Lingüística Histórica/Antropologia Lingüística: possibilidades interdisciplinares Genésio Seixas Souza (UNEB) (UFBA-DO) A Antropologia Lingüística, assim como outras Ciências, dedica-se ao estudo do papel das línguas e da faculdade lingüística dos indivíduos. Faculdade esta que é medida culturalmente. Este trabalho tentará discorrer sobre estes estudos “antropológicos – lingüísticos”, representando uma síntese de nossas leituras de alguns autores sobre o tema, Antropologia Lingüística. Aponto no sentido de tentar clarear a própria terminologia “Antropologia Lingüística ou Lingüística Antropológica?”, verificando a conceituação desta “vertente” da Lingüística e depois seguiremos para verificar seus fundamentos, correntes surgidas, autores constituintes dela, como se desempenha na atualidade e, por fim, estabelecer uma interface com a disciplina Lingüística Histórica, no que tange ao objeto da minha linha de pesquisa: o códice quinhentista Notícia do Brasil de Gabriel Soares de Sousa1. As discussões em torno do binômio língua/linguagem remontam a tempos antigos e variações quanto aos enfoques de conceituação dos termos como já vimos nos estudos da Antigüidade até os dias atuais. No entanto, a Lingüística surge como estatuto de estudo científico a partir do Curso de Saussure, o que, em geral, nos remete a fazer referência a ela com um “antes” e um “depois” de Saussure. As vertentes surgidas após este autor correspondem ao desenvolvimento das reflexões desde a Filologia até a Análise do Discurso em que os estudiosos se debruçam para mergulhar nesta misteriosa relação homem/linguagem. Duranti (Duranti:2001) nos lembra que o uso da língua é mediado culturalmente. Conforme o autor: Se quisermos compreender o papel da língua na vida das pessoas, precisamos ir além do estudo de sua gramática e entrar no mundo da ação social, onde as palavras são encaixadas e constitutivas de atividades culturais específicas, tais como, contar história, pedir um favor, mostrar respeito, insultar[...]2.
A Antropologia Lingüística, doravante AL, dedica-se ao estudo do papel das línguas e à faculdade lingüística desta atividade social. Para tanto, é preciso compreender os sistemas lingüísticos e documentar o seu uso em atividades que sempre procuram o tecido cultural dentro dos quais são produzidos enunciados e sentidos. O termo Antropologia Lingüística data mais ou menos de 1870, contudo somente em 1964, quando Dell Hymes editou uma primeira coletânea e inclui artigos cujos autores não se denominavam antropólogos lingüistas como Mauss, Meillet, LéviStrauss, Bloomfield, entre outros, é que o termo ganha força. O que pretendia Hymes era muto mais que um interdisciplinaridade, mas denotar:
1
Cf. Gabriel Soares de SOUSA em Notícia do Brasil, Lisboa: Ed. Alfa-Biblioteca da Expansão Portuguesa, 1989. 2 Cf. Alessandro DURANTI, ed. 2001. Linguistic Antrhropology: a Reader. Oxford: Blackwell, textos disponibilizados para estudo na disciplina.
1) A importância de língua/linguagem para uma compreensão de cultura e sociedade; 2) A relevância de fenômenos culturais e sociais para a compreensão de língua/linguagem (Duranti:2001) Nos anos 60 e 70, AL e “Sociolingüística” eram consideradas campos, mas desde então têm-se afastado uma da outra apesar do compartilhamento de tópicos que se relacionam e se separam por razões, inclusive de identidade profissionais (Roman Jakbson é lingüista e Erving Goffman é sociológo), interesses teóricos e históricos constituindo-se em dois campos relacionados, porém separados na pesquisa. Para a AL, o entendimento da mensagem lingüística vem com o entendimento do contexto em que a mesma está sendo produzida e interpretada. O estudo da linguagem contextualizada abre margem para a análise além da estrutura lingüística. O termo AL coexiste com outros, entendido, para alguns, inclusive como sinônimos: Lingüística Antropológica, Sociolingüística e Etnolingüística. Todas abarcam dois grandes campos como a Lingüística e a Sociologia em que as fronteiras e interações contribuem para melhor definir o que seja Antropologia Lingüística. Para Duranti (Duranti:2001), a diferença entre os termos tem a ver com histórias, identidades e interesses teóricos diferentes. Segundo Foley (apud Duranti:2001), Lingüística Antropológica é aquele subcampo da Lingüística que se preocupa com o lugar a linguagem em seu contexto social e cultural mais amplo, seu papel em avançar e sustentar as práticas culturais e as estruturas sociais. Nos séculos XIX e XX, houve grande ênfase na documentação das línguas aborígenes nos Estados Unidos e Canadá, o que desencadeou pesquisas acadêmicas em torno da documentação das línguas, levantando um projeto para transformar a Antropologia em profissão e área de conhecimento. Assim é que Sapir influencia muitos de seus alunos a serem lingüistas e não antropólogos, pois era uma área em crescente autonomia. Os chamados lingüistas antropólogos tinham como principais preocupações: a) A documentação das estruturas gramaticais das línguas indígenas americanas e outras línguas ágrafas; b) A linguagem como meio pelo qual os mitos e narrativas históricas podem tomar forma; c) O uso da língua como uma janela para a cultura. Foi observando estas metas que se partia para estudar as nomenclaturas e taxonomias (de animais, plantas, tipos de doença, termos de parentesco), relações entre as línguas, o impacto da cultura sobre a língua. Tudo era estudado dentro do departamento de Antropologia em aulas ministradas por professores de Lingüística que treinavam alunos de outros sub-campos para usar dados lingüísticos em suas pesquisas. Daí se usar a expressão Lingüística Técnica. Somente a partir de 1960 é que esta visão muda, pois a Antropologia deixa de prestar um serviço para ser mais autônoma. Os estudos de John Gumperz e Charles Ferguson instigaram uma nova identidade profissional através de dois projetos: a) a investigação da variação dialetal e contato lingüístico no Sul da Ásia e b) a “etnografia da fala” por Hymes, depois renomeada para “etnografia da comunicação”. É em 1964 que este
mesmo autor propõe usar o nome Antropologia Lingüística, tendo forte presença nos Estados Unidos em oposição aos países europeus. A Antropologia Lingüística é um campo interdisciplinar que se baseia em várias outras disciplinas independentemente estabelecidas, mas especialmente nas disciplinas das quais tira seu nome: a Antropologia e a Lingüística. Nas últimas décadas, este campo de estudo tem desenvolvido uma identidade intelectual própria. O principal objetivo da Antropologia Lingüística é descrever essa identidade e explicar como ela pode aumentar nossa compreensão de linguagem, não somente como uma forma de pensar, mas sobretudo, como uma prática cultural, isto é, como uma forma de ação que ao mesmo tempo pressupõe e realiza modos de estar-no-mundo3.
A distinção entre os antropólogos lingüistas e os outros estudos da linguagem está no foco da linguagem como um conjunto de recursos simbólicos que entra na constituição do sistema social e a representação individual de mundos reais ou possíveis. Isto permite que se abordem questões e tópicos da pesquisa antropológica: política da representação, constituição de autoridade, legitimação do poder, conflito cultural, processo de socialização, construção cultural da pessoa, política da emoção e a relação entre o desempenho ritual e formas de controle social entre conhecimentos específicos e cognição, entre a performance artística e a política do consumo estético e entre o contato cultural e a mudança social. Duranti (Duranti:1997) segue mostrando como e onde se dá o estudo de práticas lingüísticas e importantes conceitos para mostrar as intenções da AL. Ela parte da pressuposição teórica de que palavras são importantes e de que signos lingüísticos nunca são neutros: são usados para a construção de afinidades e diferenciações culturais realizadas nas comparações. O trabalho dos antropólogos lingüistas é verificar que as diferenças não estão apenas nos códigos simbólicos que as representam. Não são diferenças de substituição de um som por outro como em /pata/ vs. /bata/, ou de uma palavra por outra como em “Um grande amigo seu” vs. “Um grande cão seu”. Essas diferenças ocorrem nos atos concretos de fala, na mistura de palavras com ações e na substituição de palavras pela ação. Talvez uma herança dos estruturalistas. O trabalho dos antropólogos lingüistas está, também, na maneira em que as palavras são enunciadas numa dada ocasião e o que representam para enunciadores e pesquisadores. Em muitas sociedades, saudações questionam sobre a saúde de pessoas (em português: “como vai?”) em outras, saudações incluem questões sobre o paradeiro dos participantes (“onde vai?” da pan-polinésia) Há muito que considerar ao estudar tal fenômeno. Estas perguntas são fórmulas? Se elas são, por que é importante a maneira em que se responde? O conteúdo de tais trocas rotineiras revela algo sobre os usuários, seus ancestrais, a humanidade em geral? Por que as pessoas se saúdam? Como é que sabem quando saudar e a quem saudar? As semelhanças e as diferenças de saudações através das variedades lingüísticas, as comunidades de fala e tipos de encontros dentro da mesma comunidade revelam algo interessante sobre os falantes ou aos falantes4.
As idéias de Humbolt entraram nos Estados Unidos através do alemão Franz Boas que postulava: 3
Cf. Alessandro DURANTI em Lingüístic Antropology, cap. I [tradução parcial]. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. 4 Cf. id., ibid.
8A teoria dos universais lingüísticos (acreditava que existiam características comuns em todas as línguas). 8Discordava com o que dizia o determinismo lingüístico. Para Boas, as habilidades individuais não eram influenciadas pela cultura e aparentes diferenças lingüísticas não implicavam em diferenças cognitivas, mas em características próprias de cada cultura. Cita, para isso, a língua dos papua na Nova Guiné, que não contém símbolos lingüísticos para números maiores que 4, o que não revela, porém, uma inabilidade cognitiva de seus falantes, mas apenas uma característica própria da cultura em não necessitar do conceito. 8A linguagem categoriza o pensamento já existente, mas não o determina. 8Grande parte da construção da linguagem ocorre de maneira inconsciente. 8O falante não tem consciência da estrutura da língua que fala. Franz Boas classifica línguas americanas indígenas nas pesquisas efetivadas sobre análise lingüística, trabalho realizado sozinho visto não ser lingüista, estabelecendo um padrão de descrição gramatical para aplicar às classificações. A partir de seus estudos, Boas argumenta então que não há uma correlação necessária entre uma dada língua e uma dada raça ou entre uma dada língua e uma dada cultura (relatividade lingüística). Também foi contrário à classificação genética das línguas, sobre o que declara: “... a teoria de um ‘Ursprache’ para todos os grupos de línguas modernas precisa ser suspenso até podermos provar que essas línguas descendem de uma única fonte e que elas não têm sua origem, em grande medida, no processo de aculturação”.
Boas identificava nas línguas indígenas americanas empréstimos lingüísticos muito fortes, pois era freqüente a presença de mulheres de outras tribos. Marcou traços lingüísticos gerais tais como: categorias gramaticais que são prováveis em qualquer língua e traços fonéticos de nasalização e glotalização, o que dá às línguas indígenas americanas, geneticamente separadas, um aspecto estrutural semelhante. Identificou ainda a sentença (em oposição à palavra) como unidade fundamental para a expressão de idéias em qualquer língua. O autor enfatizou que diferentes línguas classificam o mundo de maneira diferente, refutando assim a idéia de ralativismo nas línguas. Os estudos de Franz Boas são seguidos por Edward Sapir que concebia a linguagem como o sistema cultural mais sofisticado disponível às sociedades humanas e a seus membros, não sendo possível uma Antropologia sem o estudo da linguagem. Grandes contribuições foram dadas à Lingüística pelos estudos centrados no conteúdo das línguas indígenas. O mais brilhante aluno de Boas e um dos mais ilustres lingüístas americanos do século XX foi Edward Sapir. Dando continuidade aos estudos do seu mentor adicionou a estes uma visão estruturalista da linguagem: que esta é um sistema coerente de subsistemas interligados, sendo impossível “medir” linguagem. Outro nome importante é o de Benjamim Lee Whorf que, engenheiro químico de formação, desenvolvia estudos lingüísticos por interesse pessoal. Foi seguidor de Boas e Sapir e dizia que a visão de mundo era contextualizada através da linguagem (relativismo lingüístico).
A hipótese Sapir-Whorf é uma oposição à tradição romântica de que cada povo se expressa através de uma língua. Afirma esta hipótese que é a língua de uma determinada comunidade que organiza a cultura: 1 – Somente poderemos ver, ouvir e experimentar a realidade que nos cerca através das línguas com suas categorias e distinções próprias. 2 – Estas categorias e distinções são únicas em cada língua e são incomparáveis a outros sistemas lingüísticos. Não há limites para a diversidade estrutural das linguagens. Em outras palavras, os conceitos e pensamentos de uma comunidade se estabelecem de acordo com as características de sua língua, e por isso, comunidades lingüísticas diferentes percebem o mundo de maneira própria. A diferença de língua tem, portanto, uma estruturação intelectual e afetiva diferente. Whorf vai ao extremo em sua teoria e diz que um povo cuja língua ignora a categoria do tempo gramatical vive num eterno presente. Para Sapir, isto é um princípio geral: a expressão direta da cultura não está nas categorias gramaticais. Para ele, mesmo que um povo só tenha nomes de três cores, ainda assim terá a noção de matizes dessas três cores. A hipótese Sapir-Whorf é posteriormente contestada quando estudos mostraram conceitos diferenciados entre culturas e a superioridade de pensamentos mais profundos comuns entre membros de comunidades lingüísticas diferentes. Pessoas bilíngües também não apresentam visão de mundo diferentes quando usam quaisquer das línguas que falam. O termo Etnolingüística é utilizado como sinônimo de Antropologia Lingüística, sendo mais utilizado em países europeus. As principais preocupações da Etnografia da Comunicação têm sido padrões e funções da comunicação, natureza e definição da comunidade de fala, os meios de comunicação, os componentes da competência comunicativa, a relação da linguagem com a visão do mundo e a organização social, os universais lingüísticos e sociais e as desigualdades lingüísticas. Apreciaremos alguns destes pontos não querendo desconsiderar os demais. A língua serve para muitas funções. A principal, talvez, seja que uma língua cria/reforça fronteiras, unificando e excluindo falantes. Muitas línguas têm como função a identificação social que pode ser usada para reforçar a estratificação social. Algumas são diretamente relacionadas aos propósitos e às necessidades dos participantes. Incluem categorias de funções como: expressiva (transmitindo sentimentos ou emoções), diretiva (pedindo ou demandando), referencial (conteúdo proposicional de verdade ou falsidade), poética (estética), fática (empatia e solidariedade) e metalingüística (referência à própria língua). Uma comunidade de fala não pode ser definida como um grupo de pessoas que fala a mesma língua porque falantes de espanhol no Texas e Argentina são membros de comunidades de fala diferentes embora compartilhem um código lingüístico e maridos e mulheres dentro de algumas comunidades do Pacífico Sul usam línguas bastante distintas ao falarem umas com outras. Falantes de dialetos chineses, mutuamente inteligíveis, se identificam como membros da mesma comunidade lingüística (de fato compartilham um código escrito, bem como muitas regras para o uso apropriado), enquanto falantes de espanhol, italiano e português não são membros da mesma comunidade de fala embora suas línguas sejam, até certo grau, mutuamente
inteligíveis. Quão diferentes precisam ser as regras de fala para serem consideradas significativamente diferentes? Respostas a esta pergunta são baseadas na história, na política e na identificação grupal, mais do que em fatores puramente lingüísticos. O termo comunidade inclui a dimensão de conhecimento, posses ou comportamentos compartilhados, cuja derivação do latim communitae traduz-se por “tido em comum”. A questão é: que enfoque deveria ser considerado para as comunidades de fala? Lingüístico compartilhado, fronteiras geográficas e políticas comuns, traços culturais e, talvez, até características físicas (por exemplo uma particular cor de pele pode ser considerada um requisito para associação em algumas comunidades, um defeito auditivo em outras?). Para Saville-Troike (Saville-Troike:1982)5, os etnógrafos da comunicação deviam começar com uma entidade social definida extralinguisticamente e investigar seu repertório lingüístico em termos da comunidade definida socialmente: a natureza e a distribuição dos recursos lingüísticos, como são organizados e estruturados, como se relacionam à organização social, como funcionam como um componente padronizado e integrado da comunidade como um todo. Parte da dificuldade em se definir a comunidade de fala tem que ser atribuída ao escopo diferencial que “comunidade” tem, segundo diferentes critérios: 1. É qualquer grupo dentro duma sociedade que tem qualquer coisa significante em comum (incluindo religião, raça, idade, surdez, orientação sexual ou ocupação, mas não cor de olhos ou altura). 2. É uma unidade de pessoas, limitada geograficamente, tendo uma gama completa de oportunidades de papéis (uma tribo ou nação organizada politicamente, mas não uma unidade de um único sexo, idade ou classe como um mosteiro, asilo para idosos ou gueto). 3. É uma coleção de entidades semelhantes situadas que têm algo em comum (tais como o mundo ocidental, países em desenvolvimento, mercado comum europeu ou as Nações Unidas). Tendo uma cultura compartilhada, tendo um nome nativo com que os membros se identificam, tendo uma rede social para contato e tendo um folclore e uma história comum, a definição de comunidade de fala é bastante dependente do fato de ter um modo de comunicação comum. A competência comunicativa se refere ao conhecimento e habilidades para o uso e interpretação apropriados da linguagem numa comunidade e refere-se também ao conhecimento e habilidades comunicativas compartilhadas pelo grupo, embora estes (como todos os aspectos da cultura) residam variavelmente no seus membros individuais. Hymes (apud Saville-Troike,1982)6, observou que falantes que podiam produzir toda e qualquer sentença gramatical de uma língua (de acordo com a definição chomskiana de 1965 da competência lingüística) seriam institucionalizados se tentassem fazê-lo. A competência comunicativa envolve saber não só o código lingüístico, mas também o que dizer, a quem, e como dizê-lo apropriadamente em 5 6
Cf. Muriel Saville-Troike em The Etnography of Communication, Oxford, Blackwell, 1982. Cf. id., ibid.
qualquer dada situação. Trata-se do conhecimento social e cultural que se presume que os falantes possuam para que possam usar e interpretar as formas lingüísticas. De uma criança que usa uma expressão tabu em público e causa um constrangimento é dito que “não sabia melhor”, isto é, de não ter adquirido certas regras para a conduta social no uso da linguagem (o constrangimento em que se pressupõe a existência desta competência). O conceito da competência comunicativa (e seu congênere maior, competência social) é um dos mais poderosos mecanismos de organização nas ciências sociais. Dentre um dos procedimentos preconizados para se descobrir categorias de fala, em várias ocasiões quando a interação verbal é observada, o etnógrafo pode perguntar a um informante o equivalente de ‘ O que está fazendo?’. Frake (apud Saville-Troike: 1982), fornece um excelente exemplo no seu estudo dos Yakan das Filipinas. As categorias de falas nativas eliciadas nesta forma inclui mitin = ‘discussão’, qisun = ‘conferência’, mawpakkat = ‘negociação’ e hukum = ‘litigação’. A esta altura convém fazer uma distinção, como também, delimitar o objeto da Sociolingüística e da Etnolingüística, visto que, tarefas e métodos dependem de um distinção entre ambas. A partir de definições de Eugênio Coseriu, o quadro abaixo representará uma tentativa de esclarecer o tema: SOCIOLINGÜÍSTICA
ETNOLINGÜÍSTICA
8Como disciplina lingüística e não sociológica
8Como disciplina lingüística não etnológica lida com a variedade e variação da linguagem lida com a variedade e variação da linguagem em em relação coma estrutura social das comunidades; relação com a civilização e a cultura; 8Como na Lingüística, a Sociolingüística também 8Também possui os três planos: a) o da fala: relação possui três planos: a) o da fala: o caráter social da entre linguagem e cultura (linguagem como atualilinguagem e seu sentido; b) o das línguas: descrição dade da cultura); o das línguas: é o estudo da cividas normas do falar em relação com a estrutura sólização e da cultura refletidas na língua também diacio-cultural das comunidades; c) o do discurso - do cronicamente; c) do discurso - do texto: assemelhatexto: (estudos dos tipos de discurso e das diferenças se à Sociolingüística, apenas com pontos de vista estruturais entre os mesmos nas camadas sócio-cultu- diferentes. rais e o estudo das diferenças diastrásticas – nos dialetos – em qualquer tipo de discurso.
A AL mantém relações estreitas com outras áreas da ciência. Pelo menos três áreas teóricas têm se desenvolvido a partir dela: Análise do Discurso, Etnolingüística e Sociolingüística. Cada uma dedica-se à compreensão de uma das seguintes noções analíticas: a) perfomance, b) indexicalidade e c) participação. As três noções são interligadas. Como sistema simbólico mais complexo, a linguagem tem poder de seduzir, convencer, obscurecer, destacar e reenquadrar a realidade social. A AL contemporânea usa uma variedade de recursos analíticos e conceitos para examinar o poder da linguagem numa ampla gama de situações sociais, categorias sociais que costumam ser analisadas como interdependentes. Enquanto prestam atenção ao contexto local e global da comunicação, é a construção, momento a momento, dos “textos” – definidos amplamente – que é enfatizada no esforço de descobrir os mecanismos e recursos que
fazem o significado da ação humana, inclusive palavras, possível, interpretável e conseqüente. (Duranti: 2001)7. Marcuschi (Marcuschi:2000) lembra que: [...]hoje há intensa investigação da língua em uso que se manifesta em situações cotidianas na oralidade e na escrita. Desde os anos 60, são inúmeros os estudos sobre estas não apenas no contexto da Lingüística e sim em contextos interdisciplinares tais como a Antropologia e Etnografia (surgindo daí a Etnografia Lingüística e também a Antropologia Lingüística). Além dessas também a Psicologia e a Sociologia dedicaram-se com ênfase ao estudo da fala dando origem ao que se chamou de Análise da Conversação que, inicialmente, não tinha preocupações marcadamente lingüísticas.[...]8
A relação dialógica (“eu” e “você”) tem sido tratada por várias disciplinas lingüísticas: Análise da Conversação, Análise do Discurso, Pragmática. É possível assim, identificar correntes ou abordagens da análise de diálogos espontâneos: perspectivas de base sociológica e etnometodológica como faz a AC, abordagens sociolingüísticas (etnografia da fala, com ênfase no contexto, sociolingüística interacional, baseada na contextualização do discurso), teorias dos atos de fala: a conversação como uma sequência de atos de fala, pragmática: máximas conversacionais, análise crítica do discurso. Em todas essas tendências manifesta-se, com maior ou menor relevância, o princípio do dialogismo. Isso, aliás, é óbvio, já que na interação face-a-face, o reconhecimento da presença do outro e do desdobramento do sujeito se tornam mais marcantes. O “outro’ é um ser concreto e, como tal, o discurso falado traz marcas específicas da sua presença. A partir das considerações supracitadas vê-se a procupação da AL em focar algumas das principais noções e procupações teóricas. Ressalata a importância de olhar a linguagem como um conjunto de práticas culturais e a necessidade de entender a AL como um empreendimento fundamentalmente interdisciplinar, valendo-se das múltiplas abordagens no âmbito das humanidades e das ciências sociais, revela seus próprios pontos de vista sobre a natureza da fala e seu papel na constituição da sociedade e da cultura. Irmanada, pela flagrante interação, a AL é a mais próxima da Sociolingüística, fato que constata a potencialidade da interação dos antropólogos lingüistas compartilharem um interesse nos falantes como membros de comunidades de fala e da distribuição social das formas lingüísticas, os repertórios e atividades de fala, ao tempo em que os sociolinguistas tendem a ver os gramáticos formais e lingüistas históricos como seus principais interlocutores. Antropólogos lingüistas preocupam-se com a manutenção de um diálogo com as ciências sociais em geral e os outros sub-campos da antropologia em particular. Esta ligação é vista como potencialmente útil e profícua entre várias tendências importantes de pesquisa dentro e fora da Antropologia Lingüística. Partindo dessas premissas é que, de um corpus préselecionado conforme abaixo indicado, teço algumas reflexões acerca dos aspectos culturais assentes em um códice quinhentista, objeto dos meus estudos na área da Lingüística Histórica. O desafio que se interpõe está assente no recorte selecionado como o
7
Cf. Alessandro DURANTI em Lingüístic Antropology, cap. I [tradução parcial]. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. 8 Cf. Luiz Antônio MARCUSCHI em textos disponibilizados para leitura e estudo na disciplina Lingüística de Texto ministrada no semestre 2003-I no PPGLL/UFPE.
corpus, haja vista ser este, a cópia impressa do manuscrito quinhentista Notícia do Brasil de Gabriel Soares de Sousa9, em que se possa verificar o sentido desse documento:. As primeiras informações concernentes ao roteiro de Gabriel Soares de Sousa foram encontradas em A. Fontoura da Costa(10), onde se vê: 104 M - Soares de Sousa (Gabriel) – Roteiro Geral com largas informções de toda a costa que pertence ao Estado do Brasil e a descripção de muitos lugares della especialmente da Bahia de todos os Santos. 1587. – Códice nº 119 da B.P.M.P. Geralmente não trazem nome de autor as muitas cópias deste Roteiro, cujo original se desconhece. 105 M - Códice nº I: 04 da B.P.M.P. 106 M - Códice nº 6I0 da B.P.M.P. 107 M - Códice CXV/ I – I0 da B.P.E. 108 M - Códice CXV/ I- II da B.P.E. 109 M - Códice CXV/ I-12 da B.P.E. 110 M - Códice da B.A. (5I – IX – I5) 111 M - Códice nº 6: 903 da B.N.L. 112 M - Códice do A. N. T. T. (Colecção do Brasil – Livraria, nº 50) Além destas cópias existem muitas outras, sendo duas na Biblioteca Nacional de Madrid (nº 2:936 e 3:007), uma na de Paris (Ancien Fonds Port. Nº 58), etc. Foi impresso duas vezes, sendo a primeira em 1825 (23 D) servindo um Códice ignorado que era uma má cópia; e a segunda em I85I (24 D), que reproduz outro Códice, também ignorado(11).
Na introdução de Pirajá da Silva à obra de Gabriel Soares, apresenta-se um esboço biobibliográfico onde se discutem aspectos relativos à autoria, por muitos anos ignorada, do Roteiro Geral do Brasil, informando O motivo de ter sido, apocrifamente, atribuída a Francisco da Cunha, a autoria da obra de Gabriel Soares de Sousa, foi o seguinte: dos três códices existentes na Biblioteca Portuense, o de n.° 119 tem por título – Roteiro geral com largas informações de toda a costa que pertence ao estado do Brasil e descrição de muito lugares dela, especialmente da Bahia de todos os Santos. Sobre o alto da primeira página tem escrito com letra diversa e mais moderna que a do códice: “O autor deste Roteiro é Gabriel Soares de Sousa”, porém este dístico está traçado e riscado por mão de bárbaro, que assim cuidava realçar o valor do manuscrito, tornando incerto o seu autor, ou talvez por algum, que se fiou nos boatos de ser Francisco da Cunha, e sem o examinar não o quis pseudônimo; porém é mais natural a primeira conjectura pois não foi o único manuscrito da Biblioteca Portuense que sofreu isto(12). 9. Cf. SOUSA, Gabriel Soares de. Notícia do Brasil. Lisboa: Ed. Alfa-Biblioteca da Expansão Portuguesa. 1989. 10. Cf. A. Fontoura da COSTA. Marinharia dos descobrimentos. 3 ed. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1960. p. 449. 11.Cf. Manuel Augusto PIRAJÁ DA SILVA. Introdução, notas e comentários à obra de Gabriel Soares de Sousa. Notícia do Brasil: São Paulo. Revista dos Tribunais, 1974. p. 252. 12. Cf. F. Adolpho de VARNHAGEN. Breves comentários à precedente obra de Gabriel Soares de Sousa. Roteiro Geral com largas informações de toda a costa do Brasil. In: id. Notícia do Brasil. São Paulo: MEC/Revista dos Tribunais, 1974. p. 253. Comentários e notas de Vernhagem, Pirajá da Silva e Edelweiss.
De acordo com Varnhagen(13), o manuscrito apresenta na lombada o título Roteiro das costas do Brasil de Gabriel Soares de Sousa – 20, escrito por D. José d’Avemaria, bibliotécário do Mosteiro de Santa Cruz, sendo constituído por duas partes, a primeira com
observando-se o sujeito e memória, analisado à luz dos possíveis pressupostos da AL. Sendo um documento tido como o mais completo texto quinhentista de que dispomos sobre 74 capítulos e a segunda com 196. O volume in folio, apresentando numeração antiga 1019/ 2, traz uma dedicatória a D. Cristovão de Moura, datada de 1º de Março de 1587, apresentando em letra diferente assinada: Francisco da Cunha. Foi este o códice examinado e confrontado pelo historiador brasileiro, Visconde de Porto Seguro, a quem se deve a honra de ter resgatado a verdadeira autoria da famosa obra, reparando uma injustiça que se perpetuou por quase duzentos anos, e que categoricamente se expressa em termos tão francos e decisivos: “Como produção literária, a obra de Soares é, seguramente, o escrito mais produto do próprio exame, observação e pensar, e, até diremos, mais enciclopédico da literatura portuguesa neste período”(14). Gabriel Soares nasceu na vila de Pedregão Grande, na província de Extremadura, em Portugal, distrito istrativo de Leiria, a 8 léguas, noroeste, da cidade de Tomar, tendo chegado ao Brasil com 20 a 30 anos de idade(15). Recebeu, por pessoa de confiança de seu irmão João Coelho de Sousa (bandeirante que desbravou os sertões baianos à procura de metais preciosos e diamantes), como legado pos mortem, o roteiro dos caminhos por ele trilhados nos três anos em que desbravou os sertões baianos. Quanto aos demais familiares, declara o testamento de Gabriel Soares: “Eu tenho duas irmãs viúvas; uma se chama D. Margarida de Sousa e a outra Maria Velha, ambas moradoras em Lisboa e não tenho herdeiros forçados”. Homem nobre e casado, Gabriel Soares de Sousa, chegou à Bahia integrando a companhia de Francisco Barreto, quando este ia à conquista de Monomotapa. Estabeleceuse como senhor de engenho em Jaguaripe e no Jequiriçá, vindo a ser reconhecido como famoso bandeirante baiano, a quem se deve a conquista do Rio de S. Francisco, em 1591. Foi nomeado Capitão Mor de duas naus para o descobrimento das Minas de Esmeraldas e na qualidade de vereador da Cidade de Salvador, assinou o auto de aclamação e juramento de fidelidade prestado pelo Senado da Câmara da Bahia a Felipe II de Espanha, em 25 de Maio de 1582, por indicação vinda da Corte. Faleceu em 1592.(16) A sua obra é resultado das observações colhidas durante os 17 anos de residência na Bahia e dedicadas à D. Cristovão de Moura em carta: “Obrigado de minha curiosidade fiz, por espaço de 17 anos que residi no Estado do Brasil, muitas lembranças por escrito, do que me pareceu digno de notar, as quais tirei a limpo desta corte em este caderno, enquanto a dilação de meus requerimentos me deu para isso lugar; ao que me dispus entendendo convir ao serviço de El-Rei Nosso Senhor, e compadecendo-me da pouca notícia que nestes reinos se tem das grandezas e estranhezas desta província, no que anteparei algumas vezes, movido do conhecimento de mim mesmo, e entendendo que as obras que se escrevem têm mais valor que o da reputação dos autores delas. Como minha tenção não foi escrever história que deleitasse com estilo e boa linguagem, não espero tirar louvor desta escritura e breve relação (em que se contém o que pude alcançar da cosmografia e descrição deste Estado), que a V. S. ofereço; e me fará mercê aceitá-la, como está merecendo a vontade com que a ofereço; ando pelos desconcertos dela, pois a confiança disso me fez suave o trabalho e tempo que em a escrever gastei; de cuja substância se podem fazer muitas lembranças a S. M., para que folgue de as ter deste seu Estado, a que V. S. faça dar a valia que lhe é devida; para que os moradores dele roguem a Nosso Senhor, guarde a mui ilustre pessoa de V. S. e lhe acrescente a vida por muitos anos. Em Madrid, o 1.° de Março de 1587. Gabriel Soares de Sousa(17).
a fauna e a flora da área do atual estado da Bahia, compõe-se de duas partes, com 74 e 196 capítulos, onde, nos primeiros, tem-se um <
> sobre a costa do Brasil, com largas e importantes referências à sua divisão istrativa e, os últimos, referem-se à caracterização da Bahia no que tange a fauna, flora, línguas e costumes dos índios que ocupavam esta capitania da Coroa do Reino de Portugal, onde, pelo rigor da descrição, vem a se constituir uma referência balizar dos traços característicos e pequenas alterações ocorridas na língua portuguesa registrados no século XV e decurso do século XVI. No que diz respeito ao léxico, percebe-se uma lenta renovação, eliminando-se umas formas em favor de outras. Na década de 1530 a 1540, aconteceram fatos que iriam impulsionar a revolução lingüística e literária, expandida rapidamente na segunda metade do século XVI. A relevância do texto se afirma através da datação de 1º de Março de 1587, quando foi apresentado por Gabriel Soares de Sousa, em Madrid, a Cristovão de Moura(18). Decorreram-se dois séculos sem que se imprimisse o manuscrito oferecido ao valido de Felipe II, acompanhada de uma carta enviada de Madrid em 1°. de março de 1587, transcrita e publicada por Varnhagen na 2ª. edição do Roteiro Geral do Brasil, afirmando que “sabeis como aquela obra corria espúria, pseudônima e corrompida no título e na data, quando as Reflexões críticas lhe restituíram genuinidade de doutrina e legitimidade de autor e de título, e lhe fixaram a verdadeira idade”(19). As informações dadas por Varnhagen, que leu cerca de vinte cópias, informa que o manuscrito original não foi encontrado pelo Visconde de Porto Seguro. Tem-se alguns dos principais manuscritos: um do príncipe Maximiliano de Neuwied que lhe foi presenteada na Bahia, três cópias da Biblioteca Portuense, três da Biblioteca Pública Ebborense, três da Biblioteca do extinto Convento das Necessidades, uma da Biblioteca Real de Madrid, duas cópias vistas pelo autor da Corografia Brasílica, o exemplar que serviu à edição da Academia, o manuscrito da Livraria do extinto Convento de Jesus, dentre outras de menor importância. A primeira edição do Roteiro é de Fr. José Mariano da Conceição Veloso, monge brasileiro e aparece titulada como Descrição Geográfica da América Portuguesa, constando de 202 páginas contendo 77 capítulos da primeira parte, ficando a edição incompleta, não havendo no Brasil , durante anos, nenhum exemplar da citada obra. A obra está dividida em duas partes, sendo a primeira “em que se dá verdadeira notícia do seu descobrimento, situação e demarcação e a segunda que trata da grandeza do território da Bahia de Todos os Santos, de sua fertilidade, árvores, plantas, animais, peixes, aves e muitas outras cousas notáveis deste Continente”.(20) Exemplar pertencente ao Instituto Geográfico e Histórico Brasileiro, falta o proêmio, que aparece na edição de Varnhagen em 1879, sendo este encontrado também na edição de 1851. Na Biblioteca da Ajuda, dentre os preciosos documentos referentes ao Brasil, encontra-se o Roteiro Geral com largas informações de toda a Costa que pertence ao Estado do Brasil e a descrição de muitos lugares dela, especialmente da Bahia de todos os Santos. (Por Gabriel Soares de Sousa (4 exemplares) Mss. 51 – IX –14, 15, 16 e 28).(21)
Segundo Paul Teyssier na História da Língua Portuguesa,(19) ao nível das unidades distintivas (os fonemas), a evolução do português seguiu um ritmo próprio que parece totalmente independente das divisões cronológicas da história política ou da história literária. Digno de particular realce é o fato de não ter sido a fonética portuguesa
influenciada pelos dois séculos e meio de bilingüísmo luso-espanhol. No momento em que a língua espanhola ava por uma verdadeira “revolução fonética” (séc. XVI e XVII), o português seguia a sua própria deriva que o conduziria numa direção completamente diferente. Mas o mesmo não aconteceu ao nível das unidades significativas, que constituem o domínio da morfologia, da sintaxe e do léxico. Aí, a história da língua vai refletir as grandes linhas de força que se constatam na leitura de um texto de fins do século XVI. Para chegar a esta fase, o português sofreu, do século XIV ao XVI, uma série de transformações que tiveram como efeito fixar a morfologia e a sintaxe de tal maneira que, daí por diante, pouco variarão. Formas eruditas e semi-eruditas, calcadas no latim, que penetraram na língua desde as suas origens, favoreceram um enriquecimento do vocabulário particularmente intenso no séc. XVI. Em consequência dos Descobrimentos, o português europeu recebeu da África e da Ásia, e depois do Brasil, um certo número de palavras exóticas, algumas das quais aram, por seu intermédio, a outras línguas européias. Dentre os textos quinhentistas não literários da chamada literatura de viagens, pelas suas características essenciais, são os roteiros de navegação notáveis pelo vocabulário, quer das conhecenças das terras, quer dos sinais de terra. Refletem sua linguagem de caráter preponderantemente fonético, tanto a prática e a experiência náutica dos seus autores, como o seu nível de cultura: possuiam uma instrução com base no chamado ensino elementar ou ensino popular ministrado por mestres improvisados (“mestres de ler” e “mestres de gramática”), saberiam eles as primeiras letras, isto é, ler, escrever e contar. Estes aspectos são reveladores da sociedade produtora destes discursos. Sendo manuscritos cuja autoria pera por múltiplos copistas, que reproduziam as cartas náuticas [com todas as falhas inerentes ao processo], constata-se a procedência da indagação proposta por Saville-Troike (Saville-Troike:1982), aplicada a um falante, e no registro em questão, fixada no texto manuscrito pelos pilotos-redatores, que na descoberta dos novos mundos, grafavam suas orientações náuticas: o que um falante precisa saber para se comunicar apropriadamente dentro de uma dada comunidade de fala (linguagem de marinharia), e como é que eles aprendem isto? O conhecimento e as habilidades necessárias para usá-lo advem da competência comunicativa. O conhecimento necessário inclui não somente regras para comunicação( ambas lingüísticas e sociolingüísticas) e regras de interação compartilhadas, mas também as regras e conhecimentos culturais que são a base para o contexto e conteúdo de eventos comunicativos (literatura de viagens: roteiros, diários de bordo, crônicas, etc). A comunidade de fala, a maneira em que a comunicação dentro dela é padronizada e organizada em sistemas de eventos comunicativos e as formas como estes interagem com todos os outros sistemas da cultura. O principal objetivo é guiar a coleta e análise dos dados descritivos [neste caso registrados nos códices estudados] sobre as maneiras em que os significados sociais são transmitidos, fazendo da etnografia da comunicação um tipo de inquérito que carrega com ele um conteúdo substancial. Assim os textos dos roteiros reproduzem uma linguagem cotidiana pouco tensa, revelando a relação grafemático-fonética de maneira clara e objetiva. Da primeira para a segunda metade do século XVI, a língua portuguesa prossegue na sua evolução, em mais larga escala e rapidez, que a por dois processos opostos: de um lado o afunilamento das formas vigentes e, de outro, o alargamento do vocabulário pela substituição daquelas formas, quer por termos extraídos diretamente do latim literário, quer pela entrada de inúmeros neologismos de outras procedências.
A morfologia e a sintaxe vão-se modificando gradativamente, e a língua, trabalhada pelos autores renascentistas, ingressa na fase “moderna”. De posse dessas informações interpõe-se como fato questionável e de enorme divergência a questão do que entra ou não na Lingüística de Texto, sobre o que nos informa Marcuschi (Marcuschi:2003):“pode-se dizer que o termo texto na expressão Lingüística de Texto referiu-se quase que exclusivamente ao texto escrito. (23) Observam Heinemann/Viehweger (1991:13), as coisas comuns a todas as descrições na LT porvêem mais do fato empírico de estarmos lidando com textos do que de uma perspectiva teórica. Como os autores constatam, quase a totalidade dos falantes de uma língua possuírem uma noção bastante útil de texto e terem consciência da distinção entre os diversos textos no cotidiano das suas atividades diárias, não se chega a um consenso para um análise das diferentes manifestações textuais existentes, na proposta em questão, um recorte de um códice quinhentista da literatura de viagens, segundo as informações supracitadas. O corpus demonstrativo selecionado do códice trata da descrição da costa, constante na derrota das naus portuguesas quando, vindas de Portugal para o Brasil, no ponto além de onde se situa geograficamente o rio das Amazonas, como seja: ...fica o Estado do Brasil da dita Coroa, o qual se começa além da ponta do rio das Amazonas da banda de oeste pela terra das Caraíbas, donde se principia o Norte desta província e indo correndo esta linha pelo sertão dela ao sul parte o Brasil e conquistas dele além da baía de São Matias por quarenta e cinco graus pouco mais ou menos, distantes da linha equinocial e altura do pólo antárctico e por esta conte tem de costa mil e cinquenta léguas, como pelas cartas se pode ver segundo a opinião de Pedro Nunes, que nesta arte atinou melhor que todos os do seu tempo (24).
O que se verifica na linguagem de marinharia presente no texto, com indicações de latitudes, longetudes e conhecenças ou sinais de terra, é “um enunciado transformado em enunciação por um sujeito, de modo a tornar-se um conjunto de marcadores que orientam o leitor. O texto é um signo, mas não tal como compreendia Saussure. Melhor seria compreender este signo tal como o compreende Weinrich(1976), que sugere uma lingüística menmotecnicamente designada como Lingüística C-I-T, ou seja, uma lingüística que contemple Comunicação, Instrução e Texto”(Marcuschi:2003).
Sendo um texto tido como orientador de procedimentos a serem tomados nas derrotas da navegação ultramarina portuguesa, verifica-se a procedência e relevância da noção de Instrução a qual Weinrich se refere da seguinte forma: “O conceito de instrução serve para dinamizar o modelo da comunicação. Todo signo (maior ou menor) intercambiado entre os participantes na comunicação, entende-se como instrução (Weinrich:2001)” no caso dos roteiros, dos pilotos-redatores, dados a outros comandantes das naus que navegavam as rotas assinaladas da Carreira do Brasil, para instruí-los quanto ao comportamento apropriado, frente a cada situação geográfica apresentada e que vinha especificada no códice. Estas considerações nos remete ao texto como unidade comunicativa com ênfase na pragmática, quando se verifica no texto seu funcionamento ou sua construção dentro de seu condicionamento histórico-sócio-cultural assente na interdiscursividade dos postulados da Lingüística Antropológica. Os modelos pragmático-comunicativos de descrição textual, apresentados pela LT, demonstram este novo paradigma onde se
registra a produção e recepção dos textos em seus contextos comunicativos. Os textos aparecem, como se exemplifica no recorte apresentado, como modelos orientadores de ações, observando-se que o aspecto comunicativo é o próprio ponto de partida para a descrição textual. Como se observa na fundamentação teórica apresentada, no caso dos modelos ligados às ações, “trata-se de uma questão mais ampla e geral, ou seja, trata-se de analisar a linguagem na sua relação com as atividades socialmente normatizadas na vida diária”(Marcuschi:2003), balizando a linha de descrição nos impulsos advindos da Psicologia da Linguagem russa, onde a idéia básica está configurada no conceito de que a relação entre a linguagem e o mundo se dá pela ação do homem e não por meio apenas do conceito ou abstração. A interação consciente do ser humano sobre o objeto, ou relação sujeito-objeto, realiza-se pela ação do sujeito sobre o objeto, fato ível de análise. Parece ser este o modelo que enforma a scripta da linguagem de marinharia, onde se observa a ação transformadora promovida pelo homem português enquanto trilhava as vias do processo descobridor e expansionista. Esses escritos que falam sobre os Descobrimentos são demonstrativos de como o raciocínio gráfico foi utilizado pelo homem europeu na tentativa de organizar o caos, adequando-o nos moldes renascentistas, inaugurando uma nova literatura produzida por novos autores, relatores, cuja consciência, interesses e vida social em muito diferiam de seus predecessores. Vê-se um novo homem buscando um ordenamento entre o tempo e o espaço, pelos estudos realizados e pela sensibilidade, ganha no convívio com a época, operando transformações irreversíveis na segunda metade dos Quatrocentos e começo do século seguinte. A sociedade heterogênea em que viviam se reflete na literatura que produzem, sendo dessa diversidade que surgem, dentre outros escritores, os técnicos de navegação. Nesse tempo, a cultura e o conhecimento, bem como seus representantes, pertenciam obrigatoriamente às classes dominantes, embora se conte em maior número os escritores oriundos de uma burguesia emergente que vê no nascimento da imprensa um veículo difusor das notícias e instância importante do saber e do poder. Atentando-se para a evolução da mentalidade revelada nas obras da literatura portuguesa de viagens, verifica-se que a experiência pessoal se revela com maior acuidade e persistência, promovendo um tipo de literatura cujo teor se desvincula do discurso oficial das correntes culturais dominantes, a escolástica depurada e o humanismo. O perfil desta literatura bem se define e argumenta o modelo actancial e transformador, nas afirmações de João Rocha Pinto: Esta nova gama de escritos vem preencher novas funções e objetivos, a nova literatura de viagens e sem precedentes no Ocidente cristão, solidarizam o real e o imaginário, casam gesta e fábula com fatos reais, não deixando, no entanto, de apresentar uma visão coerente do mundo, cheio de maravilhas e singularidades de par com dados observados em primeira mão, fornecendo um Imago Mundi tradicional e de fundo teológico, ainda não ferido pela dialética nascida da intromissão de notícias das novas realidades geográficas e etmológicas e por esse novo saber totalmente baseado na experiência e apoiado na visão (26).
A partir da exigência de um grande rigor na descrição das imagens, vê-se um texto marcado pela concisão do pensamento e da escrita, onde se registram os aspectos
utilitários dos novos mundos com que se defrontam os mareantes. Perde-se nos textos de viagens muito da imaginação e do estilo, porém ganha-se em rigor, precisão e realidade, de que tanto necessitava a avidez do mercantilismo expansionista para suprir as necessidades do reconhecimento desse mundo, dando origem a uma grande quantidade de documentos e testemunhos que vieram a constituir um vasto acervo heterogêneo atrelado às vicissitudes dos descobrimentos, onde a escrita produzia um texto fixado numa realidade virtual, ao lado da imprensa que multiplicava o saber e a percepção que as humanidades tinham de si próprias e aram a ter dos outros. Segundo a relevância que Heinemann/Viehweger dão a estes modelos de descrição, verifica-se que este, segundo Marcuschi, “afasta-se demasiado da textualidade e frisa com muita intensidade as intenções, tornando-o pouco aproveitável e vago para uma utilização adequada como modelo de descrição textual” (27). Observa-se neste conjunto, que, o texto de um roteiro, mesmo primando por uma precisão e descrição concisa das rotas, tende a uma grande subjetividade pela relevância dado ao sujeito no texto, este visto como indivíduo isolado e, mesmo com precária formação e advindo de uma sociedade, é um sujeito com intenções que se revelam através do texto que produz, demonstrando uma ausência de concepção explícita de língua e instaurando a possibilidade de uma reanálise morfológica ou discursiva de um efeito pretendido, por não se tratar de uma simples sequênciação de elementos. Conclui-se que, sem pretensão de abrangência das múltiplas possibilidades de análise e descrição dos modelos, procurei demonstrar alguns aspectos da interação dos paradigmas teóricos da Antropologia Lingüística com a Lingüística Histórica, tendo como e teórico algumas referências da Lingüística Textual, no que diz respeito ao estudo do campo lexical de marinharia da literatura de viagens. Tendo conhecimento de serem os Roteiros regimentos técnicos de auxílio às navegações, escritos ou compilados por pilotos-redatores ou marinheiros, observa-se aí uma profusão de dados numéricos que registram as medidas referentes às distâncias, latitudes e profundidades em busca de uma exatidão e precisão cada vez maiores nas descrições das carreiras marítimas, estes podem vir a se constituir um acervo valioso e ível de múltiplos estudos e considerações para a Lingüística Histórica promover convergências interdisciplinares de postulados básicos e intersecções dialógicas . Bibliografia
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