DILEMAS DA DEMOCRACIA NO BRASIL1 Fábio Wanderley Reis 1. Política, sociedade e democracia O objetivo de avaliar os dilemas da democracia no Brasil remete de imediato à questão das complicadas relações entre os aspectos convencionalmente “políticos” e os aspectos sociais da idéia de democracia. Essa questão, por sua vez, se desdobra na da própria natureza da política, ou de como a política deverá ser entendida e definida. Uma perspectiva usual a respeito deste último tema, que se manifesta em querelas acadêmicas sobre a “autonomia” da Ciência Política como disciplina, leva a delimitar o terreno próprio da política por meio da referência concreta a uma espécie de “pedaço” particular da realidade social, o pedaço correspondente ao estado. A política teria a ver com entidades e processos que ocorrem no âmbito do estado (na esfera formal dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário), estendendo-se no máximo, como no caso dos partidos políticos, a entidades que se orientam pelo objetivo de obter o controle do estado. Tal definição, porém, é insustentável. Ela não tem como apontar o caráter político presente, por exemplo, nos conflitos de base religiosa que se dêem entre protestantes e católicos ou cristãos e muçulmanos, nos conflitos de base econômica que ocorram entre patrões e operários, ou nos conflitos que tenham como base diferenças étnicas, raciais, sexuais, generacionais ou o que mais seja. A definição alternativa e mais adequada que essa ponderação sugere nos leva a um recorte analítico do âmbito da política, no qual se destaca justamente a idéia geral da ocorrência de conflitos de qualquer natureza ou em qualquer esfera (a interação estratégica, como designada com freqüência na literatura) e o desafio posto pela necessidade de acomodar os conflitos. Naturalmente, o estado tem grande importância também nesta nova perspectiva, como agente decisivo da eventual acomodação dos conflitos e da busca de objetivos comuns ou compartilhados de qualquer tipo. Mas a idéia da política como algo que extravasa o estado é O presente capítulo é uma versão revista e atualizada de artigo publicado anteriormente, sob o mesmo título, em Lúcia Avelar e Antônio Octávio Cintra (orgs.), O Sistema Político Brasileiro: Uma Introdução, São Paulo, Fundação Konrad Adenauer/Editora UNESP, 2004, cuja segunda edição se encontra no prelo. O autor agradece os comentários de Antônio Octávio Cintra a uma versão inicial do texto. 1
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crucial justamente por permitir apreciar as dificuldades que surgem com respeito à acomodação dos conflitos e à busca de objetivos comuns, o que supõe a construção de instituições e envolve como problema prático por excelência da política – e como problema analítico por excelência de uma ciência da política – o problema de como edificar uma aparelhagem institucional a um tempo democrática e eficiente. Por referência à categoria de poder que os manuais costumam salientar como de importância central para a Ciência Política, a questão básica se traduziria em termos de como equilibrar o empenho de minimizar o exercício de poder de uns cidadãos sobre outros (acomodando os conflitos por meio da distribuição igualitária e democrática do poder e da garantia da autonomia de cada qual) com o empenho de produzir ou incrementar o poder coletivo (que torne possível a busca eficiente dos objetivos comuns, incluído o da preservação da democracia e da autonomia de todos), e em tudo isso o eventual estabelecimento do monopólio estatal do uso legítimo dos meios de coerção, que destacou Max Weber, cumpre papel importante. Mas a ênfase analítica e genérica nos conflitos e em sua acomodação permite que se conceba de maneira adequada a própria idéia de construção de instituições políticas ou de institucionalização política: em vez do viés contido na atenção exclusiva para o âmbito formal do estado e suas diversas peças, o que importa é a apropriada articulação dos aspectos formais da aparelhagem do estado com o substrato correspondente aos focos sociais de conflito e solidariedade, aos interesses e às normas, de tal modo que o estado se torne capaz de regular com eficácia os conflitos e que estes, em vez de levar ao enfrentamento eventualmente violento, possam ser processados de maneira efetiva por meio dos “formalismos” institucionais. Não ira que diferenças de perspectiva análogas às apontadas quanto à noção de política se encontrem também quanto à idéia de democracia, com respeito à qual se costumam contrapor a idéia de uma democracia “meramente” política (“formal”) e a de uma democracia social ou “substantiva”. O cientista político Adam Przeworski retomou há algum tempo esse contraste de perspectivas. Contra a tendência difundida de valorizar uma concepção “maximalista” de democracia, que a identifica com a democracia social, Przeworski procurou sustentar a posição segundo a qual a clareza analítica exige que a expressão democracia seja entendida em acepção “minimalista” que remete, em última análise, ao fato de os direitos civis estarem garantidos e de haver o chamado “estado de direito”.2 Mas a inconsistência da posição de Przeworski é bem reveladora das dificuldades envolvidas. A defesa da posição “minimalista” por Adam Przeworski se fez, por exemplo, em palestra pronunciada no simpósio “Democracia Política y Democracia Social”, México, Centro de Estudios Sociológicos, Colegio de México, 17-19 de outubro de 1990. 2
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Tomemos a clássica distinção de T. H. Marshall entre os direitos civis (as liberdades básicas que se associam à vigência do estado de direito), os direitos políticos (o direito de votar e ser votado) e os direitos sociais (o direito de todos de ter o a bens de saúde, educação, seguridade etc.), os quais, na análise de Marshall, se afirmam gradativamente e lhe permitem falar da expansão e do enriquecimento da própria idéia de cidadania (Marshall, 1965). Naturalmente, Przeworski dificilmente poderia pretender que os direitos civis estivessem assegurados em condições em que não existisse o direito de voto, ou seja, em que houvesse ditadura política. Mas que dizer dos direitos sociais? É igualmente difícil pretender que a democracia “política”, com a garantia plena dos direitos civis e políticos de todos, possa se afirmar e consolidar em condições de grande desigualdade social, nas quais os recursos diversos de poder estarão por definição distribuídos de maneira desigual. E não só a Ciência Política há muito se indaga a respeito das “condições sociais da democracia”, como também o próprio Przeworski, em textos que se referem especialmente à experiência dos países socialdemocratas, aponta com ênfase o caráter social do “compromisso democrático” em que se assenta a estabilidade institucional desses países, envolvendo sobretudo o acordo entre capitalistas e trabalhadores, em articulação com o estado, em torno de políticas públicas de conteúdo econômico e social (Przeworski, 1985). Não obstante as experiências recentes de regimes politicamente autoritários em vários países da América Latina nos terem ensinado a importância dos componentes supostamente “formais” da democracia política (nada há de “meramente formal” em dispositivos que garantam que as pessoas não sejam arrancadas de suas casas e enforcadas nos porões dos órgãos de repressão), é bem clara a importância de apreender as conexões entre as diferentes dimensões da democracia, as quais se ligam, naturalmente, ao fato de diferentes países serem mais ou menos bem-sucedidos em equacionar o que se poderia designar como o decisivo problema “constitucional” e estarem conseqüentemente expostos em graus diversos a turbulências políticas em que mesmo os fundamentais direitos civis se vêem comprometidos. Assim, a ênfase analítica no conflito e em sua acomodação ajusta-se à ênfase doutrinária na idéia de uma democracia em que arranjos institucionais bem-sucedidos articulem, de um lado, um estado em que um grau apropriado de autonomia perante os interesses sociais particulares de qualquer tipo permite a busca do interesse público ou geral e, de outro lado, uma sociedade em que agentes individuais e coletivos também autônomos atuam e se relacionam livremente e tanto quanto possível igualitariamente. Isso redunda no ideal da sociedade que muitos chamaram “pluralista”, marcada pela combinação e o equilíbrio entre mecanismos de dispersão e espontaneísmo próprios da área privada e do mercado (onde 3
se trataria da dimensão autonomista, liberal ou “civil” da idéia de cidadania, como propôs George A. Kelly) e os mecanismos de convergência e controle (caracterizados por Kelly como a dimensão solidária ou “cívica” da cidadania), que exigem a presença e a ação do estado.3 Um conjunto especial de temas que tem ganhado relevo em tempos recentes merece breve menção neste ponto. Trata-se da perspectiva em que se destacam noções como a da “sociedade civil”, onde organizações não-governamentais (ONGs) de tipos diversos e alheias ao mercado econômico convencional compõem um “terceiro setor” intermediário entre os pólos do estado e do mercado e supostamente representam, do ponto de vista do ideal democrático, algo especialmente valioso em confronto com esses pólos. A perspectiva tende a envolver certa idealização dos atores próprios do setor, vistos como caracterizados por motivações generosas e altruístas que os distinguiriam dos atores econômicos do mercado, bem como a apegar-se com freqüência a uma concepção de “democracia deliberativa” em que se dá ênfase à comunicação e ao debate livres, em vez do jogo e do embate dos interesses que a ênfase nos conflitos e na interação estratégica salienta.4 Dadas as muitas ramificações complicadas de tais temas, registremos apenas dois aspectos. Em primeiro lugar, a dispersão que inevitavelmente caracteriza os agentes da “sociedade civil”, tal como os agentes do mercado, não pode senão resultar em que esses agentes devam ser vistos como compondo também eles um espaço de interação estratégica, onde se trata de afirmar objetivos próprios (ou interesses...) contra os objetivos de outros agentes. O desiderato de autonomia para os atores individuais e coletivos de natureza variada, característico do modelo da sociedade pluralista, certamente torna uma sociedade civil vigorosa algo a ser apreciado com olhos favoráveis. Mas dificilmente se poderia pretender ter nela algo que se diferenciasse do mercado do ponto de vista da necessidade da regulação e da convergência trazidas pelo estado, ou que viesse a tornar dispensável o instrumento de coordenação e solidariedade representado pelo estado. Além disso, cumpre ter em conta que as motivações supostamente especiais dos agentes da “sociedade civil”, nessa acepção idealizada, tendem a mostrar-se com alguma freqüência pouco afins ao ânimo de tolerância, Uma discussão clássica do modelo da sociedade pluralista, em contraste com a sociedade totalitária e a sociedade de massas, encontra-se em KORNHA, 1959. Mais recentemente, veja-se, por exemplo, DAHL, 1982. As dimensões “civil” e “cívica” da cidadania são distinguidas em KELLY, 1979. 4 A propósito da retomada recente da idéia de sociedade civil, veja-se, por exemplo, COHEN & ARATO, 1992. O autor provavelmente mais influente na literatura em que a perspectiva da “sociedade civil” se articula com a idéia da “democracia deliberativa” é Jürgen Habermas; veja-se, por exemplo, HABERMAS, 1996. 3
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ou à idéia da tolerância como a virtude cívica por excelência, que o pragmatismo dos interesses tende a favorecer e que seria essencial à sociedade adequadamente pluralista e democrática. Este é o foco, por exemplo, de um volume de Ernest Gellner de alguns anos atrás, em que, contra “a retórica dos recém-convertidos à idéia da Sociedade Civil” e os riscos antidemocráticos representados, no limite, pelo ideal da comunidade baseada na fé compartilhada, o rótulo de “sociedade civil” é reclamado para indicar justamente o modelo da sociedade pluralista e individualista em que as identidades coletivas e as correspondentes lealdades e compromissos são objeto de livre escolha individual e temperadas pela capacidade de distanciar-se das pressões e demandas sociais e pelo equilíbrio tolerante e reflexivo (Gellner, 1996, citação da p. 16; veja-se também Reis, 2001). Em segundo lugar, uma palavra quanto à “democracia deliberativa”. Naturalmente, a idéia da criação de espaços em que, em vez dos enfrentamentos violentos, os problemas possam ser resolvidos por meio de formalismos que assegurem o debate livre e a troca de argumentos é um componente decisivo da própria idéia de institucionalização democrática efetiva: qualquer democracia moderna requer, para seu funcionamento, a operação de tais espaços em planos e nichos diversos da aparelhagem do estado e da sociedade, a começar do parlamento ou Congresso. Contudo, como dizia há muitos anos um economista norteamericano a respeito das transações econômicas (“uma transação econômica é um problema político resolvido”) (Lerner, 1972), a possibilidade da deliberação coletiva, nesses termos, não tem como evitar a suposição de que as dificuldades fundamentais no plano dos conflitos de interesses tenham sido resolvidas, ou que se tenha conseguido alguma forma de acomodação “constitucional” do convívio dos interesses diversos (poder-se-ia dizer, certamente com melhores razões do que no caso das transações econômicas, que “um parlamento é um problema político resolvido”). E essa acomodação se fará, de maneira típica, justamente por meio da adequada representação dos interesses nos espaços ou órgãos de deliberação formal, o que preserva um elemento estratégico mesmo no âmbito do processo de deliberação coletiva (diferentemente das idealizações que concebem a situação de deliberação como aquela em que prevalecem somente os melhores argumentos, à parte o jogo dos interesses e as manipulações que lhe correspondem). Assim, a idéia de deliberação coletiva, embora constitua uma importante idéia diretriz, não tem como pretender servir, por si só, como fundação satisfatória para uma teoria adequada da política e da democracia.
2. Democracia e capitalismo, globalização, governabilidade 5
Tempos atrás, os teóricos do processo de desenvolvimento do estado-nação moderno falavam de três problemas articulados que seria necessário enfrentar e resolver: o problema da identidade, o da autoridade e o da igualdade. O problema da identidade, que se refere à dimensão propriamente “nacional” do trinômio “estado-nação moderno”, tem a ver com os aspectos de natureza sociopsicológica ou cultural por meio dos quais a definição da identidade pessoal dos indivíduos vem a ser condicionada em medida importante pela inserção na coletividade nacional, que pode, assim, esperar contar com a lealdade de cada qual. O problema da autoridade diz respeito à edificação da aparelhagem istrativa e simbólica do estado, tornando-o capaz de presença e de ação efetivas junto à coletividade. Já o problema da igualdade, que representaria a face mais especificamente “moderna” da questão geral, refere-se ao desafio da plena incorporação político-social da população, em particular dos estratos populares, envolvendo a acomodação “constitucional” (no sentido sociologicamente denso em que se usou antes a expressão, que não deixa de incluir aspectos legais) do convívio entre as classes sociais e a neutralização do potencial de conflitos nele contido. Este último aspecto se desdobra no tema delicado das relações entre a democracia e o capitalismo no processo a desenrolar-se em cada país. A grande questão há muito situada por aquilo que os teóricos mencionados designam como o problema da igualdade era a de se a incorporação popular poderia ocorrer de forma conseqüente sem que a mobilização produzida pelo capitalismo junto às estruturas sociais tradicionais desaguasse em disposições revolucionárias capazes de ameaçar a sobrevivência do próprio capitalismo. As alternativas históricas de solução estável e bem-sucedida do problema assim posto pareciam, até há pouco, compreender dois tipos de experiência: a dos países de capitalismo avançado, em que o próprio amadurecimento do capitalismo teria vindo viabilizar os mecanismos institucionais de democracia política e de incorporação social, em contraste com a suposição marxista do agravamento das contradições e da eventual ruptura revolucionária (viabilização esta que se deu mais cabalmente, embora não só, num modelo político-organizacional assumidamente socialdemocrático); e a dos países que aram por revoluções socialistas, onde a acomodação se buscou por meio da supressão dos fundamentos capitalistas da divisão da sociedade em classes sociais. O colapso do socialismo, com a feição politicamente autoritária de que as experiências socialistas se revestiram, tem uma primeira conseqüência em evidenciar que não cabe contar com estabilidade real sem democracia, ainda que a repressão possa garantir a longa duração da forma autoritária de organização. Aquele colapso redunda, além disso, em sugerir que 6
historicamente a única solução estável do problema constitucional consistiria na combinação de prosperidade e democracia que se tornaria possível com o capitalismo avançado. Associada aos efeitos diretos da dinâmica globalizadora pelo mundo afora, a derrocada do socialismo permite um ethos dominante que não só tem festejado o “fim da história” e o triunfo do capitalismo, mas tem também apregoado um receituário liberal em que se minimiza o papel do estado e se coloca em xeque o próprio modelo socialdemocrático. Contudo, há aqui matizes importantes a recuperar. A forma assumida pela solução dada ao problema da autoridade no mundo da socialdemocracia, ou seja, o estado keynesiano de bem-estar, combinava, nos termos utilizados há tempos por David Lockwood, a atenção para problemas de “integração sistêmica” e de “integração social” (Lockwood, 1964). A integração sistêmica se refere à dinâmica econômica e mercantil em si mesma, com a causalidade automática e cega que a caracteriza no nível agregado e os resultados negativos eventualmente produzidos para a coletividade. Ora, as crises pelas quais tem ado a economia mundial e a incerteza introduzida acarretam revisões importantes nas expectativas otimistas e nas restrições relativas à atuação econômica do estado próprias do ethos mencionado. Quanto à integração social, que diz respeito ao conflito ou coesão entre grupos e classes e remete ao problema da igualdade e de sua acomodação institucional ou constitucional, o pós-socialismo é o momento em que a dinâmica da globalização a a mostrar com nitidez a sua face socialmente perversa. Assim, com a crise do keynesianismo e do estado de bem-estar, o desemprego, a informalização e a precarização do trabalho e o crescimento da desigualdade (num processo que alguns designaram como a “brasilização” do capitalismo avançado)(Therborn, 1989), temos indícios importantes de que ameaça reabrir-se o problema constitucional até nos países capitalistas de maior tradição de estabilidade democrática, embora essa ameaça se dê em condições nas quais a lógica mesma dos mecanismos em jogo debilita os atores que protagonizavam o compromisso político e social anterior (certas organizações sociopolíticas e o próprio estado) e torna precárias as perspectivas imediatas de reação conseqüente, por parte deles, à nova situação.5 Os paradoxos da nova dinâmica econômico-social ficam bem claros na ironia de uma das recomendações que brotam dela, a respeito da qual se tem falado de uma “corrida para o fundo”: a de que, para evitar que as pessoas sejam “priced out of the market”, se trate de baratear, seja como for, o custo do trabalho, o que redunda em tornar piores as condições de inserção no mercado de trabalho como requisito de que, para muita gente, essa inserção possa simplesmente existir em algum grau. Esping-Andersen (1999: 157 e seguintes) tem sugerido que a dinâmica socioeconômica da atualidade corre grandes riscos de reproduzir as condições do processo de formação de classes, que a Europa do pós-guerra conseguiu contrabalançar em ampla medida. As consequências das novas condições para a dinâmica política e partidária relacionada às vicissitudes do estado de bem-estar nos países de capitalismo avançado têm 5
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Seja como for, o mundo que a dinâmica globalizadora atual coloca diante dos nossos olhos realiza peculiar disjunção entre os problemas de identidade, autoridade e igualdade definidos acima. De um lado, os estados nacionais continuam a prover o foco decisivo quanto a questões de identidade. Não obstante a existência de irredentismos étnicos (que, contudo, visam justamente à afirmação em termos de organização estatal autônoma), a referência aos elementos sociopsicológicos e culturais da nacionalidade segue sendo o principal condicionante do sentido pessoal de identidade, e não há, no plano transnacional, nada que equivalha ao sentimento de inserção numa comunidade de maneira comparável à que se tem no plano nacional – até porque a definição da identidade supõe a referência contrastante aos que não partilham dela, o que é fatalmente problemático se nos deslocamos para o nível do planeta como tal. De outro lado, porém, os termos em que se colocam os problemas da autoridade e da igualdade são dramaticamente afetados pela globalização. Com o renovado vigor dos mecanismos de mercado, que am a operar em escala transnacional e virtualmente planetária, não só os estados nacionais vêem solapado seu poder de istração econômica e intervenção social, mas também a resposta socialdemocrática ao problema da igualdade tende a surgir como arcaísmo oneroso, e a concepção solidarista de uma cidadania enriquecida pelo desfrute de direitos sociais, ao lado dos direitos civis e políticos, se vê substituída pelo convite a que cada qual se avenha como possa com as asperezas do mercado. Durante a maior parte do século recém-encerrado, até que se dessem a intensificação dos mecanismos ligados à globalização e os surpreendentes eventos que resultaram na derrocada do socialismo, as coisas pareciam claras no que se refere ao Brasil. Enfrentávamos aqui o mesmo problema constitucional com que se defrontaram classicamente os estados nacionais na época moderna. Nosso caso, porém, como o de muitos outros países da periferia do capitalismo mundial, seria o do problema constitucional não resolvido, ou resolvido insatisfatoriamente. Num jogo em que com freqüência se pretendeu utilizar certa exacerbação nacionalista da identificação com o país e os instrumentos materiais e simbólicos da autoridade estatal, tivemos a presença continuada da ameaça revolucionária (subjetivamente sentida como tal, quaisquer que fossem os erros de avaliação das “condições objetivas”) pairando sobre as turbulências do dia-a-dia e ajudando a conformar um quadro geral de instabilidade “pretoriana”. Nas análises clássicas de Samuel Huntington sobre o pretorianismo, este é concebido como a condição em que, dada a fragilidade das instituições sido exploradas em vasta literatura. Um exemplo a merecer destaque se tem com Pierson (2001). 8
políticas, cada conjunto de interesses ou “força social” leva diretamente à arena política os recursos de qualquer natureza de que disponha, num vale-tudo cuja conseqüência é a tendência ao protagonismo dos militares, que controlam um recurso peculiar, os instrumentos de coerção física (HUNTINGTON, 1968). Daí resulta a oscilação entre o autoritarismo aberto, sob controle militar, e tentativas sempre renovadas e precárias de construção institucional da democracia. Do ponto de vista do desiderato de implantação efetiva da democracia no país, o colapso do socialismo mundial tem o efeito de neutralizar o papel da ameaça da revolução socialista no jogo político, ao eliminar o eventual respaldo internacional para iniciativas que pretendessem orientar-se nessa direção e ao esvaziar em grande medida a idéia mesma do socialismo como opção atraente e eventualmente viável. A grande questão é a do significado a atribuir à situação nova para as perspectivas da democracia e de estabilidade institucional: a remoção da ameaça revolucionária, nos termos em que esteve presente na vida política brasileira durante vários decênios, permitirá inferir que a democracia se acha garantida? Ora, se cabe falar de riscos de reabertura do problema constitucional até nos países de capitalismo avançado e tradição democrática, é bem claro que a presunção otimista dificilmente se justificaria, sem mais, no caso brasileiro. Afinal, as conseqüências perversas da inserção na dinâmica da globalização tendem a surgir no Brasil como algo que se superpõe aos fatores tradicionais de desigualdade herdados de nossa longa experiência escravista. Somada à fragilidade institucional que há muito se manifesta nas vicissitudes pretorianas de nossa história mais ou menos recente, essa circunstância recomenda sobriedade nas apostas com relação ao futuro visível. Será adequado, porém, continuar a falar de “pretorianismo” a propósito das condições que provavelmente prevalecerão, tendo em vista a alusão que a expressão traz ao protagonismo normalmente exercido pelas forças armadas em circunstâncias de fragilidade institucional? O debate político brasileiro em seguida ao fim do regime de 1964 tem privilegiado o tema da “governabilidade”. Esse debate se cerca de impropriedades e confusões, a começar por impropriedades semânticas em que a expressão é tomada para indicar uma característica da aparelhagem do estado (sua eficiência ou capacidade governativa, identificada às vezes ao mero apoio prestado ao governo no Congresso), omitindo-se o fato de que o atributo de ser mais ou menos governável é um atributo daquilo que é governado, ou seja, da sociedade. A confusão semântica se liga a um postulado substantivo, de acordo com o qual o problema da democracia se acha resolvido. Como o discurso e as ações do governo Fernando Henrique Cardoso deixavam claro (especialmente, talvez, em textos e manifestações do ministro 9
Bresser Pereira, encarregado de pensar a reforma do estado),6 o problema a ser enfrentado seria sobretudo o de um aggiornamento do país e do estado em termos de eficiência e competitividade internacional, de que a implantação da mal chamada “governabilidade” seria um requisito. Mas o desiderato da “governabilidade”, entendida a expressão em termos de eficiência ou capacidade governativa, não envolve senão o problema “técnico”, e de certa forma banal, de manejar adequadamente os meios disponíveis para a realização de fins tomados como dados. Do ponto de vista da democracia, que supõe fins ou interesses múltiplos de numerosos atores e de conciliação problemática, a capacidade governativa só interessa na medida em que se ligue com o desafio de criar governabilidade no sentido próprio: o de criar a sociedade que seja governável por boas razões, vale dizer, aquela em que os diferentes interesses e correntes de opinião reconheçam no estado, em grau significativo, o agente autêntico de todos. Nesse plano estamos diante de problemas substantivos e propriamente políticos, que podem ser postos em foco pela consideração de formas diversas de ingovernabilidade em que a questão da igualdade e sua articulação com o aparelho do estado é central. Uma dessas formas, que remete, na verdade, ao contexto por referência ao qual o tema da governabilidade foi introduzido nas discussões contemporâneas por Samuel Huntington e outros (Crozier, Huntington & Watanuki, 1975), é a que se poderia designar como “ingovernabilidade de sobrecarga”. Ocorrendo num quadro de crise fiscal do estado e de demandas crescentes a ele dirigidas, o aspecto a destacar é o de que se trata aqui de uma condição em que se destempera (o “destempero democrático”, na expressão de Huntington, 1976) o modelo socialdemocrático de um estado aberto e sensível à multiplicidade dos interesses. Por esse aspecto, a ingovernabilidade de sobrecarga contrasta fortemente com a segunda forma que cabe apontar com recurso a análises anteriores do mesmo Huntington mencionadas acima, a “ingovernabilidade pretoriana”, que corresponde ao problema constitucional não resolvido de que se falou e envolve o confronto direto dos interesses diversos num contexto de fragilidade das instituições políticas e de precária capacidade de processamento institucional desse confronto. Se essa segunda forma de ingovernabilidade é familiar ao Brasil, as novas condições mundiais, associadas à exasperação de certos traços que há muito acompanham as deficiências sociais do país, expõem-no com força a uma outra, que Tome-se, por exemplo, a declaração do ministro em simpósio realizado em Brasília, sob o patrocínio do Ministério da Reforma do Estado, em agosto de 1997, segundo a qual o problema institucional do exercício legítimo do poder estaria resolvido no país, e o que agora defrontamos seria mera “crise de governança”. Veja-se também BRESSER PEREIRA, 1997 (comentado em REIS, 1997). 6
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se poderia designar como “ingovernabilidade hobbesiana”. Trata-se, neste caso, da deterioração difusa do tecido social, da criminalidade e da violência urbana crescentes, do surgimento de espaços onde a autoridade estatal não tem condições de se fazer valer de modo efetivo – e, assim, do comprometimento da capacidade de ação do estado no plano da própria manutenção da ordem pública e da segurança coletiva. Na verdade, seria possível dizer que esse comprometimento faz emergir o problema constitucional em sentido mais comezinho e básico, transformando-o no problema, de que se ocupou Hobbes, da edificação ou preservação da autoridade capaz de garantir o anseio fundamental por segurança e ordem. Um aspecto especial a merecer menção é o do papel desempenhado, no quadro de deterioração hobbesiana, pela economia da droga, que, penetrando profundamente alguns países latinoamericanos vizinhos, certamente afeta também de maneira crescente o Brasil da violência e das chacinas como fenômeno corriqueiro do dia-a-dia. Uma indagação que se poderia formular quanto à avaliação dos prospectos democráticos do país é a das relações a se estabelecerem entre essas diferentes formas de ingovernabilidade. Assim, mesmo com a precariedade do welfare state brasileiro, é provavelmente adequado falar de um problema de sobrecarga diante da enorme demanda social desatendida, sobretudo em circunstâncias de grave crise fiscal. Mas outro aspecto diz respeito às relações entre hobbesianismo e pretorianismo: em que medida caberá esperar que a deterioração hobbesiana termine por engendrar de novo o pretorianismo na forma mais convencional do protagonismo militar? É sem dúvida imaginável que o agravamento das condições de insegurança acabasse resultando em que a população viesse a ansiar diretamente pela afirmação de um poder ditatorial. Esse temor é respaldado por certas disposições encontradas por várias pesquisas junto ao eleitorado brasileiro. Mas tais disposições se inserem num quadro mais amplo e matizado. 3. O eleitorado, o PT, o governo Lula e a crise O lado mais negativo dos dados relevantes se mostra em diversos aspectos. Assim, os dados revelam o alheamento de grandes parcelas do eleitorado popular brasileiro perante a política e os assuntos públicos, alheamento este que se liga com a tendência geral ao desapreço pela democracia. Pesquisas por amostragem realizadas em 2002 em 17 países latino-americanos pelo Latinobarômetro mostram o Brasil como o país com menor proporção de respostas em que se aponta a democracia como preferível a qualquer outra espécie de regime (37 por cento). Não obstante certa recuperação relativamente a 2001, também nas 11
pesquisas de anos anteriores realizadas pelo mesmo instituto as proporções brasileiras de apoio à democracia se situam entre as mais baixas da América Latina. E é talvez especialmente revelador observar que, no ano de 2002, a proporção de brasileiros que declaravam não saber o que significa a democracia ou simplesmente não respondiam à pergunta a respeito era destacadamente mais alta que a dos nacionais de todos os demais países latino-americanos, alcançando 63 por cento (em El Salvador, o segundo colocado, a proporção correspondente não ava de 46 por cento).7 Tais constatações têm certamente a ver com a grande desigualdade social brasileira e seus reflexos nas deficiências educacionais do país, e pesquisas diversas mostram a clara correlação positiva entre o apego à democracia (ou, em geral, a atenção e o interesse pela política e o ânimo participante e cívico) e a escolaridade ou a sofisticação intelectual geral dos eleitores. De qualquer forma, duas observações permitidas por outros dados merecem destaque por sua relevância.8 A primeira mostra o substrato sociopsicológico com que aparentemente continua a contar o populismo no Brasil, solapando a idéia de uma democracia capaz de operar institucionalmente de forma estável: somente entre os entrevistados de nível universitário não se encontrava, nos dados em questão, a concordância da ampla maioria com um item de claro ânimo antiinstitucional, e mesmo autoritário, em que se desqualificavam os partidos políticos e se afirmava que, em vez deles, o que o país necessita é “um grande movimento de unidade nacional dirigido por um homem honesto e decidido” (e registre-se que até entre os entrevistados de nível universitário a proporção de concordância alcançava ainda os 36 por cento). Naturalmente, torna-se difícil pretender atribuir maior consistência à preferência declarada pela democracia, já de si comparativamente pequena, em circunstâncias em que basta a alusão a traços ou ocorrências que tendem a ser percebidos de maneira positiva (honestidade, capacidade de decisão, união nacional) para que as pessoas se mostrem dispostas a abrir mão de requisitos institucionais dela em favor de lideranças pessoais “fortes”.
Dados constantes de relatórios divulgados na imprensa internacional. Note-se que levantamentos correspondentes a 2006 trazem algumas alterações desses números, sem que o significado básico que aqui se aponta seja modificado de modo relevante: o Brasil a a aparecer em segundo lugar nas proporções de “não sei” e não resposta, que alcançam 53 por cento. 8 Trata-se de dados produzidos pelo projeto “Pacto Social e Democracia no Brasil”, coordenado pelo autor, cujo trabalho de campo foi executado em 1991-1992 junto a uma amostra da população de Belo Horizonte e a amostras especiais de trabalhadores dos estados de Minas Gerais e São Paulo. Veja-se Reis & Castro, 2001. 7
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A segunda observação diz respeito a algo que pode ser entendido como envolvendo dimensões diversas da idéia de uma democracia em operação. Assim, quando se considera, nos mesmos dados, a disposição dos eleitores relativamente à garantia dos direitos civis fundamentais, expressa em termos da opinião a respeito de temas dramáticos como a ação dos “esquadrões da morte” na periferia das grandes cidades brasileiras, o linchamento de bandidos pela população e o recurso à tortura pela polícia, surgem observações reveladoras. Por um lado, vê-se que há forte queda, em comparação com o que se dá quanto ao apoio em abstrato à democracia (especialmente entendida em termos político-eleitorais), no nível geral de adesão às posições ou opiniões que, apoiando os direitos civis ou afirmando sua importância, se presumiriam “democráticas”. Mas vê-se também que o desapreço pelos direitos civis penetra fortemente mesmo os setores educados e sofisticados. A categoria geral dos altamente favoráveis à defesa dos direitos civis das pessoas não ultraa o nível dos 18 por cento, contra níveis como 31 e 42 por cento em categorias análogas (de opinião altamente positiva) no que se refere ao apoio à democracia político-eleitoral. Observadas as distribuições por escolaridade, vamos encontrar, por exemplo, nos níveis inferiores dessa variável (até ensino fundamental completo, ou seja, oito anos de estudos ou menos), proporções que variam de 51 a 59 por cento concordando, de maneira mais ou menos qualificada, com as chacinas praticadas pelos esquadrões da morte ou com o linchamento de bandidos, e a concordância alcança ainda a proporção de 30 por cento mesmo entre os entrevistados de nível universitário. Tais observações sobre os direitos civis talvez se devam, em parte, ao crescimento da criminalidade e da violência, que atingem sobretudo os setores mais pobres e menos educados, possivelmente levando-os a certa propensão mais intensa a identificar a garantia dos direitos civis com indevida proteção a bandidos. Mas, se a violência dos bandidos talvez justificasse essa avaliação, que dizer da ação criminosa e da violência da própria polícia, cujas vítimas principais são também os setores mais carentes e que se constitui num aspecto relevante do presente quadro de insegurança “hobbesiana” da vida brasileira? A melhor explicação talvez esteja em algo distinto, que permite integrar as observações sobre direitos civis com o maior apoio que, bem ou mal, é dado à democracia político-eleitoral. A democracia político-eleitoral se tornou parte de uma cultura convencional no mundo de hoje. Ora, esse caráter convencional, ao tornar “natural” e imediata a adesão à democracia político-eleitoral pela parcela mais educada da população brasileira, aumenta as chances de que venhamos a ter a mesma adesão também por parte dos estratos populares e intelectualmente pouco sofisticados, criando, em algum grau, a tendência à pronta 13
verbalização dos valores democráticos dentre eles. Mas, nas circunstâncias de uma sociedade elitista e de pesada herança escravista, a idéia de direitos civis a serem garantidos igualmente para todos está longe de integrar a cultura convencional – o que é claramente corroborado pelo próprio fato de que o descrédito dos direitos civis ocorre também nos níveis médios da estrutura social e mesmo, em boa medida, nos estratos mais altos (basta ver a indiferença com que a sociedade em geral se inteira das notícias sobre as chacinas corriqueiras entre os cidadãos de segunda categoria do país: cabe duvidar de que ficaríamos todos chocados, e de que o estado seria dramaticamente mobilizado, se algo semelhante começasse a ocorrer regularmente entre os moradores dos Jardins paulistanos ou de Ipanema?).9 Daí que apreciar devidamente o significado dos direitos civis se torne uma proeza intelectualmente e moralmente mais exigente, e em conseqüência mais difícil para os estratos populares. E nas disposições que os dados revelam parece existir, entre aqueles que integram o Brasil dos mais pobres, um elemento de deferência em razão do qual eles se mostram pouco propensos a afirmar sua própria dignidade e sua condição de cidadãos autênticos.10 Essa perspectiva faz ressaltar a importância da criação do que tem sido designado como citizen competence em certa literatura norte-americana recente, em que teríamos a articulação entre elementos intelectuais e disposições de autonomia e civismo.11 Mas a intensificação da violência e da criminalidade, ou da ingovernabilidade hobbesiana de que se falou, indica, nas condições de um novo Brasil industrial e urbano e de forma incipiente e talvez torta, o surgimento e a difusão de percepções igualitárias que são a condição para a ocorrência do sentimento de injustiça e para o conseqüente ânimo de reivindicação e afirmação de si.12 Seja como for, as deficiências apontadas não impedem que se observem também, nos dados relativos à participação popular no processo político-eleitoral, alguns importantes Claro indício se tem com o enorme impacto e a repercussão das ações ousadas e violentas durante o ano de 2006, em São Paulo, do auto-denominado Primeiro Comando da Capital (PCC, em que se articulam líderes criminosos, em muitos casos presos e agindo de dentro das prisões). Como formularam alguns jornalistas, com tais ações “as elites se viram forçadas a viver seus dias de periferia”. 10 Autores que se têm dedicado ao tema do desenvolvimento moral, como Lawrence Kohlberg e Jürgen Habermas, falam da moralidade convencional e de sua superação na condição de autonomia moral de todos (veja-se, por exemplo, Habermas, 1979.) Numa sociedade desigual, porém, superar a moralidade convencional envolve o desafio mais difícil de superar formas de dominação social. 11 Dois exemplos dessa literatura são Elkin & Soltan, 1999, e Lupia, McCubbins & Popkin, 2000. 12 Em Runciman, 1966, explorava-se há tempos a idéia de que é preciso que eu tenha o sentimento de ser igual ao outro em aspectos decisivos para que o fato de ser tratado por ele (ou pela sociedade) como desigual ou inferior surja aos meus olhos como injusto e inaceitável. 9
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aspectos de significado potencialmente positivo. Assim, mesmo se a desinformação e o alheamento perante a política representam terreno favorável ao populismo e às formas de manipulação próprias dele, a maneira consistente em que os estratos menos favorecidos buscam o lado “popular” nas ofertas encontradas entre partidos e candidatos indica também a existência de limites à manipulação (que ficaram claras, de modo especialmente significativo, nas dificuldades deparadas pelo antipopular regime ditatorial de 1964 para legitimar-se no plano eleitoral, não obstante as muitas manobras legais). Diversamente do que sugere a idéia de um eleitor “volátil”, seria possível falar de uma “consistência populista”, vinculada à tendência do eleitor popular a criar identificações ou antagonismos estáveis com lideranças ou partidos que operem de maneira continuada e adquiram suficiente visibilidade. A condição é que se trate de lideranças ou partidos “populares”: na designação que propus, em alusão ao mais popular clube brasileiro de futebol, teríamos em operação “a síndrome do Flamengo”, por ligar-se com imagens singelas e destituídas de conteúdo em termos de questões específicas de qualquer tipo, envolvendo apenas a contraposição tosca entre o popular e o elitista, os “pobres” e os “ricos”13. Nessa perspectiva, pode-se sustentar que um aspecto relevante das dificuldades políticas brasileiras nas últimas décadas tem a ver com a fluidez do sistema partidário que decorre não da “volatilidade” do eleitorado popular, que se expandiu de maneira notável ao longo do século XX,14 mas da manipulação institucional produzida no confronto político como resposta às conseqüências sobre o processo político-eleitoral de algo em que se revelam antes as tendências mais constantes daquele eleitorado: veja-se, no período democrático de 1945 a 1964, o crescimento eleitoral continuado do partido trabalhista criado pela figura popular de Getúlio Vargas, o PTB (certamente um dos fatores da crise que leva ao golpe militar no fim do período); ou a afirmação eleitoral do partido de oposição ao regime ditadorial de 1964, o MDB, no momento em que os embaraços do regime permitem ao partido uma mensagem aguerrida de tonalidades populares; ou a gradativa e firme penetração do Partido dos Trabalhadores, o PT, no novo período democrático que se abre em 1985, culminando com a vitória nas eleições presidenciais de 2002. Um desafio crucial, assim, seria Isso não significa, naturalmente, que, associadas ou não com algum elemento de fraude, ações dirigidas a beneficiar os setores populares ou os “pobres” (vistas nas análises justamente como características do “populismo”) não possam ajudar a fixar e dar consistência à imagem favorável deste ou daquele líder ou partido. 14 “De 1945 a 2000, a população cresceu de 46 milhões para quase 170 milhões de habitantes, com um aumento de 268,58%, enquanto o eleitorado, que era de 7,4 milhões em 1945, ou a 115 milhões em 2002, com um crescimento, no período, de 1453,7%; em 1945, somente 16,10% da população estavam inscritos para votar, ao o que (...) tomando-se o eleitorado inscrito em 2002 como proporção da população em 2000 verifica-se que 67,88% dos brasileiros têm cidadania eleitoral” (Castro, 2004:286-287). 13
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o de se criarem condições que, em vez da permanente turbulência do quadro partidário, permitam a essa propensão às identificações de cunho popular assumir a forma de identidades partidárias estáveis, de modo a canalizar institucionalmente a participação político-eleitoral das massas e a mitigar ou neutralizar a atração exercida por lideranças de tipo propriamente populista e personalista.15 A ambivalência dos traços dessa síndrome tem implicações relevantes para a experiência que o país vem agora vivendo com a afirmação eleitoral alcançada pelo PT e o o de Lula à Presidência. Um primeiro aspecto é o de que o êxito eleitoral do partido dificilmente poderia ser visto como significando o apoio da massa popular às idéias radicais e socializantes que o marcaram em sua origem. Assim como ocorreu com o PTB associado a Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, e com o MDB de 1974, que a percepção popular ou a identificar como o “partido dos pobres”, como mostraram as pesquisas (Reis, 1975), assim também, descontadas certas “vanguardas” de maior informação e envolvimento políticos, o apoio trazido a um “partido dos trabalhadores” certamente se deve, em boa medida, às próprias deficiências do eleitorado popular de que se nutre há muito o populismo.16 Isso não é razão, porém, para que se deixe de salientar, prescindindo momentaneamente dos efeitos da crise deflagrada em 2005, as peculiaridades da experiência ocorrida em torno do PT. Temos com ele, para começar, um esforço que, apesar da importância da figura de Lula em particular, se orientou desde o início não em bases personalistas, mas antes pelo empenho de construção de uma instituição partidária sólida, em que o debate interno e o incentivo à militância não impedissem a disciplina e a atuação eficaz. Cabe registrar que há aqui uma espécie de jogo dialético, pois a identificação popular mais intensa e extensa com os partidos é ela própria um fator importante de que eles venham a adquirir maior consistência. Lembre-se, a respeito, como o “troca-troca” partidário de que tanto se fala presentemente, em que os parlamentares mudam de um partido a outro de acordo com conveniências momentâneas, não existiu com intensidade sequer remotamente parecida durante o período 1945-1964. Talvez pelos enfrentamentos em torno da figura de Getúlio Vargas e a referência popular que ela representava, não era permitido aos políticos jogar de maneira inconseqüente com as identidades de “pessedista” (adepto do PSD, partido varguista), “udenista” (adepto da UDN, antivarguista) e, em seguida, “petebista”, sob pena de se arriscarem à punição eleitoral. Aliás, mesmo agora a porcentagem de reeleição entre os políticos que mudam de legenda é bem menor do que a que ocorre entre os que permanecem fiéis aos seus partidos de origem. Veja-se Reis, 1999, para o exame sintético dos matizes revelados pelos dados pertinentes quanto às disposições do eleitorado popular. 16 Dados relativos às eleições de 1982 mostram, por exemplo, que, nos níveis inferiores de renda, os eleitores paulistanos que se declaravam identificados com o PT incluíam grandes proporções cujas posições quanto a vários itens de opinião (participação política dos militares, apoio a greves como recurso político etc.) eram o oposto do que se esperaria com base no perfil ideológico do partido. Veja-se Reis & Castro, 2000. 15
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Além disso, os traços que conformaram o partido envolvem a combinação de maior apego aparente a idéias e princípios com fatores “populistas” de atração eleitoral, representados sobretudo por Lula e seu carisma pessoal, não obstante o que tem Lula de peculiar, por sua origem mais autenticamente popular, em confronto com a posição social privilegiada das lideranças populistas típicas. Tal combinação justificava a expectativa de que o êxito eleitoral do partido, e conseqüentemente a perspectiva de que chegasse a representar um instrumento efetivo de canalização da participação política popular, viesse a ocorrer com preservação mais adequada da consistência institucional e do compromisso popular do que em outros casos na história dos partidos brasileiros. Finalmente, a afirmação mais cabal do PT, com o o à Presidência da República, deu-se em circunstâncias em que o necessário aprendizado de realismo eleitoral se associou com o fatal aprendizado de realismo também quanto ao exercício do governo e à istração do país, imposto pelo mundo novo da globalização e do pós-socialismo e pelo cenário econômico adverso no plano internacional com que o partido se defrontou ao deparar a oportunidade real de assumir o poder. As conseqüências disso do ponto de vista do processo político-institucional brasileiro e das perspectivas que se abrem para a democracia no país são, em princípio, de grande importância. Pois o o da “esquerda” ao poder, há muito o objeto dos temores que configuravam nosso problema constitucional não resolvido, acaba ocorrendo em circunstâncias em que (não obstante ocasionais denúncias algo paranóicas de ameaças de “totalitarismo”) se torna possível o desarmamento dos espíritos quanto a esse decisivo foco de conflitos e a eventual convivência institucional consolidada entre opiniões e interesses que sempre se viram com suspeita ou hostilidade. Estaria dada, assim, a possibilidade de virmos a repetir, por aspectos relevantes, a trajetória seguida pela socialdemocracia em diversos países europeus, e de, independentemente dos êxitos ou dificuldades no plano istrativo e dos eventuais avanços sociais obtidos, podermos ar com sucesso pelo teste crucial de ver chegar a bom termo institucional o governo de um partido ainda há pouco percebido como a face nova da antiga e inaceitável ameaça de subversão. No rumo geral contemplado por essa hipótese (claramente corroborada pela própria reeleição de Lula e pela normalidade institucional em que ocorre, apesar do azedume dos enfrentamentos durante a crise que a antecedeu e a campanha eleitoral) seria com certeza possível falar da consolidação da democracia brasileira e da superação de nossa longa instabilidade pretoriana.17 Naturalmente, Com alguma frequência, análises do governo Lula inaugurado em 2003, destacando sua característica realista e moderada especialmente quanto à política econômica, têm sustentado que tal característica redundaria em que o “teste” mencionado não teria ainda acontecido, e nossa democracia, portanto, não teria de fato sido posta à prova. Essa posição contém a 17
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em nosso pretorianismo tradicional a atuação dos militares esteve sempre vinculada à tomada de posição, por parte deles (eventualmente reclamada ou induzida por outros atores), quanto à dimensão social e “marxista” do problema constitucional não resolvido que temos enfrentado; se as tensões dessa dimensão se acomodam em algum grau, as perspectivas de estabilidade político-institucional certamente melhoram, não obstante as dificuldades e ameaças ligadas à nova face “hobbesiana” daquele problema e o substrato equívoco que elas encontram nas disposições de amplas parcelas da população. Mas a crise do governo e do PT que tem seu auge em 2005 vem alterar o quadro de forma importante. Para começar, ela coloca em xeque a experiência institucional que o partido representava, corroendo seu capital simbólico não só na dimensão da imagem ética peculiar, mas também na do compromisso ideológico com nobres objetivos sociais, ao tornar claro que o sectarismo e a arrogância derivados da auto-imagem ideológica são um fator importante a levar ao maquiavelismo tosco e à lassidão ética em que tudo é permitido. Como consequência, o partido se vê envolvido em séria crise de identidade e em defecções e tensões internas que tornam difícil visualizar com algum grau de segurança o papel que virá a cumprir no futuro, mesmo se as características antes destacadas do eleitorado popular continuarem a garantir-lhe presença parlamentar relevante. Além disso, as relações entre Lula e o PT se tornam problemáticas: se Lula há muito tem sido eleitoralmente maior do que o PT, o fortalecimento popular da figura do presidente, que redunda em sua reeleição com ampla votação, ocorre concomitantemente com o desgaste e a crise do partido. Como deixa claro a montagem recente do novo governo de coalizão, com a redução, em favor especialmente do PMDB, do espaço antes ocupado pelo PT (não obstante a resistência que este opôs à mudança), Lula terá sem dúvida, no segundo mandato, que manter maior distância de seu próprio partido na busca de apoio parlamentar e de eficiência governativa. Mas há outros aspectos a serem destacados no novo quadro. Um primeiro deles é o fato de que também o PSDB se acha em crise. O partido conquistou nas eleições de 2006, é certo, o governo de alguns estados importantes. Mas há sinais evidentes de crise: as embaraçosas dificuldades na escolha de Geraldo Alckmin como candidato à Presidência da implicação de que só poderíamos falar de um teste real caso a democracia brasileira resistisse e sobrevivesse a um governo que tentasse efetivamente fazer “a revolução”. Embora se possa pretender ver aí boa doutrina (no sentido de que o que cabe almejar, em última análise, é erigir a aparelhagem capaz de processar institucionalmente e de maneira tranquila mesmo a eventual transformação revolucionária), são bem claras as limitações que a posição envolve em termos de uma sociologia política realística: não há dúvida de que a democracia não resistiria a esse teste (ainda que ela pudesse talvez chegar a instaurar-se em algum momento futuro, depois dos conflitos que se travariam). 18
República, seguida de seu fraco desempenho eleitoral, numa campanha em que se viu levado a afastar-se do governo anterior de Fernando Henrique Cardoso e a abjurar posições do partido; a disputa latente entre José Serra, governador de São Paulo, e Aécio Neves, governador de Minas Gerais, em torno da candidatura à Presidência em 2010, com possíveis implicações importantes para as relações de cada um com o segundo governo Lula e talvez para a própria unidade partidária; a singularidade da posição e do papel de FHC no partido, por uma parte representando uma liderança de óbvia importância, por outra sendo posto de lado em razão da impopularidade com que veio a concluir seu governo, do que resulta uma forma de atuação pessoal do ex-presidente de motivação equívoca e consequências pouco claras para o partido como tal. Somada à crise do PT (e à do PFL, herdeiro do partido governista durante a ditadura, que tem sido aliado importante do PSDB e que saiu das eleições de 2006 derrotado e apequenado e se empenha agora em mudar de novo o próprio nome, junto com a busca de reorientação programática), a crise também do PSDB não faz senão agravar o sentido geral institucionalmente negativo do panorama que o país agora defronta. Pois, na impossibilidade circunstancial (ainda que longa) da aproximação ou mesmo fusão entre PT e PSDB, como condição de que se pudessem superar os obstáculos do “presidencialismo de coalizão” (Sérgio Abranches) e a necessidade de “governar com o atraso” apontada há tempos por Fernando Henrique Cardoso, a dinâmica político-eleitoral do período anterior à crise atual pelo menos permitia que as disputas mais significativas se dessem entre os dois partidos aparentemente de maior consistência. Mas até mesmo esse ganho relativo se vê agora comprometido. Um outro aspecto, contudo, pode ser lido como apontando em direção favorável, embora se ligue a um dos temas polêmicos da própria campanha eleitoral. Ocorre que o “lulismo”, ou o apoio pessoal à figura de Lula, que o processo eleitoral de 2006 acabou mostrando estar mais forte do que nunca apesar da crise do petismo, resultou em algo inédito nas disputas presidenciais brasileiras: a intensa correlação entre o apoio eleitoral a cada um dos dois principais candidatos e a posição socioeconômica dos eleitores, correlação esta que claramente se deve à conjugação da imagem popular difusa de Lula com os bons resultados da política social de seu primeiro governo aos olhos do eleitorado popular, como quer que se avaliem tecnicamente as medidas correspondentes. Naturalmente, surge a indagação sobre se será satisfatório, na óptica do avanço democrático, um lulismo desacompanhado da efetiva construção institucional na faixa partidária que o PT prometia representar – embora as razões difusas do apoio popular a Lula possam redundar também em algum grau mais ou menos importante de fidelidade do eleitorado ao PT, e a boa votação obtida pelo partido para o 19
Legislativo nas eleições de 2006 provavelmente tem a ver com isso. Mas não há como deixar de enxergar a relevância, e o significado potencialmente positivo, de que a duradoura desigualdade social do país tenha vindo a projetar-se com clareza inédita sobre a disputa eleitoral relativa à Presidência da República, e de que o tema da política social tenha se imposto na campanha de forma igualmente clara. Na verdade, o fato de que, nas circunstâncias do grande fosso social brasileiro, aquela projeção tenha demorado tanto a acontecer certamente se liga aos correlatos mais negativos da própria desigualdade no plano intelectual e sociopsicológico. Como quer que seja, quanto às perspectivas político-institucionais, é provavelmente melhor, diante dos riscos e possibilidades oferecidos pelo futuro imediato, que se possa contar com o lulismo como força viva. Há a hipótese problemática de que de alguma forma vingue a idéia, proposta por algumas correntes do PT, da “refundação” do partido, caso em que o legado lulista, naturalmente, lhe seria bem-vindo. À parte isso, porém, tem havido especulações em que, dada a impossibilidade legal de Lula concorrer à reeleição em 2010, a inexistência de um candidato natural e viável do próprio PT à Presidência da República naquele ano (apesar de fatos como a surpreendente eleição de Jacques Wagner para o governo da Bahia, a lembrar a fluidez do processo e as novidades que podem surgir) se juntaria com as tensões dentro do PSDB para favorecer um eventual rearranjo partidário, no qual se teria a aproximação entre Lula e José Serra ou talvez especialmente Aécio Neves (dado o apoio singularmente forte deste último em Minas Gerais e a maior disposição ao diálogo que tem exibido). Haveria o que dizer, de um ponto de vista normativo orientado pela avaliação realista das condições sociopolíticas do país, em favor de um desenvolvimento desse tipo: se o lulismo como tal é insatisfatório, cabe talvez tratar de reeditar seu acoplamento, como fator de penetração eleitoral e estabilização do apoio dos eleitores, com o esforço de construção institucional na faixa partidária agora redefinido de maneira a não mais se restringir ao PT, mas buscar a implantação de um partido capaz de pretender a união de forças positivas atualmente dispersas e de reafirmar, em especial, a idéia da articulação PT-PSDB que a dinâmica político-eleitoral recente tornou inviável. Mas a aposta de que as coisas venham de fato a evoluir nessa direção é sem dúvida precária, diante das manobras estratégicas exigidas e das muitas dificuldades que as cercam. As composições que se observam ao começar o segundo mandato de Lula apontam antes para o papel destacado do PMDB como membro da coalizão de governo. Se tal coalizão de fato vier a funcionar, surge a possibilidade de que brote dela a aliança ou o rearranjo partidário com melhores chances de vitória em 2010, e é duvidoso que caiba enxergar com otimismo as perspectivas de inserção institucionalmente 20
profícua do lulismo nessa eventualidade. De todo modo, sem embargo do avanço que, bem ou mal, a agem institucionalmente “normal” de um partido com as características do PT pelo governo traz consigo, as circunstâncias parecem indicar que o que temos pela frente – como consequência sobretudo do inequívoco retrocesso institucional que a crise do PT representa, dadas as expectativas por ele criadas e seu efeito na cena política brasileira – é um período de incerteza e de novidades e reacomodações na faixa político-partidária. 4. Reformas políticas Algumas palavras finais sobre o tema das reformas políticas no país, que tem sido objeto de vivo debate e é de óbvia relevância potencial quanto às perspectivas da democracia. Sem entrar, naturalmente, na multiplicidade de problemas que surgem aqui e em seus muitos meandros, certos aspectos podem ser destacados de um ponto de vista mais abrangente. Em primeiro lugar, temos o contraste entre dois tipos de orientações básicas, em que os adeptos da “engenharia política”, confiantes nas possibilidades transformadoras da ação legal deliberada, são contraditados por analistas de perspectiva “burkeana”, contrários ao “artificialismo” dos meios legais. Cabe ponderar, a respeito, que a disposição adequada trataria de evitar os excessos de parte a parte, reconhecendo tanto a necessidade de “decantação” social dos esforços de construção institucional (para usar a expressão a que Tancredo Neves costumava recorrer a propósito de nossa transição democrática) quanto o perigo de que o temor burkeano ao artificialismo das intervenções voluntárias acabe resultando em distorções no diagnóstico dos nossos males e na verdade em certo otimismo míope (como o que tem levado defensores destacados da posição burkeana a avaliações róseas de nossa história política mais ou menos recente, nas quais desaparecem até os custos sombrios da longa ditadura de 1964). Seria preciso reconhecer a dialética a desenvolver-se entre duas faces da aparelhagem político-institucional: o que tenho chamado o “institucional como contexto”, em que os produtos da ação política vêm a amadurecer com o transcurso do tempo, impregnando o contexto social geral e condicionando, em conseqüência, as percepções e disposições dos agentes em seu dia-a-dia; e o “institucional como objeto”, em que se trata do fato de que vivemos fatalmente na conjuntura (no presente) e de que é nas ações e nas apostas do dia-a-dia que construímos, quer queiramos, quer não, os produtos que acabam por adquirir aquela impregnação contextual e por transformar-se em instituições autênticas. O reconhecimento da existência de automatismos e espontaneísmos, portanto, não pode pretender dispensar-nos do empenho de reflexividade e de ação lúcida – de ação que será 21
tanto mais lúcida quanto mais tenha em conta justamente as complexidades e constrições do contexto. Outro aspecto se refere às relações entre os dois componentes associados acima com o esforço de construção institucional entendido em termos apropriados, isto é, o componente democrático e o de eficiência. Nossas experiências recentes de construção e reforma de instituições políticas exibem rápida e significativa agem da ênfase em um desses componentes à ênfase no outro: da preocupação democratizante que marcou a Assembléia Constituinte cujos trabalhos se encerraram em 1988, na qual se tratava de restaurar a democracia e talvez inaugurar uma tradição de constitucionalismo após anos de ditadura, nos deslocamos rapidamente, já na revisão constitucional de 1993-1994 e nas discussões subseqüentes das reformas que seguem na agenda durante o período de Fernando Henrique Cardoso e ainda agora, à preocupação talvez excessiva e unilateral com a eficiência, cujo empenho central, como antes se apontou, seria o de colocar o país em dia com as novas realidades econômicas da cena mundial. Ora, na óptica democracia versus eficiência, o ponto crucial de uma adequada avaliação da questão geral das reformas políticas consiste justamente em evitar o caráter parcial ou unilateral da tomada de posição quanto à tensão básica entre os valores envolvidos. Como se sugeriu acima, a eficiência supõe fins dados ou não-problemáticos, levando à indagação sobre como dispor de maneira apropriada os meios para alcançá-los, enquanto a democracia se distingue precisamente por problematizar os fins: quais os fins a serem buscados, quem os define, como compatibilizar ou hierarquizar fins diversos e eventualmente antagônicos propostos por diferentes atores? É talvez natural que os titulares de posições governamentais, ou o governismo em geral, se vejam levados a certo jacobinismo, supondo saber quais são os “verdadeiros” objetivos nacionais, em torno dos quais todos os cidadãos de boa-vontade deveriam naturalmente convergir, e reduzindo o problema políticoistrativo à eficiência ou à boa “governança”. Mas a tensão eficiência-democracia permeia, na verdade, diferentes aspectos das indagações relacionadas com as reformas políticas. Ela se faz presente na questão geral de como obter a institucionalização política efetiva, a qual supõe o equilíbrio entre a sensibilidade democrática do estado aos interesses diversos e a necessidade de autonomia estatal perante eles em nome da eficiência e da capacidade de perseguir objetivos públicos ou da coletividade como tal. Mas ela está envolvida também em questões mais específicas, como a opção entre presidencialismo e parlamentarismo, ou entre representação proporcional e majoritária, ou mesmo a reforma partidária. Com respeito a esta última, a adesão que prevalece no país a certo ideal equívoco 22
de “política ideológica” é um obstáculo a que se considerem adequadamente as relações entre valores como, por um lado, o apego a princípios ideológicos, a autenticidade da representação e a apropriada vocalização dos interesses das “bases” partidárias e, por outro lado, o necessário pragmatismo ou realismo e o empenho de agregar e conciliar interesses como função inescapável dos partidos – ou seja, o problema geral com que se viu a braços de imediato, ao chegar ao poder, o próprio PT.18 De qualquer forma, o mesmo unilateralismo encontrado em meios governistas em favor da eficiência pode também ser apontado, em muitos casos, entre aqueles cuja ênfase se dirige antes aos valores democráticos. E, tudo somado, as conseqüências podem revelar-se negativas até do ponto de vista da democracia. Pois o objetivo de assegurar a democracia enfrenta ele próprio, naturalmente, um desafio de eficiência. Um último aspecto a ressaltar diz respeito à saliência que a crise do PT trouxe ao tema da corrupção na discussão da reforma política. Também na óptica da corrupção se vê a importância da busca de equilíbrio entre a engenharia política, ou o “artificialismo” da ação legal dirigida a questões específicas de que a discussão da reforma se tem ocupado, e a atenção para a viscosidade de um contexto ou mesmo uma cultura resistente. Não vejo razão para que não se adote uma disposição experimental a respeito de muitos dos itens que têm sido objeto de propostas legislativas: fidelidade partidária, cláusulas de barreira, regras sobre coligações, adequada combinação de princípios majoritários e proporcionais, listas partidárias fechadas ou “flexíveis”. No conjunto de temas, merece destaque especial, do ponto de vista da corrupção, a necessidade de experimentação com formas de financiamento público da atividade política. Além do aspecto normativo de que, diferentemente do direito de voto, o direito de ser votado está longe de ser assegurado igualitariamente dada a enorme desigualdade no controle de recursos privados, é bem claro que os recursos para o financiamento da atividade político-partidária, em geral, e das campanhas eleitorais, em particular, são o ponto crucial do jogo de compra e venda e da articulação escusa entre o público e o privado. Mas a superação da corrupção requer, sem dúvida, mudanças no próprio substrato cultural da política brasileira. Na crise recente, o caráter de nova manifestação de uma As complicações existentes nas relações entre a preocupação com a representatividade democrática e com a eficiência do ponto de vista dos diferentes temas citados e de alguns outros (institucionalização política geral, presidencialismo ou parlamentarismo, representação majoritária ou proporcional, partidos políticos e ideologia ou pragmatismo, federalismo, corporativismo etc.) são examinadas mais detidamente em Reis, 2003. Esta última seção se vale de agens desse artigo, bem como de Reis, 2006. 18
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autêntica cultura politicamente negativa se evidenciou na ligeireza com que todos, incluídas lideranças importantes de diferentes partidos, aderiram de público, de uma forma ou de outra, à visão segundo a qual o crime eleitoral (o chamado “caixa 2”, em que recursos obtidos irregularmente são utilizados nas campanhas) na verdade não importa, procurando-se estabelecer gradações que redundam em itir com naturalidade práticas contrárias à lei, e portanto criminosas. Se isso é afim à difusa desatenção para com as normas que marca o cotidiano da vida brasileira,19 é também relevante, sem dúvida, quanto à instabilidade no plano das próprias instituições políticas, ou quanto ao fato de se terem mostrado por tanto tempo precárias entre nós as normas que deveriam enquadrar institucionalmente os decisivos conflitos de interesses envolvidos no desafio de incorporação social – vale dizer, a solução efetiva e estável do nosso problema “constitucional”. A crise de 2005 traz estímulos talvez inéditos a que se aja no sentido de mudar essa cultura. Se não se abre mão de postulados realistas, contudo, não cabe esperar que a eficiência da ação orientada por esse objetivo seja o resultado de esforços edificantes e da aposta numa espécie de “conversão” dos agentes da política, aposta que tem estado subjacente à difundida adesão ao modelo idealizado de “política ideológica” que se mencionou acima e à perene exortação a que nossa vida política adquira conteúdo ideológico. Diferentemente, a eficiência virá de que as alterações nos mecanismos institucional-legais sejam feitas de modo a mudar a percepção pelos agentes dos incentivos – e desestímulos – oferecidos aos seus interesses pelo contexto em que atuam. Se as percepções e expectativas – isto é, os componentes cognitivos ou intelectuais das atitudes, ou das disposições a agir desta ou daquela forma – se modificam, então se poderá esperar que se cumpra o preceito sociológico segundo o qual expectativas que se reiteram tendem a transformar-se em prescrições, com a eventual mudança real dos próprios componentes normativos e, assim, da cultura que os contém.20 É difícil avaliar com segurança até que ponto o Brasil será peculiar a este respeito. Lembrem-se, porém, as constatações reiteradas de pesquisas como as do World Values Surveys, executadas em escala mundial e incluindo dezenas de países de graus diversos de desenvolvimento econômico e tradições culturais e religiosas diferenciadas, nas quais o Brasil tem aparececido como nada menos que o de pior posição entre todos quanto à proporção da população que revela acreditar que se pode, em geral, confiar nas pessoas: não ultraam 3 por cento os brasileiros que respondem afirmativamente. Veja-se, por exemplo, Inglehart & Baker, 2000. 20 Veja-se Reis e Castro (2001) para a discussão de dados que mostram a importância dramática que podem assumir as relações entre normas e expectativas no condicionamento do comportamento referido à política. Eles indicam com grande clareza, por exemplo, que, no caso de expectativas desfavoráveis resultantes da percepção do provável comportamento dos demais (justamente o que se destaca nas mencionadas verificações negativas do World Values Surveys sobre o Brasil), mesmo as normas a que efetivamente se adere se tornam irrelevantes 19
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Mas não é o caso de ignorar ou minimizar, nessa perspectiva, o papel potencial da liderança e do necessário equilíbrio no recurso ao realismo por parte dos líderes. Seria de grande ajuda, presumivelmente, poder contar com o efeito sobre as expectativas, em algum momento, do caráter exemplar da conduta de líderes dotados de real grandeza moral, em contraste com certos abusos que se valem das confusões envolvidas na distinção de Max Weber entre a “ética das convicções” e a “ética da responsabilidade”.21 À parte a idéia de que a liderança inspire por si mesma o comportamento “virtuoso”, é preciso atentar para a possibilidade de que a liderança exemplar produza, mais realisticamente, mudanças no plano das percepções, ensejando a convergência de expectativas institucionalmente propícias. No caso brasileiro, poderíamos ter aí, quem sabe, algo favorável à superação da condição em que, diante da frustração causada mesmo por líderes de porte supostamente especial que acabam por apequenar-se nas apostas de um realismo míope, cada qual se percebe como “bancando o otário” se não jogar, como “todo mundo”, o jogo das espertezas.
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