. Também há yama yama – palavras que se repetem no estribilho das músicas – com conteúdo fortemente erótico.
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IMAGENS DOS YAMINAHUA
As vozes mecânicas da tecnocumbia e os cantos saudosos dos Yaminahua se entremesclam com harmonia peculiar no coração da floresta. Ninguém deixa de dançar enquanto o intérprete pensa (xina) e canta. Cantam porque pensam insistentemente (xinai bitsai), dizem os Yaminahua, reunindo em um conceito uma consciência constituída como reflexo de uma falta – falta dos parentes que por um motivo ou outro não estão mais junto ao intérprete do canto – e a própria existência da falta recriada poeticamente na música. Dança-se com os “outros”, mas pensa-se e canta-se para os parentes que, sem fazer parte da festa, aguardam na distância a lembrança musical de seus seres mais queridos. Tornando-se “outros”, os Yaminahua continuam a fazer parentes. É nesse sentido que os mestiços ou os serranos aram a fazer parte da série de nomes que compõem o atual mapa da multiplicidade nominal yaminahua. Produto de “outros” – e da mistura de outros –, como Lua antecipou no tempo do mito, os Yaminahua produzem seu jeito de ser no presente, capazes ainda de efetuar na estrutura os devires da história.
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LINGUAGENS DA POLÍTICA EM ETNOGRAFIAS KAXINAWÁ Paulo Roberto Nunes Ferreira1
1. Considerações iniciais: Os Kaxinawá entre antropólogos e indigenistas Presentes no Brasil (Acre) e no Peru, os Kaxinawá, que se autodenominam Huni Kuin (gente verdadeira), existem em número aproximado de 5.800 pessoas no lado brasileiro. Falam o hantxa kuin (língua verdadeira), pertencente à família linguística pano. Ocupam, no Brasil, os rios: Breu, Jordão, Tarauacá, Murú, Humaitá, Envira e Purus. No último levantamento2, realizado em 2006 por Iglesias e Aquino, os Kaxinawá perfaziam um total aproximado de 43% dos índios no Acre. Das 35 Terras Indígenas homologadas ou em processo de demarcação, eles ocupam 12. No Peru, dois anos antes (2004), eram pouco mais de 1.400 pessoas vivendo em 18 aldeias, das quais 10 eram reconhecidas pelo Governo central enquanto “comunidades nativas”. Nesse país vizinho, eles habitam os rios Purus e Curanja (Federación de Comunidades Nativas de Purus – FECONAPU, 2004, p. 5). O primeiro contato que tive com esse povo se deu em 2000, desta feita no rio Purus, cuja subida leva ao Peru. Desse breve ado ao presente já se vão nove anos, dos quais 2005 a 2007 foram os mais intensos. Junto com eles, construí propostas pedagógicas de parte das escolas de suas aldeias. Minha relação com os Kaxinawá se deu no campo do indigenismo oficial, não da FUNAI, porém, da Secretaria de Estado de Educação do Acre. Minha experiência indigenista se faz com esse povo e, de meu ponto de vista, fui especialmente por eles iniciados no “desafio” etnológico. Esse texto será carregado de sentido na conexão ao contexto indigenista acreano interpretado à luz da etnologia, tanto dos Kaxinawá quanto de dois de “seus” antropólogos. Interpretar esse povo indígena não é meu intento; todavia, a partir de duas etnografias sobre eles realizadas, num intervalo de um quarto de século, na agem do XX para o XXI (1982-2007), proponho: (a) relacioná-los às “inspirações” indigenistas que delas podem ser elaboradas; (b) demonstrar a maneira como esse povo socializa “seus” antropólogos; (c) apontar que a luta política, outrora associada à economia é hoje imbricada à cultura. 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná (PPGAS/UFPR). 2 Ver Iglesias e Aquino, 2006.
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O texto será entressachado por agens que tratam de Terri Aquino (1982) versus Els Lagrou (2007), somando-se às estratégias dos Kaxinawá “fazerem o corpo” de seus antropólogos. Complexificando tal cenário, surgem os indigenistas do campo da educação escolar, agenciados por esses índios em oficinas ou cursos de formação.
2. Reflexos de si: antropologia com os Kaxinawá Terri Aquino publicou, em 1982, sob o título de Índios Caxinauá: de seringueiro caboclo a peão acreano3, o livro que se originou de sua dissertação de mestrado, defendida em 1977. Em 2007, Els Lagrou4 lança A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawá, Acre), advindo de sua dissertação de mestrado de 1991 e tese de doutorado de 1998. Dois textos, dois tempos distintos. Os locais de seus trabalhos de campo são também divergentes. Terri Aquino está no rio Jordão e Lagrou no rio Purus. Uma das perguntas é: o que faz de um grupo de Kaxinawá “seringueiros, caboclos e peões acreanos” e de outro “artistas”? Esta será uma das questões aqui tratadas. Se “seringueiros/caboclos” ou “índios/artistas” fossem imagens, não seriam observadas pelo defrontar de um corpo com o espelho. Isso poderia conduzir-me pelo “natural” caminho da inversão das luzes entre os objetos refletores e refletidos. A questão não é exclusivamente produzir imagens. Deve-se trazer à tona a qualidade do possível, ou seja, que as imaginações indígenas e dos antropólogos tornem-se corpus comunicantes e disso se observe, mesmo que por linhas inversas, que no intercurso entre pensamento indígena e problemáticas antropológicas há um nível mútuo de reflexividade. Porquanto, partindo de trabalhos de campo longos, escrita intensa e alto comprometimento ético e político, elementos presentes em Terri Aquino e Els Lagrou, somados à forma Kaxinawá de “familiarizar” o antropólogo, o desafio é que esses traços sejam, com imaginação, por mim alcançados. Doravante, o primeiro o é tratá-los nos termos de sua autodenominação: Huni Kuin. Assim, desde agora, abandono a denominação forânea, tratando-os dessa maneira apenas em ocasiões de citações ou referências de outros autores. O exame do que constitui os textos de Terri Aquino e de Els Lagrou será realizado a partir da polaridade enfatizada por Viveiros de Castro (1999) entre etnologia clássica e etnologia do contato. Refletir sobre o intervalo de 25 anos que os separa permitirá ao leitor um “solo etnológico” no qual os textos foram elaborados. As etnografias apresentam dois pressupostos basilares. Terri Aquino sustentará que “os Kaxinawá não concebiam um mundo onde não existisse um patrão” (1982, p. 10). Por outro lado, a interpretação de Lagrou acerca da vida Huni Kuin aponta 3 Resultado de sua dissertação de mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UnB, no ano de 1977. 4 Defendidas respectivamente no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (1991) e, o doutorado, no Programa de Pós-Graduação da Universidade de St. Andrews (Escócia) e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (1998).
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para um mundo que não pode ser concebido sem um parente. Para autora, a vida indígena “reside no fato do ser kaxinawá significar viver em comunidade com parentes próximos (...) a filosofia social que resulta (...) é a vida ao redor do parentesco” (2007, p. 95). Recolocando as proposições de ambos em termos de oposições, ter-seá num campo seringueiros e patrões e, noutro, os parentes e artistas. A fim de sustentar a polaridade, sugiro as seguintes relações: patrões versus parentes e seringueiros versus artistas. Eis o ponto de partida.
3. Vinte e cinco anos de etnologia no Brasil a partir do Acre5 Dos povos indígenas ou com os povos indígenas? O princípio é se fazer etnologia com os povos indígenas e não dos povos indígenas. Esse pensamento é compartilhado por Terri Aquino e Els Lagrou. Viveiros de Castro pergunta-nos: O que se entende por etnologia brasileira? (1999, p. 109). Com o propósito de cotejar os dois primeiros etnógrafos, traduzo e desdobro, livremente, sua pergunta em outras duas questões: (a) existiria uma etnologia Huni Kuin? e (b) ao existir, o que se entenderia por uma etnologia Huni Kuin? De meu ponto de vista, a resposta à primeira pergunta não aria de um truísmo, de tal modo que o dado é que existe uma etnologia huni kuin, pois há uma etnologia indígena. Por outro lado, o que se entende dela é uma questão não explorada. É um “problema” a ser debatido. Portanto, que caminhos são percorridos por essa etnologia e quais características apresentam-nos? Cabe alertar que, ao acolher a advertência de Lagrou (2007, p. 29), cujo teor é a existência de um copioso material etnográfico sobre os Huni Kuin, ainda hoje inexplorado, interessa percorrer seus caminhos que se alinhavam tão labirinticamente quanto os grafismos desse povo, cuja marca distintiva está além de sua geometria. Localizada para adiante do campo de visão, nossa técnica de olhar parece não ser capaz de captar6. Seus grafismos ultraam o e no qual são pintados ou tecidos. Porquanto, considerem que a escrita do antropólogo nada mais é que um conhecimento aplicado a um dado e, ou seja, folhas secas e finas confeccionadas com substâncias vegetais que, reduzidas, permitem-nos a impressão de dados, anotações de cadernos de campo, rituais, encontros, sistemas de parentesco, xamanismo e toda sorte do que os olhos e a escuta desse humano forem capazes de capturar. Entre o grafismo Huni Kuin e a escrita do antropólogo, a distinção estética é a margem. Eles, com sua arte, ultraam-na e contingenciam o exercício da imaginação para constituir a visão. Já o texto escrito obriga-nos a ler. Seu produto é a imaginação. Dois princípios diferenciais operam nesses registros; eles se comunicam, porém, de que forma? Imaginar para ver e ler para imaginar nos dirá o que acerca das etnografias desses dois antropólogos? Els Lagrou (1998a, 2002b, 2007c) notou que, de qualquer posição da 5 Privilegio nesse momento as interpretações de Eduardo Viveiros de Castro (1999a, 2002b), bem como as etnografias de Aquino (1982) e Els Lagrou (2007). 6 Ver Lagrou, 2002.
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peça ou do olhar que se observe um grafismo Huni Kuin, é possível identificar sua forma ou o seu padrão. Não importa se a incursão ocular se der da direita para a esquerda, de cima para baixo, em diagonal, do norte para o sul ou leste para o oeste, sempre será possível identificar o desenho. De tal maneira, acredito que essa relação é análoga à antropologia. Sugiro, pela via do contatualismo ou da etnologia clássica são reconhecidas as etnografias com os Huni Kuin pelo primeiro elemento constante: a “permanência” do antropólogo entre eles e a sua posterior inclusão em grau sério, consequente e, por vezes, radical na rede de parentesco. Não importa se a ênfase é a academia ou a militância. Não se trata de “voluntarismo”. Terri Aquino se definiu mais indigenista do que antropólogo (Entrevista, 2008) e nem por isso foi retirado do circuito de parentesco. Muito ao contrário! Sua inclusão foi radical. Essa permanência é tão impressionante que Lagrou (2007) o cita enquanto o “grande aliado dos Kaxinawá”. Há mais de trinta anos ele é indigenista no Acre e, direta ou indiretamente, mantém relações com esse povo. Nesse sentido, o concorrer de três décadas, vinte e cinco anos entre um estudo e outro, uma etnologia ou um estilo de se fazer etnologia entre os Huni Kuin não poderia ter sido criado? Acredito que sim, e este texto é um o para essa análise. A construção é que o antropólogo dos Huni Kuin se torna um parente efetivo ou classificatório. Terri Aquino casa-se com uma mulher nativa do rio Jordão, onde concentrou suas atuações acadêmicas e indigenistas. Lagrou é adotada por uma família Huni Kuin na terra indígena Alto rio Purus, local de sua pesquisa. Ele ou ela são incorporados ao universo do parentesco. Se essa característica não é exclusiva, a forma dos Huni Kuin fazê-la merece ser debatida, pois importa-nos duplamente. Em primeiro lugar, vislumbra sobre a natureza das relações entre antropólogos e esse povo. E, mais importante, faz-nos atentar para o esforço indígena de compreender esses sujeitos de alteridade dada, pois, quando chegam à aldeia, são estrangeiros que, posteriormente, têm sua afinidade construída, na medida em que saem das terras indígenas geralmente aparentados. Acredito na existência de uma ideologia7 de uma etnologia entre os Huni Kuin. Sua origem está em Terri Aquino. De meados da década de 1970 à virada do século XXI, já mais ao fim dos dez primeiros anos dessa nova “idade”, esse povo trata ideologicamente de fazer contato e criar alianças por meio dos antropólogos e indigenistas. Se pensado à luz de uma sociologia pano, faz sentido que estabelecer contatos equivale a fundar possibilidades de intercursos relacionais. O que está em pauta são pessoas, coisas e suas interações, sobretudo, traduzidas em conhecimento através de processos de familiarização de alteridades. A relação entre os índios Huni Kuin e o indigenismo da educação 7 Adotando os questionamentos de Viveiros de Castro (1999, p 110): (a) há uma “epistemologia política da etnologia feita no Brasil”?; (b) “pois a ideia de uma etnologia brasileira está na origem de uma ideologia da etnologia brasileira – uma ideologia brasileira da etnologia – suas origens merecem discussão”.
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escolar pode ser singularmente expressa no diálogo com a Secretaria de Educação do Governo da Floresta8, que inaugura e amplia a perspectiva de visualização do investimento indígena em familiarizar os técnicos brancos. Nessa ação, eles articulam campos de agenciamento. Essa lógica é uma marca das relações para com esses Outros enquanto próprios a um tipo de contato que é produtor de trocas duradouras. Torna-se significativo que muitos dos técnicos indigenistas que desenvolveram trabalhos ao menos de médio período, ou seja, num intervalo de um ano, com esse povo tenham recebido um Sheni Kena ou Kana Kuin (nomes próprios). Nomear é uma das formas que eles encontraram para familiarizar o estrangeiro em contato. Outras facetas que delineiam o agenciamento são, privilegiadamente, observadas em um caso onde se revisou projetos político-pedagógicos em Rio Branco, capital do Acre, na sede da Secretaria de Educação, com um xamã do rio Jordão. Interessa, pois, que o cenário de aprendizagem é de “pura” alteridade. Distanciados da floresta, porém, mais adentro do próprio Governo que se diz dela, estava-se no interior da Secretaria de Educação e se cria um dentro/fora intricado, tal qual um espaço virtual entre a cidade e a ideia de uma aldeia à beira de uma rua de asfalto e não às margens de um rio. Era antes um espaço de virtualização de relações do que uma proposição física do lugar. Todavia, não mais estávamos em meio às florestas e seres Yuxin9. Ao redor, ao invés de árvores existiam paredes de concreto; dantes luz natural, agora lâmpadas brancas fosforescentes; ao invés da árvore caída à beira de caminhos e varações10, cadeiras almofadadas, mesas de aglomerado, computadores e gravadores de voz. Enfim, os lugares e os instrumentos ocidentais de aprendizagem e captura de conhecimento. No Governo da Floresta, uma das funções de um técnico indigenista em educação escolar é elaborar projetos político-pedagógicos. Eu já havia visitado diversas terras indígenas. Minha concentração se dava entre os rios Tarauacá, Jordão e Purus. A cada oficina realizada, parecia estar mais madura a ideia de uma educação indígena diferenciada, intercultural, bilíngue e comunitária, tal qual reza a legislação brasileira desde a Constituição Federal de 1988. Acesas no meu peito e mente, havia uma sensação e uma ilusão. Senti haver um encerramento precoce de comunicação entre eu, os povos indígenas e a Secretaria de Educação. Desse malfadado sentimento surgiu a ilusão. Consistia-se na minha crença de que eu escolhera os Huni Kuin para que fossem, eles próprios, os revisores e consultores de seus projetos de escola. Esse era o “pretenso” contra-ataque ao tradicional jargão dos antropólogos 8 Uso esse termo enquanto um sinônimo de Governo do Estado do Acre a partir do ano de 1999. Sob esse slogan há dez anos identifica-se a gestão petista no Acre. 9 São duas as principais definições: alma ou força vital. De acordo com a filosofia social kaxinawá existem quatro yuxin em cada pessoa. O do excremento (pui yuxin), da urina (isun yuxin), da sombra (yuda baka) e do olho (bedu yuxin). Eles existem dentro e fora do corpo humano. Tanto compõem a vida humana quanto podem ser predadores dela. 10 São atalhos abertos na floresta entre as estradas de seringa. Elas diminuem as distâncias entre uma colocação e outra. As colocações são as unidades de produção de um seringal.
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que “aprendem com os índios”, mas os relegam quase sempre a professor de antropólogo, sendo a consultoria da escola uma atividade não-indígena. Considerava-me, então, um progressista que favorecia o respeito às diferenças e à autonomia intelectual desses povos. Dito de outra maneira, imaginei que permitira um caminho adequado às reivindicações Huni Kuin na Secretaria de Educação. Animado por essa ilusão, engajei-me, juntamente com Augustinho Manduca Mateus, xamã do rio Jordão, na revisão dos projetos político-pedagógicos das escolas de seu rio. Augustinho é um experiente xamã. Ele foi uma das mais presentes lideranças na luta pela demarcação das terras indígenas no Acre. Apresentou-se como o professor de antropólogo: Sabe o Marcelo [Piedrafita], o compridão? E o Terri? Eu ensinei muito para eles! (Entrevista. Augustinho Manduca Mateus. Revisão de Projeto Político Pedagógico, 2007). Isso já me advertia que ele pretendia recolocar nossa relação em termos simétricos. Não obstante, referiu se aos seus anteados de grupo e posição, ou seja, xamãs, como os pesquisadores velhos que, situados num período histórico “tão anterior”, não possuíam gravadores como o meu. A linguagem que Augustinho me apresentou era algo como a xamanização da escola e não a escolarização da cultura. Mitos, antropólogos ansiosos para saber, professores indígenas e indigenistas são cotejados no seu relato. Augustinho é eloquente e explica, por meio da minha própria experiência indigenista, a sua equação: estabelecer contato = conhecer. Agora você, por exemplo, já está com sete anos que está com o povo huni kuin e você está vendo que o trabalho é diferente e tem muitas coisas importantes de vocês aprenderem juntos com os professores. Isso é uma coisa importante, porque vocês ensinam o lado da cultura branca ao lado do huni kuin e também os professores huni kuin estão dando alguns exemplos e mostrando as diferenças da cultura nossa.
Minha ilusão e sensação dissolviam-se como sal embaixo de chuva grossa; da montanha que era, apenas um filete salgado restou. Se em certa altura de minha assessoria às escolas e aos professores indígenas pensei ter decidido pelos Huni Kuin serem seus próprios consultores, Augustinho fez-me ver o inverso e que tal decisão não fora exclusivamente minha. Compreendi que a “vantagem epistemológica” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002) não é tão “vantajosa” assim. O que vi? A anulação dessa vantagem. Do “nativo relativo” ou “das regras do jogo” deve restar apenas o “empate ativo”. A observação cada vez mais contundente era: aprenda com os Huni Kuin! No entanto, eu pensei dizer, antes dele, nós, brancos benevolentes e progressistas, permitiremos que vocês ensinem a vocês mesmos. O tom irônico é proposital, eis uma provocação indígena e indigenista à educação diferenciada. A potência e a efetivação de uma escola Huni Kuin estavam com esse xamã e, portanto, com o seu povo. A maneira deles me fazerem “ver” foi familiarizar-me com sua própria cultura, “os seus exemplos” e as “diferenças” que de maneira recorrente eram por eles acionadas. Isso explica ao menos qua250
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tro formas de comportamento diante de indigenistas: (a) as nomeações em língua indígena; (b) a participação em brincadeiras; (c) as pinturas corporais com jenipapo; e (d) as sessões de nixi pae. Trazer esse “real vivido” do contato às palavras escritas nada mais é que do perceber etnograficamente o processo de fabricar os corpos (LAGROU, 1998a; 2005b; 2007c). No caso dos indigenistas, é (re)fabricar sua agência e os efeitos do que poderia chamar uma das propriedades do técnico indigenista, isto é, o saber do branco, aquilo que ele escreve. De tal ponto de vista, se o corpo estrangeiro (indigenista) é refeito à la Huni Kuin, aquilo que escreverá será igualmente refeito. A escrita do técnico é justamente a sua agência. Se esta for entendida como um potente veículo de suas capacidades de interação social (McCALLUN, 1998), então é a interação que se altera à moda desses índios, pois é dado que ambos, índios e brancos, estão em relação. A intenção Huni Kuin é atingir e alterar a natureza dessa relação. Ao alcançarem sucesso nesse intento, na verdade, um de seus grandes projetos, então eles familiarizaram o exterior que se fazia presente na aldeia. Ou seja, um dos bens dos brancos: a técnica, mas essa a partir do corpo do técnico, refeito à sua maneira. Ressalte-se que a ideia de contato interétnico é bastante ampla. Ela abarca, como já consagrado pela literatura, o escopo de relações entre índios e brancos; todavia, permite-nos, atualmente, perceber as distintas formas de contato intraétnicos e interétnicos, exploradas a partir do ponto de vista indígena. Aqui, privilegio apenas um deles – a escola indígena numa visão Huni Kuin. Porquanto, sociologicamente, a aliança com o técnico indigenista e o cultivo nele de relações que o faz ver-se em torno de parentes índios o coloca defronte à assunção ou não de um projeto e um posicionamento ou não Huni Kuin. Em um processo gradiente, sua alteridade é diminuída na proporção em que se intensifica o grau de afinidade nos convites, seja para alimentar-se, participar de decisões políticas ou defender projetos frente a atores externos, tais como o Governo. De tal forma, se “a produção da sociedade Kaxinawá consiste em um tipo de domesticação, ou melhor, de familiarização ou sedução da alteridade” (LAGROU, 2007, p. 63), “habituar” os técnicos à vida na aldeia, “acostumá-los à nova situação”, é reduzir distâncias, especialmente a cognitiva. O contato de Terri Aquino, a partir do final da década de 1970, e o de Els Lagrou, nos últimos anos de 1980, faz elevar-se como que em ondas a qualidade das relações que se estabelece na produção de um livro ou na denúncia de injustiças sociais, no esforço de aprender à la indígena e de ensinar à la branco, como tornar-se indígena livre. Ambos possibilitam vislumbrar do que decorre11 uma etnografia junto dos Huni Kuin, bem como sua “natureza”, 11 Viveiros de Castro escreve que para se responder a pergunta: “o que se entende por etnologia brasileira”, é necessário saber do que decorre a ideia de uma etnologia brasileira. Assim, ele tece comentários sobre a natureza, qualidade e epistemologia da produção etnológica brasileira, dos anos 50 aos anos 90 do século XX (1999, p. 109-223).
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“qualidade” e “epistemologia”. Por hora, o interesse é o esclarecimento do trio etnologia/etnografia/Huni Kuin. O primeiro o re-erigir, apenas para fins explicativos, uma dicotomia que distinguiria os trabalhos desses dois autores nos termos das expressões: (a) etnologia clássica e (b) etnologia do contato interétnico. Paulatinamente, tal dicotomia será suavizada e a polaridade se transformará em diferenças de ênfases. Para o momento, ela cria uma “grande divisão” entre as duas etnografias e, assim, uma melhor visualização das linhas que as separam (ou unem). Conceitualmente, os “classificadores da produção intelectual” informam que a “etnologia clássica” é depurada de compromissos com a istração pública e é voltada para dimensões internas da vida dos povos indígenas. Já a “etnologia do contato interétnico” se faz na preocupação com as interações entre indígenas e sociedade nacional (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 111, apud LIMA, A., 1998, p. 263). Apenas como exercício explicativo, “farei as vezes” do “classificador de produção” e taxarei: Lagrou estaria relacionada à “etnologia clássica”, bem como Terri Aquino à “etnologia do contato”. Lagrou (2007) ocuparia uma espécie de “campo de transição” na antropologia social entre a “economia moral da intimidade”12 e a “economia simbólica da alteridade” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 334-336). O primeiro posicionamento trata de um tipo de antropologia social que “enfatiza a complementaridade igualitária entre os gêneros e o caráter íntimo da economia nativa (...), essa orientação tende a valorizar as relações internas ao grupo local – definidas pelo compartilhamento e solicitude entre parentes” (Idem, p. 334). O segundo (...) interessa-se nas inter-relações entre as sociologias e cosmologias nativas (...) concentram-se nos processos de troca (guerra e canibalismo, caça, xamanismo e rituais funerários) que, ao atravessarem fronteiras sociopolíticas, cosmológicas e ontológicas, desempenham um papel constitutivo na definição de identidades coletivas (Idem, p. 335-336).
Terri Aquino (1982) não estaria nisso que chamei “campo de transição”, tampouco no que se define por “economia política do controle”, “influenciada pela distinção estrutural-funcionalista entre os domínios do doméstico e político ritual” (Idem, p. 333). Ele é caudatário de Roberto Cardoso de Oliveira, mesmo tendo sido em sua etnografia orientado por Júlio César Melatti13. Bem-intencionadamente, ele dedicou esforços para livrar os Huni Kuin dos efeitos avassaladores do Ocidente através de cooperativas de produção e comercialização de borracha nativa coletada nos seringais do rio Jordão, onde habita o grupo que estudara. 12 Compreendo o íntimo não como algo atomístico; entretanto, é o “mais interior” constituinte e constituidor – assim como o contato com o exterior – do socius dos Kaxinawá. 13 Sobre Melatti, Aquino disse-me em entrevista que ele o fez enxergar o parentesco. Sobre Roberto Cardoso de Oliveira, disse: esse foi o grande professor, com o seu trabalho sobre fricção interétnica. (Entrevista, 2008.)
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O objetivo de seu livro, que se fez mediante “diversas etapas de pesquisa de campo e convivência com os Kaxinawá de Tarauacá, Feijó, Manoel Urbano e Cruzeiro do Sul” [mas especialmente entre os Kaxinawá do rio Jordão, no seringal Fortaleza] é o: (...) estudo das relações sociais e das identidades étnicas engendradas pelas frentes de expansão e pioneira que incorporaram os Kaxinawá aos seguimentos de classes da sociedade brasileira em região específica de fronteira. Prendese, sobretudo, a um interesse de pesquisa despertado dentro da antropologia brasileira e profundamente preocupado com a sobrevivência física e étnicocultural dos povos indígenas existentes no país (AQUINO, 1982, p. i).
Pode-se dizer que Terri Aquino elabora uma discussão que trata de teorias acerca das frentes de expansão e pioneira na Amazônia, bem como da “fricção interétnica”. As décadas de 1970 e 1980, período da publicação de seu livro, são as mais dramáticas da história acreana. No curso desses dez anos, ocorre uma drástica reordenação fundiária do Acre, onde milhares de pessoas deixam a floresta e se dirigem para as cidades próximas aos grandes seringais ou à capital do Acre. Acelera-se o processo de transformação de áreas de seringais em grandes fazendas de gado bovino. É a chegada dos “paulistas”14, mas também é um período de articulação de movimentos indígenas e de seringueiros em defesa não apenas da floresta, mas de uma forma específica de sobrevivência via extrativismo15. A antropologia brasileira nas décadas de 1970-80, período em que Terri Aquino escreve sua dissertação de mestrado (exatamente em 1977) e que origina seu livro cinco anos mais tarde, em 1982, é marcada pela preocupação com o registro dos “mecanismos de dominação étnica e a transformação das sociedades indígenas”, como narra Viveiros de Castro (1999, p. 124). Com deferência, Terri Aquino, numa entrevista, afirmou ter em Roberto Cardoso de Oliveira o seu “grande professor”. O “aluno” parte das premissas da fricção interétnica para pensar conceitos de identidade e etnicidade. Ele seguirá sob influência do “mestre”, buscará desvelar um novo olhar sob as relações de contato entre índios e brancos. A marca de Roberto Cardoso de Oliveira na antropologia brasileira é a mesma em Terri Aquino. O desafio é, pelo caminho contatualista, lançar uma perspectiva original ao intercurso brancos/índios, estes refletidos a partir da rede de situações criadas na e pela fronteira, compreendida por mim enquanto metáfora para o contato, espaço de tensões sociais e região limítrofe. Não obstante, Ramos (1990, p 464-465) apontou o contato interétnico como “trademark of Brasilian ethinology” para o decênio 70-80 do século ado. 14 Como foram nomeados os compradores de terras que vinham de Estados das regiões sul, sudeste e centro-oeste do país. 15 Ver ESTEVES, Benedita Maria Gomes. Do manso ao guardião da floresta: Estudo do processo de transformação social do sistema seringal, a partir do caso da Reserva Extrativista Chico Mendes. Tese (Doutorado) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 1999.
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4. Sentidos de uma natureza antropológica É necessário que se denote o universo daquilo que é classificado como antropologia clássica e como antropologia do contato interétnico. Viveiros de Castro (1999, p. 115) aponta um dilema que é considerar a articulação entre povos indígenas e a sociedade nacional como um processo de dominação colonial. Tal dilema antropológico criará uma polaridade. Os índios se constituem como “objetos” históricos e teóricos resultantes da política de dominação de um lado, ou, de outro, são na verdade contextos de efetuação. Assim, os estudos enfatizariam a reflexão sobre os “índios colonizados” ou a “possibilidade indígena” de colonizar o colonialismo. Esse antropólogo nos coloca duas saídas. Parecem poucas as possibilidades; entretanto, os povos indígenas não colocariam outras? Ou não reconduziriam esse dilema? Porquanto, ou tomam-se os índios como algo criado pelo Estado nacional ou se busca a atividade propriamente criadora desses povos. É na primeira oposição que se localiza o trabalho de Terri Aquino. Lagrou já estaria na segunda. E, ainda, é justamente no período da pesquisa desse antropólogomais-indigenista, num espaço de dez anos (1975-1985), que essa polaridade se acirra. Constituir-se-iam as linhas de estudos preocupados em descrever etnograficamente as formas socioculturais nativas e os de aculturação ou mudança social – noção emblema de “contato interétnico” (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 137). No texto de Terri Aquino, os “Kaxinawá seringueiros” nascem das frentes de expansão e pioneira. Questionar se “os índios são do Brasil ou estão no Brasil?”, como faz Viveiros de Castro (1999), hoje importa para repensar o cenário acreano daquele período. Uma paráfrase possivelmente adequada é: (a) as frentes econômicas no Acre foram os novos objetos das problematizações dos Huni Kuin, ou eles é que foram problematizados a partir do avanço do extrativismo e, posteriormente, da pecuária?; (b) Perceberemos os povos indígenas do ponto de vista do Estado Nacional ou do ponto de vista deles? Para resposta, cabe escolher: “o que é contexto de que [e] quem está inserido no [contexto] de quem?” (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 118). A preocupação temática de Terri Aquino é “o estudo das relações sociais e das identidades étnicas engendradas pelas frentes de expansão e pioneira que incorporaram os Kaxinawá aos seguimentos de classe da sociedade brasileira em região específica de fronteira” (1982, p. i). Dono de uma escrita vigorosa e denunciadora, Terri Aquino trará dois personagens marcantes: são os índios que o auxiliam em campo. Eles constituem a metáfora do contato entre brancos e índios, entre seringueiros, seringalistas, peões e fazendeiros e os Huni Kuin. Eles são as “grandes divisões” dentro de seu próprio trabalho. Estamos diante dos finados Alfredo Sueiro Sales e Carlito Cataiano. O primeiro deles Terri Aquino conheceu no rio Jordão, seringal Fortaleza que, posteriormente (1976), tornou-se o ponto de referência de seus trabalhos de campo. O segundo ele encontrou numa aldeia 254
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chamada Morada Nova, na margem oposta (direita) do rio Envira, na altura em que este corta a cidade de Feijó. Suas trajetórias são os dois polos da análise do antropólogo. Carlito está para o peão regional assim como Sueiro foi a tradicional liderança. Entretanto, Carlito é um xamã. A contradição entre essas duas identidades, para usar os termos no mesmo sentido do autor, é que nem experientes bebedores de ayahuaska que já viviam no rio Jordão, como o senhor Romão Sales16, um dos contemporâneos de Alfredo Sueiro Sales e do próprio Carlito, eram requisitados para curas. O chamado dos parentes acometidos por moléstias era por Carlito Cataiano – o peão. Para curar de malária, ele dizia: prepare o cipó. Terri Aquino observa isso como uma “estranha surpresa” (AQUINO, 1982, p. 13), porém, não seria o “assalto” de Carlito ao paradigma de índios aculturados? Ele desafiou os conceitos do antropólogo que atuou num modelo onde Sueiro e Carlito são reificados. Assalto, estranheza e desafios foram repensados por Manoela Carneiro da Cunha em 1998, portanto, 16 anos após a publicação do livro de Terri Aquino. Este, por sua vez, não observou a ênfase dos Huni Kuin no relativismo ou na posição privilegiada ou a habilidade sofisticada de estar “entre” dois mundos, de adentrar em mais de um universo de saberes e de criar uma comunicabilidade ampla entre alteridades. Uma hipótese que reforça o prestígio de Carlito como um xamã poderoso é o de que os Huni Kuin estudados por Terri Aquino vivenciavam intensamente o contato com os não-índios. Eles estavam no campo de englobamento dos seringais e, posteriormente, no das fazendas. E Carlito parecia, entre todos, aquele que mais habilmente transitava nesses campos de alteridades e familiaridades, objetificados por cantos da Ayahuaska, poderes de cura, umbanda e outras crenças xamânicas de povos pano e dos Ashaninka. Ele é descrito por Carneiro da Cunha da seguinte maneira: Carlito é Kaxinawá. Vende picolé nas ruas de Rio Branco, capital do Acre, e vez por outra trabalha como assistente de antropólogos e de uma ONG. Mas é xamã também, misturando técnicas emprestadas dos Yawanaua e Katukina do Gregório e do Tarauacá, combinadas com rituais tomados da umbanda, aprendidos em Belém e Manaus. Sua clientela é formada por sua própria e grande família e por antigos seringueiros dos bairros mais pobres de Rio Branco. Nada disso nos surpreende mais. Tampouco nos surpreendem seu conhecimento das crenças xamânicas ashaninka e seu relativismo (1998, p. 15).
Todavia, Alfredo Sueiro Sales e Carlito Cataiano definem por “cortes”, além dos impingidos nas árvores de seringa, a etnografia de Terri Aquino, pois, entre o pajé do cipó (ayahuaska) – responsável por curas e acusado de feitiçarias – e o intelectual do grupo havia uma oposição medida pelo grau de contato com os brancos. 16 Romão Sales, falecido há aproximadamente dois anos, é pai de um professor e xamã do rio Jordão, Isaías Sales, que em 2006 publicou um livro de cantos xamanísticos sob o título Espírito da floresta, com cantos aprendidos com seu pai.
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Não obstante, seu texto se constrói em torno de pares de oposições, cujas identidades são contrastivas, porém não complementares. Em alternativa, deixe-se ver a oposição pensada como um par. Isso não faria de Carlito menos interessante à etnografia do que Sueiro. No entanto, ele não se preocupou em manejar as possíveis complementaridades; ao contrário, as fez cada vez mais fortes. E, por isso mesmo, surge um “Sueiro” que “preocupava-se com a memória social e com o projeto ascendente do próprio grupo Kaxinawá”; enquanto um “Carlito” ocupava-se de “uma solução de seu problema individual” (AQUINO, 1982, p. 33), que consistia em ter terra para sua família. Dessa maneira, Sueiro era dono de uma percepção ampliada e indígena que alçava a terra para o seu povo e, de outro, Carlito percebia o mundo de forma ocidentalizada e seu sonho não ava de um “pedaço de terra” para o seu núcleo doméstico. Ambos obtiveram sucesso em suas empreitadas: tanto foram demarcadas as terras indígenas no rio Jordão quanto Carlito, mesmo em condições precárias, vendendo picolé e serviços xamânicos nos lugares mais pobres de Rio Branco, manteve sua família por vários anos na capital do Acre, local por excelência da alteridade17. A ênfase de Terri Aquino está na trajetória de Sueiro, que é a “redenção nativa” contra as frentes econômicas. Seu livro poderia ser inclusive repensado a partir desse personagem, um índio Kaxinawá, metido a cariú e patrão de seringal (AQUINO, 1982, p. 14-15). Por outro lado, ressalto que, no início do contato de Terri Aquino com os Huni Kuin do Jordão, Sueiro agia de modo similar aos patrões não-indígenas da região. Por esse ethos, ele transformava seus parentes em fregueses. Os registros dessa relação se dariam no acionamento de campos dentro e fora do parentesco. Sueiro se tornara o parente/patrão e seus primos, irmãos, sobrinhos, tios e cunhados, parentes/fregueses. O parentesco via economia extrativista é o que parece estar em jogo ou em risco. Por outro lado, Terri Aquino considerava Sueiro Sales um intelectual da cultura Huni Kuin capaz de: (a) liderar o seu povo; (b) arregimentá-los em torno da produção de artesanato – “cultura material”; (c) idem para a produção de borracha; (d) explicar-lhes regras prescritivas de casamento e moradia (AQUINO, 1982, p. 17-18) e; (e) definir as relações sociais que engendram o contato interétnico. Sueiro é o Huni Kuin-patrão-parente-próximo que define os termos do argumento da pesquisa do antropólogo dizendo: “os caboclos agora só querem tirar pelo cariú” (AQUINO, 1982 p. 18). Interessa para o objetivo desse texto é que tanto mais será producente quanto menos for excludente a relação entre antropólogo e nativo. Tratar da sociologia e do pensamento indígena de maneira interna e ter o Estado Nacional como o horizonte externo é “igualmente” válido a focalizar o Estado Nacional, cujo interior engendra lutas por terra ou/e políticas identitárias. 17 Rio Branco, a capital do Acre, ou qualquer cidade são por excelência lugares de alteridade. Nelas habitam os nawa. Esse termo denota alteridade e pode ser traduzido como estrangeiro.
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Nesse plano, Lagrou e Terri Aquino são equivalentes. Não ultraam um ao outro, pois permitem o a ambas as sociologias, seja a do contato interétnico ou a dos Huni Kuin. De tal maneira, do ponto de vista da etnologia indígena, a etnografia somente ocorre, ao que penso, com os índios. De forma incomum, gostaria de usar os argumentos e as críticas mais agudas de Viveiros de Castro ao “contatualismo”. Com efeito, elas podem ser balanceadas. Ele escreverá: “leve a sério o que diz o Outro” (1999a, 2002b). O “Outro” de Viveiros de Castro são, claro, os índios. Os nossos Outros serão os índios, assim como os índios terão a nós como mais um de seus Outros. Seu destaque é a capacidade indígena de englobar a alteridade, não o contrário. A potência está na cosmovisão indígena atuando. Porquanto, considero Terri Aquino e Els Lagrou dois Outros de mim, pois são dois distintos pesquisadores que desenvolveram estudos junto ao povo com o qual trabalho e que também pesquiso. Como salientei no início desse texto, meu objetivo é compreender o par etnografia/etnologia a partir de pesquisas com os Huni Kuin, portanto, é a “cosmovisão” antropológica atuando ou, como os escritos desses antropólogos pretenderam englobar os Huni Kuin, pois, esta ação faz a cena atual. Portanto, levo a sério o que escreveu Terri Aquino. E sobre os indígenas em contato o argumento de Viveiros de Castro, subvertido, é algo producente: “O que estou dizendo é que não é possível que um coletivo humano seja constituído senão pelo que ele próprio constitui” (1999, p. 165). De outra forma, o que digo é que os Huni Kuin constituem o contato, o mundo nasce incompleto e por isso mesmo eles são, por essa relação, propriamente constituídos. Nesse sentido, o individualismo de Carlito e a preocupação com os projetos de afirmação étnica do povo Huni Kuin manifestados por Sueiro, ambos citados anteriormente, são, inclusive, escolhas dessas duas pessoas. Dessacralizando o argumento de Viveiros de Castro, a partir do texto de Lagrou (2007) e de minha etnografia com os Huni Kuin, é possível a forma: um coletivo humano constituído pelo contato com a alteridade. Isso rende para dizer que se a identidade é constituída pela alteridade, se ambas não se excluem, assim o contato com a alteridade é pedra angular da sociologia Huni Kuin. Terri Aquino e Els Lagrou a alcançam por caminhos divergentes. Se a natureza da etnologia de Terri Aquino é o contato, seu predicado será o estudo do indígena em contato. De seu ponto de vista, é adequado que a situação – o avanço das frentes extrativista e agropecuária – defina os termos de “indianidade” Huni Kuin. Por outro lado, a crítica acerca do “predicado” da escola contatualista é que a situação deveria apenas indicar um caráter circunstancial e não designar uma propriedade condicionante dos coletivos indígenas (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 134). As proposições teóricas de Terri Aquino o levam a “apreender as relações sociais e as ideologias étnicas engendradas pelas frentes de expansão 257
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que atingiram e incorporaram o grupo indígena Kaxinawá” (1982, p. 35). O centro de suas análises está em como as frentes extrativista (a partir de 1875) e agropecuária (a partir de 1970) incorporaram, alteraram e transformaram os Huni Kuin. De tal maneira, poderia questionar se tal “incorporação” implicaria mudanças em termos de socialidade? Se a liberdade e autonomia são os termos nos quais se configuram as redes de relações intraétnicas quando estes am a ser pensados enquanto cativos pelas dívidas que lhes são impingidas, seja por seringalistas ou fazendeiros, a resposta é sim. Roberto Cardoso de Oliveira foi o grande professor para Terri Aquino, que em entrevista revela-me: Olha foi fundamental, eu acho, o trabalho dele com estudos de fricção interétnica, de identidades étnicas e foi aí que eu me baseei, muito em cima do trabalho do Roberto que fiz o meu (Entrevista, 2008). A motivação intelectual de Terri Aquino foi a mesma preocupação de Roberto Cardoso de Oliveira, que era, de acordo com o autor, os processos de integração e resistência do índio à sociedade nacional. Duas são as noções fundamentais desenvolvidas por Cardoso de Oliveira e acolhidas por Aquino (1982, p. 45): “fricção interétnica” e “potencial de integração (1972a, 1977b)”18. O avanço de Cardoso de Oliveira é a crítica aos estudos de aculturação, entendidos à época como uma espécie de “deculturação” dos padrões culturais de um ou ambos os grupos em contato. Ele destaca a “fragilidade” teórica desses estudos. Vale lembrar que a noção de frente de expansão de Cardoso de Oliveira é o movimento da sociedade nacional, através de seus agentes regionais (localizados nas áreas de fronteira, áreas não metropolitanas), sobre territórios indígenas. Dois conceitos importantes que servem ao entendimento da etnografia de Terri Aquino dizem respeito ao avanço de frentes econômicas sobre a fronteira, a saber: frentes de expansão e frente pioneira. Conjuntamente, é o que José de Souza Martins (1975, p. 45) chama de “fronteira econômica em expansão”. A primeira dessas frentes é representada pela empresa seringalista e a segunda delas, pela pecuária. Deve-se clarificar que as distinções existentes entre a empresa seringalista e a agropecuária não se fazem apenas em termos de ressignificação da terra como mercadoria. No Acre, estas duas frentes marcam um “contínuo histórico” que carrega consigo símbolos de uma sociologia da exploração. Nesse sentido, e no proposto por Terri Aquino, a frente extrativista deveria ser pensada enquanto contentora de características tanto da frente de expansão quanto da pioneira. Ela engendra tanto o trabalho de 18 A noção de fricção interétnica significa que “a sociedade tribal mantém com a sociedade envolvente (nacional colonial) relações de oposição histórica estruturalmente demonstráveis... não se trata de relações entre entidades contrárias, simplesmente diferentes ou exóticas, umas em relação a outra, mas contrárias, isto é, que a existência de uma tende a negar a de outra. Não foi por outra razão que nos valemos do termo fricção interétnica para enfatizar a característica básica da relação de contato” (OLIVEIRA, 1972, p. 30). Para este autor, essa noção de FRICÇÃO INTERÉTNICA é fecunda na “DESCRIÇÃO E COMPREENSÃO” do fenômeno do contato interétnico. Esse conceito é um equivalente lógico de lutas de classes. Já a noção de POTENCIAL DE INTEGRAÇÃO tem a capacidade de “PREVER” aquelas características que, presentes na situação de contato, poderão ser tomadas como aqueles elementos responsáveis pela integração (OLIVEIRA, 1977, p. 45). (...) “Para se avaliar esse processo de integração do índio na sociedade nacional, é necessário captar os mecanismos de integração segundo três diferentes níveis: o econômico, o social e o político” (OLIVEIRA, 1977, p. 45).
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subsistência quanto a produção de excedente com o produto-borracha. A questão é a exploração das pessoas da floresta e o desenvolvimento do capitalismo mundial, mesmo que na parte mais sul ocidental da Amazônia. Todavia, a agropecuária assume linhas marcantes como uma frente pioneira. Ela é nova em sua forma de exploração dos recursos naturais. Aqui, o valor da terra está em sua dimensão física e não nas árvores de seringa existentes, como dantes na empresa seringalista. Isso configura uma “nova ocupação do espaço geográfico”, caracterizado pelos desmatamentos em larga escala e plantio de pastagens. Terri Aquino adotou os conceitos de Cardoso de Oliveira (1967) e Otávio Velho (1969a, 1972b) acerca da frente de expansão para tratar do avanço do extrativismo, via seringal, em áreas tradicionalmente ocupadas por povos indígenas. E Souza Martins (1975) permitiu-lhe tratar do movimento de expansão da fronteira agropecuária no Acre a partir de 1970. A confluência entre esses autores é a ênfase nas relações sociais, de produção e de trabalho prevalecentes e advindas da frente de expansão (empresa seringalista) e pioneira (agropecuária). A observação do antropólogo indigenista revela que dessas frentes surgem identidades étnicas e sociais utilizadas ideologicamente para classificar os seus participantes (AQUINO, 1982, p. 58). De tal maneira, o indígena é desqualificado e considerado um humano de “segunda categoria”, um empecilho ao desenvolvimento. É o símbolo de um ado em via de extinção.
5. O kaxinawá do presente versus o presente do kaxinawá Note-se que, na análise de Terri Aquino, há a preocupação em perceber um “Kaxinawá do presente”. Isso importa, pois, marcou o fato dele não buscar qualquer essencialização desses índios. Ele critica essa noção. Isso, de minha parte, tem relação direta com o seu engajamento político, marcante em sua trajetória. O Huni Kuin é “original” justamente em sua capacidade de atualizar o presente. Entretanto, seu pressuposto é que tanto as frentes extrativistas quanto a agropecuária deixaram marcas profundas nesses índios. O autor se refere às “correrias de índio”19, ao cativeiro pela dívida em seringais ou fazendas e à “limpeza das terras”, versão atualizada das correrias pela agropecuária que expulsava indígenas e trabalhadores rurais regionais das terras onde viviam. Esses elementos estão enlaçados na agem de “índio seringueiro” a “peão caboclo”. Os Huni Kuin são incorporados como mão de obra do sistema seringal apenas num segundo momento, após a fase das correrias, que configura o primeiro movimento de separação dos parentes, agora em fuga. Um grupo desloca-se para o Peru e se distancia da margem do rio e outro permanece em rios brasileiros. O seringal estabelece uma nova maneira de organizar a produção das relações sociais. Outrora a solicitude entre os parentes, a troca e a comensali19 Matanças organizadas dos diversos grupos indígenas pelos proprietários de seringais recentemente abertos, com a justificativa de garantir a segurança dos seringueiros (AQUINO, 1982, p. 63).
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dade eram as normas que regiam a vida na floresta. Quando ela é transformada em seringal, serão inaugurados a dívida, o trabalho cativo e o aviamento20. Interpretação alternativa à de Terri Aquino pode ser encontrada em Oiara Bonilla21 (2005). Ao abordar o contato dos Paumari no médio Purus, sul do Estado do Amazonas, o faz a partir de uma “sociologia relacional Paumari” (2005, p. 41), onde é possível pensar a relação com os “Outros dos Paumaris” em seus próprios termos. No Amazonas como no Acre, ocorreram as “mesmas” frentes extrativista e agropecuária; entretanto, argumenta a autora, não são as frentes a engendrarem os Paumari. O movimento é o oposto. Os Outros para os Paumari podem ser: outros índios, vizinhos apurinã, os regionais e os estrangeiros (americanos). Bonilla evidencia como eles classificam e pensam o lugar de cada um de seus Outros em um cosmos. Assim, o que se entende por Porto Velho (RO) não é apenas a capital de Rondônia, mas lugar de onde poderosos inimigos vêm em ataque, pois seu caminho é o rio Madeira, anteriormente configurado pela cosmologia (2005, p. 58); há uma “cartografia” do cosmos. Como proposto por Bonilla, na relação entre o indígena e o patrão seringalista não se trataria apenas de uma “rede de endividamento” (2005, p. 44) criada pelo sistema de aviamento, aí já o anúncio de uma marcante distinção em relação a Terri Aquino (1982). De sua análise, importa-nos reter o que aos olhos de “uma” antropologia é uma dívida e aos olhos de “outra”22 se torna uma forma de conhecer o “jeito do Outro” (2005, p. 45). Ao invés de “rede de endividamento”, se teria uma “rede de familiarização com o Outro”, nesse caso o branco/patrão. Há uma importante distinção nessa interpretação da dívida, pois se não é ela própria o laço, entretanto, por ela criam-se relações que envidam ao cuidado. Se de um lado o Paumari é empregado, por outro seu patrão deverá idealmente cuidar dele até a quitação de sua dívida. Isso, por vezes, cria laços de parentesco fictícios (2005, p. 46). E mais, do ponto de vista Paumari não há qualquer novidade na relação entre patrão e empregado. Esta relação já se coloca em seus mitos e cosmologia sendo, por exemplo, o pássaro kamokia (não identificado pela autora) a cuidar do roçado do peixe-boi (2005, p. 47). Interessante notar em seu argumento a Paumaoridade ou a Paumaoritude (2005, p. 49), que nada mais é do que a forma social dos Paumari serem humanos. Bonilla faz repensar em outros termos a “caboclização” ou “os Kaxinawá à moda cariú” contidos no argumento de Terri Aquino (1982). Se as frentes extrativista e agropecuária redefiniram a identidade Huni Kuin, para 20 O seringueiro recebe de seu patrão [dono do seringal] tudo aquilo que necessita para empreender a produção de “peles de borracha”, desde instrumentos de trabalho até roupas e estivas, alimentos e armas. O fornecimento dessa mercadoria é feito através do empenho compulsório da totalidade da produção ao seringalista. Novo fornecimento se faz e assim o processo continua, sem que haja a mínima circulação de dinheiro (AQUINO, 1982, p. 71-72). 21 Bonilla, O. O bom patrão e o inimigo voraz: predação e comércio na cosmologia Paumari. Mana, v. 11, n. 1, p. 41-66, 2005. 22 Embora não acredite haver Uma antropologia ou Outra antropologia, essa distinção tem fins explicativos somente. Serve ao leitor para informar a noção de que há variadas formas de se tratar tanto a “ciência” Antropologia quanto aquilo que ela toma como seu campo de estudo.
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Bonilla os Paumari já estariam nessas frentes atualizando as relações com os Outros, ancestralmente expressas em sua cosmologia. Para Terri Aquino, o meio de ruptura com essas frentes nefastas são as cooperativas. Bonilla, por meio dos Paumari, afirma que é preciso socializarse com elas. Assim, “O meio de conhecer e de controlar a agressividade do inimigo é sendo socializado (...) principalmente pelo domínio da língua de outrem” (2005, p. 54) Por este caminho, “à moda do cariú” mais parece à moda do Huni Kuin. Diria então: está-se diante de sua própria originalidade! Ou, não seria tornarse outro23, ao menos temporariamente, a possibilidade de entendê-la? O conflito, na perspectiva evidenciada por Bonilla, é diluído na sociocosmologia Paumari. Todavia, para o “tempo do cativeiro dos patrões” descrito por Terri Aquino não existiria cosmologia capaz de atenuá-lo. A única possibilidade é a demarcação de terras e a criação de cooperativas de produção. E, ainda, categorias como empregado e patrão inauguram-se apenas após o contato. Ao que parece, os Huni Kuin teriam antes parentes a “trocar atividades produtivas” do que empregados a servir a produção de outrem. Terri Aquino se dedica a observar o “seringueiro Kaxinawá” (1982, p. 73), não a “pessoa Kaxinawá”. São abordadas relações onde o humano é pensado como força de trabalho e não um ser cujo corpo carrega seus parentes e forças vitais capazes de torná-lo propriamente humano, como nos faz entender Lagrou (2007) que assume consequências perspectivistas para sua análise. Ele não trata de uma “sociologia relacional Kaxinawá”, mas da sociologia da dominação expressa por frentes econômicas que se manifestam no contato interétnico de uma sociedade dita “nacional” com esse povo no barrento rio Jordão do Acre. Evidenciado um caso onde temas similares – a saber: Amazônia; frentes extrativistas; contato interétnico e redes de endividamento – são distintamente traçados, como entre os Paumari de Bonilla (2005), é bom que se retome as relações: etnologia/etnografia, Terri Aquino/Huni Kuin e Els Lagrou/ Huni Kuin. Retornemos às oposições explicativas: etnologia do contato versus etnologia clássica. O exercício de definição de índios em relação aos brancos feito por Terri Aquino (1982) constrói-se com base em duas categorias: o trabalho e a ideologia. Não avança em termos de “etnologia clássica” simplesmente porque não é seu intento. Em 1975, Lagrou ainda não escreve sobre os Huni Kuin e a característica de uma “nova etnologia clássica” será o esforço de apreender as sociedades em seus próprios termos – em suas próprias relações. Já a etnologia do contato interétnico busca, e Terri Aquino (1982) realiza esse esforço com sucesso, sublinhar os processos homogeneizadores. Essa tendência pode explicar o fato de que, para o antropólogo indigenista, os Huni Kuin foram “seringueiros”, 23 Ver VILAÇA, Aparecida. O que significa tornar-se outro? Xamanismo e contato interétnico na Amazônia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2000.
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“peões”, “barranqueiros” e “cooperados” e os que Lagrou estudara em 1989, 1991, 1998 e, especialmente, em 2007, são “belos”, “distintos artistas”, “filósofos”, “generosos ou sovinas” e “xamãs”. Mas isso explicaria toda a diferença? Não. Como aludido anteriormente, os Huni Kuin do rio Purus são constituídos por dois grupos (LAGROU, 1998a, 2007b). Ocorre que no rio Purus, atualmente vivem grupos descendentes do conflito no rio Envira, sendo que um deles subiu esse rio em direção ao Peru e outro permaneceu no Purus. O grupo que decidiu seguir para o Peru viveu ao menos cinco décadas afastado dos seringais, enquanto o outro decidiu pelo contato mais próximo, pois, já estava integrado às atividades da empresa seringalista. Os Huni Kuin do rio Jordão, assim como os do Envira, mantiveram um contato mais longo e próximo com os brancos seringueiros e foram, por seu turno, radicalmente inseridos nas redes do contato. Lagrou não devota atenção às frentes econômicas, tampouco ao contato índio/branco. Sua preocupação está nas perspectivas Huni Kuin sobre “as formas das coisas e a agência”, a transformação da forma e a condição humana, bem como uma certa conquista que não é de terras nem de cooperativas, mas reside em uma determinada forma fixa no meio de uma multiplicidade de formas possíveis; em outras palavras, a forma humana. Cuidados na produção formam pessoas enquanto corpos pensantes, por ela definidos como sujeitos que “compartilham princípios sociais”. Sua atenção está no poder das imagens e da forma. Nesse sentido, “é do poder das imagens de criar e destruir as formas na vida kaxinawá”24 que seu livro trata. Sua proposta é dar atenção à pintura corporal, ao grafismo, às artes e à estética na vida cotidiana Huni Kuin. De tal maneira, Lagrou visa: (...) a qualidade relacional expressa pela forma, mais especificamente em imagens materializadas, assim como imaginadas, que indicam formas intersubjetivas de relacionar-se com o ambiente envolvente, habitados por seres humanos e não-humanos (2007, p. 27).
Seu livro explora: (...) a poética e a estética do mundo vivido dos kaxinawá, enfatizando o papel ativo dos diferentes agentes envolvidos nesse processo intersubjetivo de criação de sentido através do uso cuidadoso de imagens nos mitos, no ritual e no cotidiano (2007, p. 27).
Seu feito está em capturar um quadro referencial de conceitos através do qual os Huni Kuin delineiam as suas categorias de percepção e criação no processo de poiesis, bem como a produção de um sentido partilhado na tradução e exegese dos cantos que acompanham vários momentos da vida ritual e cotidiana dessas pessoas. O tema que percorre o livro é: “(...) a agência, o poder das imagens (gráficas, poéticas, materiais e corporais) de dar forma a ideias centrais do povo Kaxinawá sobre a pessoa humana e suas relações com outras pessoas (humanas e não humanas) e com o mundo envolvente” (LAGROU, 2007, p. 28). Sua 24 Ver Lagrou, 2007, p 24.
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análise parte da relação entre forma e ausência de forma (criação e destruição de formas). Ela tratará de uma teoria nativa da imagem (Idem, p. 28). Em seus pressupostos aparecem os artistas, pois é a sua escolha do que etnografar. Claro, isso se apresenta de maneira especial em suas opções teóricas. Significativa parte de sua argumentação sustenta-se em Alfred Gell (1998), o antropólogo que abalou as bases da antropologia da arte, e Joana Overing, antropóloga que nos alertou: há mais que um exterior a ser predado, existindo um interior a construir filosofias morais de convivência. Lagrou permite-nos, por meio de seu livro, entender o corpo enquanto metáfora para a antropologia e locus da produção de uma sociedade, de objetos e de sujeitos cujas agências se conectam nas ocasiões de seus encontros. Sua discussão interessa-nos, pois permite-nos pensar o que constrói a humanidade e a não-humanidade dos seres cujas vidas se conectam ou estão em vias de. Além de focalizar a arte e a estética, os laços com os parentes e a vida em comunidade são pontos cardeais de sua etnografia. Dessa maneira, o contato, presente em seus argumentos, é refletido sob “espelhos” Huni Kuin. Na floresta, além dos pequeninos espelhos que algumas mulheres possuem, cujo jogo físico para produção de imagens é idêntico ao do ocidente, há outro importante lugar para se olhar o reflexo. Este é o rio. Em dias de sol e na época de verão, suas águas tornam-se límpidas, quase transparentes. É possível ver a si e ao céu que cobre as cabeças refletidas. A diferença entre os dois espelhos é que no rio pode-se banhar; então, ao invés de luzes refletidas, há uma comunicabilidade plena. Lagrou possibilita ao leitor perceber os Outros dos Huni Kuin do rio Purus em relação, não em exclusão. Se não elimina o conflito, nos faz pensá-lo de maneira complementar. Com Lagrou (2007, p. 184-185) a identidade é muito mais “nuances, estilos e diferenças de ênfase do que uma verdadeira diferença no discurso sobre identidades étnicas”. Ao invés de um modelo binário, nós versus Outros, ela sugere um tripartite: o Eu; um Domínio Intermediário e; o Outro. De tal maneira, sua etnografia é a contraparte da pesquisa de Terri Aquino.
6. Duas “certas” formas de conhecer A etnografia de Terri Aquino (1982) permite conhecer o impacto das frentes extrativistas e agropecuárias no Acre, bem como suas formas de reprodução, exploração e seus mecanismos de dominação diante dos Huni Kuin do rio Jordão. Ele apresenta as tensões experimentadas por esse povo durante o período de mais de um século. Nisso obtém sucesso e, ainda, busca compreender as identidades: “cariú”, “caboclo”, “paulista” e “acreano” sob a ótica de estruturas sociais e econômicas geradas por essas mesmas frentes numa região de fronteira, o Acre. Como resultado de seu investimento, mais se conhece sobre as formas como os Huni Kuin do rio Jordão foram “atingidos” do que como eles pensaram o próprio contato. Isso não é um problema, a não ser 263
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que se considere temerária a existência de pensamentos e formas distintas e diversas de se fazer antropologia. A questão é o quão fiel será o antropólogo às pessoas com as quais aprende em sua pesquisa. Os Huni Kui que ele estudou, de certo ponto de vista, seriam o reflexo de “um absoluto” (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 132). Para que fique clara a sua proposição teórica, nas duas frentes, extrativista e agropecuária, havia duas “linhas”, uma étnica e a outra de classe. Na primeira frente, a extrativista, as linhas concorrem separadamente, uma após a outra, sendo que a segunda, ou seja, a de classe, dá-se apenas na medida em que os Huni Kuin são incorporados na empresa seringalista (AQUINO, 1982, p. 131-134). Assim, num primeiro momento existiram caboclos versus cariú, e num segundo, concomitantemente, seringueiro-Kaxinawá versus patrão e seringueiro não-índio versus patrão. Primeiro tem-se a etnia e, após, a tensão entre produtores e não produtores. Já na frente agropecuária, a “linha de classe” ordena as relações sociais. A oposição é mão de obra (produtores) versus donos dos meios de produção (não-produtores), respectivamente acreanos versus paulistas. O epílogo do livro de Terri Aquino é justamente seu sonho. Ele descreve uma iniciativa de cooperativa entre os Huni Kuin do rio Jordão que visa, através da produção de borracha, ou seja, da manipulação dos recursos da sociedade nacional, uma alternativa ao jugo do patrão: Começamos em 1976, em 1980 os kaxi ainda não tinham demarcado a sua terra no sentido físico, mas no sentido social já, pois já tinham retirado todos os brancos de suas terras, todos os patrões. E isso foi com o trabalho da cooperativa, como alternativa, como compreensão que você cria alternativa ao barracão que estava dentro das terras indígenas, sendo que a FUNAI deixou os relatórios engavetados (Entrevista, AQUINO, 2008).
O caso de Lagrou foi oposto. Ela buscou a “existência” humana na filosofia moral e social dos Huni Kuin do rio Purus. Desejou esclarecer questões sobre parentesco, identidade e alteridade, cujo fulcro se fez não em categorias ou classificações, “mas em questões relacionais” (2007, p. 29). Assim, não estabeleceu divisões entre “dentro e fora”. Construir uma linguagem Huni Kuin para sua etnografia a levou à arte, canções e noções sobre agência e intencionalidade. Tratou da “fenomenologia Kaxinawá”. Interpreto sua tentativa enquanto a busca pela exegese da vida diária. Ela chegou a “uma teoria nativa da imagem que se produz na tensão entre imagens incorporadas e desincorporadas, imagens sólidas e imagens fluidas, imagens enraizadas e desenraizadas, visíveis e invisíveis” (2007, p. 28). Mergulhada na “sociocosmopolítica Kaxinawá”, a autora teve como base a luta pelo controle da forma. A pessoa Huni Kuin foi definida como: (a) o “eu” pensante e (b) o agente sensível responsável por seus atos. Lagrou voltou-se ao “convívio cotidiano dos Huni Kuin”, escreveu que um “corpo vivente trabalha e produz resultados 264
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no mundo na forma de artefatos, pessoas, roças, caça, etc.” e que os resultados da existência de uma pessoa, bem como de suas atividades, “não são sempre fenômenos palpáveis”. Todavia, uma “pessoa deixa para trás recordações e imagens, sombras intocáveis que assumem uma existência e agência independente do corpo e tornam-se o duplo do corpo” (2007, p. 315). Sua etnografia trouxe, de um lado, uma trilogia da percepção e, de outro, um binômio da procura e transformação. Em conexão, foram obtidas quatro categorias que permitem adentrar a dialética Huni Kuin. Na trilogia da percepção, tem-se: o desenho (Kene), em seguida, a figura (Dami) e, por fim, a imagem (Yuxin). Articulando essas três categorias, conformou-se “um campo de reflexão abstrata sobre a fabricação, mutação e desintegração do corpo humano e da pessoa” (2007, p. 85). Para a etnóloga, essa tríade permitiu “apreender ideias sobre a estrutura do ser: a dialética entre identidade e alteridade, entre visível e invisível, perecível e eterno, vida e morte, feminino e masculino, invólucro e envolvido, criação e destruição” (2007, p. 85). Um caso icônico ocorrido em 2002, que ava despercebido ano após ano em cursos de formação de professores, dos quais os Huni Kuin participavam, revelou o poder dessa tríade. “Despercepção” crucial, diga-se de agem. Nada mais eram que figuras (dami) estampadas nas blusas dos cursistas. A figura a que me refiro continha três rios se cruzando, os maiores do Acre, e que cortam grandes terras indígenas desse povo: Juruá, Purus e Tarauacá. Nascidos rios sinuosos, esses se transformariam em jiboias que, mais à frente, na figura estampada, se encontrariam. E, em torno das jiboias, vários kene (desenhos). A figura em si mesma, portanto, e e corpo, articula a tríade acima citada. Complexifica-se, considerando que Yuxin é um termo polissêmico, tal qual sugere a etnóloga e a minha etnografia. Essa categoria é também a força vital que reside em cada humano; portanto, numa desbotada figura que servia de estampa para um curso de formação de professores indígenas havia a dialética Huni Kuin. O binômio faz-se da relação entre Yuxin e Yuxibu. O primeiro é em princípio o subproduto não palpável da atividade humana. Ele pode existir interna e exteriormente à pessoa. Há ao menos duas definições e duas posições relacionais. Poderá ser compreendido como alma ou força vital e ser predador ou presa. De acordo com Lagrou (2007), os Huni Kuin afirmam, em geral, que existem quatro Yuxin em cada pessoa. O do excremento (pui Yuxin), da urina (isun Yuxin), da sombra (yuda baka) e do olho (bedu Yuxin). A partir da autora e das explicações de Augustinho Manduca Mateus25, desses quatro apenas dois, o bedu Yuxin e o yuda baka, podem ser considerados “verdadeiras almas”, pois, além de condutores de força vital, produzem seres com consciência, intencionalidade e agência independente, ou seja: gente. Os ligados ao exterior são o 25 Xamã do rio Jordão e um de seus interlocutores durante suas pesquisas e estada em Rio Branco. Para mim, Augustinho esclareceu questões sobre a classificação dos seres humanos de um ponto de vista kaxinawá. Ver Lagrou, 2007, p. 316.
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yura baka e o bedu yuxin. A visão que se tem deles é sombra da pessoa para o yura baka e a pupila olho do ser humano para o bedu yuxin. Os Yuxin tanto podem capturar o ser humano e levá-lo de sua aldeia terrestre, ou seja, retirá-lo do grupo de parentes, quanto em uma ação compósita fundar a “política Yuxinística” da vida que assim é esclarecida: A presença do Yuxin kuin (verdadeiro Yuxin) no corpo faz-se sentir na batida do coração e na luz dos olhos. Esses são os lugares onde o verdadeiro Yuxin mora. A origem e o destino do Yuxin do olho é o céu; pode-se então considerar que o vínculo desse Yuxin com o corpo é transitório. Sem um corpo o Yuxin do olho torna-se um espírito (Yuxin), que viaja pelo céu para ir viver na aldeia dos Inka celestes, deuses canibais. Para o Yuxin do corpo, por outro lado, não há possibilidade de existência fora do corpo, porque ele cresce com o corpo e incorpora as experiências vividas. (...) Toda agência desse espectro é ligada à memória que tem do corpo vivo (LAGROU, 2007, p. 323).
O que difere um Yuxin de um Yuxibu é um gradiente de poder. O primeiro muda de forma; já o segundo é capaz de mudar, além de sua forma, o ambiente. Não se pode confundir humanos, Yuxin e Yuxibu. Cotejados, são radicalmente distintos. Os humanos sentem saudade, alimentam-se de carne, têm corpos fixos e pesados. Os Yuxin desejam corpos e se alimentam de “carne imaterial”, que é a energia da pessoa na qual se hospedou, quando no caso de um Yuxin predador. Eles não têm forma fixa, mas podem ser visualizados por olhos humanos. Já os Yuxibu são invisíveis. Os poderosos estão na água, na floresta e no céu. Eles se alimentam de Yuxin e não de carne humana. Há Yuxibu menores, guardiões e criadores de determinadas espécies de animais ou plantas que mantiveram relações de parentesco com os Huni Kuin e ensinaram-lhes técnicas como as do cultivo da terra. Um exemplo é o kapa yuxibu26. Lagrou faz com que nos interessemos pelo caráter dual da agência e consciência humana, o que não se reduz à oposição corpo e alma. O ponto de ressonância entre Els Lagrou e Terri Aquino é a alteridade. Lagrou a pensa em termos de “transnaturalidade” e Aquino, em termos étnicos e de classes econômicas.
7. Brancos e Yuxin: a experiência do contato enquanto abertura à conclusão Apresentar os textos de Terri Aquino e Els Lagrou enquanto dois lados opostos e complementares da Antropologia Social foi proposital. A intenção de cotejar foi para observar que tanto Terri Aquino quanto Els Lagrou trataram do tema do contato. Sejam as frentes extrativistas ou da pecuária, os Yuxin ou os Yuxibu, ambos transitam no campo das inter-relações. Dito de outra maneira, ambos escreveram acerca da comunicação de seres de ontologias distintas e em certa medida extraordinárias. 26 Quatipuru encantado ou esquilo encantado, esse transmuta-se em morcego, vinga-se de sua esposa infiel e seu amante. Fixidez não pode ser confundida em transformação, o esquilo transforma-se em morcego, ele não é morcego nem esquilo, é o poder de transformar-se.
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O limite para a linguagem antropológica aqui não foi definido exclusivamente pela agudez metodológica dos autores, tampouco pelas “escolas” das quais descendiam. Pensar assim significa deixar duas escolhas apenas para os Huni Kuin. Nessa perspectiva, eles são exclusivamente resultado do contato com a sociedade nacional ou capazes da assimilação de alteridades em qualquer grau e das mais variadas naturezas. O que defendo é que os Huni Kuin do rio Jordão e do rio Purus investiram na familiarização de Terri Aquino e Els Lagrou. Colocaram para ambos os problemas do momento histórico em que seus antropólogos/parentes estavam em campo. Não é coincidência que a problemática de Aquino fora o “grande problema” dos Huni Kuin desde os primeiros contatos com a empresa extrativista. Todavia, as questões se traduziram nos termos de um “Cativeiro do Seringalista”, da ausência de terras indígenas demarcadas e da escola inexistente ou incipiente no rio Jordão. Apenas muito recentemente compreendi a preeminência da imagem de Terri Aquino ou, para os Huni Kuin, o Txai Terri. Era noite no rio Jordão. Lá as estrelas apresentam-se sempre mais brilhantes. Nas casas, lamparinas iluminavam as conversas intrafamiliares e as troças entre os cunhados, que faziam galhofa dos comilões, a noite se animava com gargalhadas. Ao som dos risos, fui despertado. Saí da minha rede em direção à casa do divertido Siã Kaxinawá, um ancião que me recebera na tarde anterior de maneira muitíssimo cortês. Rememore-se que Terri Aquino foi o precursor do indigenismo acreano e até 2003, ano de tal encontro com Siã, apenas uma única vez estive com ele; portanto, muito pouco sabia do Txai Terri. Entretanto, não há aldeia nesse Estado, especialmente nas do rio Jordão, cujos mais velhos não tenham uma ou duas histórias para contar sobre ele. Terri despertava o interesse do jovem indigenista e logo se tornou tema da nossa conversa. Perguntei: Mas esse Terri, quem ele é mesmo? Siã respondeu-me em poucas palavras: Terri é pajé! Terri é Yuxibu! Naquele momento, pajé e Yuxibu não faziam muito sentido para mim. Posteriormente é que me dei conta. A equação Terri/Pajé/Yuxibu trata da “ação xamânica” mais poderosa da era moderna dos Huni Kuin. Terri é um experiente bebedor de Ayahuaska. Ela é que/quem permite o o a mundos de Outrem, ou seja, um mundo de pura potencialidade. Esse fato em si já carregaria o Txai de prestígio, porém, não é o único elemento. A isso se agregue que, de acordo com Lagrou (2007), os Yuxibu são capazes de mudar o ambiente. Seus poderes são tão intensos que eles, como disse-me Augustinho Manduca, são a criatividade. Nesse sentido, Terri/Yuxibu transformou extensos seringais dos rios Jordão e Alto Tarauacá em Terras Indígenas. Já no rio Purus, certa vez, estive na aldeia Novo Lugar, cuja liderança era exercida por Edivaldo Domingos Kaxinawá, genro de um dos principais informantes de Els Lagrou. O ano era 2000 e naquele momento, após um “copo de cultura” (WEBER, 2006), ou seja, uma sessão de Ayahuaska, Edivaldo tratou de 267
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nos informar de seu “grande projeto”. Qual seria?, perguntei. Ele respondera: quero fazer aqui nessa aldeia, chamada Novo Lugar, uma Casa de Cultura. irada, a equipe de indigenistas quase em coro indaga: Como assim? Com sorriso entre os lábios, mas olhar que parecia fitar o horizonte, ele nos responde: Assim, aqui, como um Shubuã, onde possa ter os artesanatos, as penas de gavião, os velhos que possam cantar... Porque aqui tem, aqui ainda tem velho que sabe. Noutro momento, já em 2007, novamente no rio Purus, mas desta feita na Aldeia Porto Rico, para uma oficina em educação escolar indígena, o próprio Edivaldo perguntava por Lagrou. Onde ela está? Ela precisa voltar aqui! Nós precisamos visitá-la! Ela aprendeu a nossa língua! Meu sogro a tratou como filha! Outros diziam: A Els virou Huni Kuin mesmo! Edivaldo cobra a presença da cunhada na aldeia, bem como os outros parentes reconhecem a transformação pela qual ela ou, de estrangeira a gente própria às relações sociais e, mesmo, uma parente. Ao o que Terri Aquino apresenta a problemática e as tensões do contato com os brancos, a luta por terra e autonomia econômica, Lagrou evidencia os Huni Kuin que desenham belamente, são falantes de uma língua própria, detentores de profundos conhecimentos fitoterápicos, que pensam a floresta além das relações que podem existir entre os humanos, que – na complementaridade entre os sexos e no parentesco – nos mitos e no xamanismo desenvolvem uma complexa sociologia que aciona uma rede de seres de ontologias exógenas e autóctones, com os quais é possível ou não criar laços. Os Huni Kuin fazem a antropologia social se tornar etnologia “deles próprios”. Transmudam pessoas e, de proposições binárias, fazem-nas duplas. Ambos os estudos inspiraram o indigenismo no Acre. Desta feita, constitui-se uma imagem em complemento, pois, em 1982, desses índios tem-se a luta pela terra, a busca por autonomia frente às malhas do sistema de aviamento, via cooperativa e “projetos da natureza”. De outro lado, vinte e cinco anos mais tarde, apresentam-se, como resultado de duas décadas de pesquisas, os artistas, donos de canto e dos “desenhos verdadeiros” (kene). A partir do marcador histórico em contexto “pró-cultura”, aventado por Weber (2006) para o movimento indígena, a etnografia de Terri Aquino se faz Antes da Cultura (a.C), no tempo da economia; já a de Lagrou se constrói na agem da economia para cultura. Porquanto, diria que seu texto serve ao Depois da Cultura (d.C.). Eis a imagem que provoca e sintetiza ao indigenismo duas etnografias sobre o mesmo povo que vive hoje no Estado do Desenvolvimento Sustentável – o Acre. Está-se entre a “Casa de Cultura” e a Cooperativa. As duas defronte, em meio à aldeia e entre os índios e antropólogos, parentes e estrangeiros uns dos outros. Havendo uma etnologia indígena, que é a própria teoria indígena acerca do mundo, deverá existir um indigenismo indígena. Suponho: há que se buscar uma antropologia Huni Kuin, assim como social. Argumento o quão determinante é o investimento na percepção por parte dos antropólogos e 268
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indigenistas da educação escolar, de como esse povo percebe a própria antropologia e as escolas em suas aldeias. Seria ledo engano supor que eles estão “copiados copiosamente” em inúmeras etnografias e cartilhas escolares. Ao contrário, como impliquei acima, eles se colocam – em virtude de seus projetos e de suas percepções – diante do antropólogo ou antropóloga que, criativamente, os almeja e, isso é imanente, está à prova do tempo, antes ou depois da Cultura, para aquém ou além da Economia.
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Parte V
Pesquisas em andamento na graduação
NARRATIVAS ORAIS E EVENTOS REMEMORADOS DE LÍDERES E LIDERANÇAS KAINGANG E GUARANI Nádia Philippsen Fürbringer Orientadora: Maria Inês Smiljanic Esta pesquisa tem por objeto um conjunto de narrativas orais Kaingang e Guarani que compõem o Acervo Memória Indígena do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná (MAE). As narrativas indígenas e suas diferentes formas de expressão constituem um objeto relevante para a compreensão das formas de socialidade ameríndia e, no caso especial deste acervo, das relações de contato entre essas populações indígenas e o Estado-nação. Em janeiro de 1986, foi lançado o projeto Memória Indígena no Paraná, com a orientação geral de Lúcia Helena de Oliveira Cunha e Maria Lygia de Moura Pires, na Universidade Federal do Paraná. Este projeto teve por objetivo fazer um levantamento da memória oral dos grupos indígenas no Paraná, em especial Kaingang e Guarani e também Xetá. Com a coordenação de Cynthia Roncaglio (Departamento de História) e Sônia Izabel Wawrzyniac (Departamento de Ciências Sociais), montou-se uma equipe de alunos da graduação para que fosse possível a viabilização deste projeto. Seriam eles: Cacilda da Silva Machado (História), Marcos Augusto Obrehmer (Ciências Sociais) e Nelson Ari Cardoso (Ciências Sociais). De acordo com o relatório do Projeto Memória Indígena, de janeiro de 1986, o trabalho seria dividido em duas partes: uma pesquisa documental, com registro de cronistas e viajantes, bibliografias, jornais e artigos em geral, e uma pesquisa de campo, com entrevistas abertas e histórias de vida. Deste projeto, constam 148 fitas cassete com gravações dessas pesquisas de campo (acervo de áudio) e 11 pastas poliondas contendo o material da pesquisa documental (acervo documental). Todo este material foi doado ao Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade Federal do Paraná, em 11 de julho de 1995, pela Professora Maria Lygia de Moura Pires. Todos os arquivos e documentos foram inseridos no acervo do MAE como Coleção Memória Indígena. A única listagem com todos os documentos e matérias do acervo Coleção Memória Indígena se encontra no Termo de Doação assinado por Maria Lygia Pires e, desde que foi feita a doação, esse material não foi mais trabalhado, com exceção de um início de digitalização de uma pequena parcela das fitas cassete, mas sem término. 273
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As fitas cassete estão divididas em seis grupos – referentes ao período ado nas pesquisas de campo, com as entrevistas feitas. O primeiro campo feito no projeto ocorreu em julho de 1986, no município Guarapuava, e contém 26 fitas. O segundo campo foi feito em Rio das Cobras, em setembro do mesmo ano, com 22 fitas. O terceiro campo, já em janeiro de 1987, também em Rio das Cobras, conta com 27 fitas, e, por último, em janeiro de 1987, em Guarapuava, o quarto campo ocorreu, tendo como resultado mais 37 fitas. No mesmo período e local em que foi realizado o terceiro campo constam mais 10 fitas referentes a indígenas pertencentes ao grupo Xetá. E o último grupo de fitas do acervo, 19, Memória Indígena, refere-se aos meses de outubro e novembro de 1986 em Florianópolis, porém estas fitas têm como conteúdo palestras proferidas por Miguel Bartolomé e Alícia Barabás sobre “A concepção de Estado” e “o Estado e os Indígenas em AL (América Latina)”, além de 5 fitas de entrevistas com datas aleatórias. Ao todo, o Acervo Memória Indígena é composto então por 148 fitas cassete, que englobam entrevistas gravadas com lideranças indígenas, demais relatos orais feitos nas comunidades e também palestras. Compõem as entrevistas questões que dizem respeito a relatos sobre a história dos grupos locais e registros da tradição oral. Em grande parte das entrevistas as perguntas são direcionadas para as primeiras situações de contato dos próprios entrevistados com brancos ou lembranças dos seus familiares sobre esses momentos. Dentro das pastas poliondas também doadas ao MAE encontram-se algumas folhas com transcrições de alguns grupos de fitas, mas em geral são manuscritas e feitas por diferentes pessoas, sem que se tenha um documento único que reúna, fita por fita, uma transcrição mais fidedigna. Para poder dar início a esta pesquisa, dadas as especificidades de um trabalho em acervo museológico, foi necessário realizar a higienização e re-catalogação dos documentos. Nessas 11 pastas doadas, encontram-se diversos tipos de documentos, como relatórios, ofícios, referências bibliográficas, jornais, revistas, dossiês, transcrição de entrevistas, resumos e versões do projeto Memória Indígena. Sobre o acervo de áudio, boa parte das fitas já foi ouvida e seus assuntos principais descritos e resumidos em arquivo Excel. A digitalização de todas as fitas em arquivo MP3 também está em andamento. Levando-se em conta o tamanho do Acervo Memória Indígena, foi necessário realizar um recorte das entrevistas feitas a fim de se aprofundar no que propriamente foi o Projeto Memória Indígena. O período escolhido foi o primeiro campo realizado na pesquisa – julho de 1986 –, com 28 fitas. Estas gravações estão sendo ouvidas, transcritas e digitalizadas. Este trabalho inicial apontou para a necessidade de repensar os objetivos deste projeto, tendo em vista que o material depositado no MAE 274
NARRATIVAS ORAIS E EVENTOS REMEMORADOS DE LÍDERES E LIDERANÇAS KAINGANG E GUARANI
não correspondia à catalogação inicial. Desta forma, centramos nossa pesquisa em dois aspectos, a saber: a contextualização do Projeto Memória Indígena e a análise dos relatos sobre o contato entre essas populações e a sociedade nacional. O acervo do Projeto Memória Indígena registra um momento importante na história do movimento indígena no Paraná e no Brasil, já que seu início se deu num momento particular da história de contato das sociedades indígenas com a sociedade nacional, quando o movimento indígena se fortaleceu efetivamente, criando instituições próprias. Analisar este material é, então, muito importante não apenas para a compreensão das narrativas orais ameríndias no contexto do contato, mas também para a compreensão deste momento histórico. Ao analisar o acervo documental, é perceptível que inicialmente este projeto buscava, ao fazer as entrevistas, reconstruir uma memória indígena no Paraná que pudesse ser utilizada em livros didáticos nas escolas do Estado, demonstrando então que a presença indígena no Paraná sempre houve. O que se propunha era desconstruir, em um primeiro momento, o que Lúcio Tadeu Mota descreve como uma ideia de que o Estado paranaense era desabitado antes da chegada dos portugueses, o conhecido discurso ideológico sobre o “vazio demográfico”. E, em um segundo momento, propiciar aos alunos um estudo que demonstrasse a presença, a história e a memória desses indígenas no Paraná. As entrevistas realizadas durante o primeiro período de trabalho de campo foram feitas com as pessoas mais velhas da comunidade e não exclusivamente com lideranças indígenas, como se pensava anteriormente. De modo geral, elas eram direcionadas para se obter as lembranças mais antigas que estes indígenas possuíam da história do seu grupo e do contato com a sociedade envolvente a partir de perguntas tais como: você sempre conheceu os brancos?, como era sua vida quando era criança?, era melhor na infância ou é melhor agora?, etc. Os entrevistados contam como chegaram a Guarapuava, em muitos casos, depois de terem ado por um processo de desapropriação e/ou realocação ou por terem abandonado suas aldeias de origem pela necessidade de buscar emprego na cidade. Os relatos demonstram a existência de uma política indigenista estadual que agiu de forma contrária aos direitos dos indígenas sobre seus territórios, de uma série de práticas de cunho integracionista e de problemas decorrentes do contato. São relatos sobre conflitos com fazendeiros, construtores de estradas rodoviárias, políticos e demais vizinhos, e sobre crianças que teriam sido doadas para famílias brancas para trabalhar nas fazendas, algumas vezes por pais que imaginavam que elas teriam um futuro melhor fora das aldeias e sobre os problemas causados pelo alcoolismo entre os indígenas. 275
FACES DA INDIANIDADE
Esta pesquisa encontra-se em andamento e novos dados hão de ser levantados para análise. O que neste momento é importante ressaltar é que, mesmo sem terem sido concluídas, as pesquisas feitas e o esforço desprendido pelos participantes do Projeto Memória Indígena estão atualmente produzindo frutos para se esclarecer alguns aspectos da história dos povos indígenas situados no Paraná e no Brasil.
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A CONTROVÉRSIA DO MURMURU: NOTAS SOBRE UM CONFLITO DE VISÕES Guilherme Moura Fagundes Orientador: Prof. José Pimenta A partir de 1992, com o envolvimento de lideranças ashaninka na Conferência das Nações Unidas para o meio ambiente (ECO-92), os índios Ashaninka iniciaram uma ambiciosa política de proteção e manejo do seu território. Após essa conferência, estabeleceu-se o contato entre a Apiwtxa (Associação dos Ashaninka do Rio Amônia) e o Centro de Pesquisa Indígena – I, contato esse que se cristalizou com uma parceria voltada para o aproveitamento sustentável dos recursos naturais da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia (PIMENTA, 2002, p. 373). Com apoio financeiro da Embaixada da Áustria, Apiwtxa e I elaboraram em conjunto um projeto para pesquisar óleos e essências de palmeiras nativas da região com potencial econômico. Foi nesse momento que o jovem pesquisador Fábio Fernandes Dias, aluno da Unicamp, iniciou sua relação com os Ashaninka do rio Amônia. Amigo de Margarete Mendes – antropóloga que atuou de forma marcante no processo de demarcação da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia –, Fábio foi convidado pelo líder ashaninka Moisés Pianko e contratado pelo I para executar o projeto com a comunidade indígena. O trabalho de campo desse pesquisador durou cerca de um ano. Numa empreitada que envolveu toda a comunidade, tanto os jovens quanto os mais velhos foram diretamente responsáveis pelos resultados obtidos: cerca de cinquenta produtos, desde folhas e castanhas, até polpas e óleos, foram catalogados durante os três anos do projeto. Entre os produtos pesquisados encontrava-se a palmeira murmuru (Astrocaryum ssp.), genuína da região amazônica e abundante no Alto Juruá. Durante a pesquisa na comunidade ashaninka, os índios mais velhos tiveram a função de ar seus conhecimentos tradicionais relacionados a folhas, frutas e sementes, enquanto alguns jovens aram a ser os mateiros do projeto, uma vez que foram treinados pelo técnico nos procedimentos básicos de coleta, extração e processamento das essências (PIMENTA, 2002, p.375). Do ponto de vista ashaninka, o intuito da pesquisa era “tornar científicos” seus conhecimentos da floresta, consolidando um ciclo anual de produtos que gerariam uma renda e supririam as demandas por bens manufaturados. O projeto também chamava a atenção pelo seu viés sustentável, uma vez que essa atividade iria contribuir com a recuperação de áreas degradadas dentro do território. Na perspectiva indígena, a posição ocupada pelo pesquisador 277
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era de mero fornecedor de tecnologia, dando uma legitimação científica aos conhecimentos tradicionais dos Ashaninka. O o seguinte se deu em 1996, quando Fábio Dias criou a empresa Tawaya. De acordo com Mendes, parceira de Fábio Dias no empreendimento, “(...) a empresa nasceu como consequência de um processo de pesquisa e levantamento de produtos florestais, em parceria dos Ashaninka com o Núcleo de Cultura Indígena (...)” (MENDES, 2000, p. 573). Em 2000, a Tawaya iniciou a produção e comercialização de sabonetes a partir da essência de murmuru, colocando os Ashaninka à margem desse processo e de seus benefícios. A partir de 2001, as relações entre a Apiwtxa e a Tawaya se deterioraram. Enquanto o pesquisador alega que o conhecimento a respeito do murmuru é de domínio público, com informações publicadas desde o início de década de 1940, os Ashaninka reivindicam direitos sobre a comercialização de um produto que eles consideram originado do uso indevido de seus conhecimentos tradicionais. A utilização da palavra “Tawaya” como nome da empresa e marca de seus produtos também ou a ser fortemente questionada pelos Ashaninka, que a consideram parte de seu patrimônio cultural, pois é o nome dado pelos índios, em sua língua, ao igarapé Amoninha, um afluente do rio Amônia. Frente ao que percebem como uma apropriação indevida de seus conhecimentos tradicionais, os Ashaninka acionaram o Ministério Público Federal. A ação visa resguardar seus direitos à repartição de benefícios nas vendas dos sabonetes pelo uso do seu conhecimento tradicional e está atualmente em trâmite no Judiciário. Cabe salientar que, entre 2001 e 2006, dezenove produtos baseados na gordura de murmuru foram registrados no Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI, além da solicitação de cinco patentes (SCHETTINO, 2007, p. 47). A partir do caso específico da controvérsia entre os Ashaninka do rio Amônia e a empresa Tawaya, a pesquisa procurou refletir sobre temas como “direitos coletivos”, “conhecimento tradicional” e “biopirataria”, enfrentando uma problemática complexa, cada vez mais presente nas relações interétnicas do início do século XXI. Referências MENDES, Margarete K. Os Ashaninka do rio Amônia no rumo da sustentabilidade. In: RICARDO, Carlos Alberto (Org.). Povos Indígenas no Brasil 1996/2000. São Paulo: Instituto Socioambiental (ISA), p. 571-578, 2000. PIMENTA, José. “Índio não é todo igual”: a construção ashaninka da história e da política interétnica. Tese (Doutorado em Antropologia) - Departamento de Antropologia (DAN). Universidade de Brasília (UnB), 2002. SCHETTINO, Marco Paulo Froés. Investigação do o a conhecimentos tradicionais da etnia Ashaninka: o caso do Murmuru. Laudo Pericial Antropológico n. 69, 2007. 278
A TERRA INDÍGENA IGARAPÉ LOURDES, RONDÔNIA: O IMPACTO DE UM PROJETO DE “DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL” Fabiana Lima dos Santos Orientador: Stephen Grant Baines Nos últimos trinta anos, os povos indígenas do Brasil deixaram de ser uma categoria social “em extinção”, ou mera “vítima” dos impactos “inevitáveis” do desenvolvimento, para alcançar a condição de parceiros em potencial dentro do contexto do “desenvolvimento sustentável”. Com o desenvolvimento da ideologia da conservação ambiental, esses povos e seus territórios alcançaram uma grande visibilidade nos âmbitos nacional e internacional. As políticas de desenvolvimento econômico também começaram a considerar parâmetros de respeito intercultural, valores éticos e justiça social. A partir de 1980, vários projetos foram implementados no Brasil no sentido de fomentar “alternativas econômicas aos povos indígenas”, ocasionando, assim, um fortalecimento das organizações indígenas, por intermédio de suas associações, que possibilitou uma articulação com projetos em áreas indígenas para o desenvolvimento social e econômico, buscando dar autonomia a esses povos. Esses projetos também procuram garantir a sobrevivência das populações indígenas da Amazônia frente aos grandes empreendimentos econômicos que ameaçam suas terras: estradas, barragens, garimpo, extração de madeira, etc. Desde o final da década de 1990, a etnia Ikolen, conhecida pelo etnônimo de “Gavião”, da Terra Indígena Igarapé Lourdes (TIIL), situada no estado de Rondônia, desenvolve atividades de extração do óleo de copaíba e de outros produtos florestais não-madeireiros. No ano de 2001, foi estabelecida uma parceria entre os Gavião e o linguista Denny Moore, do Museu Paraense Emílio Goeldi, para realização do primeiro projeto de extração do óleo de copaíba, visando o uso sustentável dos recursos e uma alternativa para gerar oportunidades econômicas na Terra Indígena. Nesse sentido, foi realizado um primeiro contato com o Parque Zoobotânico (PZ) da Universidade Federal do Acre (UFAC), que iniciou os índios Gavião às primeiras técnicas de manejo sustentável. No ano de 2004, durante o Diagnóstico Etnoambiental Participativo realizado pela Associação de Defesa Etnoambiental KANINDÉ, foi feito um levantamento da vegetação na Terra Indígena Igarapé Lourdes que indicou significativa potencialidade do uso do óleo de copaíba para fins comerciais. A partir de então, as lideranças indígenas do povo Gavião, juntamente com essa instituição, iniciaram a discussão sobre um Plano de Manejo Florestal de 279
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Uso Múltiplo Comunitário Não-Madeireiro para extração de óleo de copaíba em suas terras. A Kanindé, em parceria com o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável (PADS), da ONG WWF Brasil, estabeleceu o “Projeto Copaíba”, cuja finalidade é proporcionar aos Gavião da Terra Indígena Igarapé Lourdes a possibilidade de suas comunidades obterem uma autonomia econômica com a exploração de seus recursos naturais de modo não predatório. Nesse contexto, a partir desse caso etnográfico específico, a pesquisa busca compreender e explicar a situação em que se encontram as populações indígenas após a penetração de segmentos da sociedade brasileira e internacional em seus territórios. Por este motivo, este trabalho foi orientado para a descrição e análise das “relações interétnicas” entre os índios e nãoíndios. Através dos projetos que visam o desenvolvimento sustentável da região, buscou-se refletir sobre as mudanças ocorridas na sociedade indígena. Procurou-se observar qual a percepção dos índios da Terra Indígena Igarapé Lourdes sobre os projetos que estão sendo implementados dentro de suas terras, assim como diagnosticar os processos de mudança social das aldeias indígenas. Por fim, tentou-se refletir sobre um projeto econômico fundamentado no conceito de “desenvolvimento sustentável”, que está sendo inserido como forma alternativa de renda para essa sociedade.
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O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS E A CONSTRUÇÃO DO PLURALISMO JURÍDICO NO BRASIL Mariana Yokoya Simoni Orientador: Prof. José Pimenta O presente resumo reporta-se à pesquisa de iniciação científica que discute o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas no marco da construção do pluralismo jurídico no Brasil. Com vistas a conduzir esse tópico, o trabalho está organizado em, primeiro, uma breve discussão conceitual referente ao reconhecimento de direitos específicos. Em seguida, descreve-se o surgimento e a evolução do tema dos direitos dos povos indígenas na agenda de organizações internacionais, bem como sua contrapartida no Brasil. Por fim, empregam-se esforços, imbuídos do estudo conceitual e de aporte a materiais jurídicos, para analisar o caso da decisão judicial a respeito da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. O reconhecimento dos povos indígenas pelo direito internacional ocorreu principalmente nas últimas três décadas, impulsionado por movimentos de direitos humanos e de ativismo indígena internacional. Uma questão interessante é que, ao o que o discurso sobre os povos indígenas evoca noções de identidade e de permanência imemoriais, a noção de “povos indígenas” como conceito analítico e como categoria de identidade global detentora de titularidade a certos direitos é um fenômeno que se iniciou nos anos 1980 (NIEZEN, 2003). Os marcos legais internacionais emblemáticos para o reconhecimento dos povos indígenas são a Convenção N.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada em 1989, e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Assembleia Geral em 2007, após mais de uma década de discussão. A Convenção N.º 169 substitui, em contraste com a Convenção N.º 107, de 1957, o termo populações por povos indígenas, com a ressalva de que o emprego do termo “povos” não poderia ser interpretado como tendo implicações ligadas ao direito internacional. Ademais, o documento marca o abandono de uma perspectiva assimilacionista, patrona de uma categorização exógena de “povos indígenas” e de políticas de assimilação e integração à sociedade “nacional”, para uma perspectiva de reconhecimento desses povos e de seus modos de vida. No Brasil, o marco legal mais importante é a Constituição Federal de 1988, a qual reconhece aos índios os direitos de manterem suas culturas, tradições e organizações sociais, bem como a posse permanente das terras tradicionalmente ocupadas. As conquistas da Constituição de 1988 são consideradas, pelos diversos atores em palco, bases legais apropriadas para as reivindicações indígenas mais fundamentais. Entretanto, tal base não possui uma contrapartida operacional na legislação ordinária, ao que se acrescenta, segundo Castilho 281
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(2006), certo despreparo dos instrumentos processuais para lidar com os seus direitos coletivos. A abordagem e o desenvolvimento dos direitos dos povos indígenas na agenda nacional estão claramente ligados à maior visibilidade de tais direitos no contexto internacional, principalmente a partir de sua vinculação com os direitos humanos e o direito dos povos. Nesse sentido, os grupos pró-indígenas ajudaram a projetar a causa brasileira na arena internacional dos direitos humanos, o que, posto diante da sensibilidade do Estado brasileiro quanto a sua imagem e prestígio internacionais, garantiu maior poder de barganha para as reivindicações indígenas (RAMOS, 2004). O Brasil é signatário da Convenção N.º 169 e votou a favor da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas. A declaração não possui força vinculante e muitas das questões ainda se encontram abertas à interpretação, espaço fecundo para discursos de polarização – e de crítica – entre soberania e interesse nacional e o direito à autodeterminação dos povos indígenas, desenvolvimento econômico e outras concepções de desenvolvimento, legislação nacional e sistemas tradicionais de justiça, cidadania nacional e cidadania indígena, reconhecimento legal e reconhecimento moral. O caso da Raposa Serra do Sol remete a muitas dessas discussões. É interessante atentar para a linguagem e os conceitos utilizados e como esses são operacionalizados na construção de argumentos. Um primeiro ponto é o modo de definição e de identificação dos povos indígenas e de seus territórios e as instituições envolvidas. Nos últimos 40 anos, esse papel tem sido desempenhado pela FUNAI, baseada nas disposições da Constituição de 1988 e no Estatuto do Índio de 1973. Uma segunda ordem de questões são os direitos a que esses povos são titulares e de que maneira o exercício dos mesmos está, ou não, previsto em textos legais ou jurisprudência. Isso envolve a relação entre os povos indígenas e o Estado, e, no caso em pauta, um exemplo é o condicionante da decisão judicial relativa à soberania nacional e à livre circulação e atuação da Polícia Federal e das Forças Armadas na terra indígena, sem qualquer consulta prévia a essas comunidades. Por fim, o caso evoca reflexões acerca do lugar dos povos indígenas na ideia de uma cidadania brasileira e no imaginário do Brasil como nação. Em linhas gerais, a pesquisa delineou um panorama do reconhecimento dos direitos dos povos indígenas nos âmbitos nacional e internacional e buscou olhar os conceitos e representações ganhando vida em algumas das difíceis e instigantes questões que peram o caso da Raposa Serra do Sol.
Referências CASTILHO, Ela W. V. de. Processo civil e igualdade étnico-racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas Martins de (Coords.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. Brasília: SEPPIR, 2006. NIEZEN, Ronald. The Origins of Indigenism: Human Rights and the Politics of Identity. Berkeley: University of California Press, 2003. RAMOS, Alcida Rita. Indigenism: ethnic politics in Brazil. Wisconsin: The University Wisconsin Press, 1998. 282
PERSPECTIVA HISTÓRICA DO INDIGENISMO NO NORDESTE DE RORAIMA: ELEMENTOS E PROCESSOS DE UMA ESTRUTURA DINÂMICA Felipe de Lucena Rodrigues Alves Orientador: Prof. José Pimenta O objetivo principal deste trabalho foi delinear um panorama histórico das relações interétnicas na região do vale do Rio Branco, no nordeste de Roraima, a fim de perceber e delimitar características e especificidades de alguns aspectos dessa realidade – tais como as ideias de soberania nacional, território, integração nacional e desenvolvimento econômico – enquanto elementos constituintes de visões de mundo cujos significados se relacionam com as práticas dos atores da região. Para isso, procurou-se observar indiretamente – por meio da leitura de alguns estudos historiográficos sobre a região empreendidos pelos antropólogos Nádia Farage e Paulo Santilli, dentre outras fontes – alguns momentos históricos que, se não são em si paradigmáticos para entender a realidade da região, contribuíram para caracterizá-la como um caldeirão de questões e disputas políticas em que ideias e representações se imiscuem às práticas dos atores de diversas maneiras. Com efeito, desenvolveu-se um esforço para explicitar como tudo isso se manifestou com importância e centralidade variáveis nos diferentes contextos ao longo dos séculos, de tal forma que o próprio movimento histórico pôde ser entendido menos como um fluxo direcionado para determinado sentido que como uma sequência de combinações e recombinações de sentidos nas representações pensadas pelos indivíduos e grupos. Esse entendimento esteve presente na definição dos períodos e na maneira como estes foram analisados neste trabalho. O primeiro momento sobre o qual se debruçou foi o de algumas décadas da segunda metade do século XVIII, em que a bacia do Rio Branco foi palco de disputas territoriais entre algumas das principais potências coloniais da época, Holanda e Portugal. A forma como as populações indígenas que ali viviam eram percebidas pelos agentes coloniais foi objeto de especial atenção, principalmente quando se pretendeu opor relativamente as políticas de cada um desses países europeus para o aumento de sua própria influência: holandeses, atuando em um sentido mais econômico – com sua rede de comércio e tráfico de escravos índios –, e portugueses, para estabelecer núcleos populacionais a partir do aldeamento desses povos. 283
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Em seguida, o período para o qual se voltaram os esforços analíticos empreendidos no trabalho foi o dos anos que se seguiram à consolidação dos limites internacionais na região entre Brasil e Guiana Inglesa. Com isso, pôde-se notar que novas considerações e objetivos aram a fazer parte da definição de diretrizes políticas na região, bem como da própria atuação de indivíduos, grupos e entes federativos. Especialmente notável foi a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), no sentido de definir e dar direção à política indigenista do Estado, delineada, nessa época, de forma a levar em conta aspectos econômicos e políticos para a integração dos povos indígenas à sociedade nacional. Entretanto, sob a influência de ideias positivistas e de uma percepção bastante negativa da visão de mundo indígena, o esforço indigenista empreendido nas primeiras décadas caracterizou-se por uma integração que significou uma assimilação pouco favorável à manutenção da pluralidade cultural desses povos. Por fim, buscou-se observar o período da década de 1970 à de 1990, espaço de tempo este que se caracterizou, dentre outras coisas, não somente pela continuação dos processos de inserção da economia do extremo nordeste de Roraima na dinâmica nacional e de integração dos povos indígenas, mas também pelo seguimento do processo de formação de maiores unidades políticas indígenas, bem como por sua atuação em arenas políticas mais amplas. Isso teve diversas consequências na forma como se desenvolveram as disputas políticas na região, dentre as quais se pode citar a da própria territorialidade das populações indígenas. As considerações acerca dessa noção de espaço e território, assim como sobre as ideias e práticas em torno de elementos como a soberania nacional, a integração política e econômica de populações distantes dos núcleos mais conectados à economia e à sociedade internacional, não se limitam aos contextos em que aparecem de forma mais clara. Isso se deve muito à forma como se estruturaram a realidade e suas representações, assim como à ênfase dada aqui – é precisamente este o ponto que se tentou explicitar ao longo do trabalho. A organização dos elementos que compõem a realidade em estruturas coerentes que lhes dê algum sentido em relação ao todo é um processo que, no caso específico da bacia do Rio Branco, mas não somente nele, tem implicações na forma como se dão as práticas políticas dos atores em seu âmbito. Tendo isso em vista, tornou-se possível, de certa maneira, mapear e delinear algumas das especificidades e problemáticas que envolvem tanto a história do contato interétnico quanto o contexto político e social contemporâneo da região, o que seguramente é material bastante valioso para análises futuras.
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DA ALDEIA À CÂMARA MUNICIPAL: 1 CANDIDATOS INDÍGENAS NAS ELEIÇÕES DE 2008 Maria Inês Smiljanic Flávia Roberta Babireski João Vitor Fontanelli Santos Nádia Philippsen Fürbringer Luís Fernando Carvalho Cintra Embora a participação indígena na política partidária brasileira só tenha ganhado destaque na mídia no final da década de 1980, com a eleição de Mário Juruna para o cargo de deputado federal pelo Rio de Janeiro, os registros sobre esta participação remontam pelo menos aos anos 1950. A presença indígena na política partidária brasileira não é, portanto, um fenômeno novo. Os trabalhos de Roberto Cardoso de Oliveira, Julio Cezar Melatti, Roberto da Matta e Roque Laraia, produzidos no contexto do projeto de estudo “Áreas de Fricção Interétnica”, na década de 1960, relatam a existência de inúmeros conflitos de interesse entre as elites políticas locais – formadas por agricultores, criadores de gado e extrativistas – e os povos indígenas. Neste contexto, a participação indígena na vida político-partidária destes municípios era praticamente nula e, portanto, eles não tinham voz ativa nas questões legislativas no âmbito municipal, dependendo dos poderes estaduais e federais para terem seus direitos assegurados. Se na década de 1960 os indígenas tinham dificuldades de se verem representados nas câmaras municipais, a partir dos anos 1980, com a consolidação do movimento indígena, vemos surgir um número crescente de representantes indígenas eleitos para exercerem mandatos como vereadores e, mais recentemente, como prefeitos (ÁVILA, 2004). Desta forma, Cardoso de Oliveira, em seu livro O índio e o mundo dos brancos, afirma que na década de 1960 havia um pequeno número de eleitores entre os Ticuna – que eram marginalizados no contexto político regional, quando muito, lembrados às vésperas das eleições. Entretanto, em 2008, o município de Benjamin Constant, localizado próximo à Terra Indígena (T.I.) onde Cardoso de Oliveira realizou sua pesquisa, elegeu um Ticuna, Davi Felix Cecílio Filho, para o cargo de vereador. Se antes os indígenas da região eram identificados apenas como eleitores e as terras indígenas consideradas currais eleitorais para uma elite política não-indígena, hoje eles possuem assento na câmara municipal. Como o TSE não faz registro dos candidatos por etnia, aqueles que se propõem a acompanhar o desempenho dos candidatos indígenas nas elei1 Agradecemos a Angel Miríade pelo auxílio prestado no início desta pesquisa.
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ções municipais, estaduais e federais encontram inúmeras dificuldades e os dados devem ser considerados parciais. Esta pesquisa, realizada pelo Grupo de Estudos de Política Indígena e Indigenismo da Universidade Federal do Paraná (GEPI), possui o objetivo de traçar um perfil dos candidatos eleitos em 2008. Com este objetivo, na primeira fase desta pesquisa foi montado um banco de dados com candidatos indígenas a partir do cruzamento de dados de várias fontes, principalmente listas elaboradas por organizações nãogovernamentais e por antropólogos em anos anteriores e das informações contidas no banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral. No último pleito, foram registradas mais de 350 candidaturas indígenas em 150 municípios brasileiros, espalhados por 21 Estados da Federação. Cerca de 78 indígenas tomaram posse no início de 2009. A maioria dos eleitos – aproximadamente 70% – concorreram a cargos em municípios de pequeno porte, onde estão localizadas Terras Indígenas, e que contam com menos de 10.000 eleitores. No Estado do Amazonas, foram eleitos dois prefeitos indígenas: Pedro Garcia e Mecias Pereira Batista, em São Gabriel da Cachoeira e Barreirinha, respectivamente. Em Minas Gerais, no município de São João das Missões, José Nunes de Oliveira, indígena Xacriabá, reelegeu-se para o cargo de prefeito e a Câmara será ocupada majoritariamente por vereadores indígenas. Listas elaboradas por antropólogos e indigenistas apontam a eleição de mais dois indígenas para prefeito no Estado de Roraima: Eliésio Cavalcante de Lima, em Uiramutã, e Orlando Oliveira Justino, em Normandia. Em Jacareacanga, no Pará, os três vereadores Munduruku eleitos no pleito de 2004 reelegeram-se e a Câmara Municipal contará ainda com a presença de mais dois vereadores indígenas. Ao todo, 42,3% dos indígenas que exerceram mandato nos últimos quatro anos conseguiram se reeleger. E a identidade indígena dos vereadores eleitos parece ter sido um fator importante, relevante para definição do voto dos eleitores: cerca de 73% dos vereadores foram eleitos por votos nominais. Em alguns locais, a eleição de candidatos indígenas é resultado de anos de mobilização política de indígenas e indigenistas. Em outros, tratam-se de candidaturas motivadas por interesses alheios aos das comunidades indígenas, entre eles, o interesse das elites locais de angariar votos indígenas. Desta forma, encontramos candidatos indígenas em partidos com diferentes orientações ideológicas: o PT elegeu 26 dos indígenas que concorreram ao pleito municipal em 2008; o PMDB, 12; o PSDB, 6; o PR, 6; o PV, 5; o PPS, 4; o DEM, 3; o PC do B, 3; o PDT, 2; o PP, 2; o PRB, 2; o PHS, o PMN, o PRP, o PSC, o PSDC, o PSL e o PTB elegeram 1 candidato cada um. Mas, independentemente da filiação partidária dos candidatos, a presença indígena nas câmaras municipais confere a elas um colorido especial. Não podemos deixar de considerar que, em sociedades regidas pela lógica da dádiva, até mesmo práticas iden286
tificadas como clientelistas podem assumir novas características. A atuação dos indígenas eleitos deve ser acompanhada de perto pela sociedade civil como um todo e, especialmente, por aqueles que os elegeram. Na segunda fase desta pesquisa, os componentes do GEPI propõem-se a levantar as seções localizadas em T.I., os votos dos indígenas eleitos por seção e informações relativas à atuação destes prefeitos, vice-prefeitos e vereadores em seus municípios. A partir dos dados a serem coletados por diversos meios – questionários, entrevistas, consulta aos cartórios e ao banco de dados do TSE – deverão ser escolhidos alguns municípios para se realizar estudos de caso. Indígenas eleitos por região, Estado e cargo
Região
Estado Prefeito Vice-prefeitos Vereadores Acre 1 4 Amazonas 2 1 11 Amapá 2 Norte Pará 1 5 Roraima 2 1 2 Tocantins 5 Bahia 6 Maranhão 3 Nordeste Paraíba 1 7 Pernambuco 4 Mato Grosso 2 Centro-Oeste Mato Grosso do Sul 6 Sudeste Minas Gerais 1 8 Rio Grande do Sul 1 1 Sul Santa Catarina 1 Total de eleitos por cargo 6 5 67
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Referências ÁVILA, Tiago Antônio Machado de. Por uma “Política Indígena”: a participação indígena nos espaços eletivos brasileiros. In: COSTA, Luciana; VERDUM, Ricardo (Orgs.). Índios e Parlamento. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, p. 43-61, 2004. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Do índio ao bugre. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. COSTA, Luciana; VERDUM, Ricardo (Orgs.). Índios e Parlamento. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2004. LARAIA, Roque de Barros; DaMATTA, Roberto. Índios e castanheiros: a empresa extrativista e os índios no Médio Tocantins. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978. MELATTI, Julio Cezar. Índios e criadores: a situação dos Krahó na frente pastoril do Tocantins. Rio de Janeiro: Monografias do I.C.S. n. 3. 1967, RICARDO, Carlos Alberto (Ed.). Povos indígenas no Brasil, 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000. SAMPAIO-SILVA, Orlando. Tuxá: índios do Nordeste. São Paulo: Annablume, 1997.
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COLABORADORES Alessandro Roberto de Oliveira. Doutorando em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB). Graduado em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes-MG), 2004. Mestre em Antropologia Social, UnB, 2008. Dissertação: “Política e Políticos Indígenas: A Experiência Xakriabá”. Felipe de Lucena Rodrigues Alves é aluno do curso de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e voluntário PIBIC. Flávia Roberta Babireski é aluna do curso de graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná. Gersem Baniwa é membro do povo baniwa habitante do Alto Rio Negro; ex-conselheiro do Conselho Nacional de Educação (CNE), atualmente é doutorando em Antropologia Social na Universidade de Brasília (UNB), DiretorPresidente do Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (CINEP) e coordenadorgeral de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação (MEC). Giovana Acacia Tempesta concluiu o doutorado em 2009 no Departamento de Antropologia da UnB com uma tese sobre os apiakás. Atualmente trabalha no Setor de Identificação de Terras Indígenas da Funai. Guilherme Moura Fagundes é aluno do curso de Ciências Sociais da Universidade de Brasília e voluntário PIBIC. João Vitor Fontanelli Santos é aluno do curso de graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná e bolsista de Iniciação Científica TN/UFPR. José Pimenta é Professor Adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (DAN/UnB). É mestre em Sociologia e Etnologia pela Universidade de Toulouse II (França) e doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília (2002). Vem desenvolvendo pesquisas nas áreas de Etnologia Indígena, Relações Interétnicas e Indigenismo, principalmente entre os Ashaninka do Rio Amônia (Acre) com os quais trabalha há cerca de dez anos. É autor de vários artigos em revistas nacionais e internacionais. Karenina Vieira Andrade é Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, em cujo Departamento de Antropologia é professora e pesquisadora colaboradora, Bolsista PRODOC/CAPES. Desenvolve pesquisa com os Ye’kuana do Brasil, projeto integrante do convênio PROCAD entre a Universidade de Brasília e a Universidade Federal do Paraná. Luis Cayón é Antropólogo pela Universidad de Los Andes, Bogotá (Colômbia), Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, e Doutorando em Antropologia Social pela mesma instituição. É autor do livro “En las aguas de yuruparí. Cosmología y chamanismo Makuna” (2002) e coautor do livro “Etnografía Makuna. Tradiciones, relatos y saberes de la Gente de Agua” 289
(2004). Tem publicado mais de uma dúzia de artigos em capítulos de livros e revistas nacionais e internacionais. Luís Fernando Carvalho Cintra é aluno do curso de graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná. Maria Inês Smiljanic é doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília e professora Adjunta do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná. Desenvolve pesquisas entre os Yanomae e Yanomami situados no Brasil desde 1996. Coordena a equipe associada do PPGASUFPR no Projeto de Cooperação Acadêmica: Etnologia Indígena e Indigenismo – Novos desafios teóricos e empíricos, financiado pela CAPES. Mariana Yokoya Simoni é aluna do curso de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e voluntária PIBIC. Nádia Philippsen Fürbringer é aluna do curso de graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná e bolsista de Iniciação Científica – TN/UFPR. Paulo Roberto Homem de Góes é bacharel em Ciências Sociais pela UFPR e mestrando em Antropologia Social pela mesma universidade. Atualmente é pesquisador do NEA (Núcleo de Estudos Ameríndios) do Departamento de Antropologia da UFPR e do projeto “Effects of intellectual and cultural rights protection on traditional people and traditional knowledge. Case studies in Brazil” – Ford Foudantion. Assessora os Katukina/Pano – Acre no projeto Centro Cultural Katukina - PDPI/MMA desde 2006. Paulo Roberto Nunes Ferreira atuou como indigenista da educação escolar na Secretaria de Estado de Educação do Acre de 2003 a 2008. Trabalhou especialmente com os Kaxinawá (lado brasileiro). Atualmente é mestrando do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná com o projeto: “Terra Alta e Terra Baixa. Escolas Indígenas e Escolas para Índios: Tudo não é Igual.” Stephen Grant Baines, brasileiro naturalizado. Professor Associado 2, Departamento de Antropologia, UnB. Pesquisador 1A do CNPq. M.Phil. em Antropologia Social, University of Cambridge, 1980. Doutorado em Antropologia Social, UnB, 1988. Tese: “É a FUNAI que Sabe”: A Frente de Atração Waimiri Atroari, publicada em livro em 1991. Projeto de Pesquisa no CNPq: “Pesquisa Comparada em Etnologia Indígena: Brasil - Austrália - Canadá (com pesquisas etnográficas)”. É autor de diversas publicações em periódicos nacionais e internacionais na área de etnologia indígena, identidade e relações interétnicas, povos indígenas e os impactos de grandes projetos, etnicidade e nacionalidade em fronteiras, e etnologia indígena em contextos nacionais. Pesquisa junto aos povos Makuxi e Wapichana na fronteira Brasil/Guyana desde 2001; acompanhamento da situação dos Tremembé do litoral do Ceará desde 2000. Levantamento sobre indígenas no sistema penitenciário de Roraima desde 2008. Membro do PROCAD, UnB-UFPR. 290