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editor: Thiago Domingues Regina
projeto editorial: BookPro
coordenação editorial: Blenda Castro
revisão: Bruno Henrique da Cunha
copidesque: Julia Rosa
versão digital: Fabio Martins
capa: Daniel Carvalho
e-ISBN 978-65-598-5328-1
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por nunca ter desistido de mim, além de fazer ainda mais, permitir que eu percebesse a presença de um verdadeiro Anjo
Agradeço à minha família, minha mãe D. Maria, meu pai Francisco e, logicamente, meus irmãos Santuza, Tarcísio, Russo, Vera e Roseli
Agradeço à minha esposa Laura Regina, que sempre impulsionou meus projetos, dando-me a liberdade para pensar e agir
Agradeço à Comissão Literária Jacarehy, nos anos 1990
Agradeço a uma amiga especial, que abraçou o projeto como se dela fosse e formou uma equipe para realizar o sonho de outra pessoa.
Agradeço à Vida, que a cada segundo me basta.
A Filha da Senhora
Não é necessário que seja uma situação amplamente lógica para que possamos ter ou não uma decisão, tal como separar a decisão entre positiva e negativa. A escala evolutiva do ser homem é uma posição de nível seguida de uma de desnível, conforme o momento.
Você não é homem por simplesmente nascer homem. Tão somente, existe uma análise que envolve o nascer, o viver e o morrer. Somos homens por momentos, e não acredito que consigamos sê-lo por toda a existência. Temos momentos de rato e temos momentos de homem, momentos no bem e momentos no mal. Somos unidos por um processo de vivências e análises, pelo qual nos habituamos através de um fundamento de base.
Haverá momentos em que precisaremos ser ratos para sermos considerados homens, e vice-versa. Vivemos acoplados numa aparência um tanto quanto hipócrita e damos uma vestimenta ao ser rato e um outro tipo de vestimenta ao ser homem. Isso, claro, na aparência hipócrita. O verdadeiro ser homem não se tem farda, é absolutamente nu… e visto sem forma física. Mas como ver o que não existe?
Se somente um rato conhece outro rato, somente um homem conhece outro homem, e somente uma libélula conhece outra libélula, e somente uma águaviva conhece outra água-viva. Nascer, viver e morrer são seres ocultos de nossa existência. O ser homem não anda em espírito, sem forma física. Sempre existe uma moldura carnal e óssea para que possamos nos questionar — É um homem? É um rato?
O mais importante de todo este processo é que ele nos ensina a nos guiarmos pelos olhos da face. Estão errados? O estilo néscio ameniza o próprio erro. Subestimamos o poder da visão, dos deficientes visuais, do poder estupendo de podar homens e ratos. A visão oculta, envolvendo percepções mágicas, realmente surpreende.
Olhos ocultos resumem-se em coração e razão embutidos num peito de carne meado pela estrutura óssea que torna divina a percepção de um homem. No entanto, caminhamos terceiro milênio adentro e ignoramos o vocabulário visual. A fala do olhar é um vocabulário bizarro e nobre de seres que já ultraaram a dimensão da vida sem precisar sair da mesma. Um avanço desconhecido, pois aqui todos se dizem sábios, intelectuais e modernos, além de outras qualidades que desqualifico e até mesmo ignoro, por ser avesso a todos estes títulos de injúrias. Dentro do ser homem, existe um traçado de vida que, instituído de uma maneira justa, é ponderado e respeitoso.
Vida simples, porém nobre... Se dentro do ser rato existe vida, ele habitua-se a situações e a consequências? O ser rato tem íntimo?
Existem conturbações que se ocultam na vida externa, mantendo uma vida de aparências, onde o importante é sempre convencer outrem de sua superioridade não superior. Contudo, criam-se situações que exigem uma fuga de sua própria imaginação, ignorando sua imagem íntima. O que flui dentro do que chamamos de íntimo é seu maior inimigo. E qual a consequência de tudo isso? Quando se está num povoado não há como sentir-se em povo, mas sim em um isolamento total seguido de frustração e tortura.
Vive-se num deserto completo, onde nem mesmo existe areia. Ali não sobra nem o vácuo, ali não existe nem o próprio nada. Ali simplesmente não se vive... Como para ser um rato anteriormente teve-se de ser homem, só um homem consegue ser um rato. Dentro deste rato que não vive, ainda permanece a razão que ele se recusa a consultar, por achar que contém todos os títulos que
mencionamos. Títulos de injúrias. Como pode-se observar, é muito mais fácil ser um rato do que ser homem. Para ser um rato, fazer o nada já é o bastante, no não ser, no não viver... O rato não faz.
E para ser homem não existe uma receita propriamente dita. Existem regras. Temos, porém, o livre arbítrio de cumprirmos estas regras. E envolvem-se muito mais as questões ocultas de nossa existência, envolve-se a questão mística altruísta e a questão humanitária social. Não que você deva ignorar a si mesmo para ser homem. Não, isto o tornaria cruel. Talvez, afinal, seja o fato da divisão que ampare a si próprio e a seu próximo em um termo de doação.
Ser rato e ser homem são duas sequências que se interligam em nossa trajetória de vida. A facilidade com a qual nos permitimos é realmente notável. Temos uma visão nítida da não-existência dos símbolos patronais da vida (inocência e razão), ou seja, coração e razão, amor e firmeza, rudeza e compaixão. A coligação é certa perante todo e qualquer um dos olhos ocultos...
Capítulo 1
O ambiente em que se vive é um tanto conturbado, não pela família que ali convive, mas pelas pessoas que frequentam aquela casa de modos noturnos. Ali, é alegria de aparência alegre. E era apenas aparente, como se fossem artistas não declarados, estonteantes. Às vezes, as mesclas de perfumes exacerbados drogavam a presença de um ser não tão habituado. O batom era forte nos lábios carnudos. Isso era de praxe, como se seguisse uma regra. Aquele local era inundado por uma beleza que todos achavam. Porém, eles jamais diziam...
As vestimentas... Hummm! Belas roupas representavam o luxo das mulheres da alta sociedade. Naquele ambiente, em matéria de hipocrisia, sem dúvida as ‘‘da alta’’ ganhavam. E a ideiaera sensibilizar o ambiente com decotes que iam até o umbigo, joelhos totalmente nus, coxas à mostra. Enfim, ali se criava um ambiente em meio à volúpia onde o desejo da carne era inevitável... Boa música... Música bem sincronizada, como se descrevesse o pensamento de todas as pessoas que ali estavam, era uma câmara musical que funcionava como slide... Traduzia os pensamentos, e muito mais dos homens do que os das próprias mulheres. Luzes coloridas não poderiam faltar, a tonalidade servia como mediadora da vida. O colorido oculta a verdade, a cor rústica e marota. O monocromático já impõe a verdade, a certeza e o sério da coisa. “Infelizmente, não perceberão isto...”
Uma casa trabalhando no clamor da madrugada juntamente com o odor alcoólico são duas companhias perfeitas. E o diálogo? O que discutiam nas mesas? Os risos eram enormes. Mulheres agarradas no físico de seres caracterizados “machos”. Ali não podiam discutir, e cada qual representava como podia onde se enquadrava melhor o assunto sem nexo algum, sem o fundamento de uma vida externa ou interna.
A questão do respeito para com eles era tratada como uma questão de ser o seu trabalho. Não deixavam de ser gente, seres humanos... Isso jamais... Pois enquanto existir o sentimento...
Tudo isso se ava dentro daquele salão todo enfeitado, repleto de verdade... “O espelho...” Uma pista de dança, quartos ao fundo do salão. Na área externa, elas andavam normalmente, se misturavam e quase sempre ultraavam a beleza das demais... Às quais são chamadas de família. Quem as conhecia, olhava com repugnância, até mesmo em demasia, como se dissessem: “... seu lugar não é aqui na rua, e sim no salão...”
A convivência com vários tipos de pessoas dentro de uma noite dava a elas o diploma de habilidades em... Lerem os olhos... O coração, os movimentos do semblante de cada ser humano. Aquela era uma vida que ninguém entrava por livre e espontânea vontade, todos eram ali colocados por uma sociedade medíocre de ideiasignomínias, uma sociedade sobreposta. Uma sociedade que acredito contar com um alicerce insólito. E eles jamais perceberam. Seus olhos eram direcionados para cima, ninguém os deixava olhar ao solo. O alicerce era feito de galhos secos, especificamente gravetos revestidos pela capacidade de imortalizar se esta ou aquela pessoa não condizia com aqueles padrões de vida.
Capítulo 2
Tudo isso era observado por uma garota de apenas 14 anos, já nesta idade uma visão muito profunda da vida. Uma visão profunda sobre o que é a vida. A adolescente ainda não participava das mesas nem dos shows, apenas servia bebidas àqueles gulosos e carnívoros alcoolizados. Aquilo proporcionava neles uma cobiça acentuada, pois a garotinha era deslumbrante, parecendo ter sido feita por um trabalhador manufatureiro. Seu corpo já imitava uma mulher de grande porte, e sua voz enlouquecia os homens com um tom modulado para o rouco. Era sensual demais... Os olhos, nem se fala... Não eram verdes, não eram azuis... Eram como se o Poderoso pegasse a noite pelas mãos e a emoldurasse, deixando duas estrelinhas bem ao fundo. Seus olhos eram negros... Isso era chamativo, trazia até mesmo uma atração magnética, diziam eles enlouquecedoramente.
Esta era a marca vital de Margarida, também conhecida como Margot... O Deus da chuva.
Margot era uma filha ilegítima, deixada em um cesto à porta do salão de luzes coloridas, em plena segunda-feira de chuva. Seu tempo de vida não era medido em dias. Eram puros sete dias de integração ao mundo impessoal. Naquela segunda-feira, Margot foi recolhida por Dida, dona do estabelecimento que, em meio a tanta chuva, acreditava ter visto o sol reluzente, vivo, um sol de olhos negros, comparados a uma noite sem estrelas. Como brilha uma estrela sem noite? A coligação do oposto era evidente. Noite e estrela faziam parte de um fato da vida, a dependência de uma para com outrem era até mesmo mística... Chuva e sol... Nitidamente, Dida sentiu Deus naquela chuva...
Dida não pensou duas vezes. Recolheu o bebê e assumiu-o como sua mãe, dando-lhe o nome Margot, ‘‘Deus da chuva’’. Mar remetia à água e Got significa
Deus. Para o registro, porém, seria Margarida. E a paixão de Dida pela menina foi de imediato. A mulher era estéril, jamais poderia dar à luz. Por isso, para ela, o sol brilhou no centro daquela chuva. À Margot dava de tudo, principalmente o que a própria Dida não tivera, a não ser os aprendizados com a professora vida. Sua filha não iria se colocar naquilo que a vida de salão fizesse parte... Deixaria livres as escolha de Margot, dando-lhe, contudo, uma visão de escolha, com opções para a menina não se sitiar na vida noturna.
Na escola, ninguém sabia quem era a mãe de Margot, e ela própria entendia muito bem o carma que aquilo iria se transformar se ela revelasse que era filha de uma dona de casa noturna — para muitos, uma prostituta proprietária. No colégio, concentrava-se a maior parte das pessoas com poder aquisitivo elevado, por isso não foi difícil para Margot ocultar sua identidade e sua origem. A hipocrisia ali também era elevada... Hipocrisia das mulheres e principalmente dos homens... De fato, sua magia humana se sobressaía a todas as demais. Margot tinha um diálogo cativante. E como não podia deixar de ser, os inimigos nasciam dos sentimentos que são propriedade dos ratos... A inveja... As meninas queriam acoplar Margot em um isolamento verbal. Era difícil, mas Margot era superior, muito íntima dos professores e diretores, com uma visível inteligência. Isso incomodava os outros.
Porém, havia ali também pessoas amigáveis. Entre tantos amigos, tinha um que era mais especial do que os outros, um amigo que Margot tinha como pai. Não era nenhum filho de industrial, não era nenhum filho de dono de rede de supermercados. Era o Sr. Atabaque.
O Sr. Atabaque tinha 80 anos, mas como aluno dizia estar sempre aprendendo. Filho de escravos tinha uma origem demasiada forte em seu rosto, onde se via o verdadeiro homem. O Sr. Atabaque vendia pipocas e doces no portão do colégio, “receitas de família’’, ele dizia. Com seu imenso carisma, conquistou todos em pouco tempo — e o primeiro foi justamente o dono da escola, que contratou o Sr. Atabaque para fazer a jardinagem nos sábados em sua mansão. Além disso, o Sr Atabaque teve grande importância para Margot, pois foi o primeiro a
conversar com ela no colégio, durante o inevitável isolamento dos primeiros dias. Até Margot se habituar àquele ambiente, o Sr. Atabaque a amparou... E como amparou...
No fim de toda aula, ela acompanhava o Sr. Atabaque até o seu muquifo, quando ela própria também empurrava o carrinho de pipocas, sempre emitindo um largo sorriso nos lábios carnudos e nos dentes agressivamente brancos. Esta relação polemizou a escola que, em seu interior, acreditava que Margot devia manter-se longe de uma pessoa que não se enquadrava em qualquer classe. Mal sabiam eles que Margot tinha uma ideia clara do que era alta e o que era baixa sociedade. Assim, ela dizia ao Sr. Atabaque:
— Tatá, esse negócio de classes sociais vem da cabeça, não é? Por exemplo, sua cabeça é tão boa que eu defino sua classe como... Indefinida!
— Como assim, Margot?
— Vou te exemplificar... O nível de sabedoria e de vivência do senhor é exacerbado. Portanto, o seu nível começa junto às estrelas... Apenas começa... Não tem parada, não se define, sabe? Estes medíocres burgueses não chegam a sete palmos abaixo da terra. É isso o que poderíamos elevar um pouco mais. Sempre se aprende... Se pararmos, acredito que estamos regredindo, pois o ciclo de maldade não para de descer... E eu poderia dizer para não parar de crescer, mas não...
— A maldade não progride... Ela só regride.
Capítulo 3
Este era o convívio de uma menina, uma adolescente, uma filha de uma prostituta. Seu convívio era com pessoas às quais todos os outros ignoravam, e Margot aprendera muito com eles. Dizia que o Sr. Atabaque era o pai que ela nunca teve. Sua visão era longínqua, e o sensitismo nem se fala. Eram estas as particularidades que faziam dela uma garota realmente especial.
No período noturno, Margot auxiliava as outras meninas no salão e também atendia ao público. Ela era uma pessoa cativante, sempre conseguia atrair a atenção. Mesmo trabalhando num lugar envolto de volúpia, Margot ainda era uma garota casta, pois tinha um sonho.
Sim, aquela cabecinha de ouro tinha um sonho a respeito da defloração. Ela ficava imaginando duas pessoas puras, que de fato se amam numa relação profunda, na qual Margot sentia que seria o máximo da vida. Primeiro, porque se amam. Segundo, porque estavam se descobrindo intimamente num momento de amplo amor. Antes de qualquer coisa, a atração deveria ser de dentro para fora. Para Margot, conhecer o íntimo da pessoa era a parte mais difícil, pois ambos tinham que conhecer as ideias de cada um, conhecer as maneiras de pensar, as formas de carinho verbal... Enfim, a palavra deveria ser a primeira atração. Após tudo isso, só era preciso que o físico asse estas características de todos os seres humanos... O físico... A atração física... Margot sempre relatava que a palavra jamais se decompõe... Ela se aprimora, e o físico jamais se aprimora... O físico se decompõe.
Ainda adolescente e cheia de pensamentos profundos. Essa era Margot. Para ela, o fato de duas pessoas castas se descobrirem implicava no seguinte fato: ela seria
a primeira dele, por isso o carinho seria redobrado. E sendo ele o primeiro dela, seria tudo amplamente mágico, e Margot acreditava que poderia se afogar em meio a tanto prazer. Ela dizia que seria como uma flor de laranjeira, já que ela só cresce no pé de laranja. Um amor daqueles tornaria o casal exclusivo, único. Ela seria dele... Ele seria dela.
Tudo isso era do conhecimento de Dida, sua mãe? Jamais. Dida havia tentado mudar sua cabeça, pois a filha não conseguia nem abalar. Margot era sua maior conselheira, afinal. Margot era uma garota muito especial, era até mesmo... Divina!
Capítulo 4
Rodrigo era quem mais perseguia Margot. Entretanto, sua perseguição era um tanto estranha, parecia coligar com certa ira, com certo amor... Era um amor travado, entocado, até mesmo doente, que Rodrigo não conseguia demonstrar com carinho, mas simplesmente com agressão. Muito rebelde, Rodrigo vinha de uma família tradicional, os Souza Lins. Suas noites eram pura farra com outros garotos, que pintavam e bordavam naquela cidade, pois ninguém iria obstruir um Souza Lins. Rodrigo dirigia quase sempre embriagado, quando não drogado. Seus colegas não ficavam e nem queriam ficar atrás.
Num sábado, a noite refletia olhos brilhantes que piscavam... Piscavam uma lua que englobava pensamentos dos mais sentimentais. Naquele dia, Rodrigo não estava drogado, porém não havia deixado de estar um tanto alcoolizado. Ele e mais dois amigos não sabiam onde estavam nem muito menos o que faziam. De súbito, estavam dentro daquele salão de luzes coloridas que reluziam manifestações de prazer juntamente com uma música de balada sensual que polia os ouvidos menos apurados. Um show exótico estava sendo apresentado. Nada mais, nada menos do que um strip-tease streptease... Ali homens enlouquecidos não gritavam... Simplesmente uivavam. Era uma linda loira que aquecia aquele caldeirão desejoso, acendia o fogo dos presentes com um corpo amplamente escultural, onde seu bronze disfarçava-se nas luzes, transformandose em um único momento... Mulher e Luzes... Os seios estavam nus, quase que rosados. No balançar permaneciam firmes, comparados a uma estátua de fogo.
Rodrigo estava atento... Seus dois amigos dormiam um ao ombro do outro. O sono tinha sido mais forte do que as drogas e não lhes permitiu que vissem tamanha beleza... Aquele momento foi polido por uma imagem que, para Rodrigo, era conhecida. Ao mesmo tempo, a complexidade lhe fazia companhia... Margot ali... Para ele, Margarida apareceu com bandejas de bebidas, onde os olhos do garoto explodiram... Ele a conhecia, estudavam no mesmo colégio. As ideiasdo garoto alojavam-se em forma de nômade...
Rodrigo era filho de uma família influente na cidade, gente da alta sociedade. Sua mãe, a Dra. Roberta, era formada em psicologia e trabalhava como assistente social em uma sede de assessoramento a crianças carentes. A Dra. Roberta era, acima de tudo, muito decidida e moralista em demasia. Era como se tivesse duas personalidades, uma para a sociedade que frequentava e outra para seu próprio ego. Uma mulher colunável, que arrecadava fundos para sua instituição. Não bastando isso, a Dra. Roberta também era presidente da associação dos pais dos alunos, evidentemente no colégio de seu filho. Era afinal uma pessoa que se preocupava com a carência... Tudo isso ela conseguiu demonstrar... Ela conseguiu demonstrar.
O Dr. Marcos, o pai de Rodrigo, era um excelente médico, e podia-se dizer que sua verdadeira residência era o hospital. Uma pessoa de personalidade vulnerável, o Dr. Marcos era facilmente dominado pela esposa, visto que a Dra. Roberta tomava espaço em praticamente todas as decisões que ele tinha que tomar. Só os pacientes conheciam a simplicidade do Dr. Marcos, pacientes estes privilegiados, que cativavam a sabedoria de “um homem que se sentia homem” naquele único local, junto aos pacientes no hospital. Sendo assim, o médico quase não tinha contato com seu filho, pois o fato da educação foi um ponto de intriga. A Dra. Roberta, por não concordar com os métodos do esposo, se encarregava da educação dos filhos, argumentando que tinha formação em Psicologia, que tinha contatos com crianças, que tinha facilidades...
Capítulo 5
Margot não titubeou. De imediato, ela levou seus cumprimentos a Rodrigo, que ficou emocionado e perplexo. Seu lado de classe alta, porém, também protestou. Ele não sabia o que perguntar...
— O quê...? Onde...? Você...?
— Calma, Rodrigo! Uma pergunta de cada vez… Estou vendo que sua cabeça está um tanto quanto confusa... Não está?
— Oh! Claro, Margarida! Você é uma menina da classe alta, estuda no melhor colégio da cidade... E trabalha num lugar como este?
— Eu entendo, e vou tentar te explicar. Sou filha adotiva da dona daqui. Sabe, eu fui deixada numa cesta de pão na mesma porta pela qual você entrou. Ajudo minha mãe trabalhando aqui, mesmo contra a vontade dela. Mas isso não quer dizer que eu seja uma prostituta só por conviver no meio delas.
O jovem Rodrigo estava pensativo, observando aquela voz sedosa de Margot, quando tomou posição para uma nova pergunta:
— Toda a diretoria sabe de sua família?
— Não, não sabe. Você é a primeira pessoa. Sabe, tivemos que falsificar uma identidade pregressa de nossa família. Mamãe sempre quis dar o melhor para minha pessoa. E, como você pode ver, está conseguindo... Bem, acho melhor levar seus amigos para casa, eles estão com um pouco de sono.
Mas Rodrigo ainda tinha assunto...
— Margarida, no momento em que eu avistei sua imagem, fiquei abalado, estático! Mas foi muito bom te ver e conversar, parece que eu procurei por todo o dia uma pessoa igual você, verdadeira, e principalmente muito autêntica. Você me deu tranquilidade, Margarida, aliviou um íntimo em atribuição. Margarida, você me purificou...
— Rodrigo, quando estivermos a sós, me chame de Margot, está bem?
— Claro que sim... Margot!
— A propósito, Rodrigo, eu queria que isso ficasse em sigilo por enquanto. Posso contar com você?
— Pode contar, fique tranquila. Este será um segredo nosso.
— Então está bem! Amanhã a gente se vê no colégio.
— Tudo bem! Tchau!
Uma troca de beijos em suas faces foi executada. Margot, uma garota muito sensitiva, já havia percebido a maneira com que Rodrigo a observava na escola. Por isso Rodrigo não se aproximava, ela sabia de sua formação, sabia da postura de sua família, da influência, do preconceito que seria um ponto fatídico na vida daquela mulher ainda menina, mas que parecia nunca sentir angústia. Era realmente uma complexidade que se fluía na mente daquela menina amadurecida pela vida. Agora estava claro, ela lutava para bloquear um sentimento que sentia não há pouco tempo... Já era de longas datas... A paixão por Rodrigo, que já estava nitidamente estampada no seu coração, agora também se demonstrava na face tão suave que a Mãe Natureza lhe proporcionava. Margot tinha tudo em seu coração... Rodrigo... O rebelde...
Capítulo 6
No colégio não se falava em outra coisa. Margot e Rodrigo, que explodiam de emoção, estavam juntos. A inveja e a intriga de outras garotas eram evidentes.
Rodrigo era um irônico jovem de respeito... Porém, era o respeito vindo de uma família de nome e renome. Qualquer mulher queria participar de sua vida, simplesmente pela condição social. E o mais novo casal do colégio caracterizava a unificação. Noite e dia, se via a dependência de ambas as partes para o nascimento de uma jornada de valor sentimental. Margot seria a noite, ocultando sua experiência em uma inocência angelical, cheia de mistérios, e sem um único tom de maldade. Ela seria, pela sociedade, a beleza do pecado, embora poucos soubessem de sua vida pregressa. Seria a flor do brejo, que, por vir do brejo, seria raríssima. Muitos vêem a noite como o lado marginalizado, o lado onde os gatos saem para revirar as latas do lixo. Mal sabem eles que o lixo nasce e renasce em frente aos nossos olhos... Isso em plena luz do dia.
Rodrigo, o outro lado, o melhor lado, seria a ótica excelente... Das aparências. Comparar Rodrigo ao dia é muito mais rápido que falar da noite. Nós vemos o que nossos olhos mostram e o que vai nos favorecer no futuro... Resumindo toda esta análise, a bondade, juntamente com a maldade e com a hipocrisia, tem aparências tão agradáveis aos nossos olhos que dispensam quaisquer suspeitos e ignotos. Quanto ao lado bom da realidade amplamente rústica de aparência repugnante, este é ignorado com os olhares. Não são gastas palavras com coisas que não deslumbram os olhos da própria visão.
Outro dia, o Sr. Atabaque comentava com sua pretinha a respeito do caso:
— Preta, é muito difícil se dar bem com a terra. O porquê disso é o equilíbrio exagerado, pois havendo exagero não existe equilíbrio. Ultraa a fórmula da magia da vida. Veja bem, terra e água, existe equilíbrio, podemos dizer até mesmo um equilíbrio perfeito. Pela terra e pela água, forma-se... Mar... Rios... Riachos... Lagos... Enfim, nota-se uma proliferação progressista e ao mesmo tempo etérea, não ocultando a importância das celebridades... Terra e água… Ou seja, são ambos importantes, nem mais nem menos. Por isso, acredito que dará certo o relacionamento de Margot e Rodrigo. Veja bem, ele já começou a solidificar a postura de uma pessoa digna de responsabilidade, uma postura que se pode dizer humana, semelhante à do pai, o Dr. Marcos. Preta... É realmente uma dádiva... É preciso que seja amplamente estéril para se criar alguma coisa...
O ado jamais se prostrou a frente do futuro... E o que ele nos dá? Os momentos... Principalmente o nosso presente. O céu e a terra nos dão um sentido de vida e o sentido da vida, nos dá a importância de sermos importantes. Ser negroide, caucasoide ou amarelo nos estabelece uma meta de sentido, servindo como orientação. Observe... São pontos distintos, onde se precisa de ambos para completar tudo isso, para dar sentido à própria vida. Há também a percepção do que não se vê, do que os olhos externos nem imaginam. O nada...
A importância do nada é primordial, pois este é o equilíbrio de toda a nossa vida. Não vivemos sem o nada, tampouco sonhamos sem ele. Para que ocorram os sonhos, temos que adentrar no mundo do nada... Isso mesmo, no mundo do nada, no mundo da obscuridade, onde nada se percebe. E isso é até mesmo uma falta de raciocínio de nossa parte.
Antes de nascermos... Ou melhor, antes de sermos transferidos de estágios, ficamos nove meses no mundo maravilhoso. Podemos chamar aquele lugar de santuário maternal, como se fosse um estágio de sensibilidade referente ao corpo, já que o espírito a esta altura já existe, pois Deus é espírito e não matéria, e a matéria perecível... Contudo lhes digo:
“Sabemos muito mais do que pensamos...”
“Temos mais respostas do que perguntas...”
“Vivemos tanto quanto o próprio tempo, afinal somos descendentes de uma família nobre, de uma família que possui tudo isso e muito mais... Somos da família de Deus...”
Temos também um pequeno problema. Nos encorajamos para perguntar e nos amedrontamos com as respostas. Nos assustamos com a nossa própria capacidade. Somos superiores a nós mesmos, porém jamais itimos nossa visão retilínea.
Capítulo 7
Rodrigo de fato parecia ter descoberto certo tipo de alicerce em sua vida, pois já demonstrava a todos um equilíbrio, O moleque radical desintegrou-se, foi tudo ocasião da última farra com os amigos no mesmo Bataclan, naquela casa de hábitos noturnos visualmente levianos. Rodrigo não era filho único, ele tinha uma irmã de 15 anos... Que ele praticamente não conhecia... É isso mesmo... Rodrigo sempre desprezou sua irmã pelo simples prazer de desprezar.
Henriqueta... Oh! Como tinha sensibilidade, como captava de imediato os acontecimentos... Ela poderia ser comparada com o néctar, tamanha a doçura que ela transmitia a todos que o almejavam... Vida... Vida! Henriqueta, por obter essas qualidades, era manipulada por uma única pessoa... Sua mãe, uma mulher de pulso forte, imperceptivelmente uma ditadora, inconsequente para com seus próprios sentimentos, mas que exigia o oposto da filha... ‘‘Homens devem ser tratados com certo comando’’, sua mãe dizia: ‘‘você tem que ser durona com eles… ’’
Eram estes os ensinamentos que a Dra. Roberta dava à filha. Era como se a natureza revestisse um animal dócil — um coelho, por exemplo —, preparando este coelho de uma forma agressiva para que ele se defendesse no meio ambiente. Quem se sentiria mal seria o próprio coelho. Seu ego é naturalmente dócil... A Dra. Roberta, para a sociedade, demonstrava o lado coelho, pois era uma psicóloga de nome... Em casa, porém, era o oposto. Renascia nela um lado selvagem que confundia muito a cabeça de sua filha. A menina nitidamente não compreendia a mãe... Dentro de Henriqueta, crescia o seu lado mistério... Seus pais sempre ocupados… Quando a mãe tinha um tempinho, exigia um lado possessivo da filha… Uma filha padrão... Filha exemplar... Mas na cabeça de Henriqueta existia uma preocupação pelos problemas sociais, pela pobreza no país... Tanto na matéria como no espírito, dentro daquela garota de 15 anos desenvolvia-se uma revolucionária que se preocupava com as condições de igualdade.
A verdadeira Henriqueta tinha uma ideologia de vida oposta à da mãe, pois ainda adolescente batia e rebatia naquela cabecinha o direito à igualdade a todos os seres viventes. Os amigos que Henriqueta tinha não sabiam de seu alto poder aquisitivo, não sabiam de sua classe social. E outra coisa também rebatia em sua mente... O comportamento duplo da Dra. Roberta, que a incomodava em demasia. Aos que não pertenciam à família, compreender o porquê daquela dupla personalidade demonstrava uma destreza... E até mesmo um exagero, visto que a Dra. Roberta era digna de ser considerada uma psicóloga de alto conceito pela sociedade, uma pessoa de uma posição invejável. A doutora auxiliava os aflitos como poucos, ajustava cada situação, pois sua competência era grande neste ramo. Por isso, Henriqueta se perguntava... “Seria revolta da minha parte? Revolta de quê?” Sua mãe sempre tivera o que quis, jamais havia perdido na vida profissional, aparentava ser uma mulher amplamente realizada. Existia uma coisa muito forte naquele interior que a machucava muito, já que somente em casa o equilíbrio desaparecia.
E seu irmão Rodrigo estava mudado... Um dia, em casa, ela notou isso. Aquela ocasião também foi a gota d’água para que a mãe estourasse com Rodrigo, jogando em sua cara toda a sua irresponsabilidade, molecagem e sua vida errônea até aquele momento. Rodrigo mudou… Mudou tanto que não respondeu, simplesmente pediu licença a todos e saiu demonstrando uma preocupação, sobre a qual ninguém da família acreditava que ele tivesse.
Ele aparentava certo amadurecimento, aparentava… Aparentava ter se tornado um homem. Exatamente, um homem de cabeça madura, com a tranquilidade de um ancião. Rodrigo parecia estar em uma idade sobreposta à dele mesmo... Preocupava-se com outrem e, muito mais importante, amadurecia dentro de si uma ideologia. Preocupar-se com outrem era importante para que ele amadurecesse, e Rodrigo estava muito feliz. Em uma parte oculta de Rodrigo, ele estava feliz, mas estava também um tanto quanto sem pedaços, pois, no seu completo íntimo, seu lado revoltado havia desaparecido. Havia surgido ali seu lado conformado... Seu lado paciente... Ele estava feliz...
Capítulo 8
O tempo havia ado rápido e Margot havia contado toda a sua história a Rodrigo, seu confidente e seu amor. Margot estava sufocando com aquela paixão que ela mesma considerava desumana, já que era vidrada no bancário da avenida principal. Seu nome era Paulinho e os dois não se afinavam por obra do destino, não se tocavam, suas palavras eram choques e discussões. Apesar dos pesares, Margot o amava e esta era sua pergunta de todos os dias: ‘‘Como isso foi acontecer? Como?’’
Paulinho sabia de sua vida, pois o amor é bonito. Contudo, é também perigoso na mão de egoístas. Margot tão apaixonada se abriu para... Para quê? Para nada... Paulinho a ignorava por coisas que nem ele sabia. Sua história, porém, assemelhava-se a da menina apaixonada. Ele também era uma pessoa machucada, mas não tinha a mesma resistência de Margot.
Paulinho era o típico garotão de boa aparência, bonitão, de personalidade um tanto conturbada, já que nunca era possível definir porque sua ambição era exagerada... Ou melhor, porque sentia aquela fobia pelo dinheiro. Paulinho ignorava os pobres com certo desprezo. Mesmo não sendo um rapaz de condição financeira alta, seu convívio era com pessoas da alta sociedade. Ele trabalhava em um banco, afinal.
A vida de Paulinho não tinha alicerces e era cheia de hipocrisias e amarguras. A vida, contudo, também se mostrou dura com ele, pois, sendo filho de uma prostituta, sobreviveu sabe-se lá como…
Pegou papelão na rua, foi engraxate, comeu sobras da lixeira. Foi, enfim, uma
pessoa que jamais calçou uma meia para aliviar o frio que sua vida emitia. E tudo isso explicava sem justificar o espírito macabro de Paulinho. Outro fato que chamava a atenção é que ele jamais transparecia estes sentimentos — pelo contrário, Paulinho demonstrava uma grande alegria, fazendo os outros pensarem que ele era uma pessoa do tipo que não precisava de ninguém para sobreviver, além de manter meios de vida altíssimos. O consumo era presente em todas as partes, nas suas reuniões com os “amigos”, nos finais de semana... Eram sempre ocasiões agitadas, com uma movimentação além das energias.
Mas Paulinho tinha um problema muito íntimo. Sua frustração começava ao cair da tarde e, sem dúvidas, só a noite sabia de toda a sua vida desregrada, contrabandista e com envolvimento com drogas. E isso não era tudo. Quando a noite aparecia, com ela trazia uma depressão incontrolável e uma angústia de uma vida vulnerável, principalmente pelos falsos amigos de seu convívio. Paulinho tinha uma inteligência apreciável, contudo sua ambição sobrepujava este dom grandioso, que não continha tamanha solidão.
Amparado pela solidão, somente a droga não ignorava Paulinho. O rapaz afogava seus sentimentos em toda aquela poção embranquecida, enlouquecia intimamente, transportava-se para outro mundo “que de tão belo, nem à Terra comparava...”, eava de estrelas em estrelas, nunca nos cometas. Ele simplesmente flutuava em um mundo que não tinha final e não demonstrava onde se iniciava. Um mundo cheio de luzes, com força de vida, brilhos magníficos, onde uma coisa dependia da outra... Paulinho dizia:
— As estrelas vivem, dividem o pouco que tem, são irmanadas, são comunidades de luz. Tudo isso é maravilhoso, uma bela e exemplar comunidade. E a comunidade não deixava de ter uma líder, rainha de todas as luzes, capacitada de feminilidade a todo instante, na qual se percebia um gesto sensual, um carinho diferente em saber que, além de comandar aquele cenário nobre, servia de exemplo onde faça sol ou faça chuva, na alegria ou na tristeza... Ela jamais perdeu a condição de vida, afinal... A condição de luz... Ela percebia que lá no mundo sobreposto à Terra havia problemas, havia dificuldades.
Fixando seus pensamentos na luz estelar, era com sensibilidade que Paulinho contemplava uma boa condição de vida. Ele não percebia, porém, que no mundo estelar existiam problemas e dificuldades. No mundo estelar, existia uma frase que puxava a esperança das mesmas, literalmente guiando qualquer mundo: “Se existem problemas existe uma solução, se existem perguntas existem respostas e, se existe o posto, sobrevive o oposto”
A manhã chegou e acabou com a felicidade momentânea... Acabou o repelente da amargura e da tristeza. Paulinho iria enfrentar um mundo flácido, hipócrita, de alicerce sem solidificação... Um mundo no qual ele sempre pensava e repensava...
Paulinho não era um ser sem pulsação, não era um ser glacial. Existia dentro dele muito mais do que sentimentos... Existia vida... Vida... E mais vida.
Sem dúvida, as atribulaçõesocorridas na vida de Paulinho não só eram longas como também profundas o que vinha mexendo em demasia com sua cabeça, pois, seu corpo estava no local de trabalho, mas seus pensamentos ... onde só ele sabia. Ele sentia toda aquela descoligação, que por sua vez era notada pelos companheiros e pelos clientes do banco. Seus colegas eram mais observadores do que afoitos.
Waldir, o gerente do banco, era uma pessoa muito compreensiva, mas não era tolo. Além do mais, conhecia Paulinho muito bem e, sendo assim, deixou o tempo ar para ver o grau de melhoria no funcionário. Porém, não foi o que aconteceu. Waldir pediu que Paulinho fosse para casa descansar, já que o jovem estava um tanto estafado. Essa era uma dor que ele chamava de dor única e própria, pois não se dividia e era muito forte.
Aquela caminhada pelas ruas da cidade estava deixando Paulinho com muito mais força em seu interior. Ele olhava uma senhora, olhava um andarilho que ava do outro lado da rua. Tirava, enfim, o momento para observar, voltando a sentir o velho aroma da menina mais procurada e ao mesmo tempo mais ignorada... Ela mesma... A vida...
Depois de caminhar mais um tanto, uma lanchonete o convidava para um suco natural. Ali algumas pessoas sorriam por motivos nitidamente desconhecidos, e era o que Paulinho chamava de sorriso triste. Por outro lado, ele próprio optava muito mais por uma lágrima de alegria... Dizia ser mais verdadeiro... O suco parecia estar muito bom, pois era o segundo que ele pedia... Ao chegar este segundo suco, entrou na lanchonete uma... Uma... Aquela imagem fez com que Paulinho esquecesse o que estava fazendo. Ela trazia a representação de dois tons oticamente ecológicos em sua face, cabelos negros comparados a uma noite sem estrelas, um corpo que tinha curvas de montanhas procriadas em todo o mundo, um sorriso tão encantador quanto o nascer do sorriso do sol... E a voz? Hum! Vinha como a suavidade de um vento matinal chegando a qualquer tímpano, inundando corações com o mais puro sentimento, tão puro que, qualquer que fosse o nome que saísse de sua boca, homem algum ousaria criticar. Paulinho estava meio hipnotizado, porém aquela visão fizera-o esquecer daquele sentimento que horas atrás o martirizava...
Os olhos de Paulinho se movimentavam, convidando aquela garota para fazerlhe companhia. Mas ela não estava olhando para ele. O rapaz chamou uma vez... Chamou duas... Os amigos da moça chamavam a atenção em relação a Paulinho. Uma delas, olhando fixamente para os olhos da moça deslumbrante, pronunciou palavras a respeito daquele rapaz solitário que se prostrava na sua retaguarda. ados alguns minutos, ela decidiu se dirigir àquele rapaz solitário de nome desconhecido. Ela de fato nunca havia visto aquela face de menino, ainda que uma face de menino pela qual se pressentia certo amadurecimento com a vida.
Aquela garota muito extrovertida chegou, sentou-se e se apresentou:
— Meu nome é Silen. E o seu, qual é?
— O meu nome é Paulo, mas pode me chamar de Paulinho. É como todos me chamam...
— Como? Eu não entendi.
— É Paulinho...
Silen era uma pessoa super decidida e de alta personalidade.
— Por favor, Paulinho, ao falar olhe para os meus olhos…
Apenas ouvindo, Paulinho timidamente abaixou sua face, pois não conseguia encarar a maravilhosa Silen.
— Sabe o que é, Paulinho... Eu tenho um problema de audição, ouço só alguns tipos de som... É um problema de nascença, isso faz com que os olhos dos outros sejam muito importantes para mim... Eu acredito que cada palavra e que cada pronúncia tem uma fisionomia. Portanto, essa fisionomia será estampada em seus olhos, em sua boca, em sua face... É assim que eu aprendi a compreender as pessoas... Eu chamo isso de fala do olhar. Sabe Paulinho, Deus é muito bondoso com a gente, pois mesmo tirando esta dádiva da audição, ele me deu outra maravilhosa, uma sensibilidade excessiva. Eu sinto coisas que você nem imagina. Sabe, eu disse que ouvia alguns tipos de som... Eu ouço os pássaros.
Além disso... Eu consigo ouvir o silêncio... Isso mesmo, eu consigo ouvir o silêncio!
Paulo estava infiltrando-se em um mundo que imaginava existir. Porém, devido às pessoas que conhecia e com as quais convivia, ele jamais abordou tais assuntos. Mas junto de Silen ele estava extasiado, maravilhado em seu interior, acreditando no diálogo de verdadeiros seres humanos e no diálogo da inocência que Paulinho acreditava, em seu íntimo, que iria se realizar.
Silen, muito sensitiva, perguntou a Paulinho o que ele poderia falar sobre o silêncio… E ele respondeu sem pensar muito:
— Silen... Silen! O silêncio não é só não ouvir, é muito mais do que isto, é adentrar em seu íntimo, acreditar no mundo nobre do verdadeiro homem, que está muito mais longe deste mundo em que vivemos. Este silêncio sobre o qual estamos falando torna-se um mundo de sonhos... E sonho é quando você acredita que vai realizar alguma coisa. Do contrário, seria uma forte ilusão dos seus próprios pensamentos.
Silen pegou nas mãos de Paulo e disse:
— Você pensa como eu... Observa as coisas como eu... Você sente como eu... Nós precisamos conversar muito mais vezes... Paulo. Mesmo eu tendo uma audição praticamente inexistente, nós temos algo forte em comum, Paulo, a capacidade de sentir as belas coisas da vida. Podemos falar sobre o vento... Falar sobre a chuva, falar sobre os olhos, falar das estrelas, falar sobre o calor da manhã que sempre renasce... Renasce sempre sobrepujando qualquer obstrução inadequada... Falar sobre o amanhã, Paulo... Nossa... Se o sol não nascer, haverá outro amanhã?
— Ouça Silen, eu tenho uma opinião muito particular a esse respeito. Se o sol não nascer mais, teríamos duas situações que seriam quase a mesma... Por exemplo, a noite viria com o cair da lua sobre nossas cabeças e principalmente sobre nossas vontades... Seria uma luz parcial, como se alguém segurasse uma vela por horas e horas, e ao término desta mesma luz, desta vela lunar, a escuridão total chegaria, uma negritude incontrolada. A gente desapareceria por completo, era como se fosse colocada uma cortina no astro rei simplesmente para esclarecer esta pergunta. Viveríamos em dias corridos, sem términos, e aríamos a contar o tempo pelas luas, como faziam os negros da África. Olha Silen, o nascer do sol é como o nascer de uma criança... Imagine a importância deste nascer... Como o grande homem divide... Manhã... Infância... Tarde... Adolescência... Noite... Já uma outra criança revestida de um corpo aparentemente adulto... Da madrugada em diante, já se percebe o parto da manhã, que tão lentamente se sobressai, despontando aos quatro ventos uma luz de renascença, uma luz de vida, um despertar de esperança, uma força de felicidade por poder recomeçar um novo dia.
Paulo se sentia cada vez mais motivado a filosofar.
— Silen, as folhas se abrem, as flores exalam um sorriso que às vezes é até mesmo exagerado, as águas dos rios descem em desenfreada carreira, os animais despertam ungindo, rosnando, se espreguiçando... O nascer do sol é o nascer de uma vida sobre outra vida. Devemos dar muita importância à manhã. Por mais parecidas que sejam duas manhãs, nenhuma é igual à outra. A diferença nota-se no espírito da valorização do sol, da manhã, da noite, da tarde, dos animais, dos rios, do vento, da chuva... Tudo isto faz parte de um ciclo de vida que ignoramos, que não percebemos com essa nossa visão um tanto quanto nebulosa. E nós estamos adentrando justamente no período em que a vida fica muito mais colorida, onde a natureza exala um perfume em demasia especial por toda a jornada. Silen, um grande amigo me relatou a respeito de um ancião que dizia:
“Para que um sobreviva, os outros têm que morrer...” É uma questão que notifica... O cair das folhas, o desfalecer das verdejantes... Outono... De todo este processo ninguém mais se recorda e a primavera chega trazendo uma beleza redobrada, perfumes hilariantes, traz uma vida pelas folhas... Outono, primavera, é tudo um processo da Lei do grande Homem. É doar sem se preocupar se recebes ou não... Por isso, a primavera chega com o sorriso de um anjo e com o perfume de uma vida, como se estivesse agradecendo aos seus anteados pelo seu desfalecer mesmo sem conhecê-la. Quando existe a doação de sentimentos, não se percebe o sorriso na face, mas no íntimo da pessoa que recebe aquilo que é mais puro e verdadeiro...
— Paulo... Eu simplesmente adorei te conhecer. Aqui está o meu endereço, eu quero que me procure.
— Silen, você me ensinou muitas coisas, e isso serviu para clarear ideias que estavam pendentes em mim. Sabe, você realmente caiu do céu, pois a semelhança existente em nosso íntimo, acredito eu, é um grande o para que muito mais pessoas possam conhecer a maravilha do mundo sem preconceitos, a maravilha do mundo onde não existem formas, de um mundo no qual existem seres de nobreza amplamente oculta. Precisamos reconhecer o valor daquilo que não se vê, mesmo que seja observado por muitos. Precisamos que o mundo conheça a explosão do mundo espiritual.
Capítulo 9
Com suas ideias confirmadas por uma voz feminina, Paulo purificava seu interior. Aquilo o deixava com uma visão muito própria do presente. Ao retornar à sua casa, Paulo amadurecia uma ideia a respeito de uma boa ação para com ele mesmo. Ele pensava em criar uma casa para deficientes físicos e espirituais, ou seja, um apoio para aqueles que não encontravam o que ele julgava como a melhor de todas as muletas, a palavra. E dizia Paulo:
— A palavra pensada sai com um tom de vida...
Dentro daquele rapaz complexo, renascia um nobre sentimento, a compaixão. Aos poucos, Paulo iria deixando o trabalho ilícito, o que não seria fácil. Ele, porém, conseguiu.
Os encontros com Silen eram frequentes, sempre após o expediente. Àquela altura, Paulo já demonstrava um semblante de alegria. Sua alma era sua vestimenta, e sua roupa preferida era o espírito.
Às vezes, ele comentava com Silen a respeito da ‘‘Palavra Pensada’’, a fazenda que ele ainda não tinha. Paulo gostava de um lugar com rios e muitas montanhas, um local que serviria para a meditação e a introdução às palavras de otimismo, de força e de vida. Silen, também maravilhada com a ideia, tinha seus olhos iluminando o coração dos mais interessados.
A humildade, a simplicidade, a mão estendida... Tudo isso se percebia em Paulo.
E o tempo ava rápido... Paulo e Silen estavam prestes a se casar.
A fazenda foi apresentada como um lugar místico, pois era uma visão exterior sem progresso. Era oposta à visão interior. Ali onde o homem não colocava suas mãos, o progresso era natural...
Os pássaros não tinham hora para cantar... Se banhavam na lagoa... Comiam da fruta que queriam... Ali não existia “barulho”, como Silen pronunciava... Ah... Ali o que existia era o som... A maestria em um som sem um único regente... Ali se percebia o perfume da própria água que descia sobre uma canção muito carismática... Quase não se percebia a água dali... Era cristalina em demasia.
Ali se percebia harmonia... Natureza... A não existência da mão humana, as flores que caiam pelo simples prazer de tocar a água, a água que cantava por jornada e jornadas.
A árvore da esquerda se pronunciava histérica quando o vento, menino peralta, empurrava sua crina para a água transparente. Era como se quem a tocasse automaticamente se santificava, automaticamente se renovava. Naquelas pedras estavam Silen e Paulo, observando todos estes movimentos. Silen então comentou:
— A água... Água, um nome tão pequeno, um nome até mesmo estranho, porém com virtudes que só Deus pode nos traduzir ao pé da letra. Ela não tem cor, para que não haja discriminação... Ela não tem cheiro para que os que se dizem santos, não tenham alegria... Ela não possui sabor... Ou melhor, possui seu
sabor...
— E qual é?
— Ela possui aquilo que todo mundo almeja... O gosto da vida… Esta é a água, tão simples e tão necessária... Esta é a água, que nasce no berço da umidade da eterna terra... Por isso, o sabor da vida... Veja bem, dificilmente existe água boa nas terras de pessoas que obtêm muitas matérias. Agora, quando você adentra ao interior, quanto mais humilde for a pessoa, mais fonte existirá. A tal fonte eterna. Eu lhe digo, a fonte eterna da água é a interiorização de um ser que não tem forma, cheiro ou tamanho, pois quem assim o perceber terá esta fonte pelos quatro ventos da vida… A fórmula da água é a mesma fórmula do espírito. Ou seja, não existe fórmula... A vida não tem fórmula.
Paulo e Silen estavam se dando muitíssimo bem. Ambos acreditavam que tudo na vida valia a pena esperar. A paciência e a espera são as certezas de suas realizações.
Na fazenda, estava tudo certo. Era um lugarejo de um estado lírico sem igual, onde bastava chegar e já se sentia o espírito acariciando seu rosto. Aquele lugar parecia isolar-se da sociedade hipócrita, cheia de preconceitos e ideias internalizadas intrajetórias.
O sorriso de ambos era esboçado no horizonte que caía atrás das montanhas de aparência obesa. Não estava um dia ensolarado, contudo estava um dia bastante bonito. A visão interior do próprio tempo não se comparava à exterior. O tempo é como um ser humano, se transmuta a cada instante.
E uma gotícula observava o casal, suas atitudes e suas diferenças físicas, enfim, o que fazia com que se tornassem igualmente Amor. Tudo isso foi, por alguns minutos, lágrimas do tempo que permutavam suas formas de acordo com a vontade dos que aqui viviam. E o sol apareceu, trazendo ao longe um colar de cores diversas simbolizando a união e a esperança. Parecia que alguém lá em cima estava sorrindo pelo fato de ainda existirem neste mundo seres humanos que honrassem este título.
Tudo aquilo foi deslumbrante. Paulo e Silen não comentaram nada, simplesmente deram as mãos e saíram com um sorriso interior, acreditando estarem no caminho certo. Esta foi a única percepção de duas pessoas que tinham obtido uma proposta, de que todos viveriam como solicitava o poeta da vida...
O grande sábado estava chegando. Silen e Paulo iriam contrair matrimônio. A expectativa da vizinhança era redobrada no ar dos segundos, pois as pessoas que ali viviam eram de uma postura nobre. A sapiência dos ruralistas da região era superior à de qualquer componente da alta sociedade. Os vizinhos dos noivos haviam definido muito bem: “A escola ensina o que o homem quer aprender. A vida não se limita no que ensina...”
O casamento seria ao ar livre, à beira de um córrego de água viva e testemunhado por um coral, por magia, por glória e pelos pássaros. Seria um evento enfeitado por flores de um processo raro... O verde das árvores...
O dia chegou, e com ele a realização do processo humano... Homem que se torna mulher... E mulher que se torna homem... Uma cabeça de dois corpos. Entre as árvores de cabeleiras verdes, estava a noiva, destacando-se com uma vestimenta toda embranquecida. O vento começava a auxiliar, não deixando que a cauda do vestido esbarrasse de uma forma exagerada no solo... Por momentos, o canto da água ficava mais forte, era como se o vento fosse a energia vocal daquele som sempre úmido.
Os convidados da natureza estavam todos presentes, não faltava ninguém, e ainda os pássaros iam fazendo acrobacias no ar…, embelezando um acontecimento nobre e de muita alma. Todos os homens da região estavam presentes na festa, mas da cidade vieram apenas alguns amigos da cidade, o que já era de se esperar. Quase ninguém da cidade apreciava o lado rústico da vida... Mal sabem eles... O desprezível de hoje será o aprazível de amanhã.
Foi uma cerimônia simples, porém linda e cheia de respeito, realmente cheia de um espírito onde não parecia vigorar o físico. Naquele instante, tamanha era a nobreza e o respeito pelos seres humanos. Silen estava radiante e Paulinho não deixava por menos... Aquele sonho era um momento muito expressivo na vida... Duas pessoas que se percebiam intimamente, duas pessoas que acreditavam na união através da alma, tratando o físico como supérfluo... E agora unidos pela lei de Deus, o casamento...
Uma semana se ou e a fazenda começou a receber as primeiras crianças carentes, crianças sem um único responsável. Paulo era um outro homem, desligado radicalmente da errônea vida pregressa. Não sendo mais perturbado pelas pessoas incertas, na fazenda ele se realizava cuidando das crianças juntamente com a sensibilidade de Silen, com ambos transmitindo aquela alma pura e cheia de perfume vivido. Tudo aquilo não era bancado por apenas duas pessoas. Tudo foi sendo construído através de doações, doações e muito mais doações.
As crianças tinham um programa a seguir... Levantavam-se bem cedo, faziam a oração todos juntos, tinham que ouvir a missão do dia, faziam exercícios físicos, cada um dentro de sua própria capacidade, tinham aula de alfabetização com Silen... Após tudo isso, as crianças que podiam auxiliavam Paulo no campo. Aquela era uma entidade que estava dando certo, deixando uma legião de inocentes com um pouco mais de esperança. Estavam todos felizes. Naquela fazenda, só havia um tipo de preconceito: não eram aceitas pessoas preconceituosas, nem para visitas e muito menos para o recebimento de
doações... Os membros daquela comunidade tinham ali como um cenáculo de vida. Como era muito séria a sua finalidade muito séria tinha que ser a intenção das pessoas que ali visitavam...
A fazenda de Silen e Paulo foi registrada com um nome que dispensava comentários...
“Legião de Deus”
Capítulo 10
Aquela cidade expandiu-se de uma maneira assustadora, onde muitos fatos marcaram as vidas dos que ali residiam. Um destes fatos, que chegou a implodir a cabeça de algumas pessoas, ocorreu com a Dra. Roberta, a mãe de Rodrigo e Henriqueta, e sem dúvidas um ser humano como outro qualquer, com lados positivos e negativos, dada à opção de escolha.
No mundo em que vivemos, existem pessoas que conseguem levar o lado positivo e o negativo, ainda que por pouco tempo, até que estes estados começassem a se colidir em seu íntimo... Depois renasce o deslocamento, o isolamento, a condenação, a angústia... Tudo isso tem um nome... Choque de carga interior.
Temos o livre arbítrio, o direito de escolher ser bom ou ser mal. Jamais se consegue manter estados tão distintos em uma única região, então cornubada. São como duas consciências em um ser, sendo uma que pende para o bem e outra que pende para o mal. Tudo se tornou muito forte enquanto aquele papel de pão deslizava sobre a enxurrada, estacionando no pneu esquerdo daquele carro... Era um dia de atribulações...
Nós somos dois, luz e sombra
Temos pouco tempo para escolher
Entre o gavião e a pomba
Estamos divididos, morte e vida
E no decorrer, saúde e ferida
Conflitos acontecem, entre negros e brancos
Felicidades de alguns
De outros, prantos
Não se combinam mais, homem e mulher
Falta a todos acreditar, falta ter fé
Vivemos sempre entre dois, o bem e o mal
Não conseguimos ao menos optar
Por falta de força espiritual
Tivemos um princípio que agora chega ao fim
Acolhidos serão os bons, ignorados os ruins
No meio de opções estivemos sempre a viver
Sua vinda está próxima, não temos tempo
Filho sim, sem dúvida quero ser
Aquele momento estava inundado por uma chuva torrencial e o interior do veículo estava inundado por lágrimas de um sentimento retorcido, atrofiado, sentimento sem expressão humana... Ela... Ela estava chorando, e por isso brotava e renascia uma pessoa que fora sufocada pelo lado sombra. Sim, o lado negativo estava travando uma das mais duras batalhas íntimas... A luta entre valores internos e valores externos... E ali haveria somente um vencedor.
O instante é acordado... Ela manda às favas os valores externos e também sua carreira... Carreira? Por minutos, ela estava se sentindo gente... Gente... De fato, estava caindo uma máscara de muitos anos, a mesma máscara que vinha sendo ignorada por uma hipócrita situação... “Ser gente é flutuar...” E ela estava... Ser grande é equiparar-se à pior espécie de pessoa... E ela já não se achava soberana.
A chuva estava indo embora com um belo sorriso. Os bueiros se encarregavam de levar os valores externos. Os princípios inadequados àquele novo sistema íntimo de um ser humano caíam por terra, pois faziam parte da mesma lama que
se esfregava no poste de aparência sólida. Estava purificada uma personalidade.
Naquela cidade, graças a um simples poema, a burguesia iria abaixar a cabeça perante a humildade...
A Dra. Roberta já há muito tempo estava com um sentimento impessoal estampado no rosto, pois os filhos desconfiavam, percebendo o descontrole emocional de uma psicóloga muito bem conceituada pela sociedade. No trabalho, ela era uma maravilha, uma doçura, um ser humano de causar inveja a qualquer outra coisa que a acompanhasse.
Mas o que havia de tão absurdo, de tão errado na vida da Dra. Roberta? O quê?
Naquele ano foi apertado o cerco ao tráfico de bebês, uma conexão internacional que tratava crianças como objetos perecíveis. Quanto mais inocentes, mais humanas… E quanto mais humanas, melhor... O número de sequestros estava aumentando assiduamente, pois as pessoas humildes eram as mais procuradas... Eram vulneráveis as pessoas não tinham riqueza material... Porém, tinham algo de valor… Isso mesmo, valor... O que tem valor não se compra, somente aquilo que obtém um preço...
Eles sabiam valorizar aquilo que não se observava... O sentimento... O amor... O amor...
Aquelas crianças iam para fora do país, em uma transação materialmente ótima. Contudo, vendo por outro ângulo, não contaria com aquela coisinha simples, que os ignorantes não conseguem observar.
Naquela cidade havia muitos profissionais... Eles tinham, porém, um dom ignorado por poucos... A falta de competência... Eram projetados por quem obtinha nome, posição social... “Só subia quem estava lá em cima...” Com os problemas ocasionados pela década anterior, as classes sociais eram divididas em ricos e pobres... A classe remediada fora extinta pelos valores imorais de uma sociedade que se julgava soberana... Sim, era soberana... Soberana na sua hipocrisia... Na sua materialização de valores... Em seus costumes escrotos... Sem dúvida, uma qualidade pérfida organizava grupos para combaterem a imoralidade, principalmente expulsando as prostitutas da cidade e acabando com as casas de massagem... Algumas classes religiosas se desenvolviam em curto prazo e pretendiam resgatar a olhos nus a moral e os bons costumes da cidade... Ou melhor... Dos familiares.
Para residir naquele centro, era necessário ser convidado para um setor, que se destacava. Era como se fosse uma cidade controlada devido ao centro luxuoso que havia sido criado. Assim, o poder aquisitivo era exorbitante, o que foi empurrando a classe remediada para a classe pobre.
E a classe pobre?
A classe pobre havia se transformado em uma classe nômade, trabalhando nos serviços dispensáveis e de pouca duração. Como eles iam de um lado para o outro com suas famílias, não existiam mais viadutos, pontes, empreiteiras, coletoras de lixos ou empresas que cuidavam da capina da cidade. Enfim, não havia mais quem fizesse o serviço básico de uma cidade... Eram os chamados ‘‘trabalhadores dispensáveis’’...
Tudo aquilo ecoava como turbulência em uma mente que tinha certa meta... “O valor humano”... Os incrédulos não conseguiam entender como falsos profetas demonstravam tanta maestria nas suas mobilizações de palavras... Estavam a
alguns quilômetros do terceiro milênio, a alguns os de uma data tão esperada... O que tinha acontecido?
A sociedade queria demonstrar-se digna e pura... Mas mal sabia que em seu poço não havia uma profundidade, era um buraco único... Estava havendo ali certo medo, impulsionado pelos erros absurdos e pelas dúvidas... “Moral? Imoral?” Quase dois mil anos e a definição estava muito mais longe, foram criados valores sem valor e situações que não situavam. No íntimo da sociedade, denotava-se um desespero, percebia-se que faziam o bem por medo de algo que estava para acontecer... Não por acreditarem em alguma ideologia...
Capítulo 11
Com seu amadurecimento, Rodrigo estava no quarto junto de sua mãe, em prantos. A mesma vontade de desabafar era transformada em receio por valores que ela havia instituído dentro daquela família. O quarto estava inundado por momentos apreensíveis, tensos e emocionantes em demasia. O filho já desconfiava há tempos de um erro na vida da mãe, porém não acreditava que seria grande o bastante a ponto de envolver uma sociedade inteira.
Em palavras intermitentes, a Dra. Roberta contou toda a sua história de manobras sujas feitas nas “insistências sociais”.
Tudo começou quando Marli, responsável pelo Fundo Social, recebeu uma proposta de um casal americano. Era um casal muito rico e que ainda não tinha filhos quando o marido descobriu que havia contraído o vírus da imunodeficiência, a AIDS. Sendo assim, o sonho do casal de ter um filho, também contraiu a doença... Aliás, a criança não só contraiu a doença como também acabou morrendo primeiro. Esta situação sensibilizou Marli, que sempre contestara o excesso de crianças abandonadas em nosso país, todo um contingente de crianças postas ao mundo como se existisse uma fábrica proliferadora de bebês. Muitos pensam ‘‘Fazemos, se vier é só esperarmos nove meses e deixar por aí’’, o que faz aumentar assustadoramente o número de crianças abandonadas.
De fato, aquela década ia de mal a pior. Os sentimentos eram ignorados a cada segundo por aqueles que se diziam humanos. Havia na sociedade uma estatística incrível e nitidamente absurda: quem chegasse à fase adulta sem filhos dificilmente iria querer tê-los depois, com a situação negligenciada por um governo de cara bonita e de um físico de ótima aparência... O íntimo do mesmo, porém, era pérfido. Então, encontrar crianças não iria ser difícil... Este foi o
início... Quem arrumasse uma criança receberia uns bons dólares por isso, e aí começou a ignorância do capitalismo... Começaram a ocorrer certos hábitos que eram de se irar.
Logo que Marli contou o plano à Dra. Roberta, foram aparecendo casais indicados pelos americanos. Nenhuma das duas acreditava que aquilo iria se prolongar tanto... Porém, o plano foi apenas crescendo... Quando perceberam, estavam ambas em uma corja de tráfico de bebês.
— Olha filho, agora eu te explico o porquê ganhei o prêmio de psicóloga do ano. Cinco dos jurados que haviam comprado bebês através do meu intermédio, pessoas da alta sociedade e de muita influência, eram quem indicavam meus trabalhos aos seus amigos. Sem dúvida a projeção foi como um rojão, foi como se eu fizesse parte de uma a social sem pertencer...
Rodrigo, calado todo aquele tempo, quebrou o silêncio.
— E papai sabe disso?
— Seu pai... Bom... Seu pai só tinha olhos para seus doentes e pobres, ele jamais iria perceber algo de estranho e tão errado... Mas voltando ao assunto, meu filho, comecei a me envolver em demasia com a situação que fui obrigada a organizar um porão. É isso mesmo. Aliás, só tem este nome, “porão”, para atender tais pedidos. E nisso o bolo infectou e aí foi crescendo com seu fermento... Você entendeu? Isso mesmo, dinheiro e mais dinheiro, por isso eu nunca tinha tempo para você, não tinha tempo para Henriqueta, não tinha tempo nem para mim mesma. Eu ignorava pensar em mim, pois de um modo ou de outro eu sabia do erro. Quando isso ocorria, eu observava um caminho somente de ida. A volta não fazia parte daquele ambiente.
E Rodrigo estava super atento... Não queria julgar, pois não permitiria o oposto, mas teve de dizer
— Eu percebi algo em você, mas jamais iria imaginar que seria isso... É difícil de entender você, mamãe... É como se você tivesse duas personalidades, uma para a família e outra para a sociedade...
— Isso mesmo meu filho, estas coisas me torturavam, são angústias constantes... Eu já não aguentava mais...
— Mãe, me responda uma coisa...
— O quê, meu filho?
— Esta mansão na qual vivemos, nossos bens em geral... Não vieram com o dinheiro do papai?
— Não, meu filho, se dependêssemos de teu pai estaríamos morando em uma maloca. Ele é médico porque gosta de ajudar as pessoas, e não lucra com isso... Antes de nos casarmos, ele me disse uma vez que seria indigno de sua parte lucrar com a enfermidade das pessoas. Hoje eu percebo a postura nobre de teu pai... É realmente o que os poetas chamam de verdadeiro homem. Filho, para sua tristeza, tudo isso veio com o dinheiro do tráfico. Meu filho, me ajude, por favor... O que eu devo fazer? Por favor, me diga…
Sem saber o que dizer, Rodrigo apenas ouvia o longo desabafo de sua mãe.
— Eu... Eu estou me sentindo a pior pessoa do mundo, filho... Não me encontro, o deslocamento é total, e hoje é que eu percebo... É importante o trabalho que fazemos. Não somos nós que somos importantes no trabalho. Hoje percebo que no momento em que as pessoas me cercam, não é por respostas, é porque tenho algo que as interessa. Quandocomecei a pensar nisso, o descontrole em casa começou, pois conduzi Henriqueta a uma personalidade que não era dela... Eu a sufocava e não sabia, sufocava com minhas companhias insípidas... Fazia questão de demonstrar um estilo burguês, um estilo que não tinha. E você... Você mesmo, Rodrigo, quantas vezes paramos assim, para conversar? Afinal, eu sou uma psicóloga bem conceituada na cidade e jamais consegui ser simplesmente mãe. Infelizmente, deixei a ignorância burguesa obstruir o senso de maturidade existente em meu ser, pois eu não era tão má assim... Não era… E eu simplesmente não aguento mais isso... O que devo fazer para acabar com esta agonia... Por favor, me diga, filho...
***
Rodrigo havia tomado outros rumos da vida. Naquela altura, sua consciência superava sua ainda jovem idade, sendo que o convívio com a humanidade fazialhe amadurecer. E sem dúvida havia uma pessoa responsável para isso, uma garota de nome Margot. Ela fizera Rodrigo resgatar sentimentos que estavam morrendo. Isso, mesmo morrendo. Margot costumava dizer:
— As pessoas se transformaram em autônomos, faziam tudo porque tinham de fazer, e não porque tinham algum gosto emotivo pela vida. Ao longo da vida, os anciãos, especificamente o Sr. Atabaque, deixam a maior herança existente... O Amor... Que hoje se tornou apenas um vestígio sumário...
Aquilo mexera tanto com a cabeça de Rodrigo que ele começou a trabalhar com uma pessoa irável, uma pessoa que ele sintetizava, o homem que era o Dr. Marcos, seu pai. Após ter tomado consciência da vida humana, Rodrigo viu que não era possível agir como um rato, se ocultando em prazeres momentâneos. Ele se perguntava:
— Sou descendente de um homem, por que não agir como tal?
Rodrigo acompanhava o Dr. Marcos no atendimento às pessoas carentes nas favelas. Eles também davam palestras, ensinamentos de primeiros socorros e higiene, entre outros. Enfim, isso não saía nos jornais nem nas revistas, tudo por causa de um valiosíssimo ensinamento do Sr. Atabaque: “Fazer o bem em silêncio é fazer renascer a pureza, renascer a pureza é resgatar a vida, resgatar a vida é distribuir o que se tem de melhor…’’
Rodrigo era considerado um homem. Um homem maduro, por sinal, o que só o Dr. Marcos não percebeu ao longo dos tempos. O homem estava sem a menina, a deusa da chuva e, por isso, a saudade o acompanhava.
Margot teve que estudar em outra cidade, não muito próxima, e teve que superar esta situação. E, juntamente com Rodrigo, a tristeza o acompanhou. Naquele contexto, ambos começaram a perceber a importância de todos os fatos, e o quanto as diferenças do dia-a-dia tinham a mesma importância. Eles então perceberam que dar atenção aos dias de sofrimento fazia parte de um único motivo... A perda da razão humana...
“Os acontecimentos de hoje são respostas para as perguntas do amanhã...”
Rodrigo havia se transformado em um irador do Sr. Atabaque. Por isso, ele aprendera tais coisas profundas. Aprendera tudo com um homem empirista, um homem que captava tudo o que a vida oferecia, todos os fluídos de conhecimentos, sensibilidades e da própria vida.
Capítulo 12
Rodrigo não virou um moralista, longe disso. Ele simplesmente valorizava um lado que ele próprio desprezava... O lado humano do respeito, da dignidade, das coisas que ele não se lembrava mais, nem sequer sonhara. Com o nascimento de certos valores, porém, os problemas apareceram...
Sendo assim, comentou o fato ao pai e à irmã Henriqueta, que também não concordavam com a atitude da mãe. A pergunta era: o que Eles a amavam apesar dos pesares... Contar à polícia? Colocar panos quentes naquele caso deplorável? Não... Não sabiam! Mas, como dizia o Sr. Atabaque, existe um bem em todo mal e um mal em todo bem...
A família estava reunida, e juntos procuravam por uma solução lógica. Estavam sendo uma família de verdade, afinal. O aconchego fazia parte, e desabafos eram notados por todos os cantos da casa. Eles sabiam muito pouco sobre cada um. Com isso, aram a conhecer o lado revolucionário de Henriqueta. A caçula era toda frágil e meiga, mas contava com um ardente desejo de justiça.
Conheceram também um lado de Rodrigo preocupado com o meio social e com o jeito de ser digno de ser chamado de homem.
O mais explícito e mais verdadeiro daquela casa era o Dr. Marcos. Sua simplicidade não se mensurava, tamanha sua honestidade e tamanha sua discrição.
Em dado momento, o Dr. Marcos mencionou que desconfiava de algo muito
errado com a Dra. Roberta, embora acreditasse que o desabafo deveria vir naturalmente, sem força.
Colocados os pontos de vista, a resposta fez questão de ser colocada a olhos nus, de um modo que até os assustou. A Dra. Roberta agradeceu:
— Obrigada a vocês, minha família. Eu já sei o que fazer. Vocês comentaram a respeito de si mesmos, e eu percebi o quanto sou diferente. Isso fez brotar em mim uma vontade de me aproximar ou de me igualar a vocês... Justiça, honestidade e respeito... Três palavras que podem ser insignificantes, mesmo que eu não acredite que sejam. Estas palavras farão parte da minha vida de hoje em diante, e até que a morte nos separe.
Uma família que se abraça derramando lágrimas de emoção vive um momento que somente os verdadeiros seres humanos gozam. É como um abraço sincero e amigo para cada momento vivido.
Aquela sociedade, de uma hipocrisia sem igual, rebaixava-se cada vez mais, tentando subornar a Dra. Roberta. Ou simplesmente ‘‘a Roberta’’, para desmerecer tudo o que havia ocorrido.
A maioria das elites envolvidas voou para outro país. Infelizmente, apenas aqueles nos quais restava o mínimo de brio permaneceram com a situação. Assim como Roberta, que acreditava estar livre intimamente, já que contava com o apoio de sua família e não mais se importava com o que era escrito nos jornais.
Moral? Moral é algo que vem de dentro, não é uma coisa que se veste para sair mostrando a um bando de pessoas. Moral é algo sem forma, algo que se
desenvolve sobre o que você diz e faz... Moral é um sentimento, não uma coisa em que se toca.
Moral é um processo de bem-estar acoplado ao ego de cada um. Veja bem... Em cada ‘‘ego’’ e não em cada ‘‘corpo’’, pois quando um corpo desfalece, a moral permanece... Quando um corpo se machuca, a moral não se fere... Quando alguém adoece, a moral servirá de esteio para que a pessoa não se abale.
Sem dúvida Roberta havia se convertido em uma espécie que estava em extinção... Em alguém cujas ideias eram... Humanas.
Ela era simplesmente Roberta, aquela que retirou o ‘‘Doutora’’ do nome, pois não mais se encaixava com a nova pessoa em que havia se transformado. Roberta esteve 365 dias privada de liberdade, onde durante todos estes dias um membro da família iria lhe dar carinho. Aquela família enfim tornara-se realmente uma família.
A experiência não seria bem como uma prisão, Seria um local para réus primários e especiais, ou seja, criminosos que não exerciam a periculosidade. Ali todos se ajudavam e queriam sair dali o mais rápido possível. Naquele local, as pessoas não permaneciam ociosas, ao contrário, trabalhavam muito e da terra tiravam seu sustento. Naquele local os professores lecionavam e os médicos poderiam exercer funções nos casos não tão graves. Era de fato uma outra comunidade.
E Roberta...
Apesar de se deixar levar pela ganância, ela conhecia bem as pessoas e se
embaraçou nos pequenos problemas que a vida lhe ofereceu. Ela não se esforçou para sair daquele estado, contudo.
E como de tudo se tira uma lição, aquela situação não deixou Roberta ar em branco. Ela descobrira que toda perda tem um proveito... Mas qual seria o proveito daquela situação constrangedora?
Naquele contexto, sua visão era obscura quanto aos sentidos humanos, pois o que Roberta ou a chamar de ‘‘homem’’ na concepção da palavra, ela costumava desprezar loucamente. Além disso, quando percebeu que tinha um homem padrão, falava com a boca mais cheia do mundo: “O meu marido Marcos...”
Ali estava o proveito de uma perda, ter que entrar sem perder em um lado obscuro para que a claridade e simplicidade de uma vida possam ser valorizadas. Todos são luz, todos são fonte de uma energia sem igual. Porém, todas as pessoas ignoram sua própria força.
***
Aqui na Terra todos somos estrelas... Uns tem o facho menor, mas outros brilham como cometas.
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida” são palavras que, quando foram ditas pela primeira vez, ofuscaram as mentes e os corações da humanidade. A força em si destas palavras flamejaram como raios solares em estado verônico.
Um tanto complexa a questão da luz, onde a noite consegue ocultar a luz do dia... Nós itimos que a luz seja a solução, e que as trevas sejam os problemas.
Se o mundo fosse apenas luz, não teria o mesmo valor nem a mesma procura que se tem hoje, pois quando se tem em abundância, nasce o desprezo. Ao mesmo tempo, o ato de ignorar se faz presente, ando a fazer procurar aquilo que se tem pouco.
O homem não é um ser conformado. Em sua cabeça, há a descendência de um animal irracional, e é nesta comparação errônea que ele torna-se menor que o irracional. Quando o animal tem uma coisa em demasia, ele não destrói para que se alcance certo preço. O animal é complacente no mundo em que vive, ele tem a percepção sábia, o óbvio está dentro dele.
O homem, ao mesmo tempo em que se acha o ser maior, ainda se assusta e duvida sobre o poder de remover montanhas apenas com o forte desejo.
O animal é comparado a um ancião de vivência sobre outras vivências. Ele é paciente, o desespero não faz parte de sua vida. O animal aceita aquilo que tem, pois isso significa a certeza de se ter um amanhã e muito mais...
E continuando a falar no ser que se diz racional...
Este ser, este mesmo, que a cada dia que a percebe que não só perdeu aquilo que se podia pegar como perdera muito mais. Este ser que perdeu o que não se vê, o que não se apalpa... O que simplesmente se sente.
Ainda esclarecendo... No início dos tempos, como as pessoas nasciam?
Não... Você está errado... Elas nasciam do amor... E hoje... Hoje simplesmente é sexo e mais sexo.
Agora você deve estar se perguntando... Isso não é a mesma coisa?
É lógico que sim.
É preciso analisar o ser “homem” sem generalizar o ser ‘‘macho’’, o que implicaria na valorização da carne no momento da relação sexual. Bem, todo este processo não o faz ‘‘homem’’ porque o seu íntimo assim o deseja, o processo se dá porque o seu corpo o quer... “O corpo sobrevive do próprio corpo, o incorpóreo sobrevive do incorporal” Isso implica uma dieta correta para aquilo que te faz progredir neste mundo.
Isso explica um pouco o sentimento depressivo e angustiante que as pessoas sentem após uma relação sexual. Seria este o choque do corpo contra o incorpóreo. Nisso pode se perceber a diferença da criança que nasce da relação corporal… É uma questão de valores no decorrer da vida...
Agora, volta a carência...
Ele sobrevive daquilo que não tem forma nem cheiro. É simplesmente percepção. Aquele que nasce do processo incorpóreo será privilegiado nestes
tempos, pois não sentirá a carência. Aquele que nasceu do carinho, já nasceu do amor, já se afirma... “Não se sente falta daquilo que já se tem”
Isso caracteriza a relação de tudo na vida que não envolve mudanças de comportamentos de geração. Veja bem... Aquele que nasce do corpo... No momento da relação, aquele não procurou ar nada além do gozo excitante... Portanto a semente que ali estava sendo armazenada não captou característica alguma.
“O fruto terá a característica da semente...” Você é inteligente, você compreende.
São os trechos de um só livro da Dra. Roberta que contém dois títulos... Ao analisarmos este livro, chegaremos à igualdade dos títulos.
“Homem, homem...”
“A luz, luz...”
Capítulo 13
Sem dúvidas o processo de desumanização havia se acelerado pelos quatro ventos. Uma epidemia de imprudência egoísta se refletia em todos os meios de comunicação, pois era de praxe ouvir ou ler coisas que não agradavam quem tinha consciência de um mundo comunitário. Isso ava pela cabeça de Margot, agora muito mais equilibrada em termos emocionais. Seu amadurecimento veio com o tempo, a exemplo de outros tipos de valores que vieram a fazer parte de sua vida.
Uma análise que Margot havia feito a respeito da natalidade brasileira acabou servindo de alerta mundial. Estavam nascendo menos crianças a cada mês que se ava. Assustadoramente, o Brasil e o mundo haviam feito um acordo inconsciente. Aquilo tudo era doloroso e constrangedor para Margot, porém o estudo a fez chegar a uma conclusão... A humanidade esterilizada.
Margot havia entrado em um ramo que conhecia muito bem, o meio social, por onde formou-se em Boston após o falecimento de Dida, sua mãe.
Na sequência, Margot montou uma loja de roupas, onde as meninas da boate permaneceram trabalhando. Era a própria vida dando-lhes um novo rumo naquela vida prostituída.
O mais interessante era a perseverança da (ex) menina Margot, que não se deixou envolver naquela vida um tanto quanto desajustada. Margot não as criticava, porém jamais aceitava as desculpas do porquê entrar naquela vida nitidamente sem vida... Uma vida em declive.
Falando em vida... Margot permanecia solteira, não havia tempo para pensar em uma exclusividade. Ela sempre dizia: “O mundo precisa de nós, não podemos abandoná-lo...”
***
Em 22 de abril, estava acontecendo um congresso de homens benfeitores – sociólogos, religiosos, ecologistas e todos aqueles que se incumbiam de gritar por um tom maior de justiça.
Margot explicava dando toques de angústia e lirismo à voz firme para exemplificar o quanto sua estimativa era alarmante. De cada 10 casais, 5 eram estéreis. Uma margem alarmante se tratando de uma população de bilhões. Veja só...
No Brasil, a única forma de se relacionar sem que se possa haver uma gravidez era uma operação que queria dizer “Aniquilar o Dom de procriar”. E era incrível o quanto eles enfatizavam que a operação inclusive aumentaria o prazer sexual... Tudo aquilo ocorreu voluntariamente.
Consequentemente, o país se tornava velho, um território que a cada ano que se ava se encontrava muito mais difícil de renovar-se.
Porém, o que Margot colocava não era simplesmente mais e mais procriação. O foco era em manter as condições naturais de poder optar por querer ou não querer um filho. O notável era que no Brasil era como se a população tivesse
ingerido uma substância que despertava o prazer sexual... Um certo tipo forte de afrodisíaco.
Alguns dos ouvintes de Margot poderiam estar achando anormal que ela comunicasse um fato daqueles. Muitos poderiam até pensar que Margot estava contra a relação sexual... De forma alguma... Era um direito, era o livre-arbítrio concebido não por Margot, mas por Deus... Margot apenas estava se preocupando com o futuro social da humanidade. Seu discurso era onipotente e onipresente.
— Vocês já pensaram em quantos países do mundo estão com problema de alimentação?
— Vocês já pensaram em quantos países estão com problemas ecológicos?
— Acredito que sim!
— Então vocês estão entendendo onde quero eu chegar! Estão morrendo muito mais crianças do que nascendo, e isto em pouco tempo vai ser trágico, visivelmente trágico. Hoje, devido à poluição, as crianças já saem do ventre sem a mínima condição de vida. Já saem mortas... Existe um choque deste cenáculo interno para com o mundo, o cenáculo externo. É preciso discutir isto, senhores...
— O processo de desumanização está à nossa frente, e só não vê quem não quer. Além disso, existe outro fator que eu queria informar a todos...
— As crianças estão demonstrando hostilidade muito mais cedo. Portanto quando chegarem à adolescência, já estarão incontroláveis... É aí que se percebe a deliberação de imediato... Que se percebe um monstro-humano sobre aquela criança que um dia foi, veja bem, que um dia foi inocente.
— Estive observando que elas não estão vivendo em grupo, mas em bandos que sempre contam com um líder radical. Isso está deixando os anciãos assustados, pois eles jamais imaginaram fazer parte de tal decadência. Se vocês notarem, estão existindo crimes para nós... São crimes absurdos, como qualquer tipo de crime... Porém, ao fazer uma análise do criminoso, não se constata absolutamente nada de anormal, é como se vivêssemos nos tempos dos bárbaros onde o normal era ser irracional e onde aquele que demonstrasse um espírito de maldade e brutalidade era vangloriado por todos.
— A diferença em nossos tempos é que a única glória é do próprio criminoso. O sadismo torna-se o estado normal desta pessoa.
— Para nós, que dizemos que ser homem é ascender ao maior grau na escala evolutiva, está sendo demonstrado o oposto. Existe a necessidade de resgatar os valores da espécie. Ouçam bem, antes que seja tarde demais.
— Houve um descuido no íntimo humano, onde alguns valores foram ignorados e outros foram subjugados como retrógrados. Eles esqueceram, porém, de ensinar que certos valores íntimos começaram na época do nascimento do vento e só terminarão debaixo das lágrimas do sol... Isso é tudo, senhores.
***
Aquele momento foi de uma magia comovente. O lirismo tomava conta do ambiente cenacular. Ao fundo, havia um percurso de lágrimas, de onde um senhor de barbas longas tentava se esconder com alguns fios embranquecidos pelo tempo. De súbito, o senhor levantou-se e se direcionou ao palco, onde ainda se encontrava Margot... O abraço foi longo, foi vívido e todos se contagiaram... Os aplausos demonstraram isso. Ajeitando o microfone, o senhor demonstrou que não iria sentar-se. Sua estrutura, ainda que minúscula aos olhos humanos, era bastante perceptível.
— Eu sou o professor Alabastro. Nasci na Índia há alguns anos... Acho que uns 79 anos... Eu estou no fim da minha jornada aqui na Terra e digo, seria muito mais fácil se convivêssemos uns com os outros de maneira objetiva. Veja bem... Se você ler a Bíblia Sagrada, perceberá de imediato uma condição social... Isto se todos cumprirem, contudo. O amor ao próximo é taxativo em todos os ciclos de nossa história. Hoje Margot frisou muito bem a inversão de valores... Visualmente o narcisismo é marcante e o egoísmo é triturante e constrangedor. Meu país é de um misticismo enorme acompanhado de uma pobreza não muito pequena. O que estou querendo dizer é muito simples, é o que eu entendo por religião.
A exemplo do discurso de Margot, a fala do professor Alabastro foi onipotente e onipresente.
— Aproximação, coligação, junção, unificação... Eles apenas falam do que Deus escreveu sem jamais o realizar Seus ensinamentos, gritando pelos cantos da praça pregando a volta do Senhor Jesus e a estimulação à conversão do mundo... Tudo isto é observado em um contexto literário, mas não prático.
— Infelizmente, isso se dá em todo mundo, o que torna mais difícil a dispersão destes pensamentos. É um ato inclusive político, pois já observei em outros
países pessoas de um bom posicionamento corporal e bíblia debaixo dos braços criticando o maltrapilho por não se esforçar em ser como ele... E ele, vocês já sabem, tinha tudo na ponta da língua mas, no caso de esquecer, tinha sua Bíblia...
— Ele comentava que o maltrapilho era um ser improdutivo na Lei de Deus, que ele era um ser predestinado a não ter sucesso... E ele próprio gritando as proezas que o Senhor pregou...
— Aí eu percebi o quanto ele entendia da Bíblia e não do homem, sobre o qual Deus inspirou-se para as Escrituras. É lá que o Senhor ensina...
— Para ser mestre, terás de ser servente...
— Para ser alguém, terás de ser ninguém...
— Para ser grande, terás de ser pequeno...
— Para demonstrar seu valor, não grite. Simplesmente faça o que for melhor para o seu próximo, pois cada qual tem sua função que sintetiza o mesmo valor para Deus. Resumindo em uma frase, você tem que agir para Deus.
— Em todos estes aspectos, eu foquei na condição de não crítica, mas na condição de simplesmente compreender a posição de cada um de nosso globo terrestre…
— Pois bem, ninguém nasce e diz: ‘‘eu vou ser um maltrapilho’’ ou ‘‘vou ser um bandido’’, tampouco ‘‘vou ser aquilo que não prescreve na condição humana’’. Aprendi algo muito importante com meus anteados. Todo ser humano que vem à Terra obtém uma importância grandiosa. É como se cada criança que nascesse fosse um Salvador.
— E voltando ao povo religioso… Se uma criança nasce, é porque Deus assim o quis. Ele não mandaria a cada minuto uma criança para ser devorada pelos lobos. O que eu quero dizer é que cada um tem uma aura de melhoria, assim como um dom divino de positividade excessiva. Somos filhos de um homem. Portantotemos os dons de um homem, somos elos de uma corrente infinita. E só vamos obter melhorias no mundo quando todos estes elos se juntarem até formarmos um círculo.
***
Todas estas agens aparentaram um amadurecimento tanto íntimo quanto cronológico em Margot, pois sem dúvida ela estava com um conhecimento fora do habitual para as mulheres de sua idade. Margot, ainda muito jovem, já detinha um largo conhecimento sobre o ser humano.
Já não sobrava tempo para lecionar e as palavras eram habituais. Em sua vida, Margot sentia que as pessoas estavam em busca de si mesmas. De fato, conhecer o próximo é conhecer a si mesmo.
Envolta em tantas preocupações humanitárias, Margot ainda parava e pensava em Rodrigo e relembrava do Sr. Atabaque, que lhe ensinou mais do que ela merecia aprender. Margot também sorria quase sempre ao recordar das meninas da casa noturna. Sem dúvida, a mão estava no queixo para pensar melhor.
O mundo em que ela fora criada não tinha nada a ver com a sombra de seus desejos. Não que Margot quisesse ser diferente das demais. Ela simplesmente acreditava em outra forma de vida, uma vida realmente com vida para todos.
Tudo isso se ava naquela cabecinha onde se isolar a fazia ficava muito distante do próprio mundo e das pessoas. O mundo estava, como diziam, avançando demais... Evoluído e consequentemente deteriorando cada ser humano.
As manifestações eram diretas em qualquer instante. Os desejos eram repugnantes demais para serem realizados em lugares públicos. Estas eram as características do povo 2000, um povo frustrado, amargurado e insensível, como se fosse inteiramente externo. Sentia-se que o número de óbitos havia aumentado assustadoramente em todo o mundo, tudo isso no período de modernização ecumênica.
Para se ter uma ideia clara...
Falando na ideia do Sr. Atabaque, este era o mundo colorido, o mundo multicores onde que os olhos externos não percebiam o ultraje. Era camuflado o real e o natural. Era tudo em casca. Logicamente, por este quadro percebia-se o deslocamento de toda pessoa que prostrasse como “ser humano”. Os que fossem verdadeiros eram chamados de ingênuos e emotivos.
A socióloga Margot sabia de tudo isso. Ela sabia também que aquela não era só uma luta social, era uma luta individual. Haviam os mais liberais, do tipo que acompanhavam, ou seja, que faziam evoluir o período de acordo com suas vontades. Margot observava que o mundo e o tempo eram a hora segunda, a hora
terça, e assim por diante. Tudo caía em um velho ditado de andarilho, destes que dormem em rodoviárias. “Todos crescem, pouco amadurecem...”
O mundo se transmutava, o mundo crescia em desenvoltura física. A cronologia era acelerada, e infelizmente não eram todos que amadureciam.
Normalmente, estas análises eram feitas em bancos de praças com anotações precisas... O que falavam, o que queriam, enfim, suas perspectivas... Ficavam horas por ali. Era gente que vinha, gente que ia, gente que sentava, gente que se levantava. Era como um rio que transcorria por um córrego indeciso, que ora se alargava, ora se esvaziava... De vez em quando, a água encontrava obstáculos difíceis, mas sentia-se no rio uma vontade de percorrer livre para que alguém tenha a chance de esbarrar na lateral do mesmo.
De momento, suas águas permaneciam enfermas... Estavam grossas, com um ar de cansaço... Paravam e olhavam... Olhavam e paravam.
***
Sentados naquele obstáculo que parecia cômodo, três anciãos de bengala repousavam seus ossos cansados sobre o banco, depositando ali uma angústia ada. “Omissão da vida”
Estavam preocupados com suas verdadeiras missões aqui na Terra. O problema se encontrava na idade avançada. Afinal, não haviam ensinado nada a alguém. Era doloroso sentir após tanto tempo que não sabiam nada de nada. No interior de cada um, havia certa amargura. O seu mundo exterior, contudo, era completamente diferente. Naquele ponto, condicionavam o equilíbrio da vida.
Faziam-se presentes os pratos vivos de uma balança emocional.
Registra-se que, para manter aquele equilíbrio, eles teriam que tirar o conteúdo de um prato ou colocar muito mais em outro prato. O nível teria que ser mantido.
Já no estado exterior, se tornava difícil contrabalançar este tipo de conceito, não por serem amplamente adversos, e sim por fazer parte de uma sessão da vida então humana daqueles três anciãos.
Aquele era um grande momento, em termos mundiais. Os três seres humanos estavam sentindo vergonha de sua própria existência. O mundo respirava com deficiência. A cor mais verde que existia era um cinza... Isso mesmo, era um cinza.
Portanto o desequilíbrio era enfermo... As árvores morriam pelo excesso de pessoas que usufruíam do seu sangue vital. As árvores não conseguiam superarse. O ser humano retirava muito mais do que as meninas verdejantes podiam produzir.
Era uma catástrofe ecológica?
Não, não era mais. Era o apocalipse.
Tudo aquilo se ava na cabeça daqueles três anciãos, três amigos americanos.
Eles foram donos de uma serralharia na Amazônia brasileira, o que explicava a angústia, o desolamento íntimo e o desequilíbrio ali existentes. Havia algo que chamara a atenção de todos que por ali avam... A bengala do senhor que estava sentado do lado esquerdo do banco... A maneira como ele a segurava, como se fosse uma Bíblia... Seus dedos contorciam-se sobre a bengala... Sua mão esquerda subia e descia pelo cabo bronzeado e esguio de uma madeira que tinha história.
Aquela árvore parecia ser a mãe de todas, pois sua imponência era de um respeito vivido somente por Deus. Os “Terras” ignoravam a espécie Peroba. Ela tinha trezentos anos de existência, e em sua dobra os animais se reuniam para descansar. Aquele era, enfim, o marco de uma floresta que até então era floresta. A altura daquela árvore era registrada por uma cobertura sombria, toda cheia de charme, marota, convencida de sua própria imponência que subservia a todos.
Sua obesidade era também exagerada. Aquela árvore tomara o espaço que achasse conveniente. Ela era toda harmoniosa, não havia ali intriga, todos eram todos, viviam para viver e não para sobreviver, ela era o equilíbrio natural até que uma serra de tamanho monstruoso feriu seu útero. Não se contendo com o ferimento, o ato acabou em assassinato.
Eles não sentiam dor... Porém, a floresta sentia, sim. Ela gritava onde pequeninas árvores se atiravam à sua frente para amaciar sua queda. Mas foi inútil toda a tentativa. Árvores pequeninas foram esmagadas pela insanidade de um poder e de um desejo desumanos... Muitas árvores morreram com ela. E hoje aquela bengala tem pouco mais de 300 anos.
***
Este era um desabafo que Margot tentava compreender, mesmo que chocada, e não chocada pela história desumana em si, já que aquela era uma história que não se enquadrava nos padrões de vida de uma mulher que era superior a seu próprio íntimo. Margot ressentia uma angústia grotesca daqueles três anciãos que estavam desconsolados por um pensamento que não tinha mais volta em um banco frio e ressecado. O arrependimento era caracterizado pelos olhos entristecidos, pela boca que quase não mencionava palavra alguma e pelas pernas que se negavam a dar os objetivos. Era como se o sentido do sol tivesse sido perdido. Estavam desorientados.
Pois bem, a situação destruidora do mundo não fora causada por apenas três homens. Havia um conjunto de situações, as quais citar era apunhalar-se pelos quatro ventos. No entanto, o que Margot não entendia era o motivo daquela angústia terminal.
Era exatamente isso que intrigava a cabeça da mulher Margot, até que uma inscrição foi percebida após o ancião revirar sua bengala de madeira... Amazônia... Amazonas... Que a sociedade mundial gritava... O pulmão do mundo! Eis que de repente escorreram daquele rosto angelical duas gotículas que estavam barradas pela crença em um futuro alegre e, por que não, socializável?
Naquele momento, era exposto que quando você arranha um pé ou um braço, são atingidos pontos que obtém fácil recuperação. Porém, quando existe uma parte sensível e de vital importância em todas as coisas que regem nosso planeta, um simples toque acaba por lesar com gravidade irredutível. Na Amazônia, o coração do mundo, retirar um simples galho seria lesar. Agora imagine derrubar uma árvore de 300 anos!
Margot já estava longe da praça, pois era fim de tarde. Sua mente, contudo, ainda permanecia a observar os três velhinhos, como em um lamento pelo sentimento amargurado. O momento era triste. Todavia, não se ocultava atrás do
processo solar... Era algo deslumbrante... E como!
Capítulo 14
A solidão que envolvia aquele quarto chegava a ser contagiante a tantas querências que alguém pudesse almejar para todas as pessoas que no mundo respiravam. Cria-se uma situação que não tem mais volta, a saudade da adolescência e de uma ingenuidade que a vida impôs no mesmo período de afloramento...
Certa vez, disse um andarilho: “A vida nos coloca com um caderno de respostas”
Isso seria o período da adolescência. Após o período da maturidade, tudo se transforma em perguntas. Tudo bem... Com isso, percebe-se que ninguém presta atenção à vida... Ela mesma nos impõe perguntas e mais perguntas, nos amedronta até nos atordoarmos com perguntas de respostas impossíveis. Embora a vida tenha nos tratado com o máximo de carinho, nos preparando para caminhos tortuosos e confusos, paramos para pensar... E o que acontece?
Ao mesmo tempo que nos engrandecemos com uma resposta, a própria resposta caracteriza-se como uma pergunta. Então definimos que a vida é um ciclo que, aqui ou em qualquer outro lugar, jamais irá parar, pois sua movimentação se dá no momento em que paramos e pensamos, perguntamos e respondemos. É como se a movimentação fosse dividida em estágios ou em partes.
Você então resolve mudar para outra parte. Não se tem algo incompleto, não se tem o ‘‘mais ou menos’’... Também poder-se-ia dizer que cada estágio é um degrau que espera que todos dependam de todos. Aí sim... Volta o ciclo a que todos se encabulam. A vida somente se constituirá vida quando uma vida for transada à outra... É o processo da corrente que não vive sem os elos, onde
todos se dependem.
***
A primeira lágrima descia como uma criança peralta sobre os morros pelados da vida. Uma angústia até então seca se umedecia sobre aquela análise de todos os fatos ocorridos na vida de uma mulher, uma mulher que permanecia com sua virgindade embrulhada no mais belo papel de presente, pronta para ser entregue a alguém. Não seria ela quem indicaria este alguém, mas este alguém quem teria de se analisar e considerar-se digno de receber tamanho presente.
Após tanto tempo, sua ideia permanecia oposta às condições do mundo. Não, ela não era uma santa... Ele queria ser apenas “humana”. Ela queria ser apenas gente. “Gente”.
Margot também não mudava seu estilo em relação às viagens de trem, que proporcionavam-lhe sobretudo uma visão deslumbrante por todo o percurso. Era longo e cansativo o caminho, mas o cansaço era superado quando Margot procurava viver de fato sua própria vida. O percurso tornava-se mínimo.
Margot estava quase adormecendo quando alguns jovens adentraram no vagão, forçando a agem através dos seguranças. Estavam bêbados, em um completo embriago também por drogas proibidas por lei, gritando por desordem e por violência.
O susto foi tirando o sono do trem. Os jovens não se continham com tanto barulho, com tanta algazarra.
No último vagão, os seguranças estavam sendo humilhados por uma indignidade existencial. Até que um dos jovens sacou uma navalha e dirigiu-se para Margot. Ele agarrou-a e ou a riscar levemente os braços dela para demonstrar que o sofrimento também era uma fonte de prazer. Ele também se cortava e gritava aos tímpanos assustados:
— Não tenham medo! Não dói! E olha só, nosso sangue até se parece!
A voz de Margot já não existia, sua cor se alternava a cada segundo... Quando... Quando ela inevitavelmente... Desmaiou...
***
O Sr. Atabaque sempre comentava sobre o equilíbrio da vida. Uma mulher que se colocava em defesa dos mais sensatos meios de vida era vítima de um processo de conjunção do posto e do oposto. Era o equilíbrio da vida sendo colocado de maneira a não ter uma determinação humana.
Era preciso entender até que ponto o ser humano se extasiava com a dor, até que ponto o ser humano procurava ser diferente das metas que foram colocadas para vivermos.
Por que procurar a dor?
A dor leva ao prazer, sem dúvida alguma... É uma realidade... Mas a dúvida se
estampa em uma definição:
‘‘Onde está o prazer?’’
Na dor? Ou após a agem da dor?
Uma questão importante é a definição do que é prazer e do que é dor...
Muitos procuravam a dor e se extasiam como em um ciclo de orgasmo. Nasce o sadismo, e a violência sobrevive. A não procura da análise... A ignorância do que é... O que pode ser... Tudo isso se constitui no prazer medíocre, no conceito de homem.
Com tudo isso, ou se faz porque se é totalmente néscio ou porque se tem o conhecimento daquele fato posto em vigilância. Embora definido de uma forma radical, coloca-se em peso que o medo de definir é um dos fatores que dependuram-se na vida do ser humano. Eles acreditam que, não se definindo, a culpa será diminuída.
A ideia não está errada, mas jamais será algo certo. Todavia, a dúvida se distancia da própria realidade. No jogo da vida, a missão processa em anulá-la por completo, dando-a como função infuncional.
No resumo de tudo, o ser humano ainda é uma incógnita, pois a dor de um transforma-se no prazer de outro... E o prazer de outro se transforma na dor de outro...
Volta-se no mesmo assunto...
O que é... dor?
O que é... prazer?
Os pontos de vista podem se distinguir na iminência de se devorarem, onde o querer da supremacia já nasce no íntimo de cada um, e isto bem antes de se respirar fora do cenáculo materno. Não deixamos de ser solução... Acredita-se no problema...
É a querência onde se deseja ser diferente um do outro. Calcula-se uma corrente onde todos os elos são idênticos para se ter uma força conjunta. Assim como a diferença na vida retrata o equilíbrio, a igualdade na vida não retrataria a discrepância, mas um padrão de vida ao qual muitas pessoas doam-se. Elas se igualam. E, com isso, crescem.
Igualdade... Um processo suspirado desde os princípios do mundo... Pregado por seres considerados ignorados por total... Um mundo de inteira igualdade, sem forma posta e oposta. Estes termos são, no período hodierno, considerados uma utopia, um sonho acompanhado de uma não-realização. Seria um mundo de uma única cor, a aniquilação do colorido e das formas que enrustem a verdadeira maneira de viver.
Sonhava-se com uma floresta inteiramente verdejante, um padrão único, sem a supremacia desta ou daquela árvore, onde se destacam todas ou não se destaca
ninguém.
Entende-se o porquê de não colorir?
Maquiou-se o pecado mortal neste mundo... Permitiu-se o odor entupido de hipocrisia... Fantasiou uma vida simples, mas nobre. O bem não aparece, pois tem uma forma que pode ser feia. O mal se destaca pelo motivo oposto, já que suas cores prendem os olhos deslumbrados que perdem a razão da própria razão.
Sintetizando... Surge uma forma de vida competitiva deste para com aquele, e com isso nasce o vencedor, o ser humano que diz ser inteligente. Portanto tem que haver também um perdedor. A vida transforma-se no sólido contra o líquido, e é retratada a forma vívida do posto e do oposto.
Capítulo 15
Nos jornais empilhados no dia seguinte, as manchetes que não mais horrorizavam qualquer população: ‘‘GRUPO CONTAMINADO COM A SIDA FAZ NOVA VÍTIMA’’
A revolta pela doença era marcada pelos atingidos, que saíram para fazer novas vítimas, pois haviam transformado em arma o estado progressivo e regressivo. O grupo na terça-feira foi capturado pela polícia local... Prender ou internar?
Aquela era uma pergunta que a mídia ainda fazia. A consciência dos contaminados com o vírus em demasia lúcida. Eles diziam estar contribuindo para o fim do mundo. Na vida, nada mais tinha sentido. Um deles misturou uma frase com o livro Eclesiástico:
— A AIDS é correr atrás do vento... Sem dúvida, as pessoas pagavam, e o mundo era castigado por pessoas que se expam ao máximo, desafiando a lógica do destino.
Se procuras, um dia achas... Contaminados, pronunciavam que o fim não tinha fim. Era início. Eram questões amarguradas e até mesmo revoltosas com que aquelas pessoas tentavam justificar o que faziam, achando assim um culpado. Era inútil relutar... Era correr atrás do vento.
***
Por outro lado, o sonho continuava em uma cama... A cama daquele corpo colado ao de uma vida que repousava por horas, mantendo uma tranquilidade que se autoconsumia. Tudo aquilo fez com que chegasse aquela aldeia de pessoas escuras como a noite, de olhos brilhantes como estrelas, de cabelos aparados feito planícies, de sorriso ardente como raios de sol em dias de verão.
Uma mulher que chocava costumes, uma mulher que chocava idiomas... E o que era mais nítido... A pele. Ao mesmo tempo em que existia uma colisão, percebia uma dependência de uma pigmentação. E sim, a igualdade extasiava ao perceber a unificação dos pensamentos.
Era como se Margot chegasse ao ponto final de suas ideias de criança e de adolescência. Agora muito mais do que uma mulher, ela se superava encontrando aquele povo. Eram seres humanos.
Àquela aldeia de choupanas muito bem construídas, Margot tentaria levar um pouco do que sabia, simplesmente o que ela entendia como vida e o que dela Margot aprendera desde a mais tenra idade.
Como de costume, ela foi recebida pelo ancião da aldeia, a quem chamavam de Maior Kafo. A idade dele era intensa, sua alegria era exagerada e suas costas estavam arcadas com nitidez. Porém, diziam os habitantes da aldeia que aquele era seu grau de sabedoria. Ninguém nasce corcunda, torna-se corcunda através dos tempos, pois aquela condição sintetizava o peso da uma vivência que só um ancião poderia explicar.
O ancião não tinha o raiar dos dentes, já consumido por uma história de vida e por bagagens de experiências obtidas.
Não foi difícil o contato. Ele falava várias línguas, e de imediato apresentou Margot a toda a aldeia. Entre irados e assustados, o ancião se pronunciou:
— Não se alarmem... Ela não é como aqueles que vieram a luas e luas atrás... Ela é como aqueles que irão vir…
Margot ficou sem entender:
— Como são os que irão vir?
— São como os que aqui estavam, que partiram sem jamais saírem.
Naquele momento, um coração saltava sorrindo, assemelhando-se às batidas dos tambores que os chamavam para a palestra na aldeia.
A menina da casa noturna pressentia ter chegado na realização de um percurso vivido, pois estava diante de um povo que dialogava... Simplesmente dialogava... Este era o desejo, era aquela intenção tão procurada. Ali percebia-se um povo humanizado com uma sagacidade ignorada por todos do outro lado do mundo. No mesmo instante, o ancião definia a diferença entre inteligência e sabedoria.
***
Margot caminhava em direção ao parque natural, onde as crianças de fato se sentiam crianças. Na aldeia, tudo era subdividido através do Maior Kafo — para cada estágio da vida, seus habitantes permaneciam em uma localidade planejada pelo ancião. Quem vivia naquela aldeia só poderia frequentar qualquer outra localidade após a idade com a qual o ancião os considerasse aptos a representar o que haviam aprendido. De um modo ou de outro, havia uma estrutura, seguida por luas e luas e muito mais luas.
O Ancião Avatar voltava a falar em inteligência e sabedoria.
— Mestre Avatar, qual seria a diferença? Aliás, existe uma diferença?
— Minha filha, sem dúvidas há uma diferença.
A pessoa inteligente tem a capacidade de armazenar aquilo que aprende sem desenvolvê-lo: você ensina e ela aprende, fazendo exatamente como lhe foi dito, assimilando sem imposições e dando-se a entender tratar-se de uma posição mecânica. Um exemplo lógico pode ser observado nas escolas do Ocidente. Quando uma criança não consegue entender o que o mestre lhe ensina, é chamada de incapaz e ouve de seu próprio mestre que ela tem um grau de inteligência abaixo dos demais. Agora analise! Com que direito um mestre pode dizer isto de uma criança? O que ela sabe é exatamente o que foi ensinado ou ouvido. O pupilo é que não teve o saber de buscar a amplitude do conhecimento nem de desenvolvê-lo de acordo com seus entendimentos. Por isso, a pessoa inteligente se julga capaz de armazenar aquilo que os outros quiseram que ela aprendesse quando criança. É, sobretudo, sair do mecânico.
Por outro lado, a sabedoria é uma questão da busca pelo saber. Impõe-se aqui uma análise ampla sobre uma amostra futura. É uma situação que envolve a
premeditação com muita consciência. A sabedoria obtém-se através de vivência. Hoje alguém pode não ser inteligente, porém em uma idade futura pode vir a nascer a sabedoria, isto é, a capacidade de predizer o que poderá acontecer.Por exemplo, em face de uma situação difícil, o sábio ameniza o sofrimento simplesmente exalando palavras com tranquilidade e com uma força que indica o que ele já viveu. Tudo isso compõe uma sensibilidade na contribuição dos anciãos que o cercam, além de envolver uma síntese de inocência e uma fórmula de união para com os seres viventes.
Resumindo... Inteligência é conhecer o presente, ao tempo que sabedoria é aspirar compreender o futuro. Só os sábios são pacientes e somente suas análises são amadurecidas, nobres e tão seguras quanto viver em grupo. Em uma definição mais lógica, quem possui a sabedoria acredita que, para todas as perguntas, existe uma resposta. Esta é uma excessividade do conhecer que o sábio tem.
Completando a análise, a pessoa inteligente preocupa-se em fazer a resposta simplesmente pelo rótulo... Ser inteligente caracteriza uma qualidade restrita, algo como ‘‘Ele é inteligente e nem todos compartilham deste feito’’. Com o sábio ocorre o oposto, ele demonstra que todos podem dar uma resposta correta.
***
Margot estava perplexa diante daquele ancião que lhe dava uma lição de conceitos e preceitos, pois aquilo retratava o que ela sempre dizia: “Na escola ensina-se o que o homem quer ensinar, já na vida não se tem limites”
— Mudando um pouco de assunto, mestre... O senhor tem filhos, esposa... Enfim, o senhor tem uma família?
— Bem, Margot, minha família é o meu povo, minha esposa é a vida e meus filhos são tudo aquilo que eu realizei de bom. Portanto todo benefício dá frutos, e é assim em qualquer lugar do mundo. Desculpe se esta não era a resposta que você queria ouvir... Eu tenho sim um filho, e acredito que daqui alguns dias ele deve estar chegando junto com a comitiva.
— Não estou entendendo!
— Isso faz parte da lição final da aldeia, é a última tarefa para se tornar apto a construir uma família. É o que chamamos se tornar filho da terra. Nesta expedição, eles am algumas luas conhecendo, sentindo e captando a força da natureza. Aprendem o que é bom, conhecem ervas, aprendem a tirar água das árvores... A partir do momento em que adentram na floresta, o valor é amplamente espiritual, não faz parte da matéria. Na floresta, eles conversam sobre saudade, solidão e deslocamento. É tudo guiado pelo sentimento que chefia toda a vida humana: o amor.
— Mas por que eles não podem aprender tudo isso aqui?
— É simplesmente para fazer com que no íntimo deles renasçam os sentimentos sobre o qual eu falei. Eles afastam-se para atrair a solidão, pois são habituados a viver em grupo desde o primeiro dia de vida. É o poder do deslocamento... Por qualquer angústia, há um aperto íntimo e eles correm até o chefe da aldeia. Só assim eles entendem o que é o deslocamento, o conflito do espírito com a matéria. Já a saudade é a falta de carinho comum.
— O que vem a ser um carinho comum?
— Você, quando vive muito tempo com um grupo, tem sentimentos que são considerados normais justamente porque você vive os dias e os momentos que precisa. Isso é comparado aqui pelos sábios da aldeia como um carinho comum, como as batidas do coração. Nós sabemos que todo ser vivo tem um coração que bate, isso é lógico!
— Sem dúvidas! Mas e se ele começar a espaçar suas batidas?
— Sentiremos falta da normalidade... Quando temos, deixamos de valorizar, achamos tudo normal. Esta é uma maneira de falar da saudade: compará-la a uma semente pronta para germinar, pois enquanto existir a valorização dos momentos, ela estará sufocada na distância de sua vida. Consequentemente, ela irá desabrochar com todo o vigor. Com o mesmo vigor de uma erva daninha.
— Mestre Avatar, eu não sei como agradecer por tudo que o senhor está me dizendo. Ouvir tais ensinamentos místicos é de um prazer sem igual. Ouvir um sábio como o senhor é renascer a cada palavra. Cada suspiro meu por um esclarecimento é um sopro desmatando toda a sombra de dúvida. Obrigada, Mestre Avatar, obrigada!
Capítulo 16
A expedição de aprendizagem da vida estava voltando e o cansaço era evidente, porém somente o físico era presenteado com aquela dominação. A lavagem espiritual havia sido completa. A satisfação de missão cumprida era caracterizada no sorriso dos os largos e apressados.
Rever os pais, os irmãos que haviam se colocado no Kafo anterior, os animais que estimavam... Enfim, estavam voltando para o lar no qual a querência exagerava-se.
Naquele grupo havia um homem que iria despertar em Margot muito mais do que simpatia. Era o filho do Mestre Avatar, de nome Califórnia, ou Calif, conjunto de coisas belas. Como todos do grupo, ele voltara para constituir família. Todos ali iriam se casar, respeitando os costumes de muitas luas daquela aldeia.
Foi pela manhã. Quando Calif foi ao rio pegar alguns peixes, estava um tanto pensativo sobre a nova fase que teria que enfrentar. Agora teria que ensinar tudo aquilo que havia lhe sido ado. Ao mesmo tempo que Calif sentia-se honrado, era um pouco assustador.
— Oi, Calif... Como está?
— Oh...Dormiu bem?
— Muito bem!
— Você deve ser Margot, a visitante.
— Sim, isso mesmo, sou Margot!
— Sente-se ao meu lado... Como você sabe quem sou eu?
— Você se esquece que seu pai é o mestre da aldeia? Ele me contou tudo que podia desde que eu pisei nesta aldeia, pois aqui eu só aprendi. Aprendi que Calif significa um conjunto de coisas belas, e que uma das suas mais importantes qualidades é que você é verdadeiramente gente.
— Você está realmente bem informada.
— Calif, eu gostaria que você... Que você me contasse de fato o porquê!
— Como você já sabe, o Mestre Avatar viveu uns tempos do outro lado do mundo, e lá ele percebeu que, quando uma criança nascia, ela chorava. Diziam os mais espertos que esse choro era um sinal de vida, e isso era dito até pelos mais sábios. Bom, como o Mestre dizia, o mais incrível não era o choro, e sim o tapinha que era dado na criança. Pois bem, esta era a primeira forma de carinho que o mundo dava a um recém-nascido, a um recém-chegado ao mundo. Por mais diferente que fosse a intenção e por mais carinhoso que fosse o primeiro contato, era demasiado bruto.
— Mas onde entra você?
— Calma, eu chego lá... Bom, então Mestre Avatar retornou à Mãe-Terra e percebeu que se fazia a mesma coisa na aldeia. Ele acreditava que aquilo refletiria muito mal na vida futura daquelas crianças, afinal o mundo estava perdendo a razão, e com isso vinha a ascensão da violência... Aquilo se fixou na sua mente.
— E o que aconteceu?
— Bem, ele mesmo iria fazer o parto do primeiro filho. À sua maneira, iria recepcionar o ser vivente como merecia, com toda a forma de amor. Por isso, o Mestre sempre explicava em suas palestras que o bebê vive em um cenáculo, em uma redoma do mais puro amor, carinho e dedicação humana. Sem dúvida, aquele tapinha ocasionaria um choque, onde a recepção do mundo externo seria encarada como uma agressão. Portanto ele queria inverter aquela situação. Quando chegou o dia do parto, Mestre Avatar transparecia toda a sua sensibilidade, resumindo tudo o que ele queria para o mundo em termos de comunidade... Com toda esta mística, as dores do parto foram anuladas e, ao sentir o calor do mundo externo, o bebê sorriu... Juntamente duas gotículas de lágrimas desceram ao solo como se ele estivesse emocionado e, com isso, quem mais chorou foi o Mestre, sendo obrigado a pedir auxílio... A emoção amoleceu o corpo de um homem, um tão somente ‘‘homem’’...
Margot, absorvida pela história, mal piscava durante os relatos de Calif:
— Mestre Avatar, em uma análise feliz, resumia o acontecido enquanto seus olhos brilhavam com o fogo do Espírito Santo... Seu corpo veio aquecido pela
alma materna e as lágrimas desceram através da sede da vida. O sorriso renasceu em forma de agradecimento pelo conjunto de coisas belas que se formaram... Por isso me foi dado o nome de Califórnia. Hoje sou um homem feito, que tento transmitir muita calma, paz, harmonia, paciência e amor. Dizem que a sabedoria veio para mim antes que eu conhecesse a vida... Por isso, a permanência da paz de espírito é um rótulo constante.
***
Os dias foram ando. A menina, que sonhava com uma sociedade plena e cheia de saber, vivia um momento intimamente solene. Margot quase não acreditava nas realidades que agora vivia. A menina que sonhava casar-se com um ser virgem havia sido ironizada pelos seus ditos amigos e companheiros. Mas naquele momento Margot sentia a felicidade fazer parte...
A rede acariciava muito bem aquele corpo macio, excitando em sua mente o defloramento de uma virgindade também social, pois desde que nascera Margot observava uma sociedade amplamente injusta e igualmente sobreposta aos “homens”. Sua mente era inteiramente pura e, diante disto, ela sentia-se como uma noiva em feliz núpcias, onde o noivo era o processo realizado pelos verdadeiros seres... Seres ignorados por uma escala de intelectuais programados que viviam do outro lado do mundo.
Quando a menina brilhou na chuva, o facho de luz foi para Margot uma constância, como se a luz divina revestisse seu belo corpo... O corpo que a tudo provém... A feminilidade.
Capítulo 17
Existia um pequeno córrego com alguns peixes e, ao lado de uma árvore, estava um pescador com paciência e uma grandiosa bagagem de humildade. Sua pesca era interessante: ele não obtinha isca alguma, ele simplesmente jogava a linha com um anzol, sentava-se encostando seu corpo esguio no tronco daquela mesma árvore e cruzava os braços com os olhos fixos no horizonte... Com o tempo, ele pescava um, pescava dois... Ao pegar o terceiro, a água do córrego começou a secar como se fosse o próprio tempo do córrego... A água existia tão somente por causa dos peixes e, junto dos pequeninos, a água desapareceu.
Quando descobrirem o significado desta parábola, as pessoas saberão a razão da morte. A morte está totalmente ligada à vida.
***
Margot estava no hospital, contaminada, no processo terminal da AIDS. A parábola do pescador foi sua última pronúncia de vida, concedida a uma enfermeira que tanto dedicou seus cuidados. Margot delirava muito, dizia coisas e mais coisas em suas idas e vindas naquela situação enferma que já não tinha mais cura. Pressentindo algo inevitável, a enfermeira escreveu rapidamente a parábola no momento em que Margot delirava... Foi de fato seu último suspiro. A deusa da chuva iria ter seu verdadeiro reino, iria ter sua sociedade justa, iria encontrar a mais nobre de todas as raças. Seu espírito iria encontrar respostas para as suas perguntas e iria entender o porquê do não-entendimento do homem para com outro homem. A esponja da certeza aria em suas respostas incompreendidas, e Margot finalmente entenderia a força da luz que fica ao lado do escuro.
Quem nasce da água é filho da água, quem nasce do fogo é filho do fogo... Tudo se resume assim. Para ser considerada a filha da senhora, Margot teve que nascer da mais nobre e respeitada criatura sem forma: a própria vida, sem dúvida a maior de todas as senhoras, dotada de uma imponência cercada por conceitos e preceitos não-lúcidos.
Filha da senhora, sim. Filha da senhora por ter ressurgido da própria. Abandonada por situações que não se situavam na prática do ser humanista. Filha da senhora sim, pois foi amamentada pelas condições diversas, por dias com um leite branco, por dias com um leite negro, por dias com um leite avermelhado, por dias com um leite que era a própria lágrima. Mas olhando para trás, percebia-se à sua sombra crianças piores e sem impulso da melhoria de vida. Filha da senhora sim, porque veio predestinada à pesca sem isca. No córrego social, ao menos água tinha. Ora aparecia um peixe, ora seria ela o tal pescado... Sim, estava nas intenções da pescadora.
A paciência era tudo que Margot precisaria para fazer do córrego um mar social totalmente habitável, onde os peixes fizessem questão de tê-lo como habitat. Para muitos, o lugar era uma senhora, pois sua língua era bicolor em um mundo de cores diversas. Decidida, preocupou-se em padronizar sua existência ao mundo, aprendendo com o Sr. Atabaque, o jovem ancião, como entender o fascínio da vida.
A filha da senhora cativou sim, porque era este o seu dom maior. Ela, inclusive, angustiou-se quando percebeu o processo irreversível que seria sua perda da razão. Contudo, Margot não abandonou as armas, mas procurou ao máximo conhecer sobre o que era a palavra.
Como dizia Mestre Avatar, ela percorreu alguns lugares dos quatro ventos,
sempre acreditando que um dia chegaria a conhecer o mundo sólido. “A paciência é uma virtude que só os grandes assim a tem”
A vida que faz nascer é vida que faz viver, é vida que fez a eternidade brotar em seu âmago, é vida que demonstrou que a morte é uma síntese da própria vida... Dois nomes distintos... Porém, com os mesmos propósitos. Viver, viver e viver... Não de uma forma insólita, e sim como uma conjunção de todos para com todos.
“A filha da senhora conheceu sua progenitora, a Senhora Vida”
Sumário
A Filha da Senhora
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Sobre a Viseu
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