Do original inglês: Good Wives CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SP Alcott, Louisa May, 1832-1888. A332o Boas esposas / Louisa May Alcott ; tradução de Genolino 5. ed. Amado. - 5. ed. - São Paulo : Ed. Nacional, 1983. (Biblioteca das moças ; v.l) 1. Romance estadunidense I. Título. II. Série. 83-0547 CDD-813 índices para catálogo sistemático: 1. Romances : Literatura estadunidense 813 Proibida a reprodução, embora parcial, e por qualquer processo, sem autorização expressa dos editores. Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela . COMPANHIA EDITORA NACIONAL Distribuição e promoção: Rua Joli, 294 - Fone: 291-2355 Caixa Postal 5.312 - CEP 03016 - São Paulo, SP - Brasil 1983 Impresso no Brasil
Disponibilização: Marisa Helena Digitalização: Marina Revisão: Bella
CAPITULO I
Mexericos Para começar de novo a ir ao casamento de Meg com espírito despreocupado, seria bom principiarmos com um pouco de conversa de comadres a respeito dos Marches. E aqui, deixe-me prevenir de que, se alguns dos mais ve lhos acharem que há namorico demais na história, como receio, não temo que os jovens façam a mesma objeção só poderei dizer com a sra. March: ─ E que se há de esperar quando eu tenho quatro moças alegres dentro de casa e há um rapaz brilhante na vizinhança? Os três anos que se aram trouxeram poucas modificações para aquela sossegada família. A guerra tinha acabado e o sr. March estava no seu lar, são e salvo, ocupado com seus livros e com a pequena paróquia que encontrou nele um ministro por obra e graça da natureza — um homem quieto e estudioso, rico de sabedoria que é melhor do que cultura, da caridade que chama todos os homens de irmãos e da piedade que floresce no caráter, tornando-o amável e augusto. Essas qualidades, apesar da pobreza e da estrita integridade que o afastavam de sucessos mais mundanos, lhe atraíram muitas pessoas iráveis, tão naturalmente como flores atraem abelhas e, tão naturalmente também, ele lhes deu o mel no qual cinqüenta anos de rudes experiências não destilaram uma só gota amarga. Rapazes bem intencionados encontravam o sábio de cabelos grisalhos tão jovem de coração quanto eles; mulheres aflitas ou apreensivas instintivamente lhe traziam as suas dúvidas e as suas tristezas, certas de encontrar a simpatia mais gentil e o mais ajuizado conselho; pecadores confessaram seus pecados ao homem de coração puro e foram ao mesmo tempo repreendidos e consolados; homens capazes acharam nele um companheiro; os ambiciosos vislumbraram os clarões de uma ambição mais nobre do que a deles, e mesmo os fúteis confessaram que as suas crenças eram belas e verdadeiras, embora delas não pudessem participar. Para a gente de fora, as cinco mulheres enérgicas pareciam governar a casa e isso era verdade sobre muitos pontos de vista; mas o plácido homem de gabinete, vivendo entre os seus livros, era ainda o chefe de família, a consciência do lar, a âncora e o conforto; porque para ele se voltavam sempre, nas horas difíceis, aquelas mulheres atarefadas e ansiosas, encontrando-o como marido e como pai, no senso mais verdadeiro dessas duas palavras sagradas. As moças deram o coração à mãe e a alma ao pai; e ambos os velhos, que viviam e trabalhavam tão fielmente para elas, lhes deram um amor que cresceu com as próprias filhas e que a todos estreitava ternamente pelo mais suave laço que abençoa a vida e vence a morte. A Sra. March continua tão ativa e animada como quando nós a vimos pela última vez, embora apareça mais grisalha e, no momento, tão absorvida nos negócios de Meg que os hospitais e os lares pobres, ainda cheios de rapazes feridos e viúvas de soldados, perderam decididamente as visitas da maternal missionária. John Brooke cumpriu o seu dever valentemente durante um ano, foi ferido, voltou para casa e não teve licença para partir novamente. Não recebeu nem medalhas nem condecorações, porém, as mereceu, porque arriscou resolutamente
tudo quanto tinha, a vida e o amor são bens preciosos quando em plena floração. Perfeitamente resignado com a sua baixa do exército, tratou de melhorar de vida, preparando-se para trabalhar e construir um lar para Meg. Com o bom senso e a rígida independência que o caracterizavam, recusou os mais generosos oferecimentos do sr. Laurence e aceitou o emprego de guarda-livros julgando-se mais satisfeito em começar a vida com o salário ganho honestamente do que em correr muitos riscos com dinheiro emprestado. Meg gastou o seu tempo tanto em trabalhar como em esperar, desenvolvendo-se femininamente no caráter, perita nas artes de uma dona-de-casa e, mais bonita do que nunca, porque o amor é um grande criador de beleza. Teve as suas ambições e as suas esperanças de mocinha e sentiu um certo desaponto diante do modo humilde porque ia começar a nova vida. Ned Moffat acabara de casar-se com Sallie Gardiner e Meg não podia impedir a si mesma de pôr em contraste a linda casa, as carruagens, os inumeráveis presentes e as esplêndidas instalações da amiga com o que ela havia de ter, e secretamente desejava possuir a mesma coisa. Mas qualquer sombra de inveja e descontentamento logo se desvanecia quando pensava em tudo que o amor paciente e o trabalho de John tinham posto na pequenina casa que a esperava. E quando os dois se sentavam juntos, ao fim da tarde, conversando sobre os seus pequenos planos, o futuro sempre sorria tão belo e tão brilhante que Meg esquecia o esplendor de Sallie e se considerava a moça mais rica e mais feliz do mundo. Jo nunca voltou à casa da tia March, porque a velha senhora se tomara de tal paixão pela Amy que a conquistou com oferecimentos de lições de desenho por um dos melhores professores da época. E para defender essa vantagem, Amy teria servido a uma senhora ainda mais exigente. Assim, ela dedicava as suas manhãs à obrigação, as suas tardes ao prazer, e prosperava lindamente. Nesse ínterim, Jo devotou-se à literatura e a Beth, que continuava delicada de saúde, mesmo muito tempo depois de ter ado a febre. Não era uma inválida exatamente, mas nunca mais voltou a ser a criaturinha sadia e rosada que tinha sido. Contudo, sempre esperançada, feliz e serena, ocupada com seus sossegados deveres, amiga de toda gente, era já um anjo dentro de casa, antes mesmo que assim fosse compreendida pelas pessoas que mais amava. Desde que "The Spread Eagle" pagou um dólar por coluna pela sua "bagaceira", como ela mesma classificava, Jo considerou-se uma mulher de recursos e produzia diligentemente os seus pequeninos romances. Mas grandes planos fermentavam no seu atarefado cérebro e ambicioso espírito e o velho fogão do sótão ava uma pilha sempre crescente de manuscritos borrados, que um dia deviam inscrever o nome de March no cartaz da fama. Tendo ido por obrigação para o colégio, a fim de satisfazer ao seu avô, Laurie estava agora seguindo o curso de maneira mais fácil possível para satisfazer a si mesmo. Favorito de todos, graças ao dinheiro, às boas maneiras, ao muito talento, e ao melhor dos corações, que sempre se metia em dificuldades para tirar delas os outros, permaneceu em grande perigo de ser estragado e provavelmente o teria sido, como muitos outros promissores rapazolas, se não possuísse um talismã contra o mal na lembrança do bom velho que estava ligado ao seu sucesso, na maternal amiga que o olhava como a um filho, e por fim, mas de forma alguma por último, na
certeza de que quatro mocinhas inocentes o amavam, o iravam e nele confiavam com todo o seu coração. Sendo apenas "um glorioso homenzinho", naturalmente se divertia e namorava, tornando-se almofadinha, aquático, sentimental ou ginástico, segundo determinavam as modas do colégio. ava e recebia trotes, falava em termos de gíria e mais de uma vez estava perigosamente perto de suspensão e de expulsão. Mas, como a exuberância do temperamento e a paixão das brincadeiras eram as causas dessas estroinices, sempre conseguia salvar-se por uma confissão franca, por um justo espanto ou pelo irresistível poder de persuasão que empregava às mil maravilhas. De fato, gabava-se um pouco de ter escapado dessas aperturas e gostava de assustar as pequenas com ilustrações gráficas das suas vitórias sobre tutores zangados, solenes professores e destroçados inimigos. Os "homens da minha classe" eram heróis aos olhos das mocinhas, que nunca se cansavam das proezas dos "nossos camaradas" e às quais se concedia freqüentemente a honra dos sorrisos desses figurões, quando Laurie os trazia para sua casa. Amy, especialmente, apreciava esse alto privilégio e tornou-se perfeitamente uma beldade entre eles; porque a sua familiaridade precoce sentiu e aprendeu a usar o dom de fascinação de que era dotado. Meg estava por demais absorvida no seu privado e particular John para cuidar de quaisquer outros senhores da criação e Beth era tímida demais para fazer outra coisa além de observá-los de longe e de maravilhar-se do modo por que Amy ousava ditar ordens no meio deles. Mas Jo se sentia perfeitamente no seu elemento e tornou-se muito difícil evitar que ela imitasse as atitudes cavalheirescas, as frases e as proezas que pareciam mais naturais para ela do que as poses prescritas para as moças. Todos eles gostavam imensamente de Jo, porém nunca se enamoraram dela, embora poucos saíssem sem pagar o tributo de um ou dois suspiros sentimentais junto ao altar de Amy. Já que falamos de sentimento, o assunto nos traz naturalmente para o "ninho". Era esse o nome da casinha cinzenta que o sr. Brooke tinha preparado para o primeiro lar de Meg. Laurie batizou-a assim, dizendo que o apelido era,altamente apropriado para os gentis noivos. Era uma casinha pequenina, com um jardinzinho nos fundos e um gramado, tão grande como uma caixinha de fósforos, na frente. Aqui Meg pretendia ter uma fonte, algumas arvorezinhas e uma profusão de flores'bonitas. Mas, no momento, a fonte era representada por uma urna gasta pelo tempo, as árvores consistiam de vários pés de lárico, que ainda estavam indecisos entre a vida e a morte. Quanto à profusão de flores, era apenas sugerida pelos batalhões de estacas, para mostrar onde as sementes estavam plantadas. Mas, por dentro, a casa era toda encantadora e a venturosa noiva não via defeito desde o porão até o sótão. Na verdade, o "hall" parecia tão estreito que era uma sorte não terem piano, pois o instrumento não entraria ali inteirinho. A sala de jantar era tão pequena que seis pessoas bastariam para enchê-la. A escada da cozinha parecia feita com o fim especial de precipitar as criadas dentro do depósito de carvão com tudo que levassem às mãos. Mas, desde que os moradores se fossem acostumando com esses pequenos defeitos, o larzinho não poderia ser mais completo, pois o bom senso e o bom gosto presidiram às instalações e o resultado era plenamente satisfatório. Não havia mesas de mármore, grandes espelhos ou cortinas de rendas
na pequena sala de visitas, porém mobília simples, muitos livros, um ou dois quadros bonitos, um canteiro de flores suspenso no peitoril da janela e, espalhados por todos os cantos, os lindos presentes que mãos amigas tinham enviado e eram ainda mais apreciados pelos votos de felicidade que os acompanharam. Não creio que o psichê de Laurie tivesse perdido coisa alguma da sua beleza porque John colocou para cima a parte que devia ficar embaixo. O mais competente estofa-dor não teria arranjado as cortinas de musseline tão graciosamente como fizera a mão artística de Amy. Despensa alguma foi melhor provida com tantos desejos bons, alegres palavras e felizes esperanças do que aquela, na qual Jo e sua mãe arrumaram as poucas caixas, barricas e saquinhos de Meg. Tenho a certeza também de que a cozinha nova nunca pareceria tão bem arrumada e tão limpa se Hannah nâo tivesse arranjado todas as as e todas as vassouras uma dúzia de vezes, deixando o fogão pronto para ser aceso, no minuto em que se dissesse: ─ A Sra. Brooke acaba de chegar. Também duvido que senhora alguma tenha começado a sua vida de casada com tão rico sortimento de espanadores, ganchos e cestas, pois Beth fizera tudo isso em tal quantidade que por certo o casal ainda teria um bom estoque quando festejasse as bodas de prata. Além disso, inventou três jogos diferentes de panos de mesa para combinar com os serviços de porcelana. Pessoas que compram essas coisas já feitas não sabem o que perdem, pois as mais simples prendas caseiras adquirem beleza quando feita por mãos carinhosas. Meg teve muitas provas disso, pois tudo no seu pequeno ninho, desde o escovão da cozinha até a jarra de prata da sala de visita, era uma prova eloqüente de amor e de ternura doméstica. Que horas felizes os noivos viveram juntos, fazendo planos e realizando solenes excursões pelas lojas. Que erros engraçados cometiam e quantas gargalhadas soltaram diante das compras ridículas de Laurie. No seu amor às graçolas, o jovem estudante mostrava-se mais infantil do que nunca. Seu último capricho era sempre trazer, nas suas visitas semanais, um objeto novo, útil e original para a jovem dona-de-casa. Um dia era um papel de alfinetes, no outro um quebra-nozes que se partiu na primeira experiência. Assim, também, trouxe um limpador de talheres que sujava todas as facas, uma escova que arrepiava os pelos do tapete e deixava a poeira, um sabonete prático que arrancava até a pele das mãos, um cimento infalível que não soldava coisa alguma exceto as mãos do iludido comprador; enfim, um nunca acabar de quinquilharias, desde um mealheirozinho para guardar tostões economizados até uma maravilhosa chaleira que levava tudo com o seu próprio vapor, mas que explodiu na primeira vez em que foi experimentada. Em vão Meg lhe suplicava que parasse. John ria-se dele e Jo lhe dera o apelido de "Mr. Toodles". O rapaz estava com a mania de proteger a capacidade inventiva do povo ianque e cada semana trazia um novo absurdo. Tudo estava pronto, afinal, até os sabonetes de diversas cores arranjados por Amy para combinar com as diferentes tonalidades dos quartos e Beth já tinha preparado a mesa para a primeira refeição. — Está satisfeita? Isto aqui já dá a impressão de um lar e você sente que será feliz nesta casa? perguntou a sra. March quando ela e a filha percorriam o novo reino, de mãos dadas. Agora, as duas pareciam mais unidas do que nunca. — Sim, mãezinha, perfeitamente satisfeita, graças a vocês todos. Sou tão
feliz que nem sei dizer, respondeu Meg, com um olhar mais eloqüente do que qualquer palavra. — Se ela tivesse ao menos uma ou duas empregadas, tudo estaria bem, disse Amy, vindo da sala de visitas, onde estivera experimentando se o Mercúrio de bronze ficaria melhor sobre o porta-bibelôs ou sobre a lareira. — Mamãe e eu já conversamos a esse respeito e já resolvi fazer primeiro, sozinha, minha experiência de dona de-casa. Haverá pouca coisa que fazer, tendo Lotty para levar as minhas encomendas e ajudar-me nisto ou naquilo. Terei apenas trabalho bastante para não ficar preguiçosa ou com muita saudade do meu antigo lar, respondeu Meg tranqüilamente. — Sallie Moffer tem quatro, insistiu Amy. — Se Meg tivesse quatro empregadas, nao caberia mais ninguém dentro de casa e o patrão e a patroa teriam de morar no jardim, estourou Jo, que, metida num enorme avental azul, estava polindo pela última vez as maçanetas das portas. — Sallie não, é mulher de um homem pobre. Meg e John começam humildemente, mas tenho a impressão de que serão tão felizes no seu larzinho como numa casa grande. É um erro imenso para moças como Meg não terem nada que fazer, a não ser cuidar de vestidos, dar ordens e falar da vida alheia. Quando eu me casei, chegava a desejar que os meus vestidos novos se estragassem só pelo prazer de consertá-los, pois já estava ficando nervosa de não ter nada que fazer, observou a sra. March. — Isso é porque não foi para a cozinha fazer, pratinhos complicados, como a Sallie diz que faz, para se distrair, embora nada saia direito e as criadas trocem dela, comentou Meg. — Foi o que eu fiz durante algum tempo; não propriamente para fazer "pratinhos", mas para aprender com Hannah como se deve cozinhar, a fim de que as criadas não pudessem troçar de mim. Fazia isso, então, por divertimento, mas chegou a hora em que foi uma grande vantagem saber cozinhar para dar alimento às minhas filhinhas, numa época em que não tínhamos recursos para pagar empregadas. As lições que você aprendeu, Meg, vão ser-lhe úteis pouco a pouco, mesmo quando John fôr um homem mais rico. Pois, uma dona-de-casa, mesmo abastada, deve saber como se faz todo o trabalho, se deseja ser bem e honestamente servida. — Sim, mamãe, eu sei disso, disse Meg, ouvindo respeitosamente o pequeno sermão, pois estava muito interessada em todos os assuntos de uma dona-de-casa. Sabe que é este o quarto de que eu mais gosto na minha casa de bo neca? acrescentou a moça, um minuto mais tarde, quando subiu as escadas e fitou o seu bem guarnecido enxoval. Beth estava ali, arrumando sossegadamente as pilhas alvas de linho nas gavetas e apreciando a sua bela obra. Todas três riram quando Meg falou, pois aquela história de enxoval era realmente uma boa pilhéria. Vejam bem: tendo dito que, se Meg se casasse com "o tal de Brooke", não teria um níquel do seu dinheiro, a tia March começou a ficar com o coração balançando, quando o tempo foi amortecendo a sua cólera e lhe inspirando o arrependimento de ter feito tal jura. Ela não quebraria nunca a sua palavra e estava dando tratos à bola para ver como se sairia daquela dificuldade. Afinal achou um plano que a satisfez. A sra. Carol, mãe de Florençe, recebeu ordem de comprar, mandar fazer e marcar um generoso
sortimento de peças de linho para cama e mesa, devendo enviar tudo como presente dela. Isso foi cumprido fielmente, mas o segredo foi descoberto e divertiu enormemente a família, pois a tia March fingia mostrar-se superiormente alheia ao casamento e insistia em declarar que não daria nada, exceto as velhas pérolas, há muito tempo prometidas à primeira noiva. — Toodles vem chegando, gritou Jo já de baixo. E todas as outras desceram para encontrar Laurie, cuja visita semanal, ao deixar o colégio, era um importante acontecimento para aquelas vidas quietas. Um rapaz alto, de ombros largos, com os cabelos bem aparados sob um vasto chapéu de feltro, com um paletó aberto, veio vindo a grandes os, pulando o gradilzinho para não ter o trabalho de abrir o portão. Correu para a sra. March, com os braços abertos e um cordial: — Aqui estou eu, mamãe. Sim, tudo muito bem. As últimas palavras eram em resposta ao olhar que a velha senhora lhe dirigia; um olhar bondoso, investigador. Os belos olhos do rapaz enfrentaram com tunta franqueza aquele exame que a pequena cerimônia acabou como de costume, com um beijo maternal. — Para a sra. John Brooke, com mil cumprimentos e congratulações. Deus a abençoe, Beth! ─ Que espetáculo delicioso é você, Jo! Amy, você agora tem beleza para dar e vender. Enquanto falava, Laurie entregou a Meg am embrulhinho de papel pardo, boliu na fita dos cabelos de Beth, contemplou sorrindo o enorme avental de Jo e caiu numa atitude de êxtase trocista diante de Amy. Então apertou a mão da turma inteira e todos começaram a falar. — Onde está John? perguntou Meg ansiosamente. Picou para tirar a licença matrimonial para amanhã, minha cara senhora. — Que partido ganhou o último jogo, Teddy? quis saber Jo, que persistia em mostrar-se interessada em esportes masculinos, apesar dos seus dezenove anos. — O nosso, é claro. Eu queria que você estivesse lá para ver. . . — Como vai a adorável senhorita Randal? perguntou Amy, com um sorriso significativo. — Mais cruel do que nunca. Não vê como eu estou definhando? E Laurie deu um murro estrondoso na sua larga caixa torácica e soltou um melodramático suspiro. — Qual é a última brincadeira? Abra o embrulho e veja, Meg, disse Beth, espiando com curiosidade o pacote. — É uma coisa útil para se ter em casa, no caso de incêndio ou de assalto de ladrões, observou Laurie, quando apareceu um apito de guarda-noturno, provocando uma risada geral. Toda vez que John estiver fora e se sentir um pouco assustada, sra. Meg, vá para a janela, apite e acorde a vizinhança. Linda coisa, não é? E Laurie, num sopro terrível, provou a força dos seus pulmões, embora com risco de estragar os ouvidos alheios. — Isso é um sinal de gratidão que eu lhe dou. E por falar de gratidão, agora me lembro de'dizer a vocês que devem agradecer a Hannah a salvação do bolo de casamento. Encontrei-o no meio do caminho, e, se ela não o tivesse defendido heroicamente, eu teria arrancado um pedaço, pois estava simplesmente tentador.
— Laurie, quando é que você se resolve a crescer? perguntou Meg, num tom já de senhora. — Faço o que posso para isso, mas não poderei ficar mais alto. Seis pés de altura é, receio eu, o máximo a que um homem pode chegar nestes tempos de degenerescência, respondeu o homenzinho, cuja cabeça ia além do pequeno lustre. Creio que seria uma profanação comer qualquer coisa nesta cabana novinha em folha, mas, como estou com uma fome tremenda, proponho sairmos. — Mamãe e eu temos de esperar por John. Ainda há algumas coisas para resolver ─ disse Meg afastando-se. — Beth e eu temos de ir buscar mais flores para amanhã, acrescentou Amy, colocando um chapeuzinho pitoresco na sua pitoresca cabeça de cachos louros e gozando o efeito melhor do que ninguém. — Venha, Jo. Não abandone um companheiro. Estou num tal estado de cansaço que não poderei chegar em casa sem ajuda de alguém. Não tire o avental. Ele lhe fica tão bem! ─ disse Laurie quando Jo lhe ofereceu o braço para sustentar os seus fracos os. — Agora, Teddy, quero falar-lhe seriamente a respeito do dia de amanhã, começou Jo, quando ia andando ao lado do companheiro. Você deve prometer portar-se bem, deixando de travessuras. — Serei um menininho ajuizado. — E não diga coisas engraçadas quando devemos falar a sério. — Mas eu nunca faço isso. Você, sim. — E suplico-lhe que não olhe para mim durante a cerimônia.Se olhar, com certeza abrirei uma risada. — Você nem me verá. Há de chorar tanto que as lágrimas lhe turvarão a vista. — Eu não choro nunca, a não ser por uma grande aflição. — Por exemplo: quando um camarada vai para o colégio, não é? interrompeu Laurie, com uma sugestiva risada. — Não seja tão vaidoso. Choraminguei um pouco apenas para fazer companhia às meninas. — Exatamente. Agora, Jo, diga-me: como está o avô esta semana? Bemhumorado? — Muito. Por que pergunta? Meteu-se em alguma trapalhada e quer saber como ele receberá a notícia ? perguntou Jo um tanto asperamente. — Ora, Jo, você pensa que, se isso houvesse acontecido, eu teria olhado tão firmemente para a sua mãe e dito que tudo ia bem? E Laurie parou de repente, com ar ofendido. — Não, não penso nisso. — Então vamos embora e deixe de ser desconfiada. Preciso apenas de algum dinheiro, disse Laurie, andando de novo, consolado pelo tom cordial da resposta de Jo. — Você gasta muito, Teddy. — Que injustiça! Eu não gasto nada. Gasto a mim mesmo, algumas vezes. — Você é muito generoso, tem o coração grande demais, empresta dinheiro a toda gente e não sabe dizer não a ninguém. Já sabemos do que você fez pelo Henshaw. Se você gastar sempre dinheiro desse modo, ninguém terá motivo para
censurá-lo, disse Jo simpaticarnente. — Oh! ele exagerou muito. Você não havia de querer que eu deixasse esse bom camarada morrer de tanto trabalho, só por falta de um pouco de ajuda, quando ele vale mais do que uma dúzia de certos rapazinhos preguiçosos. — Você fez muito bem. Mas não vejo qual a necessidade que tem você de dezessete coletes de fantasia, uma infinidade de gravatas e um chapéu novo cada semana. Pensei que já tivesse encerrado o período de almofadismo. Parece, entretanto, que, uma vez por outra, a mania ainda se manifesta. Agora então, a moda é horrível. Onde se viu coisa pior do que aparar os cabelos de um modo que a cabeça parece uma escova arrepiada, usar paletozinhos bem apertados, luvas cor de laranja e sapatos de ponta rombuda? Se essa feiúra ainda fosse barata, eu não diria nada. Mas custa uma fortuna e não vejo qual a satisfação que se possa tirar dela. Laurie abaixou a cabeça e riu tão desabaladamente que o vasto chapéu de feltro pulou fora e Jo pisou-o. Esse insulto lhe valeu apenas como uma oportunidade para fazer largas considerações sobre as vantagens de um chapéu resistente, como ditava a última moda. — Por favor, não quero mais sermões. Sou uma boa alma! Já aguentei muitas dessas tiradas durante a semana e, voltando para casa, quero divertir-me um pouco. Amanhã eu procederei de forma irrepreensível e serei uma satisfação para os meus amigos. — Eu não implicarei mais com você se ao menos deixar crescer o cabelo. Não tenho nada de aristocrata, mas não gosto de ser vista em companhia de uma pessoa que parece um jovem lutador de box, observou Jo severamente. — Esse estilo despretensioso estimula o estudo. É por isso que eu adoto, retrucou Laurie, que certamente não podia ser acusado de vaidade, tenho voluntariamente sacrificado uma linda cabeleira encaracolada. Olhe, Jo, penso que o pequeno Parker está com a cabeça transtornada por causa de Amy. Fala dela constantemente, escreve versos e contempla o luar de uma maneira muito suspeita. Seria melhor que ele cortasse logo pela raiz a sua paixãozinha, você não acha? ─ acrescentou Laurie, depois de um minuto de silêncio, num tom confidencial de irmão mais velho. — E claro. Não queremos mais casamentos na família durante muitos anos. Coitadas de nós! Que é que esses meninos estão pensando? E Jo mostrou-se muito escandalizada, como se Amy e o pequeno Parker já não estivessem em plena mocidade. — São uma geração muito apressada e nem sei onde havemos de chegar, minha cara senhora. Você é ainda uma garota, mas vai ser a primeira depois de Meg e nós é que ficaremos nos lamentando ─ disse Laurie, balançando a cabeça sobre a degenerescência dos tempos. — Não se assuste. Não sou de natureza agradável. Ninguém há de me querer e isso é uma sorte, porque deve sempre haver uma solteirona na família. — Você também não dá uma oportunidadezinha a ninguém. ─ disse Laurie, com o olhar atravessado e um pouco mais de cor na face queimada pelo sol. Você não quer mostrar o lado mais doce do seu caráter. E se um camarada consegue dar uma espíadela para esse lado, por acaso, e não esconde a sua boa impressão, você o trata como a sra. Cummidge fazia com o namorado —- isto é, atira água fria na
cabeça do dito. E fica tão espinhada que ninguém ousa tocá-la ou mesmo vê-la. — Não gosto dessas coisas. Ando muito ocupada para perder tempo com essas tolices e acho que é horrível dividir assim as famílias. Agora não quero dizer mais nada sobre isso. O casamento de Meg virou a cabeça de nós todos e não falamos de mais nada a não ser de amores e tais absurdos. Se você não me quer ver irritada, mude de assunto, disse Jo parecendo perfeitamente disposta a atirar água fria em quem lhe fizesse a mais leve provocação. Quaisquer que pudessem ser os sentimentos de Laurie, o rapaz encontrou um derivativo para eles num demorado assobio em surdina e nesta temível profecia que fez ao despedir-se da moça, no portão: — Tome nota das minhas palavras, Jo. Você será a primeira.
CAPITULO
II
O Primeiro Casamento
As rosas de junho, sobre a varanda, acordaram bem cedo e com todo o seu viço naquela manhã, regozijando-se de coração à luz do sol sem nuvens, como amáveis vizinhas que eram. As suas faces coradas resplandeciam de jovial animação, quando se balançavam ao vento, cochichando umas às outras o que tinham visto. Pois, algumas espiavam pelas janelas da sala de jantar, onde o banquete estava preparado. Outras subiram para cumprimentar, num sorriso, as irmãs, quando vestiam a noiva, enquanto .outras ainda davam as boas-vindas às pessoas que iam e vinham em diversas direções, no jardim, na varanda e no vestíbulo. E todas, desde a flor plenamente desabrochada até ao mais pálido botãozinho, ofereciam o seu tributo de beleza e de aroma à gentil senhora que lhes dera por tanto tempo o seu amor e os seus cuidados. Meg parecia, ela- mesma, uma rosa, pois tudo que há de melhor e de mais suave na alma e no coração florescia em seu rosto naquele dia, tornando-o lindo e terno, com um encanto mais belo do que a própria beleza. Nem seda, nem rendas, nem flores de laranjeira. — Não quero parecer diferente nem especialmente preparada no dia de hoje, disse. Não quero um casamento elegante. Desejo apenas ver em torno de mim pessoas a quem quero bem como gente de minha própria família. Assim, foi ela mesma quem fez o seu vestido de noiva, costurando-o entre as doces esperanças e os inocentes devaneios do seu coração de mocinha. As irmãs trançaram-lhe o bonito cabelo e os únicos enfeites que usou foram os lírios do vale, que o "John dela" apreciava como a mais encantadora das flores. — Você se parece em tudo com a nossa querida Meg de sempre e está agora tão suave e adorável que só não lhe dou um abraço muito apertado para não lhe amarrotar o vestido! exclamou Amy, examinando-a com prazer, depois de tudo preparado.
— Então, estou satisfeita. Mas, por favor, abracem-me e beijem-me vocês todas e não se importem com o vestido. Dessa maneira, eu até desejo que me amarrotem a roupa muitas vezes, no dia de hoje, e Meg abriu os braços para as suas irmãs, que a envolveram por um minuto com as suas faces primaveris, sentindo que o novo amor não tinha modificado o antigo. — Agora, vou dar o laço à gravata de John e, depois, ficarei alguns instantes sossegadamente com papai, no gabinete, acrescentou. E Meg descendo para realizar essas pequenas cerimônias, seguindo depois a mãe para toda parte onde ela ia, compreendendo que, apesar da sua fisionomia risonha, havia uma secreta tristeza no seu coração pelo vôo do primeiro pássaro que deixava o ninho. Já que as irmãs mais moças estão reunidas agora dando os últimos retoques na sua tão simples "toilette", poderíamos aproveitar a ocasião para observar algumas mudanças que três anos operaram no aspecto das moças. Todas três pareciam ter melhorado bastante. Os ângulos de Jo atenuaram-se muito. Aprendeu a apresentar-se com facilidade, se não mesmo com graça. O cabelo curto e cacheado transformou-se em abundantes madeixas, mais de acordo para a paquena cabeça que encimava a sua alta figura. Há uma cor mais viva nas suaa faces morenas, um doce brilho nos seus olhos. E hoje, de sua língua áspera só caem palavras gentis. Beth cresceu esbelta, pálida e mais sossegada do que nunca. Seus olhos bonitos e bons parecem maiores e neles há uma expressão que entristece, embora em si mesma não seja triste. É a sombra da dor que se espelha na fisionomia jovem com tão impressionante paciência. Beth, porém, raramente se queixa e fala sempre com esperança em melhorar muito em breve. Amy é considerada com justiça a flor da família, pois, aos dezesseis anos, tem o ar e o porte de uma mulher plenamente desenvolvida não propriamente bela, mas dona desse indescritível encanto que se chama a graça. É uma coisa que se vê nas linhas do seu tipo, no trabalho e no movimento das suas mãos, no jeito do seu vestido, nas curvas do penteado. Inconsciente, mas harmoniosa, e tão atraente como a própria beleza. O nariz de Amy ainda a aflige, porque nunca, adquire a linha grega. Assim também a sua boca, que é larga demais, e o queixo muito acentuado. Essas feições incorretas dão personalidade a todo o seu rosto, porém Amy nunca compreende isso e trata de consolar-se com o corpo maravilhosamente lindo, os delicados olhos azuis e os cachos mais dourados e abundantes do que nunca. Todas três usavam vestidos de um cinzento prateado (os melhores trajes para o verão), com rosas nos cabelos e no peito; e todas três pareciam exatamente o que eram, moças de fisionomia fresca e de coração feliz, detendo-se um momento em sua vida atarefada para ler com olhos simpáticos o mais doce capítulo do romance de uma mulher. Não se pensava em nada de cerimonioso, devendo tudo ser tão natural e tão caseiro quanto possível. Assim, quando a tia March chegou, escandalizou-se logo por ver a noiva vir correndo para lhe dar as boas-vindas e fazê-la entrar; por encontrar o noivo pregando um ramalhete aue tinha caído e por ter vislumbrado o paternal ministro subindo a escada com a devida austeridade e uma garrafa de vinho debaixo de cada braço. — Palavra de honra, existe aqui um tal estado de coisas! exclamou a velha
senhora, sentando-se no lugar de honra que lhe tinha sido reservado e arranjando as dobras da saia rodada num modo ruidoso. Você não deve ser vista até o último minuto, minha filha ─ acrescentou. — Eu não sou um espetáculo, titia, e ninguém virá aqui para me irar, criticar o meu vestido ou fazer a conta de quanto custou a minha mesa de doces. Sou feliz demais para cuidar do que os outros possam pensar ou dizer a meu respeito. Meu casamentozinho tem de ir até o fim como eu gosto. John, meu querido, aqui está o martelo, e Meg foi saindo para ajudar aquele homem na sua tarefa complicada. O sr. Brooke nem chegou mesmo a dizer muito obrigado. Mas, quando desceu para apanhar o prosaico instrumento, beijou a noivinha atrás da porta, com uma. expressão que fez a tia March tirar o lenço para enxugar o repentino orvalho que molhara os seus velhos olhos penetrantes. Um esbarro, um grito e uma gargalhada de Laurie, acompanhada pela indecorosa exclamação: Júpiter mon! Jo estragou o doce outra vez! Causaram uma momentânea confusão, que ainda não tinha ado de todo quando chegou um grupo de primos. — Não deixem o gigantezinho chegar perto de mim. Ele me aborrece mais do que os mosquitos, sussurrou a velha ao ouvido de Amy, quando a casa se encheu, e a cabeça de Laurie se destacava acima de todas as outras. — Ele prometeu ser muito bonzinho hoje e, quando quer, sabe ser perfeitamente elegante, respondeu Amy, saindo logo para avisar Hércules de que devia ter cuidado com o dragão. Esse aviso fez que ele importunasse a velha senhora com uma devoção que esteve a ponto de enlouquecê-la. Não houve desfile nupcial, mas um súbito silêncio dominou a sala quando o sr. March e o jovem par tomaram os seus lugares sob a verde arcada. A mãe e as irmãs reuniram-se bem perto, como se estivessem contrariadas por terem de ficar sem a Meg. A voz paternal mais de uma vez se interrompeu e isso servia apenas para fazer a cerimônia mais bela e mais solene. A mão do noivo tremia visivelmente e ninguém escutava as suas respostas. Meg, porém, tinha os olhos fixos nos do marido e disse o sim com tão suave confiança espelhada na fisionomia e na voz que o coração de sua mãe se alegrou e o da tia March teve um pigarro que foi ouvido por todos. Jo não chorou positivamente, embora estivesse quase para isso. Salvou-a de um pranto a certeza de que Laurie estava olhando fixamente para ela, com uma engraçada mistura de alegria e de emoção nos seus maliciosos olhos negros. Beth encostou o rosto no ombro de sua mãe, porém Amy permaneceu como uma graciosa estátua, com um muito adequado raio de sol tocando a sua fronte branca e a flor dos seus cabelos. No minuto em que acabou de se casar, Meg gritou: — O primeiro beijo é para a mamãe! E, voltando-se, beijou-a nos lábios com todo o seu coração. Durante os quinze minutos que se seguiram, ela pareceu uma rosa mais do que nunca, porque todos se valeram dos seus privilégios, desde o sr. Laurence até a velha Hannah. Estava enfeitada com uma touca maravilhosamente feita, correu para ela no vestíbulo, gritando entre um soluço e uma carícia: — Deus te abençoe cem vezes, queridinha! O bolo está sem um defeito e todas as coisas parecem muito bem arranjadinhas.
A alegria era geral. Todos tinham a dizer qualquer coisa de interessante ou que pensavam ser interessante, o que dava no mesmo, pois o riso era fácil e os corações estavam leves. Não houve exposição de presentes pois já tinham sido levados para o larzlnho do novo casal. Não houve também úm banquete preparado, mas apenas uma variada merenda de doces e frutas com a mesa ornada de flores. O Laurence e a tia March sacudiam os ombros e sorriam um para o outro quando descobriram que água, limonada e café eram as únicas espécies de néctar que as três Hebes serviam. Contudo, ninguém disse nada até que Laurie, que insistia em servir a noiva, apareceu diante dela com uma bandeja na mão e uma expressão espantada no rosto. — Jo teria quebrado por acaso todas as garrafas, ou estou apenas sendo vítima de uma ilusão, pois parece que vi algumas aqui esta manhã? murmurou ele. — Não. O seu avô ofereceu gentilmente alguns dos seus melhores vinhos e a tia March também nos trouxe algumas garrafas. Mas papai separou um pouco do vinho para Beth e mandou o resto para a "Casa dos soldados". Você sabe que ele acha que o vinho só deve ser tomado como remédio e mamãe disse que nem ela nem as suas filhas jamais darão bebida em sua casa a qualquer rapazinho. Meg falou seriamente e esperava que Laurie sorrisse ou amarrasse a cara. Mas ele não fez nem uma nem outra coisa, pois, depois de olhar maliciosamente para ela, disse no seu modo impetuoso: — Gosto disso. Sei bastante o mal que faz a bebida e desejo que as outras mulheres pensem como vocês. — Você sabe disso por experiência própria? E havia um acento ansioso na voz de Meg. — Não, dou-lhe a minha palavra que não. Não pense tão bem a meu respeito. Essa não é uma das minhas tentações. Sendo criado numa casa onde o vinho é tão comum como a água e quase tão inofensivo quanto ela, a bedida não me interessa, mas quando é uma moça bonita quem oferece, é claro que ninguém recusa, você há de convir. — Mas você deve recusar, para o bem dos outros, senão para o de você mesmo. Vamos, Laurie, prómeta-me isso e dê-me mais uma razão para que eu possa considerar este dia o mais feliz da minha vida. Um pedido tão repentino e tão sério fez o jovem hesitar por um momento, pois o ridículo é muitas vezes mais difícil de ar do que a renúncia a um prazer. Meg sabia que, se ele prometesse, manteria a palavra empenhada a todo o custo. Sentindo o seu poder, usava dele como uma mulher pode fazer para o bem de um amigo. Ela não disse mais nada, mas o fitou com a fisionomia que a felicidade tornava ainda mais eloqüente e com um sorriso que parecia declarar: Hoje ninguém me pode recusar nada. Laurie, certamente, não recusaria. E, com um sorriso, estendeu-lhe a mão, afirmando cordialmente : — Eu prometo, sra. Brooke. — Obrigada; muito, muito obrigada. — E eu bebo em honra de sua resolução, Teddy, exclamou Jo, batizando-o com uns pingos de limonada, quando levantava o copo e se inclinava
aprovativamente para ele. Assim, foi erguido o brinde, feito o acordo e mantida a palavra, apesar de muitas tentações; pois, com instintiva sabedoria, as moças tinham aproveitado o feliz momento para fazer ao amigo um benefício que ele agradeceria durante toda a sua vida. Depois da merenda, o pessoal foi-se espalhando, aos dois e aos três, pela casa e pelo jardim, gozando a beleza do dia. Aconteceu que Meg e John ficaram juntos no meio de um tapete de grama, quando Laurie teve uma inspiração que veio dar o toque final naquele casamento sem conven-cionalismos. — Todos os casados devem unir as mãos e dançar em redor do nubentes, como fazem os alemães, enquanto nós, solteirões e solteironas, dançaremos aos pares do lado de fora, propôs Laurie, rodando com Amy pelo jardim, com tal entusiasmo pela própria idéia que foi transmitindo animação a toda gente. O sr. e a sra. March, a tia e o tio Carrol, deram o exemplo. Os outros rapidamente se juntaram. A própria Sallie Moffat, depois de um minuto fle hesitação, aderiu à roda com o marido. Mas a graça principal era ver o sr. Laurence e a tia March, pois formavam um dos pares mais animados. O baile improvisado só parou pela falta de fôlego dos dançarinos, e, então, os convidados começaram a se despedir. — Desejo-lhe todo o bem possível, minha querida. Quero que seja muito feliz. Receio, entretanto, que venha a ter aborrecimentos, disse a tia March para Meg, acrescentando ao noivo, quando este a acompanhou até a carruagem: Você ganhou um tesouro, rapaz; trate de merecê-lo. — Foi o casamento mais bonito que já vi ultimamente, Ned, e não sei mesmo porque, pois não houve o menor estilo na cerimônia, observou a sra. Moffat, para o marido, quando se retiravam. — Laurie, meu menino: se você der para pensar em casamento, pegue uma dessas boas pequenas e eu ficarei perfeitamente satisfeito, disse o sr. Laurence, estendendo-se numa poltrona para repousar, depois de uma manhã tão movimentada. — Farei todo o possível para satisfazê-lo, vovô, foi a resposta excepcionalmente atenciosa de Laurie, que, nesse momento, tirava da lapela a flor que Jo lhe dera. A pequenina residência do casal não ficava longe e a viagem nupcial de Meg consistiu apenas na serena caminhada ao lado de John, do velho lar para o novo. Quando ela saiu, todos vieram dizer-lhe adeus tão ternamente, como se fosse fazer uma longa viagem. — Não tenho a impressão de que me estou separando de você, mamãezinha querida. Não hei de lhe querer menos pelo fato de amar tanto ao John, disse ela, abraçando a mãe, com os olhos úmidos. Eu virei todos os dias, papai, e espero guardar o meu lugar antigo no coração de vocês dois, embora esteja casada. Beth vai ficar comigo por muito tempo e as outras pequenas têm de aparecer, de vez em quando, para rirem das minhas atrapalhações de dona-de-casa. Obrigada a todos pelo feliz dia do meu casamento. Adeus, adeus! E eles ficaram vendo a moça partir, com as faces cheias de amor, de esperança e de terno orgulho, enquanto ela se afastava, encostada ao braço do
marido, com as mãos cheias de flores, e o sol de junho iluminando o seu rosto feliz. E, assim, começou Meg a sua vida de casada.
CAPITULO III Tentativas artísticas Custa a muita gente, especialmente às moças e aos rapazes ambiciosos, aprender a diferença entre o talento e o gênio. Amy estava aprendendo essa distinção através de muitas peripécias. Pois, confundindo entusiasmo com inspiração, experimentava todos os ramos de arte com juvenil audácia. Durante muito tempo houve plena calmaria no negócio dos pastelões e ela dedicou-se aos mais finos desenhos a bico-de-pena, nos quais mostrou tanto gosto e tanta habilidade que a sua graciosa produção era ao mesmo tempo útil e agradável. Mas a fadiga dos olhos não tardou a motivar o abandono da pena e da tinta, dando margem a uma ousada tentativa em pirogravura. Enquanto durou essa crise, a família viveu no constante receio de uma conflagração. É que o odor da madeira queimada enchia a casa durante todo o santo dia. A fumaça saía do sótão e da oficina com alarmante freqüência. Ti-ções em brasa viva espalhavam-se pelo soalho. E Hannah não se recolhia ao leito sem antes examinar tudo, temendo um incêndio. Encontrava-se a face de Rafael audaciosamente executada na prancha de modelagem e a figura de Baco sorria sobre um barril de chope. Um querubim ornava a tampa do açucareiro e esboços de Romeu e Julieta apareciam algumas vezes. Do fogo ao óleo era uma transição natural para dedos chamuscados e Amy deu para pintar com o mesmo ardor. Um artista das suas relações forneceu-lhe palheta, pincéis e tintas. E ela foi besuntando a tela com disposição, produzindo vistas marinhas e pastorais como nunca se viram na terra ou no mar. As suas monstruosidades em matéria de gado teriam conquistado prêmios de originalidade numa exposição de pecuária. E as perigosas inclinações de seus barcos teriam provocado enjôo a qualquer observador náutico, se o superior desdém por todas as regras conhecidas de construção de navios e de equipagem não o contorcessem em boas gargalhadas logo ao primeiro lance de olhos. Garotos trigueiros e Madonas de olhos negros, fitando o espectador de um canto do estúdio, sugeriam Murilo. Sombras azeitonadas e semblantes com lúgubre expressão significavam Rembrandt. Senhoras prazenteiras e crianças hidrópicas definiam Rubens. E Turner aparecia em tempestades de coriscos azulados, relâmpagos alaranjados, chuva parda e nuvens purpurinas, com um borrão cor-detomate no meio, que tanto podia ser o sol como uma bóia, uma camiseta de marinheiro ou um manto real, à vontade do espectador. Vieram em seguida retratos a carvão. E a família inteira foi pendurada em fila, parecendo tão selvagem e tão suja como se tivesse saído de uma carvoaria. Suavizada em esboços a creiom, dava melhor impressão. Porque a semelhança era
evidente e o cabelo de Amy, o nariz de Jo, a boca de Meg e os olhos de Laurie eram acentuados maravilhosamente bem. Seguiu-se um retomo ao barro e ao gesso e formas fantásticas de pessoas conhecidas entupiam os cantos da casa ou tombavam de cima das prateleiras sobre a cabeça do pessoal. Crianças eram recrutadas para modelos, até que as suas incoerentes informações sobre as misteriosas façanhas de Amy fizeram que ela fosse considerada como uma jovem feiticeira. Seus esforços nesse sentido, contudo, foram aniquilados subitamente por um funesto acidente que apagou o seu ardor. Como certa vez lhe faltassem outros modelos, ela entendeu de fazer a forma de seu próprio pezinho tão bonito. A família foi um dia assustada por um reboliço sobrenatural e, correndo em socorro, encontrou a jovem entusiasta pulando desesperadamente em torno da oficina, com um dos pés preso num bloco de gesso que endurecera com inesperada rapidez. Foi arrancada dali com muita dificuldade e algum perigo porque Jo estava num tal ataque de riso quando cavava, que a sua faca afundou demais, cortou o pobrezinho do pé e deixou pelo menos uma lembrança duradoura de tal tentativa artística. Depois disso, Amy descansou, até que a mania de fazer esboços da natureza a levou a importunar rios, campos e bosques atrás de estudos pitorescos, além de suspirar por algumas ruínas dignas de ser copiadas. Apanhou não sei quantos resfriados por sentar-se na grama molhada para registrar um delicioso pedacinho, composto de uma pedra, um cogumelo, uma asa quebrada de moinho ou um celestial bloco de nuvens, que pareciam um mostruário de colchões de penas, depois de desenhados. Ela sacrificou a lindeza da sua cútis flutuando sobre o rio ao sol do meio-dia, para estudar luz e sombra e recebeu uma mordedura de inseto na ponta do nariz, experimentando pontos de vista ou qualquer outro nome que possam ter. Se o gênio é eterna paciência, como afirma Michelangelo, Amy certamente tem algum direito a esse divino atributo, porque perseverou a despeito de todos os obstáculos, fracassos e desânimos, acreditando firmemente que com o tempo havia de fazer qualquer coisa digna de ser considerada como arte de verdade. Ao mesmo tempo, ia ela aprendendo, fazendo e gozando outras coisas, porque tinha resolvido ser uma mulher atraente e prendada, mesmo se nunca se tornasse uma grande artista. Aqui o seu êxito foi mais completo, porque era um desses seres venturosamente dotados que encantam sem esforço, fazem amizades por toda parte e levam a vida tão graciosa e tão facilmente que as almas menos afortunadas tendem a acreditar que tais criaturas nasceram sob a influencia de uma estrela venturosa. Todos gostavam dela, porque o tato figurava entre as suas boas qualidades. Posâuía o senso instintivo do que era agradável e apropriado, sempre dizia o que melhor convinha a cada pessoa, fazia justamente o que estava de acordo com a ocasião e o lugar e sabia dominar-se tão bem que as suas irmãs costumavam dizer: ─ Se Amy aparecesse na corte sem qualquer ensaio prévio, ela saberia exatamente como se conduzir. Uma das suas fraquezas era o desejo de frequentar a nossa melhor sociedade, sem saber ao certo qual era realmente a melhor. Dinheiro, posição, criações da moda e maneiras elegantes eram aos seus olhos as coisas mais tentadoras. Gostava de unir-se às pessoas que possuíam tudo isso, muitas vezes
tomando o falso pelo verdadeiro e irando o que não era irável. Não esquecendo nunca que era uma fidalga pelo sangue, cultivava ps seus gostos e sentimentos aristocráticos, de modo que, quando viesse uma oportunidade, poderia estar pronta para assumir o lugar do qual a pobreza a excluía agora. ─ Minha dama, como os amigos a chamavam, desejava sinceramente ser uma genuína dama. E já o era no coração, mas não tinha ainda aprendido que o dinheiro não pode comprar o requinte da natureza, que a posição nem sempre confere nobreza e qué a verdadeira polidez sempre se faz notada qualquer que seja o aspecto exterior. — Quero pedir-lhe um favor, mamãe ─ disse Amy certo dia, ao entrar em casa, com um ar importante. — Bem, filhinha. De que se trata? ─ respondeu a mãe, para cujos olhos a jovem dama continuava a ser a pequerrucha. — A nossa classe de desenho encerra-se na semana vindoura e, antes que as meninas se separem nas férias do verão, quero convidá-las a virem aqui um dia. Estão doidas para ver o rio, desenhar a ponte quebrada e tirar cópias de algumas coisas que iram no meu caderno. Elas têm sido boazinhas para mim e sou muito grata, pois elas são ricas e sabem que eu sou pobre. Contudo nunca fizeram diferença. — E por que haviam de fazer? E a sra. March, lançou esta pergunta com o que as meninas chamavam o seu ar de Maria Teresa. — A senhora sabe tão bem quanto eu que isso tem de fazer diferença com quase toda gente. Portanto, não queira tomar ares de pavão, coruja maternal, quando os seus filhotinhos são espezinhados por aves mais bonitas. E Amy sorriu sem amargura, porque era dotada de temperamento alegre e de espírito sempre esperançado. A sra. March deu uma risada e suavizou o orgulho maternal quando perguntou: — Está bem, corujinha. Quais são os seus projetos? — Eu gostaria de convidar as colegas para uma merenda na próxima semana, além de um eio de carro pelos lugares que desejam conhecer, uma viagenzinha de bote pelo rio e também um festivalzinho artístico para elas. — Isso não parece irrealizável. Que deseja para a merenda? Bolo, sanduíches, frutas e café bastam, não é assim ? — Oh! mamãezinha querida, não! Devemos ter presunto e outros frios, chocolate francês e sorvetes, além do mais. As colegas estão acostumadas a essas coisas e quero que minha merenda seja apropriada e elegante, ainda que tenha de trabalhar a vida inteira para isso. — Quantas são as senhoritas? ─ perguntou a mãe, começando a mostrar-se mais comedida. — Doze ou quatorze na minha classe, mas acredito que nem todas virão. — Deus me abençoe, pequena! Você terá de alugar um ônibus para trazer tanta gente. — Por que, mamãe ? Como pode pensar numa tal coisa? Não virão provavelmente mais de seis ou oito. Assim, eu alugarei uma berlinda e pedirei emprestada a charrette do senhor Laurence.
— Tudo isso custa dinheiro, Amy. — Não muito. Já calculei a despesa e eu mesma hei de pagá-la. — Já que essas meninas estão acostumadas a todas essas coisas e que não será nada de novo tudo que fizermos, você não acha, queridinha, que para elas seria mais agradável outro plano mais simples, ao menos pela mudança? E para nós seria também muito melhor, do que comprar ou pedir emprestado. Não precisamos fazer isso nem ostentar um luxo que não está de acordo com a nossa situação. — Se eu não posso ter as coisas como gosto, prefiro desistir. Eu sei que posso arranjar tudo perfeitamente bem, se a senhora e as meninas me ajudarem um pouquinho, E não vejo por que não posso fazer isso, se estou querendo pagar as despesas, disse Amy, com uma decisão que, sendo contrariada, estaria apta a se transformar em teimosia. A sra. March sabia que a experiência era uma excelente professora e, quando isso era possível, deixava as filhas aprenderem por si mesmas as lições que ela de boa vontade teria facilitado, se as mocinhas não fizessem aos conselhos tanta cara feia como a certos remédios desagradáveis. — Está muito bem, Amy. Se é essa a sua vontade e se vê a possibilidade de realizá-la sem gastar em excesso dinheiro, tempo e nervos, não direi mais que não. Fale a esse respeito com as meninas e eu tratarei de fazer o que estiver ao meu alcance para ajudá-la no que vocês decidirem. — Obrigada, mamãe. É sempre tão boa! E Amy saiu correndo para expor às irmãs o seu plano. Meg concordou logo de uma vez e prometeu auxílio, alegremente, oferecendo tudo que possuía, desde a própria casa até as colherinhas. Mas Jo franziu a testa diante de todo o projeto e no começo não queria mover uma palha para levá-lo adiante. — Por que você há de gastar o seu dinheiro, dar trabalho à família, virar a casa de pernas para o ar, só por causa de uma turma de pequenas que não lhe ligam a mínima importância ? Pensava que você tivesse 'bom senso e amor próprio suficiente para não se humilhar diante de qualquer mulher deste mundo, só porque ela usa sapatinhos fanceses e guia um coupé, disse Jo que, tendo sido arrancada ao período mais trágico de sua novela, não estava em boas disposições para empreendimentos sociais. — Eu não me humilho e odeio ser tratada de alto a baixo por qualquer pessoa, tanto quanto você! respondeu Amy indignada, pois as duas ainda se abespinhavam quando vinham à baila tais questões. As pequenas são atenciosas comigo e há muito juízo, muita bondade e muito talento entre as minhas colegas, apesar do que você classifica de absurdos de moda. Você não trata de fazer com que as pessoas a apreciem, de freqüentar a boa sociedade e de apurar o gosto e os modos. Mas eu me importo com isso e cuido de tirar o máximo proveito de qualquer oportunidade que apareça. Você pode ir pelo mundo a fora com as sobrancelhas franzidas e o narizinho arrebitado e, se quiser, pode chamar isso, de independência. Mas esse não é meu sistema. Quando Amy desatava a língua e expandia as idéia, geralmente levava vantagem com isso, pois quase sempre conseguia ter o senso comum a seu lado, enquanto Jo dava ao amor da liberdade e ao desprezo das convenções tão ilimitada
extensão que naturalmente ficava rio ponto fraco da discussão. A definição de Amy da idéia de independência de Jo foi um golpe tão acertado que ambas cairam numa boa risada e a polêmica tomou uma feição mais amistosa. Muito contra vontade, Jo consentiu afinal em sacrificar um dia da sra. Grandy e em ajudar a irmã no que considerava como um negócio sem pés nem cabeça. Foram enviados os convites, quase todas as colegas de Amy os aceitaram e a segunda-feira mais próxima foi escolhida para o grande acontecimento. Hannah ficou mal-humorada porque o trabalho da semana era prejudicado e profetizou que se não se levasse, e se engomasse com regularidade, nada iria para diante. Esse desarranjo no movimento da máquina doméstica produziu um mau efeito sobre todo o conjunto. Entretanto, o lema de Amy era "Nihil desperandum". Tendo acertado na cabeça o que devia fazer, tratou de realizá-lo a despeito de todos os obstáculos. Para começar, a cozinha de Hannah não deu bons resultados: a galinha estava dura, a língua muito salgada e o chocolate não foi preparado como era de esperar. Além disso, o bolo e os sorvetes custaram mais do que Amy calculava. O mesmo se deu quanto ao preço da carruagem. Várias outras despesas, que pareciam insignificantes no começo, cresceram depois de modo alarmante. Beth resfriou-se e foi para a cama, Meg ficou presa em casa por culpa de algumas visitas imprevistas e Jo andava num tão incerto estado de espírito que os seus esquecimentos, acidentes e atrapalhações eram extraordinariamente numerosos e desastrados. — Se não fosse mamãe, eu nunca me teria livrado dessa entaladela, declarou Amy depois, com gratidão, quando a melhor brincadeira do ano já estava inteiramente esquecida por quase todos. Se não fizesse bom tempo na segunda-feira, as jovens viriam na terça. Essa combinação ainda mais exarcebou Jo e Hannah. Na manhã da segunda-feira, o tempo mostrava-se num estado de indecisão mais irritante do que uma verdadeira tempestade. Ora choviscava, ora o sol dava o ar de sua graça, ora ventava forte. E nessa dúvida, ninguém sabia o que devia ficar resolvido. Amy rodava acima e abaixo tirando gente da cama, apressando o almoço, para que a casa pudesse ficar preparada ainda cedo. Impressionou-se com a aparência de extrema pobreza que dava a sala de entrada. Mas, sem perder um minuto em queixas inúteis, tra tou de aproveitar com habilidade o que havia dentro dela, arranjando cadeiras para cobrir os lugares esfiapados do tapete, cobrindo manchas das paredes com retratos emoldurados de hera e enchendo os cantos vazios com a estatuária feita em casa, dando assim um ar artístico ao aposento, graças também aos delicados vasos de flores que Jo espalhou aqui e ali. A merenda parecia encantadora. Quando a contemplou, Amy tinha a doce esperança de que havia de ser apreciada. E também fazia votos para que voltassem sem novidades aos respectivos lares os cristais, as porcelanas e a prataria que tinham vindo por empréstimo. A condução estava prometida. Meg e a mãe apresentaram-se para fazer as honras da casa, Beth estava em condições de ajudar Hannah atrás da cena. Jo assumira o compromisso de proceder tão discreta e amavelmente quanto um espírito distraído, uma dorzinha de cabeça e uma decidida desaprovação de tudo e de todos poderiam permitir. Ao vestir-se, Amy já antegozava o feliz momento em que, realizada a contento a cerimônia da merenda, ela sairia a
eio com suas amiguinhas, para uma tarde de deleites artísticos.. Vieram a seguir duas horas de ansiosa expectativa, durante as quais ela vibrava da sala de entrada até o portal, enquanto a opinião pública oscilava como pluma ao vento. Um aguaceiro, às onze horas, esfriou evidentemente o entusiasmo das senhoritas que eram esperadas ao meio-dia, pois ninguém apareceu. As duas da tarde, a família exausta sentou-se a mesa para consumir as porções do banquete que não podiam ser guardadas para o dia seguinte. Ao acordar com o sol, na manhã seguinte, Amy disse logo: ─ O tempo hoje parece firme. Elas virão com toda certeza. ─ Falou animadamente, mas no íntimo do coração achava que seria bem melhor não ter combinado coisa alguma para terça-feira, pois o seu entusiasmo, tal e qual o bolo da festa, começava a se desmanchar. — Você terá de arranjar-se sem salada hoje, porque não consegui nenhuma lagosta, disse o sr. March, ao voltar para casa meia hora mais tarde, com uma expressão de plácido desespero. — Aproveite-se a galinha, nesse caso. Para a salada não tem importância que esteja dura, aconselhou a esposa. Hannah deixou-a na mesa da cozinha por um instante e os gatinhos comeram tudo. ─ Sinto muito Amy ─ adiantou Beth que era ainda uma protetora dos bichanos. — Então, devo ter uma lagosta de qualquer jeito, porque língua só não basta, disse Amy com energia. — Quer que eu corra até à cidade, para arranjar uma? perguntou Jo, com a magnanimidade de uma mártir. — Você havia de trazê-la para casa debaixo do braço sem embrulhá-la, só para me mortificar. Irei eu mesma, respondeu Amy, cujos nervos começavam a desandar. Protegida por um espesso véu e armada de uma graciosa cesta de viagem, lá se foi ela, sentindo que esse bom eio sossegaria o seu espírito atribulado, dando-lhe forças para enfrentar os trabalhos do dia. Após certa demora, porque o objeto do seu desejo era procurado cuidadosamente, Amy voltou para casa satisfeita com o bom resultado de sua viagem. Como o ônibus só levava um outro ageiro, uma velha que cochilava, guardou o véu e, para disfarçar o tédio da viagem, pôs-se a fazer contas para ver onde tinha ido todo o seu dinheiro. Absorvida no exame do seu cartãozinho de nota, cheio de complicadas cifras, Amy só notou a presença dum novo ageiro, que tomou o veiculo em movimento, quando uma voz masculina disse: — Bom dia, srta. March. Voltando-se para ver quem era, Amy encontrou um dos mais elegantes colegas de Laurie. Com a ardente esperança de que ele havia de saltar antes dela, Amy fingiu ignorar com superioridade a cesta que estava a seus pés e, congratulando-se consigo mesma por ter usado o seu mais lindo vestido de eio, respondeu ao cumprimento do rapaz com a habitual doçura e cordialidade. Entenderam-se muito bem, pois o principal cuidado de Amy foi o de adquirir, quanto antes, a confortável certeza de que o cavalheiro saltaria primeiro. Ia expandindo as idéias, no estilo elevado de sua prosa, quando a velha se levantou.
Tropeçando na porta, derrubou a cesta e, coisa horrorosa! A lagosta, em toda a sua prosaica aparência, foi revelada aos olhos aristocráticos de um Tudor. — Meu Deus! Ela esqueceu o jantar! exclamou o jovem insensato, empurrando com a ponta da bengala o monstro escarlate para o devido lugar e preparando-se para entregar a cesta à velha. — Não faça isso, por favor! A lagosta é minha, murmurou Amy, com a face quase tão vermelha como o crustáceo. — Oh, naturalmente! Desculpe-me. É linda essa lagosta, não acha? disse Tudor, com grande presença de espírito e um ar de discreto interesse que depunha a favor de sua educação. Amy suspirou aliviada, colocou desembaraçadamente a cesta sobre o banco e disse sorrindo: — Não quer provar a salada que vai ser feita com essa lagosta e ver as moças encantadoras que vão deliciar-se com ela? Isso, sim, era alta diplomacia, pois atacara dois pontos fracos da natureza masculina: a lagosta era imediatamente envolvida numa atmosfera de agradáveis impressões o a curiosidade acerca das "moças encantadoras", distraía o espírito do rapaz do cômico incidente. — Creio que ele há de rir e pilheriar com o Laurie sobre esse assunto, mas não verei isso. Já é um consolo, pensou Amy, quando Tudor se despediu e desceu. Ela não contou em casa esse encontro, embora descobrisse que, por culpa do desastre, o seu vestido novo estava muito estragado, nas preguinhas da saia, mas foi logo cuidar dos preparativos, que agora pareciam mais aborrecidos do que dantes. Ao meio dia, tudo estava pronto mais uma vez. Sentindo que a vizinhança acompanhava com interesse os seus movimentos, ela desejava apagar a lembrança do fracasso da véspera com um grande sucesso. Assim, mandou chamar a carruagem e seguiu ao encontro das convidadas, a fim de conduzi-las e escoltá-las até o lugar do banquete. — Lá vêm elas! Vou encontrá-las no portão. É um sinal de hospitalidade e quero que a pobrezinha tenha seus momentos de alegria depois de tanta atrapalhação, disse a sra. March, unindo a ação à palavra. Mas, depois de fixar a vista, ela se retirou com uma expressão indescritível na fisionomia, pois, na imensa carruagem sentavam-se apenas Amy, que parecia desesperada, e uma outra mocinha. — Corra Beth, e vá ajudar Hannah a tirar metade das coisas da mesa. Seria um absurdo apresentar uma merenda para doze pessoas a uma única moça, gritou Jo, descendo apressadamente e num tal excitamento que nem para rir podia parar. Amy entrou perfeitamente calma e mostrou-se cordialíssima para com a única convidada que cumprira a sua promessa. O resto da família, nessa ocasião dramática, representou muito bem o seu papel e Miss Elliot notou que era uma gente muito divertida. Era impossível controlar completamente a alegria que dominava as pequenas. Depois de jovialmente servida a merenda, visitados o estúdio e o jardim, afora entusiásticas discussões sobre arte, Amy mandou vir um tílburi ( elegante carruagem) levou a sua amiguinha a ear sossegadamente pela redondeza, até o pôr do sol, quando a festa acabou. Quando voltou do eio, com um ar muito cansado, mas serena como
sempre, Amy observou que todos os vestígios da desventurada festa tinham desaparecido, exceto uma rugazinha suspeita no canto da boca de Jo. — Você teve uma tarde esplêndida para o seu eio, querida, disse a mãe da mocinha, tão respeitosamente como se tivessem vindo todas as doze convidadas. — A srta. Elliot é uma pequena muito boazinha e parece que se divertiu bastante, penso eu, observou Beth com excepcional animação. — Quer ceder-me um pedaço do seu bolo? Preciso realmente disso, porque sempre aparece gente lá por casa e eu não posso fazer coisas tão deliciosas como as suas, disse Meg discretamente. — Pode ficar com todo ele. Eu sou a única aqui de casa que gosta de doces e o bolo se estragaria antes que pudesse prová-lo outra vez, respondeu Amy, pensando com um suspiro em todas as despesas que fizera para chegar a tal resultado. — E pena que Laurie não esteja aqui para nos ajudar, começou Jo, quando se sentaram para saborear sorvete e salada pela segunda vez em dois dias. Um olhar repreensivo da mãe evitou maiores observações e toda a familia comeu em heróico silêncio, até que o sr. March comentou suavemente: — A salada era um dos pratos favoritos dos antigos Evelyn. Aí, uma explosão geral de riso cortou o começo da história das saladas, para grande surpresa do erudito cidadão. — Ponha-se tudo isso numa cesta e mande-se para os Hummels. Os alemães gostam de gulodices. Fico até doente quando vejo isso e não há motivo para que vocês todas morram de indigestão só porque procedi como uma maluca, gritou Amy, com os olhos rasos de água. — Pensei que ia morrer quando vi vocês duas chegarem naquele carroção enorme, como dois grãozinhos metidos num vasto saco de nozes, suspirou Jo, que já esgotara a sua capacidade de rir. — Sentimos muito que tenha tido essa decepção, querida, porém, fizemos tudo ao nosso alcance para satisfazê-la, disse a sra. March num tom cheio de maternal compaixão. — Pois eu estou satisfeita. Fiz o que pretendia e não é por minha culpa que a festa falhou. Isso me consola, comentou Amy, com um leve tremor na voz. Acho que vocês todas me ajudaram muito e ainda ficarei mais agradecida se não aludirem ao fato durante um mês, pelo menos. Não se falou mais no assunto durante vários meses. Mas a palavra festa produzia sempre um ataque geral de riso e o presente de Laurie, no aniversário de Amy, foi uma lagostazinha de coral, na forma de um enfeite para a corrente do seu reho.
CAPITULO IV Lições Literárias
A fortuna sorriu subitamente para Jo e atirou no seu caminho um tostãozinho de boa sorte. Não exatamente um tostaozinho de ouro, mas não creio que meio milhão teria dado uma felicidade mais verdadeira do que deu essa pequena quantia. De semana em semana, ela fechava-se em seu quarto, vestia o seu traje de escritora e caia em transe como ela própria dizia, escrevendo a sua novela com toda a alma e coração, porque não descansava antes de terminá-la. O seu traje de escritora consistia numa blusa de lã preta na qual limpava as penas à vontade e num gorro do mesmo material enfeitado com um laço de um vermelho vivo, no qual prendia o cabelo quando tudo estava pronto para o trabalho. Esse gorro era um farol aos olhos indagadores da família, que durante este período se mantinha a distância, arriscando-se simplesmente a perguntar com interesse, uma vez por outra: ─ Então Jo, o gênio está fervendo? Nem sempre se aventurava a fazer essa pergunta, mas tinha em observação o gorro e julgava de acordo com ele. Se tão expressivo complemento da indumentária estava bem enterrado na testa, isso era o sinal de que o trabalho mais difícil estava sendo executado. Nos momentos de maior vibração, era virado um tanto para trás, num jeitozinho boêmio, e, quando o desespero assaltava a autora, o gorro era arrancado da cabeça e atirado ao chão. Nessas ocasiões, qualquer intruso se afastava silenciosamente e ninguém ousava dirigir-se a Jo enquanto a borla vermelha não era vista alegremente levantada sobre a sua fronte inspirada. Ela não se considerava de nenhum modo um gênio, mas, quando lhe vinha o desejo de escrever, entregava-se a isso com toda intensidade e vivia na perfeita bem-aventuran-ça, sem tomar conhecimento do mau tempo, dos cuidados e das necessidades da vida, permanecendo feliz e satisfeita num mundo imaginário, cheio de amigos quase tão reais e tão queridos para ela como os de carne e osso. O sono fugia-lhe dos olhos, a comida nem era provada, o dia e a noite pareciam curtos demais para o gozo dessa felicidade que a envolvia de vez em quando e tornava tais horas dignas de se viver, mesmo se não trouxessem fruto algum. Esse divino êxtase geralmente durava de uma a duas semanas e então ela emergia do seu "transe" faminta, tonta de sono, desanimada e rabugenta. Jo acabava justamente de voltar a si de um desses ataques quando foi persuadida de que devia acompanhar a srta. Crocker a uma conferência e em compensação a sua virtude foi premiada com uma nova idéia. Foi no Curso do Povo, uma conferência sobre as pirâmides, e Jo estranhou um pouco a escolha de tal assunto para semelhante auditório, mas tomou como estabelecido que algum grande mal social poderia ser remediado ou alguma grande necessidade poderia ser suprida mostrando-se a glória dos faraós a uma assistência cuja cabeça estava preocupada com o preço do carvão e da farinha e cuja vida se consumia tentando resolver enigmas ainda mais difíceis do que os da esfinge. Elas chegaram cedo. E enquanto a srta. Crocker batia com o salto do sapato, Jo divertia-se em examinar a face das pessoas que ocupavam as cadeiras mais próximas. A sua esquerda estavam duas matronas de testa franzina com chapéus iguais, discutindo o Direito da mulher. Mais adiante sentava-se um par de humildes namorados, de mãos dadas, uma carrancuda solteirona chupando pastilhas de horte-lã-pimenta e um velho tomando a sua pitada
dè rape, de uma caixinha amarela. À direita, o seu único vizinho era uma rapazola de ar estudioso, absorvido na leitura de um folhetim. Era uma folha ilustrada e Jo observou a obra de arte mais próxima, imaginando displicentemente que relação de circunstâncias necessita a ilustração melodramática de um indígena com o seu completo traje de guerra, caindo num precipício com um lobo atracado a sua garganta, enquanto dois jovens senhores, com pés invulgarmente pequenos e olhos extraordinariamente grandes, estavam apunha-lando-se um a outro bem perto dali, e uma mulher desgre-nhada, de boca aberta, fugia no fundo do quadro. Fazendo uma pausa para virar a página, o rapazinho viu o olhar interessado de Jo e, com a sua boa vontade juvenil, ofereceu-lhe metade do folhetim, dizendo timidamente: — Quer ler? É uma história de primeira ordem. Jo aceitou com um sorriso, porque nunca tomava ares de moça feita diante de garotos, e logo se encontrou metida no clássico labirinto de amor, mistério e assassínos, porque a história pertencia a essa classe de literatura ligeira, na qual as paixões têm a sua folga e, quando a imaginação do autor fracassa, uma grande catástrofe limpa a cena de metade das personagens, deixando a outra metade coiítentíssima com a sua ruína. — De primeira, não é? perguntou o rapazola, quando os olhos dela aram pelo último parágrafo. — Penso que eu e você poderíamos fazer coisa tão boa, se tentássemos, retrucou Jo, que se divertia com a iração do pirralho. — Eu me consideraria um camaradinha de muita sorte se fizesse isso. Ela ganha lindamente a sua vida com tais histórias, segundo me disseram. E ele apontou para o nome da senhora: L. A. N. G. Northbury, sob o título do conto. Subitamente interessada, Jo perguntou: — Você a conhece? — Não, mas leio tudo que ela escreve e conheço um camarada que trabalha na oficina onde esse folhetim é impresso. — Você disse que ela ganha bem a sua vida com histórias como esta? E Jo olhou de modo mais respeitoso para o agitado grupo e para os pontos de iração largamente distribuídos que enfeitavam a página. — Imagine o que ela faz! Sabe muito bem qual é a preferência do público e ganha bastante para escrever a seu gosto. Nisto, a conferência começou, porém Jo dela não ouviu quase nada, porque, enquanto o professor Sands estava gastando palavras sobre Belzoni, Quéops, escaravelhos e hie-roglifos, ela disfarçadamente tomava nota do endereço do folhetim e decidia resolutamente concorrer ao prêmio de cem dólares oferecido nas suas colunas por uma história de sensação. No tempo que ou entre o fim da conferência e o despertar do auditório, Jo construíra para si mesma uma esplêndida fortuna, não era a primeira levantada sobre o papel, e estava já profundamente absorvida na concepção da sua história, não sabendo ainda decidir se o duelo viria antes do rapto ou depois do assassínio. Não disse naca em casa a respeito dos seus planos. Começou, porém, a trabalhar logo no dia seguinte, para desassossego de sua mãe, que sempre se mostrava um tanto inquieta quando o gênio dava para borbulhar. Jo nunca experimentara antes esse estilo, contentando-se com os romances muito açucarados
que fazia para "The Spread Eagle". A sua experiência teatral e as suas leituras variadas eram úteis agora porque lhe davam algumas noções dos efeitos dramáticos e forneciam o enredo, a linguagem e os trajes. Sua história era tão cheia de indignações e desesperos quanto o seu limitado conhecimento dessas desconfortáveis emoções a capacitavam para escrever sobre elas. Tendo localizado a novela em Lisboa, fulminou-a com um terremoto, como desfecho apropriado e retumbante. O manuscrito foi despachado em segredo, acompanhado por um bilhete, em que modestamente se dizia que, se o conto não ganhasse o prêmio, pois a autora não ousava esperar tanto, ela ficaria muito contente ao receber qualquer quantia da qual fosse considerada digna a sua produção. Seis semanas era muito tempo para se esperar e ainda mais para uma moça guardar um segredo. Mas Jo soube esperar em silêncio e já estava abandonando a esperança de ver o seu manuscrito aproveitado, quando chegou uma carta que quase a enlouqueceu de alegria. Imaginem que, ao abri-la, a moça viu cair de dentro do envelope um cheque de cem dólares! Por um momento, ficou quase fora cie si. Depois, leu a carta e começou a gritar. Se o amável cidadão que escreveu aquele gentil bilhete tivesse sabido a intensa alegria que estava causando, penso que dedicaria as suas horas vagas, se as tivesse, a esse divertimento. Jo apreciara ainda mais a carta do que o dinheiro, porque era realmente encorajadora. Depois de tantos anos de esforços, era tão agradável descobrir que aprendera a fazer qualquer coisa, ainda mesmo que fosse apenas escrever uma história de sensação. Raramente se viu uma mulherzinha mais orgulhosa do que ela quando, depois de compor a fisionomia, foi deslumbrar a família, aparecendo diante dela com a carta numa das mãos e o cheque na outra, anunciando que ganhara o prêmio. É claro que houve um regozijo geral, e quando a história foi publicada, todos a leram e a elogiaram. Mas embora dissesse que a linguagem era boa, o enredo original e comovente e o fim da história deveras impressionante, o pai da moça balançara a cabeça, afirmando na sua maneira franca: — Você pode fazer coisa melhor, Jo. Escreva com intenções mais altas e pouco se importe com o dinheiro. — Acho que o dinheiro é o que há de melhor nisso tudo. Que há de fazer você com tal fortuna? ─ perguntou Amy, fitando respeitosamente o mágico pedacinho de papel. — Mandar Beth e mamãe para uma estação balneária, por um ou dois meses, respondeu Jo prontamente. — Oh! Que coisa esplêndida! Não, não quero isso, meu benzinho. Seria muito egoísmo, exclamou Beth que juntara as suas mãozinhas magras e dera um longo suspiro. — Ah! Você há de ir, isso já está resolvido por mim há muito tempo. Foi por essa razão que concorri ao prêmio e saí vitoriosa. Nunca consigo ser bem sucedida quando só penso em mim. Você tem de me ajudar a trabalhar para você. Além disso, mamãe precisa de uma mudança de ares e ela não irá sem você. Tem de ir, portanto, Beth. Não há de ser engraçado vê-la voltar para casa gordinha e rosada de novo? Um viva à doutora Jo, que sempre cura os seus doentes! Mãe e filha, foram, afinal, para uma estação balneária, depois de muita discussão. E, embora Beth não voltasse para casa tão gordinha e rosada como se
esperava, veio muito melhor, e a sra. March se sentia dez anos mais moça. Assim, Jo ficou satisfeita com o emprego do dinheiro do prêmio e pôs-se a trabalhar com grande animação, disposta a ganhar mais alguns daqueles deliciosos cheques. Ganhou vários naquele ano e começou a julgar-se um esteio da casa. Pois, com a magia da sua pena, a xaropada se estava transformando em conforto para todos. A Filha do Duque, deu para liquidar a conta do açougueiro, A Mão do Fantasma pagou um tapete novo e A Maldição dos Coventrys foi a bênção da família March em questão de roupas. A riqueza é certamente uma coisa muito desejável, mas a pobreza também tem o seu lado agradável e uma das mais doces vantagens da adversidade é a genuína satisfação que vem do trabalho alegre do cérebro e das mãos. É à inspiração da necessidade que devemos muitas das coisas mais belas, mais sábias e mais úteis do mundo. Jo provava o gosto dessa satisfação e deixava de invejar as moças mais ricas, sentindo um grande consolo na certeza de que custeava as suas próprias despesas e não precisava pedir um níquel a quem quer que fosse. A fama das suas histórias ainda não estava espalhada, porém, elas tinham um mercado. Encorajada por este fato, Jo resolveu dar um golpe decisivo para a glória e para a fortuna. Tendo copiado a sua novela pela quarta vez, leu-a a todos os seus amigos e confidentes literários, e submeteu-a, trêmula e medrosa a apreciação de três editores, encontrando afinal quem se dispusesse a publicá-la, desde que a autora cortasse um terço do original e omitisse todas as partes que ela irava especialmente. — Agora eu devo ficar com essa papelada de novo, para melhorá-la e publicá-la por minha conta ou, então, modificá-la para satisfazer as exigências dos editores, ganhando o que eles me derem. A fama é uma coisa muito boa para se ter em casa, mas dinheiro é mais conveniente. Assim, quero que me dêem uma opinião sobre este importante assunto, disse Jo, convocando um conselho de família. — Não estrague a sua novela, minha filha, pois há nela muito mais do que você pensa e a idéia está muito bem aproveitada. É melhor esperar, para que a sua obra amadureça, foi a opinião do pai. — Parece-me que Jo aproveitará mais fazendo agora a sua estréia do que esperando mais tempo, disse a sra. March. A crítica é o que pode haver de mais útil para tal obra, pois mostrará tanto os seus defeitos como seus méritos, não suspeitados por nós e há de ajudar a autora a fazer melhor na próxima vez. Nós somos muito parciais, porém a crítica dos estranhos será vantajosa, mesmo se o lucro em dinheiro for pequeno. — Sim, disse Jo franzindo as sobrancelhas. É isso mesmo. Já se tem falado tanto sobre o assunto e eu realmente não sei se o que escrevo é bom, mau ou indiferente. Seria uma grande vantagem ter pessoas frias e imparciais para examinar a novela e dizer o que pensam a respeito. — Se eu fosse você, não cortaria uma palavra da novela. Se cortar, vai estragá-la, pois o interesse da história está mais no espírito do que na ação das personagens. E será tudo uma confusão medonha se você não explicar os seus pensamentos, disse Meg, que acreditava firmemente ser aquela a novela mais notável que já se escrevera. Mas o sr. Alen disse:
─Tire as explicações, torne o enredo mais breve e dramático e deixe as personagens contarem a história. ─ interrompeu Jo, mostrando o bilhete do editor. — Faça como ele diz. Ele sabe melhor do que você o que é que se vende. Se o seu livro for bem popular, há de render muito dinheiro. Pouco a pouco, quando já tiver conquistado um nome literário, você poderá fazer vastas considerações e ter muitas personagens filosóficas e metafísicas nas suas novelas, disse Amy, que julgava o assunto sob um ponto de vista rigorosamente prático. — Bem, observou Jo sorrindo, se as minhas personagens são filosóficas e metafísicas, não tenho culpa disso, pois não sei nada sobre essas coisas a não ser o que ouço papai dizer algumas vezes. Se enfiei algumas das suas sábias idéias na minha história, então melhor para mim. Agora, Beth, que é que você diz? — Eu gostaria de ver a sua novela publicada o mais depressa possível, foi tudo que Beth respondeu, falando num sorriso; mas havia uma ênfase inconsciente nas suas últimas palavras e uma expressão ansiosa nos seus olhos, que nunca perderam a candura infantil. Isso abalou o coração de Jo por um momento, inspirando-lhe um receio inconfessado, e ela resolveu dar-lhe aquela alegriazinha o mais depressa possível. Assim, com firmeza espartana, a jovem autora colocou o seu primogênito literário sobre a mesa e cortou tão impiedosamente como um ogro. No desejo de agradar a todos não houve a quem não pedisse conselhos. Mas, como na fábula do velho e do burrico, nenhum lhe convinha. O pai gostava das tiradas metafísicas, que a autora inconscientemente incluíra na novela; assim, queria que elas fossem mantidas, embora Jo tivesse dúvidas a esse respeito. A mãe achava que havia, talvez, excesso de descrições; por isso, quase todas foram cortadas e, com elas, muitos trechos necessários à história. Meg irava a tragédia; e assim, Jo aumentou o capítulo da agonia para satisfazer a irmã. Amy fazia objeções ao aspecto humorístico e, com a melhor intenção deste mundo, Jo acabou com as cenas ligeiras que diminuíram o caráter sombrio da história. Então, para completar a ruína, cortou um terço da obra e atirou confiantemente o pobre romancezinho, como um pintarroxo depenado, no mundo tão grande e tão vertiginoso, para que tentasse a sua sorte. A novela foi impressa e a autora recebeu trezentos dólares. Da mesma forma, houve crítica favorável e desfavorável, numa quantidade muito maior do que ela esperava. E isso a levou a um estado de confusão do qual só veio a sair algum tempo depois. — Você disse, mamãe, que a crítica me ajudaria; mas como é possível isso, quando as opiniões são de tal forma contraditórias que não sei se escrevi um livro promissor ou se quebrei todos os dez mandamentos? exclamou a po bre Jo, examinando uma pilha de recortes de jornais, cuja leitura lhe inspirou no começo muito orgulho e alegria, causando logo depois cólera e desânimo. Este homem diz: ─ É um livro esquisito, cheio de verdade, de beleza e de vida; tudo é suave, puro e são ─ continuou a perplexa autora. Mas este outro diz assim: ─ A tese do livro é má, cheia de fantasias mórbidas, idéias espiritualistas e caracteres artificiais.
E a autora comentou: ─ Ora, se eu não expus tese nenhuma, se não creio em Espiritualismo e se copiei as minhas personagens da vida, não vejo como este crítico possa ter razão. Um outro diz: ─ É uma das melhores novelas americanas que têm aparecido nos últimos anos. Ainda há um que afirma: ─ Embora original e escrito com grande força e sentimento, é um livro perigoso. Ora, veja só! Algumas fazem troça com a novela, outros elogiam demais, e quase todos insistem em dizer que eu tenho uma teoria profunda a expor, quando de fato só escrevi o livro por divertimento e para ganhar dinheiro.Teria sido melhor publicá-lo tal como era ou então não publicâ-lo, pois odeio ser assim mal julgada. A família e os amigos tratavam de confortá-la generosamente; contudo, foi um período difícil para a sensível e generosa Jo, que tivera tão boa intenção e que aparentemente fizera tanto mal. Mas isso lhe foi útil, pois aqueles cuja opinião tem real valor lhe deram a crítica honesta que é a melhor educação de um autor. E, quando a primeira tristeza ou, ela riu do seu livrozinho tão pobre, embora ainda acreditasse nele e se sentisse mais experimentada e mais forte pelo golpe que tinha recebido. — Não sendo um gênio, como Keats, isso não há de me matar, disse ela, corajosamente. Afinal de contas, a coisa é mais divertida para mim do que para eles; pois as partes que foram tiradas da vida real são exatamente as apontadas como impossíveis e absurdas e as cenas que arranquei da minha tola cabeça são consideradas como encantadoramente naturais, ternas e verdadeiras. Assim, isso basta para me consolar. E, quando estiver disposta, hei de tentar novamente.
CAPITULO V Experiências Domésticas Como muitas outras jovens matronas, Meg começou a sua vida de casada, com o firme propósito de ser um modelo de dona-de-casa. John encontraria permanentemente um paraíso dentro do lar. Veria sempre um rosto risonho, comeria do bom e do melhor todos os dias e não saberia nunca o que é a falta de um botão. Ela empregava tanto amor, tanta energia e tanta animação no seu trabalho que tinha mesmo de vencer, apesar de alguns obstáculos. O seu paraíso não era lá muito tranqüilo, pois a mulherzinha se desdobrava em atividade com a ânsia exagerada de agradar e rodava de um lado para o outro como uma verdadeira Marta, atrapalhada com tantas ocupações. As vezes, ficava tão cansada que nem tinha jeito de sorrir. John tornou-se dispéptico depois de uma série de iguarias requintadas e, ingratamente, pediu uma alimentação mais simples. Quanto aos botões, ela bem cedo aprendeu a espantar-se com os seus misteriosos desaparecimentos, balançando a cabeça diante da falta de
cuidado dos homens e ameaçando fazer que o marido os pregasse por si mesmo, para que pudesse ver quanto custa enfiar a linha na agulha e espetar os dedos. O casal era muito feliz, mesmo depois de descobrir que não se vive só de amor. John não via diminuída a beleza de Meg, embora a sua face resplandecesse para ele por detrás do prosaico bule de café; nem Meg sentia prejudicado o aspecto romântico da despedida diária quando o marido dava a um beijo o complemento de ternas perguntas, como esta: ─ Querida, que devo mandar para o jantar, carneiro ou vitela? A pequenina casa deixava de ser uma cabana poética para tornar-se um verdadeiro lar e os esposos não tardaram a perceber que era uma mudança para melhor. No começo, brincaram de donos-de-casa e se divertiam como duas crianças. Mas, logo em seguida, John entregou-se firmemente ao trabalho, sentindo sobre os seus ombros a responsabilidade de chefe. de família; e Meg, pondo de lado as suas roupas de cambraia, envergou um grande avental e entrou em atividade, como já disse, com mais energia do que moderação. Enquanto durou a mania de cozinhar, consultava o "Livro de Receitas da Sra. Cornelius" como se fosse um compêndio de exercícios matemáticos, trabalhando com paciência e atenção para resolver os seus problemas. Algumas vezes toda a família-era convidada a ajudar o casal a comer um suntuoso banquete e outras vezes Lotty tinha de levar uma cesta cheia de fracassos culinários, que iam ser convenientemente escondidos de todos os olhares, nos estômagos dos pequenos Hummels. Uma noite de estudos nas cadernetas de despesas, em companhia de John, produzia sempre uma temporária queda de entusiasmo culinário, seguindo-se uma época de fru-galidades, durante a qual o pobre homem era submetido a um regime de picadinho, pudim de pão e café requentado, que lhe amargurava a existência, embora asse tudo com uma resignação digna de louvores. Levada pelo desejo, bem natural numa dona-de-casa de ver a despensa provida de conservas e doces preparados no próprio lar, Meg resolveu fazer geléia de groselha. John recebeu o pedido de mandar para casa uma dúzia ou mais de pequeninas vasilhas e uma quantidade extra de açúcar, pois, quanto às groselhas, serviam as do próprio quintal, que já estavam maduras. Acreditando que esposa não tinha igual no mundo e orgulhando-se da sua perícia culinária, John não teve dúvida em atender o seu pedido. Apareceram em casa quatro dúzias de lindas vasilhinhas, meia saca de açúcar e um pequeno para apanhar as groselhas. Com o bonito cabelo repuxado para o alto da cabeça, as mangas arregaçadas até o cotovelo e um aventalzinho, que não deixava de ter o seu chique, a jovem senhora iniciou o trabalho, absolutamente convencida da vitória. Como poderia duvidar? Pois, então, não tinha visto Hannah fazer aquilo, centenas de vezes? O sortimento de vasilhas pareceu-lhe um tanto excessivo no começo, mas John gostava tanto de geléia e as forma-zinhas pareciam tão bonitas, arrumadas nas prateleiras, que Meg resolveu encher todas de uma vez e gastou o dia inteiro catando, fervendo, expremendo e derretendo groselhas. Fez o que pode; pediu conselho à sra. Cornelius; quebrou a cabeça para recordar o qua Hannah fazia e o que lhe faltava fazer; ferveu de novo, pôs mais açúcar, tornou a espremer, mas nada
de chegarem as groselhas ao ponto de geléia. A sua vontade era correr para a casa da sra. March, com avental e tudo, a fim de pedir a ajuda materna. Mas John e ela tinham estabelecido que não deviam incomodar ninguém com ais suas experiências e dificuldades privadas. Riram muito quando firmaram esse pacto, como se compreendessem quanto era arrojado. Mas sustentavam a palavra, tratando de resolver, como podiam, os seus problemas. Ninguém intervinha, pois a sra. March tinha aprovado o plano. Assim, Meg lutou sozinha com. os seus doces, durante todo aquele quente dia de verão. Às cinco horas da tarde sentou-se na cozinha em reboliço, torceu as mãos encardidas e desatou a chorar. Ora, no primeiro entusiasmo da sua vida nova, ela dissera muitas vezes: ─ Meu marido terá sempre a liberdade de trazer um amigo para casa, quando bem quiser. Estarei sempre preparada. Não haverá confusão, nem censura, nem desconforto, mas sempre uma casa limpa, uma esposa alegre e um bom jantar. John querido, não é preciso pedir-me licença; convide a quem lhe agradar e esteja sempre certo de que será bem recebido por mim. Como isso era encantador. John resplandecia de orgulho quando ouvia a mulher falar assim e dava graças a Deus por ter arranjado um esposa tão superior. Mas, embora tivesse tido companhia de tempos em tempos, nunca aconteceu vir alguém sem aviso prévio e Meg nunca tivera até então uma oportunidade para mostrar as suas qualidades. É assim mesmo que sucede neste vale de lágrimas. Há certos desastres que são inevitáveis e não há outro remédio senão á-los com paciência. Se John não tivesse esquecido completamente o problema da geléia, não se lhe poderia perdoar o fato de ter escolhido aquele dia, em todos os dias do ano, para trazer um amigo para jantar em sua casa, sem prevenir antes a esposa. Congratulando-se intimamente com o belo repasto que determinara de manhã, tendo a certeza de que as iguarias ficariam prontas num minuto e calculando antecipadamente o efeito encantador que produziria no hóspede, quando a sua linda mulherzinha viesse recebê-los, John levou o amigo para sua mansão, com o irreprimível contentamento de um jovem marido e anfitrião. Este é o mundo das decepções, como John teve ensejo de compreender, ao chegar ao seu ninho. A porta da rua ficava aberta habitualmente, em sinal de hospitalidade; mas, dessa vez, não só esteve cerrada, como também trancada, e a lama da véspera ainda adornava o batente. As janelas da saleta estavam fechadas e com as cortinas descidas. Não se via a imagem da linda mulherzinha cozendo serenamente, vestida de branco e com um lacinho de fita nos cabelos. Nem notícia da brilhante dona-de-casa, sorrindo discretamente para receber o hóspede. Não se descobria viva alma a não ser um garoto mal encarado dormindo entre os pés de groselha. — Receio que tenha acontecido alguma coisa. Fique aí no jardim, Scott, enquanto vou procurar minha mulher, disse John, alarmado com tão grande silêncio e solidão. Deu volta à casa, guiado por um pronunciadíssimo cheiro de açúcar queimado, e o sr. Scott seguiu atrás dele, com uma expressão esquisita no rosto. Parou discretamente a distância, quando Brooke desapareceu. Mas, de onde estava,
podia ver e ouvir e, sendo solteirão, gozou vivamente a cena. Na cozinha reinavam a confusão e o desespero. Uma edição da geléia era derramada de vasilha em vasilha; espalhara-se pelo chão uma segunda e uma terceira estava fervendo alegremente no fogão. Com sua fleuma teutônica, Lotty estava calmamente comendo pão com caldo de groselha, pois a geléia ficara ainda num ponto desesperadamente liquido. Com o avental cobrindo a cabeça, a sra. Brooke soluçava tristemente. — Minha querida,que foi que aconteceu? ─ gritou John, precipitadamente, imaginando já uma porção de desastres domésticos, e intimamente consternado com a idéia do hóspede que ficara no jardim. — Oh, John, estou tão cansada e aborrecida! Lutei até desesperar. Venha ajudar-me, pois não agüento mais! E a exausta dona-de-casa encostou-se ao peito do marido, saudando a sua chegada de um modo realmente doce, em toda a extensão da palavra, pois a gola da blusa estava tão salpicada de geléia como o soalho. — Qual o motivo do seu desespero, meu bem? Aconteceu alguma coisa horrivel? ─ perguntou o ansioso John, beijando ternamente a fita da touca de Meg, que estava toda desarranjada. — Sim, aconteceu! soluçou a mulherzinha inconsolável. — Diga-me depressa o que houve. Não chore, meu bem. Não há nada que me incomode tanto como vê-la chorar. Fale, explique, meu amor. — A... a geléia não há jeito de dar certo e não sei mais o que fazer! John Brooke riu então como nunca tinha rido antes e o próprio Scott sorriu involuntariamente quando ouviu a carinhosa conversa que pôs termo ao grande desgosto de Meg. — Foi só isso? Desista da geléia e não se aborreça mais por tão pouco. Se quiser, trarei para casa potes inteiros de geléia. Mas, por favor, não fique nervosa. Imagine que eu trouxe hoje o Jack Scott para jantar e... John não pôde continuar, pois Meg deu um o atrás, juntou as mãos num gesto dramático e caiu numa cadeira, exclamando em um tom ao mesmo tempo de indignação, censura e abatimento: — Um convidado para jantar, num dia de atrapalhação como este! John Brooke, como pôde fazer semelhante coisa?! — Psiu! Ele está no jardim. Não me lembrei da maldita geléia, mas agora não há mais jeito a dar, disse John, observando o efeito das suas palavras com olhar impaciente. — Você devia ter-me falado nisso de manhã ou mandar uma palavrinha de aviso. E também não devia esquecer-se de quanto eu estava ocupada, continuou Meg, petulantemente; pois até os arinhos dão bicadas quando sentem uma contrariedade. — Não lhe podia falar esta manhã sobre o assunto nem lhe mandar uma palavra de aviso, porque só o encontrei quando vinha para aqui. Nunca pensei em lhe pedir licença, pois você me dizia sempre que eu podia fazer convites quando quisesse. Nunca fiz antes e Deus me livre de fazê-lo outra vez, acrescentou John com ar ressentido. — Também espero que não. Leve-o daqui de uma vez; não posso vê-lo e não
há jantar. — Bem, prefiro isto! Mas onde estão os bifes e os legumes que eu mandei para casa e o pudim que você prometeu? gritou John, precipitando-se para a despensa. — Não tive tempo de fazer coisa alguma; pretendia jantar em casa de mamãe. Sinto muito, mas fiquei tão atrapalhada... ─ E as lágrimas de Meg começaram de novo. John era um cidadão cordato, mas também era humano; e depois de um longo dia de trabalho, chegar em casa cansado, faminto e esperançoso, para encontrar um lar caótico, com uma mesa vazia e uma esposa rabugenta, não era o indicado para o repouso do espírito e o cultivo das boas maneiras. Dominou-se, contudo, e a pequena tempestade teria ado, se não fosse uma palavra desastrada. — É uma atrapalhação, bem sei, mas se eu lhe der ajuda, poderíamos juntos consertar a coisa e ter ainda hoje um tempinho bem agradável. Não chore, querida, mas se esforce um pouquinho e arranjemos qualquer coisa que se coma. Estamos tinindo de fome, e assim não seremos muito exigentes na qualidade da comida. Dênos um pouco de frios, pão e queijo, não faremos questão de geléia. Ele disse isso como uma brincadeira bem-humorada, mas essa alusão à geléia decidiu a sua sorte. Meg achou que era uma maldade fazer insinuações sobre o seu fracasso culinário e o seu restinho de paciência sumiu ao ouvir aquilo. — Trate de sair de sua atrapalhação como puder. Já estou cansada de me esforçar para os outros. Leve esse Scott para casa de mamãe e diga-lhe que eu estou doente ou que morri, seja lá o que for. Não quero vê-lo e vocês dois podem rir à vontade de mim e de minha geléia, tanto quanto quiserem. E tendo lançado esse desafio de um só fôlego, Meg tirou o avental e abandonou o campo da luta precipitadamente, para ir chorar no quarto. O que as duas pobres criaturas fizeram em sua ausência ela nunca soube, mas o sr. Scott não foi levado para a casa de mamãe e, quando Meg desceu, depois que os dois tinham saído juntos, encontrou vestígios de uma merenda improvisada que lhe causaram horror. Lotty contou que eles tinham comido muito e rido à vontade e que o patrão lhe dera ordem para jogar fora toda a massa dos doces e esconder as vasilhas. Meg sentiu ímpetos de ir contar tudo à mãe, mas con-teve-se por um sentimento de vergonha quanto às suas próprias eficiências de dona-de-casa e de lealdade quanto ao John, que pode ter sido cruel mas ninguém precisa saber disso. Depois de uma limpeza sumária no ambiente, vestiu-se com apuro e sentou-se esperando que John viesse receber o seu perdão. Infelizmente, John não veio, considerando o assunto sobre outro ponto de vista. Levou a coisa em brincadeira com o Scott, desculpou a sua mulherzinha tão bem quanto pode e desempenhou o papel de dono-de-casa tão hospitaleiramente que o amigo gostou muito do jantar improvisado e prometeu voltar. Mas John estava zangado, embora não desse a entender. Sentia que Meg lhe dera uma boa atrapalhação e depois o abandonara na hora em que tinha mais necessidade dela. Não era justo dizer a una homem para trazer para casa quem quisesse e a qualquer hora, com inteira liberdade, e depois, quando ele tomou a sua palavra ao pé da letra, indignar-se toda, censurá-lo e deixá-lo na mão, para inspirar riso ou piedade ao
convidado. Não, isso não. Meg deve saber que isso não é direito. Durante todo o banquete, ele fumegava intimamente. Mas quando ou a primeira zanga e voltou para casa, depois de dar um eio com Scott, John já estava mais calmo. Pobre criaturinha! Foi tão penoso tudo isso para ela, depois de tentar, com tão boa vontade, me agradar com seus doces! Ela não andou bem, naturalmente, mas é ainda tão jovem. Devo ser paciente e ensiná-la. John nutria a esperança de que Meg não tivesse ido para casa da mãe, tinha horror a mexericos e intervenções. Por um momento ficou arrufado de novo só em pensar nisso. E, então, o medo de que Meg pudesse chorar abrandou o seu coração e fê-lo ir para casa com os mais apressados, resolvendo ser calmo e bom, porém firme, inteiramente firme, para mostrar-lhe que tinha faltado ao seu dever como esposa. Por sua vez, Meg resolvera ser calma e boa, porém firme para mostrar ao marido qual era o seu dever. O seu desejo era correr-lhe ao encontro, pedir-lhe perdão, beijá-lo e consolá-lo; mas, é claro que não procedeu assim e, quando viu John chegar, começou a cantarolar despreocupadamente, enquanto cosia. John ficou um pouco desapontado por não encontrar uma Niobè mais terna; mas, sentindo que a sua dignidade exigia a primeira desculpa, não deu nenhuma e apenas entrou em casa sossegadamente, recos-tando-se no sofá e fazendo esta observação singularmente importante: — Está chegando a lua nova querida. — Pois que chegue, foi a observação igualmente suave de Meg. Alguns outros assuntos de interesse geral foram comentados pelo sr. Brooke e recomentados pela sra. Brooke, mas a conversação esmoreceu. John foi para uma janela, apanhou o jornal e mergulhou na leitura. Meg foi para outra janela e pôs-se a bordar, como se novas rosetas para as suas sandálias fossem coisas necessárias e urgentíssimas. Ninguém falava, mas os dois se motravam perfeitamente calmos e firmes e se sentiam num exasperante desconforto. — Oh! meu bem, pensava Meg. A vida de casado tem as suas dificuldades e precisa tanto de paciência como de amor, como diz mamãe. A palavra mamãe sugeria outros conselhos maternos, dados há muito tempo e recebidos com protestos e descrença. ─ John é um bom homem, mas tem os seus defeitos e você deve aprender a vê-los e á-los, recordando-se dos que também possui. Ele é muito decidido, mas não será nunea teimoso, se você argumentar gentilmente e não se opor com impaciência. É muito escrupuloso e muito exigente em questão de verdade um bom traço de caráter, aliás, embora você o considere um tanto caturra neste assunto. Nunca o engane por palavra ou por gesto, Meg, e êle lhe dará a confiança que merece e o apoio de que necessita. Ele tem o seu temperamento, não como o nosso um arranco só e tudo a, mas a cólera fria e silenciosa que raramente se manifesta, mas que, uma vez acesa, é difícil de dominar. Tenha cuidado, muito cuidado, para não levantar a sua cólera contra você mesma, pois a paz e a felicidade do lar dependem do respeito que ele possa guardar por você. Observe a si mesma, seja a primeira a pedir perdão se ambos erraram e evite os pequenos arrufos, as desinteligências e as palavras apressadas que muitas vezes abrem o caminho para mágoas e tristezas amargas.
Essas palavras voltaram ao espírito de Meg, enquanto cosia. Aquele tinha sido o primeiro desacordo sério, as suas próprias frases apressadas lhe soaram tolas e sem bondade, quando as recordava; a sua própria cólera parecia-lhe infantil e a idéia do pobre John vindo para casa e enfrentando tal cena lhe amoleceu completamente o coração. Olhou para ele com lágrimas nos olhos, porém o marido não reparou nisso: pôs de lado o trabalho e levantou-se, pensando: Quero ser a primeira a dizer: perdoe-me. Ele, porém, não parecia observá-la. Ela rodou lentamente pela sala, pois sentia dificuldade em vencer o orgulho, e acabou indo ficar junto do marido. John, porém, não voltou a cabeça. Por um momento Meg sentiu que realmente não poderia fazer mais; e então lhe veio o pensamento: Isto é o começo, farei a minha parte e não terei nada para me censurar. E ela beijou docemente o marido, na fronte. Na turalmente isso resolveu tudo. O beijo penitente foi melhor do que um mundo de palavras e, num minuto, com a mulher sentada. sobre o seu joelho, John dizia ternamente. — Fiz muito mal em rir da sua geléia. Perdoe-me, querida. Nunca hei de fazer isso outra vez. Mas, não cumpriu a palavra. Riu muitas vezes do caso e Meg também fez o mesmo, declarando ambos que aquela tinha sido a mais gostosa das geléias, pois a paz familiar fora guardada no pequeno vasilhame da despensa. Depois disso, o sr. Scott veio jantar na casa de Meg, atendendo o especial convite, é lhe foi servido um agradável banquete; nesta ocasião, a dona da casa foi tão alegre e graciosa e fez que tudo corresse tão encantadoramente que o sr. Scott disse a John que ele era um homem feliz e balançava a cabeça pensando na vida penosa dos solteirões. No outono, Meg submeteu-se a novas provas e experiências. Sallie Moffat renovou a sua amizade, esteve sempre correndo para a vivendazinha da amiga, a fim de contar umà novidade, ou convidando a coitadinhá da boa criatura a vir ar o dia no seu palacete. Isso era agradável, pois naquela fase monótona do ano Meg se sentia muito só, freqüentemente. Todos estavam ocupados em casa, John ficava ausente até a noite e não havia mais nada a fazer senão costurar um pouco ou ler. Assim, sucedeu naturalmente que Meg começou a distrair-se, tagarelando com a amiga. Vendo as lindas coisas que Sallie possuía, deu para lamentar não ter também atjuelas preciosidades. Sallie era muito boazinha e muitas vezes lhe oferecia as cobiçadas bugigangas. Meg, porém, não as aceitava, sabendo que John não goscaria disso. Então, a mulherzinha sem juízo fez o que agradaria muito menos ao John. Ela sabia quanto o marido ganlmva e ficava satisfeita por ver que ele lhe con-. fiava não somente a sua felicidade, mas o que muitos homens valorizam mais neste mundo o seu dinheiro. Ela sabia onde ficava guardado, tinha a liberdade de tirar o que quisesse e John só pedia que a dona-de-casa tomasse nota de todo tostãozinho gasto, pagasse por mês todas as contas e se lembrasse de que era mulher de um homem pobre. Até então ela procedera bem sempre prudente e econômica, mantendo em ordem as cadernetas das despesas e mostrando ao marido que podiam atravessar um mês sem medo. Mas, naquele outono, a serpente entrou no paraíso de Meg e tentou-a, como a muitas Evas modernas, não com maçãs, mas com vestidos. Meg não gostava de parecer pobre e de causar piedade por isso. Irritava-se, embora tivesse vergonha de confessar tal fraqueza. Uma vez por outra, tentava consolar-se
comprando alguma coisa bonita, sem que Sallie precisasse saber das suas economias. Depois de ter feito isso, sentia-se culpada, pois as coisas bonitas raramente são necessárias. Mas, como custavam tão pouco, não havia motivo para preocupações. Assim, as miudezas foram aumentando inconscientemente e nas suas excursões pelas lojas ela não era mais uma iva espectadora. Contudo, as miudezas custam mais do que muita gente imagina. E quando Meg foi fazer as contas no fim do mês, a despesa quase a alarmou. John estava muito atarefado naquele mês e deixou à mulher o trabalho de saldar contas. No mês seguinte esteve ausente. Mas, no terceiro, houve um grande balanço trimestral e Meg nunca mais o esqueceu. Alguns dias antes, ela fizera urna coisa horrorosa, que pesava na sua consciência. Sallie estivera comprando sedas e Meg desejava muito ter um vestido novo, uma coisa leve e bonita para as festas, pois a sua seda preta era muito comum e vestidos mais ligeiros para a noite só ficavam bem nas mocinhas. A tia March costumava dar a cada sobrinha um presente de vinte e cinco dólares, no fim do ano. Só faltava um mês e havia uma seda cor-de-violeta, que era lindíssima. Em casa havia o dinheiro, só faltava a coragem para tirá-lo. John sempre dizia que o que era dele era dela; mas acharia direito que ela gastasse, não somente os vinte e cinco dólares esperados, como outros vinte e cinco tirados da Caixa familiar? Aí é que estava a questão. Sallie insistia para que Meg fizesse a compra, oferecendo-se para emprestar o dinheiro e, com a melhor intenção deste mundo, ia tentando a amiga acima das sUas forças. Num mau momento, o lojista mostrou a peça de seda tão linda e disse: — É uma pechincha, minha senhora. Posso garantir-lhe.Ela respondeu: — Pois bem, eu compro. Mandou cortar a fazenda, pagou, dando assim um motivo para Sallie exultar de alegria e rindo também naturalmente, como se a coisa não tivesse conseqüência. Mas, ao sair, sentia como se a coisa não tivesse conseqüências. Mas, ao sair, sentia como se tivesse roubado alguma coisa e a polícia seguisse ao seu encalço. Quando chegou em casa, tentou abafar os gritos de remorso, estendendo a seda magnífica. Mas, agora, não parecia tão brilhante quanto antes. Não lhe assentava bem, além disso, e as palavras cinqüenta dólares pareciam estampadas em cada dobra da fazenda. Pôs de lado o corte, mas a seda continua a se fazer lembrada, não agradavelmente, como a perspectiva de um vestido novo, mas de um modo terrível, como o sinal de uma loucura, que não seria facilmente consertada. Quando John levantou os olhos das cadernetas, naquela noite, o coração de Meg começou a bater mais forte e, pela primeira vez em sua vida de casada, estava com medo do marido. Os olhos castanhos e ternos do esposo lhe pareciam severos agora; e embora John estivesse excepcionalmente alegre, imaginava que ele tinha descoberto tudo, mas tratava de evitar que a mulher percebesse isso. As contas da casa estavam todas pagas, as cadernetas pareciam em ordem. John fizera-lhe elogios e estava abrindo a velha carteira de bolso, que eles chamavam o banco, quando Meg, sabendo que ela estava vazia, deteve a mão do marido e disse nervosamente: — Mas você ainda não viu a caderneta das minhas despesas particulares. John nunca pedia para examiná-la. Ela, porém, insistia em mostrá-la e
costumava divertir-se com o seu espanto masculino diante das coisas originais de que as mulheres necessitam. Aquela noite, ele parecia disposto a achar graça naquelas compras, fingindo ficar horrorizado com as extravagâncias da sua mulherzinha, como costumava fazer muitas vezes, embora intimamente se orgulhasse da sua prudente esposa. A caderneta foi trazida devagarinho e aberta diante dele. Meg ficou atrás da sua cadeira, sob pretexto de alisar as rugas da fronte do marido, vincada pelo cansaço, e ficando ali em pé, ela disse, sentindo o medo crescer a cada palavra: — John querido, tenho vergonha de mostrar-lhe a minha caderneta, porque ultimamente tenho feito extravagâncias horríveis. Deu-me vontade de ter uma porção de coisas e, como Sallie me aconselhou a adquiri-las, eu fui comprando. Com o meu dinheiro do fim do ano poderei pagar uma parte, mas estou triste com o que fiz, porque sei que você não há de gostar. John sorriu, ou o braço pela cintura da esposa, dizendo com bom humor: — Não tenha medo. Não baterei em você se comprou um novo par de sapatos. Muito me orgulho dos pezinhos bonitos da minha esposa e não me importo que ela pague oito ou nove dólares pelo seu calçado, se for realmente de boa qualidade. Esse havia sido um dos últimos caprichos de Meg e os olhos de John tinham caído sobre essa conta, quando falou. — Oh! Que dirá ele quando descobrir esses terríveis cinqüenta dólares? pensou Meg com um arrepio. A coisa é muito mais séria do que um par de sapatos. Ê um vestido de seda, disse ela, com a calma do desespero, pois queria resolver logo situação tão difícil. — Bem, querida. Onde está o diabo da soma total? A voz de John já não era a mesma e Meg notou que estava olhando para ela com a firmeza que antes a esposa sempre estivera pronta a enfrentar, com toda a franqueza. Ela virou a página e a cabeça ao mesmo tempo, apontando para a soma, que já teria sido má sem os cinqüenta dólares, mas que com eles chegava a ser impressionante. Por um minuto, a saleta ficou em silêncio. Depois, John disse lentamente, com um esforço, que ela bem notou, para não exprimir nenhum desgosto. — Está bem, não sei se cinqüenta dólares são demais por um vestido, com todos esses enfeites e guarnições que vocês vêm usando ultimamente. — Mas, nesta conta ainda não estão incluídos o feitio e os enfeites, suspirou Még debilmente, pois a súbita lembrança do dinheiro que ainda teria de gastar lhe fazia mal aos nervos. — Tanta seda me parece demais para cobrir uma mulherzinha, mas estou certo de que, com ela, minha esposa será tão elegante como a de Ned Moffat, disse John secamente. — Eu sei que você está zangado, John, mas não posso evitar isso. Eu não pretendia gastar do seu dinheiro e não pensei que essas coisinhas custassem tanto. Não sei resistir quando vejo Sallie comprando tudo o que ela quer e me lastimando porque eu não posso fazer o mesmo. Tentarei contentar-me com pouco, mas isso é difícil e já estou cansada de ser pobre. As últimas palavras foram ditas tão baixinho que ela pensou que John não as
tivesse escutado, mas ele ouviu tudo e ficou profundamente magoado, pois renunciara a muitos prazeres para o bem de Meg. Teria sido melhor que ela mordesse a língua no momento de dizer tal coisa, pois John atirou fora as cadernetas e levantou-se, dizendo com um leve tremor na voz: — Já tinha medo disso. Faço o que posso, Meg. Se ele tivesse falado com aspereza, ou se mesmo a sacudisse com fúria, não teria ferido tanto o coração da esposa como dizendo aquelas poucas palavras. Meg correu para ele, segurou-o com força, gritando, entre lágrimas de arrependimento: — Oh! John, meu querido, meu rapazinho bom e trabalhador, não pensei no que disse. Uma coisa tão cruel, tão injusta, tão ingrata! Nem sei mesmo como pude falar assim! Oh! como eu pude falar assim!... Ele foi bom, perdoou-a logo e não enunciou a menor queixa ou censura; mas Meg sabia que tinha feito e dito uma coisa que não seria esquecida tão cedo, embora o marido nunca mais aludisse a ela. Meg tinha prometido amá-lo nas boas e nas más ocasiões! Então, ela, a sua esposa, depois de gastar futilmente o seu dinheiro, ainda lhe ava em cara a sua pobreza! Isso era horrível! E o pior era que John procedeu tão calmamente depois, como se nada tivesse acontecido. Entretanto, ficava na cidade até mais tarde e trabalhava durante a noite enquanto ela ficava chorando até vir o sono. Uma semana de remorso quase que estraga a saúde de Meg e a descoberta de que John tinha suspendido a encomenda do seu novo sobretudo levou-a a um estado de desespero que era realmente de impressionar. Em resposta à pergunta surpreendida da esposa sobre o assunto, ele disse simplesmente: — Não me posso permitir esse luxo, meu bem. Meg não respondeu nada, mas, alguns minutos depois, foi encontrada na saleta, com o rosto enterrado no velho sobretudo do marido, chorando como se o seu coração estalasse de dor. Naquela noite, os dois tiveram uma longa conversa, e Meg aprendeu a amar o esposo ainda mais pela sua pobreza, pois isso parecia ter feito dele um homem, dando-lhe a força e a coragem para combater o seu próprio gênio, ensinando-lhe uma paciência mais tema para ar e consolar os naturais anseios e os íntimos desejos daquela a quem amava. No dia seguinte, vencendo o próprio orgulho, Meg foi procurar Sallie, contoulhe a verdade, e pediu-lhe, como um favor, que lhe comprasse a seda. A boa sra. Moffat atendeu alegremente e teve a delicadeza de não oferecer a fazenda a antiga dona, como presente. Então Meg encomendou o sobretudo e, quando John chegou, ela vestiu o capote, e lhe perguntou o que ele achava do seu novo vestido de seda. Pode-se imaginar que resposta deu ele, como recebeu o presente e que abençoado estado de coisas se formou então. John vinha para casa mais cedo, Meg não perdia mais tempo com as amigas, e aquele vistoso sobretudo era vestido pela manhã por um esposo muito feliz e escovado à noite por uma esposazinha muito dedicada. Assim, o ano foi correndo, e, pelo verão, Meg teve de enfrentar uma nova experiência a mais profunda e a mais enternecedora da vida de uma mulher. Num certo sábado, Laurie entrou furtivamente na cozinha da casa dos Brooke, com a fisionomia excitada, e foi recebido com música de pancadaria, pois Hannah batia festivamente com uma colher na tampa da caçarola. — Como vai a mamãezinha? Onde está o pessoal? Por que você não me
contou nada antes de eu vir para casa? Perguntou Laurie, precipitadamente. — Feliz como uma rainha, todos estão lá em cima, numa verdadeira adoração, nós não queremos barulheira dentro de casa. Vá para a saleta e eu mandarei alguém falar com você. E com essa resposta, um tanto atrapalhada; Hannah desapareceu. Neste ínterim, surgiu a Jo, carregando orgulhosamente um embrulho de flanela, sobre um almofadão. A fisionomia de Jo estava séria, mas os olhos piscavam e havia na sua voz o tom de uma emoção reprimida. — Feche os olhos e estenda os braços, disse ela convidativamente. Laurie recuou precipitadamente para um canto, escondendo as mãos nas costas, a implorar. — Não, por favor, não! Eu deixaria cair ou machucaria o pobrezinho, tão certo como dois e dois são quatro. — Então, você não verá o seu sobrinhozinho, disse Jo decididamente, voltando-se como para ir embora. — Então eu quero, eu quero! Apenas, você fica responsável pelos possíveis danos, e, obedecendo às ordens, Laurie fechou heroicamente os olhos enquanto qualquer coisa era colocada em seus braços. Um o de riso de Jo, Amy, sra. March, Hannah e John, fez o rapaz abrir os olhos imediatamente encontrando dois bebês em vez de um. O espanto que se estampou na sua fisionomia foi tamanho que houve uma crise geral de hilaridade. Jo chegou a deitar-se no soalho, torcendo-se toda em gargalhadas. — Gêmeos, meu Deus do céu! foi tudo o que Laurie disse, no primeiro instante. Depois, voltando-se para as mulheres, num apelo que era ao mesmo tempo de fazer rir e causar piedade, acrescentou: Por favor, venham acudir-me. Estou com vontade de rir e sou capaz de jogá-los no chão. John protegeu os seus bebês e andou de um lado para outro com um em cada braço, como se já estivesse iniciado nos mistérios de ser boa ama seca, enquanto Laurie ria tanto que lágrimas lhe escorriam pelas faces. — É a melhor pilhéria do ano, não é mesmo? Eu não lhe quis dizer nada, pois tinha resolvido fazer-lhe uma surpresa e. me gabo de ter conseguido isso, disse Jo, assim que pode falar. — Nunca tive um espanto maior em minha vida. Não é engraçado? São meninos? Que nome vão ter? Deixe-me vê-los mais uma vez, retrucou Laurie, fitando com divertida curiosidade os bebês. — Menino e menina. Não são duas belezinhas? disse o vaidoso papai, contemplando os pequerruchos embeveei-damente, como se fossem anjos. — São as crianças mais notáveis que eu já vi. Qual é o cidadão e qual é a cidadã? E Laurie inclinou-se para examinar os dois prodígios. -— Amy pôs uma fita azul no menino e uma r-de-rosa na menina, segundo a moda sa, como você bem pode imaginar. Além disso, um tem olhos azuis e o outro castanhos. Dê-lhes um beijo, titio Teddy, disse a malvada da Jo. — Tenho medo que eles possam não gostar, respondeu Laurie, que era excepcionalmente tímido em tais ocasiões. — Naturalmente que eles hão de gostar. Já se estão acostumando com os
beijos. Vamos, faça isso imediatamente, meu caro senhor! Ordenou Jo temendo que ele pudesse propor fazê-la de intermediária. Laurie fêz um muxoxo e obedeceu, dando uma beijoca em cada face pequenina, o que provocou outro o de riso do pessoal crescido e um chorinho dos bebês. — Olhe aí, eu bem sabia que eles não gostariam, exclamou Laurie, que estava achando graça em tudo. — O menino terá o nome de John Laurence e a menina será chamada Margaret, como a mãe e a avó. Nós lhe daremos o apelido de Daisy para que não haja duas Megs e penso que o homenzinho será chamado Jack, ao menos que se encontre um apelido melhor, disse Amy, com interesse de tia. — Pois então, vamos dar ao pequeno o nome de Demijohn, chamando-o Demi, por abreviação, propôs Laurie. — Daisy e Demi — ótimo! Eu bem sabia que Teddy havia de brilhar, exclamou Jo, batendo palmas. Teddy brilhou de fato dessa vez, pois os bebês ficaram sendo Daisy e Demi para sempre.
CAPITULO VI Visitas — Vamos, Jo. Está na hora. — Hora de quê? — Quer dizer com isso que se esqueceu de que me havia prometido fazer comigo hoje meia dúzia de visitas? — Eu tenho feito muitas tolices em minha vida, mas não creio que já cheguei à loucura de> dizer que faria meia dúzia dê visitas num dia. Pois se uma só basta para me estragar o resto da semana. — Você prometeu, sim. Houve uma combinação entre nós. Eu me incumbiria de terminar para você o creiom dè Beth e, em compensação, você me ajudaria a retribuir as visitas dos nossos vizinhos. — Se fizesse bom tempo, isso era negócio feito, pois satisfaço ao pé da letra os meus compromissos, Shylock. Mas, veja quantas nuvens no céu! O tempo não está firme e eu não irei. — Ora, isso é desculpa. O dia está esplêndido, não há a menor ameaça de chuva e você sempre se gabou de respeitar o prometido. Tenha palavra! Venha. Cumpra o seu dever e eu lhe prometo seis meses de paz e harmonia entre nós duas. Naquele momento, Jo estava muito absorvida na costura, pois era a modista geral da família e dava-se ares de grande importância porque manejava a agulha tão bem como a pena. Era bem desagradável, deixar a sua boa ocupação para ir pagar visitas, em trajes de cerimônia, num dia tão quente. Tinha horror a visitas e só consentia em fazê-las quando Amy a compelia a isso com uma troca, um presente ou
uma promessa. No caso em apreço, não havia meio de escapulir. Assim, tendo guardado os apetrechos de costura, com mau humor, e ainda protestando que o tempo era ameaçador, levantou-se, pegou no chapéu e nas luvas com um ar resignado e declarou a Amy que a vítima estava pronta para o sacrifício. — Jo March, você é um diabinho capaz de fazer um nanto perder a paciência! Você não pretende fazer visitas npnso estado, espero, exclamou Amy, fitando a irmã com eapunto. ─ Por que não? Meu vestido é limpo, fresco e confortável; perfeitamente de acordo para uma caminhada cheia de poeira, num dia tão quente. Se os outros dão mais Importância aos meus trajes do que a mim mesma, então ou não quero visitálos. Você pode mostrar-se bem vestida pelas duas e tão elegante quanto queira. Para você vale a pena parecer faceira, mas para mim isso não vale nada t> rendas e babaúos só me aborrecem. — Oh!. querida, suspirou Amy, isso agora já é desejo de ser contra. Você me deixará tonta antes que consiga prepará-la convenientemente. Eu lhe garanto que não me é agradável sair hoje, mas se trata de um dever que temos para com a sociedade. E para pagar as nossas visitas não há mais ninguém, a não ser você e eu. Hei de fazer o que for possivel por você, Jo, desde que se resolva a vestir-se dignamente e auxiliar-me a cumprir esse ato de civilidade. Você sabe falar tão bem, mostrar-se tão aristocrática com as suas melhores coisas e conduzir-se tão lindamente, quando quer, que eu até me orgulho de você. Tenho medo de ir sozinha. Venha também e me ajude. — Você tem um jeitinho todo especial para lisonjear a sua implicante irmã mais velha, com essas coisas. Essa história de eu ser aristocrática, bem educada, e de você ter medo de ir sozinha. Não sei de nada mais absurdo. Bem, já que é necessário, irei e farei o que for possivel. Você será a comandante da expedição e eu obedecerei cegamente. Está satisfeita assim? disse Jo, com uma súbita mudança da rebeldia a uma submissão de ovelhinha. — Que anjo você é! Agora, ponha o que tiver de melhor e eu lhe direi como deve proceder em cada lugar, de modo a dar boa impressão. Quero que os outros gostem de você e farão isso sem esforço, se você tentasse ser um pouco mais agradável. Arranje o cabelo direitinho e ponha uma rosa no chapéu. Assim, está bem e você parece tão discreta com o seu modo simples de vestir... Tome as suas luvas claras e o lenço bordado. aremos pela casa de Meg e pediremos emprestada a sua sombrinha. Assim, você pode ficar com a minha. Enquanto se vestia, Amy ultimava as suas ordens e Jo obedecia. Entretanto, não era sem protestos, pois soltava suspiros quando ruflava dentro do seu vestido novo de organdi, franzia a testa quando atava as fitas do chapéu num laço irrepreensível, lutava com os alfinetes quando prendia a gola alta; amarrava a cara quando usava o lenço, cujo bordado era tão irritante para o seu nariz como a presente missão para os seus sentimentos; e quando enfiou as mãos nas luvas apertadas, com três botões e uma fivelinha, como último toque de elegância, voltouse para Amy com uma ingênua expressão de acanhamento e disse com voz melíflua: — Sou uma infeliz; mas, se você me considera apresentável, morrerei contente. — Você satisfaz completamente. Dê uma volta devagarinho e deixe-me
examiná-la com atenção. Jo rodou e Amy deu um jeitinho aqui e ali, depois recuou, com a cabeça inclinada para o lado, observando graciosamente: Sim, está apresentável. A sua cabeça é tudo quanto se possa exigir, pois o chapelinho branco é simplesmente encantador. Abaixe os ombros e movimente as mãos com desembaraço, pouco importa que as luvas estejam apertadas. Aí está uma coisa que você faz muito bem, Jo isto é, usar um xale. Eu não posso. Fica lindo em você e estou satisfeita porque tia March lhe deu este, que é tão gracioso. É simples, po rém bonito, e essas dobras sobre o braço são realmente artísticas. A minha mantilha está colocada direita e o vestido vai bem? Gosto de mostrar os sapatos, porque meus pés são bem feitos, embora não possa dizer a mesma coisa do nariz. — Você é uma beleza e uma alegria, como sempre, disse Jo, olhando através dos dedos da mão, com um ar de conhecedora, para a pena azul sobre o cabelo cor de ouro. Mamãe, responde por favor: devo arrastar meu melhor vestido pelo chão ou devo suspendê-lo? — Suspenda-o quando estiver caminhando, mas deve soltá-lo quando entrar numa casa. O sistema de arrastar lhe assenta mais e você deve aprender a mover a saia com graça. Você não abotoou metade de uma das mangas. Faça isso de uma vez. Nunca parecerá completamente arranjada se não cuidar dessas minúcias, porque são elas que tomam agradável o conjunto. Jo suspirou e foi desabotoando uma das luvas, para abotoar o punho. Mas, afinal, as duas ficaram prontas e partiram, tão bonitas como verdadeiras imagens, tal como disse Hannah, quando foi observá-las da janela. — Agora, Jozinha querida, os Chester consideram-se muito elegantes e, assim, quero que você proceda da melhor maneira. Não faça nenhum dos seus comentários intempestivos ou outra qualquer extravagância, compreendeu? Seja calma, um tanto fria e quieta, isto é mais seguro e mais feminino. E você pode conter-se por uns quinze minutos, aconselhou Amy, quando se aproximaram da primeira casa a visitar, depois de tomarem a sombrirfha emprestada e serem examinadas por Meg, com um bebê em cada braço. — Vamos ver. Calma, um tanto fria e quieta, sim, creio que posso prometer isso. Representarei o papel de uma mocinha afetada no palco e tentarei sair-me bem. Grande é a minha energia, você verá. Fique sossegada, meu bem. Amy parecia aliviada, mas a irônica Jo seguiu as recomendações ao pé da letra, pois, durante a primeira visita, sentou-se com todos membros graciosamente compostos, toda dobra do vestido corretamente assentada, tão calma como o mar no verão, tão fria como a neve, tão silenciosa com a esfinge. Em vão a sra. Chester aludiu à sua encantadora novela e as meninas Chester falaram de festas, piqueniques, ópera lírica e modas. A todas, respondia com um sorriso, um leve balançar de cabeça e discretos sim e não, como uma criança acanhada. Em vão, para desembaraçá-la, Amy telegrafava a palavra fala e istrava pancadinhas significativas com a ponta do pé. Jo continuou docemente alheada de tudo. — Que criaturinha convencida e desinteressante é a mais velha das meninas March! foi o comentário, infelizmente audível, de uma das senhoras, quando bateram a porta, depois que saíram as visitantes. Jo ria ruidosamente através do jardim, porém Amy se mostrava aborrecida com o insucesso das suas instruções e mui naturalmente botava toda a culpa para cima de Jo.
— Como você me pôde compreender tão mal? Eu quis dizer simplesmente que devia apresentar-se discreta e distinta, mas você parecia feita de pau e de pedra. Tente ser sociável na casa dos Lambs, converse com as outras moças, mostre-se interessada em modas e namoricos e em qualquer futilidade que venha à baila. Eles freqüentam a melhor sociedade, são pessoas cujo conhecimento tem valor para nós e não quero deixar de forma alguma de dar ai uma boa impressão. — Serei agradável; hei de falar e de rir sem motivo, odiarei ou adorarei qualquer futilidade que você queira. Gosto um pouco disso e agora imitarei o que se chama "uma mocinha encantadora". Posso fazer o meu papel, pois tenho May Chester como modelo e ainda hei de melhorá-lo. Você verá se os Lambs não hão de dizer: Que criaturinha linda e gentil é a Jo March! Amy sentiu-se inquieta, como era bem o caso, pois quando Jo virava brincalhona era impossível saber até onde havia de ir. A face de Amy era digna de estudo, quando viu a irmã embarafustar pela sala adentro, beijar as moças com efusão, aproximar-se graciosamente dos rapazes e cair logo numa palestra animada, com tal presença de espírito que a outra ficou espantada. Amy foi logo absorvida pela sra. Lamb, em cujas graças caíra, e viu-se forçada a escutar um longo relatório sobre o último ataque de Lucrécia, enquanto três simpáticos rapazes rodavam por perto, esperando uma pausa para correrem em seu socorro. Sem poder sair dali, não tinha elementos para reprimir a Jo, que parecia dominada por um espírito maligno e falava pelos cotovelos, tal como a velha dona da casa. Um círculo de cabeças inclinava-se para ela e Amy apurava o ouvido para escutar o que estava sendo dito, pois as frases soltas que ouvia iam a ponto de alarmá-la, olhares esbugalhados e mãos levantadas atormentavam a,sua curiosidade, enquanto freqüentes e ruidosas risadas lhe davam o desejo de participar da brincadeira. Pode-se avaliar o seu sofrimento ao escutar fragmentos de conversa deste gênero: — Ela monta a cavalo esplendidamente? Quem lhe ensinou ? — Ninguém. Ela mesma procurou exercitar-se em montar, segurar as rédeas e manter-se firme num velho selim, pendurado, num galho de árvore. Agora, aprumase em cima de qualquer animal, porque não conhece o medo, e o homem do estábulo lhe aluga cavalos por um precinho barato, porque ela vai amassando as montarias para as outras senhoras. Ela tem tal paixão por isso que eu já lhe disse muitas vezes que, se tudo lhe correr mal, poderá muito bem ganhar a vida como amansadora de cavalos bravos. Ao ouvir esses comentários horríveis, Amy conteve-se com dificuldade, pois estava sendo dada a impressão de que ela era uma mocinha um tanto decidida. Não gostava disso. Mas que podia fazer? A velha estava ainda no meio da história e, antes que terminasse, Jo já estava fazendo mais uma das suas, com revelações ainda mais engraçadas e desatinos ainda mais temíveis. — Sim, Amy ficou desesperada nesse dia, porque os melhores animais tinham ido embora e dos três que ficaram, um era aleijado, 1 outro cego e o terceiro tão cheio de negaças que, antes mesmo de partir, já estava aos pinotes. Lin do animal para um eio agradável, vocês não acham? — Qual foi o que ela escolheu ? ─ perguntou um dos sorridentes rapazes, que gozava com a história.
— Nenhum dos três. Ela ouviu falar num cavalinho que havia numa fazendola do outro lado do rio e, embora nunca tivesse sido montado por uma mulher, Amy resolveu experimentá-lo, porque era vistoso e árdego. A luta dela foi patética. Como não apareceu ninguém capaz de trazer o cavalo até a sela, Amy levou a sela até o cavalo. Atravessou o rio remando, pôs a sela na cabeça e marchou resolutamente para a fazendola, para espanto do proprietário. — E montou no cavalo? — Naturalmente. E ou os seus instantes de sensação. Esperei vê-la chegar em casa aos pedacinhos, mas saiu-se perfeitamente bem e foi a alma do eio. — É a isso que eu chamo boa rédea! E o jovem Lamb lançou um olhar aprovativo para Amy, intrigado com o que a sua mãe podia estar dizendo à moça para fazê-la parecer tão corada e tão constrangida. Ela ainda ficou mais corada e mais constrangida um momento depois, quando um súbito desvio da palestra pôs em discussão o assunto da indumentária. Uma das moças perguntou a Jo onde tinha adquirido o lindo chapèuzinho de briche que usara no piquenique. E a desastrada da Jo, em vez de mencionar a casa onde tinha comprado o objeto, há dois anos ados, como era de esperar que respondesse, preferiu dizer com desnecessária franqueza. — Oh! Foi pintado pela Amy. Não podemos comprar dessas coisas. Assim, pintamos os nossos chapelinhos de palha com a cor que mais nos agrada. É uma grande vantagem ter uma irmã artista. — Náo é uma idéia original? disse a sra. Lamb, que achava muita graça em Jo. — Isso não é nada, comparado com outras façanhas ainda mais brilhantes da Amy. Não há nada que essa menina não posso fazer. Por exemplo, ela queria um par de sapatos azuis para a festa de Sallie; pois bem, pintou o seu sapatinho branco, que já estava manchado, com a mais encantadora nuança do azul do céu. Os sapatinhos pareciam feitos de cetim, acrescentou Jo, com o ar de quem se orgulhava das prendas da irmã. — Lemos outro dia um conto seu e apreciamos muito, observou a mais velha das senhoritas Lamb, desejando ser gentil para a jovem escritora, que, forçoso é confessar, não parecia naquele momento uma mulher de letras. Qualquer referência aos seus trabalhos produzia sempre um mau efeito sobre Jo que ou se mostrava imível e um tanto ofendida ou desviava logo o assunto com um comentário impaciente, como este que fez então: — É uma pena que você não tenha encontrado nada de melhor para ler. Escrevo essas tolices porque me pagam e são apreciadas pela gente sem cultura. Você vai a Nova-York neste inverno? Como a srta. Lamb tinha apreciado o conto, as suas palavras não eram exatamente de simples gentileza convencional. Um minuto mais tarde, Jo compreendeu que se enganara. Mas, temendo agravar a questão, lembrou-se subitamente de que lhe cabia dar o primeiro sinal de despedida e fez isso de um modo tão precipitado que cortou pelo meio a palavra de três pessoas. — Amy devemos ir embora. Adeuzinho, querida. Venha ver-nos. Gostamos muito de visitas. Não me atrevo a pedir-lhe, sr. Lamb, mas se vier, não sei se terei
coragem para deixá-lo partir. Jo disse isso imitando tão pitorescamente o estilo melindroso de May Chester, que Amy saiu da sala o mais depressa que pôde, sentindo ao mesmo tempo vontade de rir e de chorar. — Desta vez eu não procedi muito bem? perguntou Jo, com ar satisfeito, quando iam andando. — Você não podia proceder de maneira pior, foi a esmagadora resposta de Amy. Que maluquice foi essa dé contar tais histórias a respeito da minha sela e de sapatos e chapéus, além de tudo mais? — Ora, porque era engraçado e divertia o pessoal. Todos sabem que nós somos pobres e, assim, é inútil a pretensão de ter criados, comprar três ou quatro chapéus para cada estação e possuir facilmente coisas tão bonitas como as dos outros. — Você não devia contar os nossos pequeninos arranjos e revelar nossa pobreza de um modo perfeitamente desnecessário. Você não tem um pingo de amorpróprio e hão sabe nunca quando deve falar ou ficar calada, disse Amy, em desespero. A pobre da Jo parecia encabulada e assoava silenciosamente a ponta do nariz no lencinho bordado, como se fizesse uma penitência para pagar os seus erros. — Como é que devo proceder aqui? perguntou ela, quando se aproximavam da terceira casa. — Proceda como quiser. Eu lavo as minhas mãos, foi a seca resposta de Amy. — Então, vou divertir-me. Os rapazes estão em casa e aremos uma horazinha agradável. Deus sabe quanto preciso de uma mudança, porque a elegância produz sempre um mau efeito sobre o meu organismo, replicou Jo asperamente, sem poder dizer mais nada em vista dos seus insucessos. Boas-vindas entusiásticas de três rapazolas e de algumas pequenas bonitas amansaram rapidamente os seus agitados sentimentos. Deixando Amy entreter a dona da casa e o sr. Tudor, Jo tomou conta dq pessoal miúdo e achou explêndida a troca. Escutava as histórias de colégio com profundo interesse, acariciava cães de caça com desembaraço, concordava sinceramente que Tom Brown era um batuta, sem ligar a essa forma incorreta de elogio. E quando um rapazinho propôs uma visita ao tanque das tartarugas, ela aceitou o convite com uma alegria que fez sorrir a dona da casa, quando a maternal senhora arranjava a touca que ficara em mísero estado depois dos apertões filiais, afetuosos, porém violentos e para ela de muito mais valor do que a mais perfeita coiffure, arranjada pelas mãos da mais requintada modista sa. Deixando a irmã entregue ã sua própria sorte, Amy tratava de divertirse à vontade. O tio do sr. Tudor casara-se com uma senhora inglesa que era prima em terceiro grau de um lorde e Amy tratava a família toda com grande respeito. Pois, embora nascida e educada na América, tinha em grande respeito os títulos de nobreza, que impressionam ainda as melhores pessoas entre nós; com essa subconsciente fidelidade à fé dos antigos reis, que fez exultar a nação mais democrática do mundo quando recebeu, há alguns anos, a vista de um louro
principezinho e que ainda tem muito que ver com o amor do país novo pelo antigo como o de um filho crescido pela velha mãezinha, que o ajudou enquanto pôde e o deixou com um adeus quando ele não quis mais a sua tutela. Entretanto, nem mesmo a satisfação de falar com um parente afastado de um nobre inglês fez Amy esquecer a noção do tempo. E quando o número conveniente de minutos havia ado, deixou a contragosto essa aristocrática sociedade e foi ver por onde andava a Jo, com a ardente esperança de que a sua incorrigível irmã não tivesse tomado qualquer atitude que chegasse a comprometer o nome de March. Podia ter sido muito pior, mas o que aconteceu não agradou a Amy. Jo sentou-se no gramado com uma turma de rapazolas em torno dela e um cachorro de focinho imundo repousando sobre a saia de seu vestido de festa e grandes cerimônias, enquanto ela contava ao auditório irado uma das proezas de Laurie. Uma pequerrucha estava bulindo nas tartarugas com a sombrinha de estimação de Amy, uma outra guardava frutas dentro do melhor chapéu de Jo e uma terceira jogava bola com as suas luvas. Mas todos estavam se divertindo enormemente. E quando Jo reuniu os seus bens danificados para ir embora, a turma a acompanhou, pedindo-lhe para vir mais uma vez. Era tão engraçado escutar as façanhas de Laurie. — Meninos excelentes, você não acha? Sinto-me perfeitamente renovada e bem disposta depois disso, comentou Jo, caminhando com as mãos para trás, em parte por hábito e em parte para esconder a sua sombrinha salpicada de lama. — Por que você evita sempre o Tudor? perguntou Amy, contendo-se sabiamente para não fazer qualquer comentário sobre o aspecto desarranjado de Jo. — Não gosto dele. Toma ares de importância, implica com as irmãs, aborrece o pai e não fala com a mãe respeitosamente. Laurie diz que ele é presunçoso e não o considero um conhecimento desejável. Assim, não o procuro. — Deve tratá-lo pelo menos com civilidade. Você o cumprimentou com frieza. E isso exatamente depois de ter saudado com um sorriso, de modo mais gentil, a Tommy Chamberlain, cujo pai é quitandeiro. Se você fizesse a mesma coisa para o outro, estaria certo, disse Amy repreen-sivamente. — Não. Não podia ser assim, respondeu a indomável Jo. Eu não aprecio, nem respeito, nem iro Tudor, embora a sobrinha do seu sobrinho do seu tio do seu avô tenha sido primo em terceiro grau de um lorde. Tommy é pobre, acanhado, bom, muito inteligente. Tenho boa impressão dele e gosto de demonstrá-la, porque é um cavalheiro distinto, não obstante todos os papéis de embrulho da quitanda. — Não se pode argumentar com você, começou Amy. — Nem por isso, meu benzinho, interrompeu Jo. Vamos mostrar-nos muito amigas e deixar o cartão aqui, pois naturalmente os Kings não estão em casa e eu muito lhes agradeço esse favorzinho. Tendo a caixa de cartões de família desempenhado a sua missão, as irmãs seguiram em seu caminho e Jo murmurou um outro "Graças' a Deus!" quando chegaram à quinta casa e souberam que as moças tinham saído. — Agora, vamos para casa e nem me fale em ver a tia March hoje. Poderemos ir lá em qualquer outra ocasião, pois é realmente uma pena estragar assim na poeira nossas melhores roupas, quando já estamos tão cansadas e abor-
recidas. — Diga isso lá por sua conta, por favor. Titia gosta de ver retribuídas por uma visita de formalidade as gentilezas que nos faz. É uma coisinha à-toa, mas isso lhe dá prazer. Além disso, não creio que você se importe tanto de conservar os seus trajes, já que deixou cães sujos e crianças enlambuzadas estragá-los à vontade. Pare um instantinho e deixe-me tirar essas migalhas de pão de seu chapéu. — Que menina boa você é! exclamou Jo com um olhar arrependido, que foi do seu vestido estragado aos trajes da irmã, que ainda estavam estiradinhos e sem manchas. Quem me dera que fosse tão fácil para mim fazer essas pequenas coisas simpáticas, como o é para você! Penso em fazê-las, mas isso toma muito tempo. Assim, espero que o destino me dê uma grande oportunidade e vou deixando as pequenas escapulirem. Mas no fim tudo se arranja, imagino. Amy sorriu e cedeu finalmente, dizendo com ar maternal: — As mulheres devem aprender a ser agradáveis, principalmente as pobres, pois não têm outro meio de retribuir as bondades que recebem. Se se lembrasse disso e quisesse pô-lo em prática, você seria mais querida do que eu, pois lhe sobram qualidades. — Sou uma velha caprichosa e não mudarei nunca, mas reconheço que você tem razão. Apenas, para mim é mais fácil arriscar a vida por uma pessoa do que agradá-la, quando não posso fazer isso com sinceridade é uma grande infelicidade ter simpatias e antipatias tão fortes, não acha? — Maior ainda é não saber ocultá-las. Não pense que sou mais condescendente no juízo sobre Tudor do que você. Mas não me cabe dizerrlhe o que penso a seu respeito. Nem a você, tampouco. Não há vantagem em fazer-se desagradável, só porque ele o é. — Mas eu acho que as moças devem demonstrar a má impressão inspirada por certos rapazes. E como fazer isso, senão pelo modo de tratá-lo ? Conselhos e sermões não adiantam, como sei, infelizmente, por experiência própria, desde que pretendi guiar o Teddy. Entretanto, há certas coisinhas através das quais posso influenciá-lo sem dizer uma palavra e penso que "devemos" fazer o mesmo Quanto aos outros, se for possível. — Teddy é um rapaz notável e não pode ser tomado como ponto de comparação para os outros, disse Amy num tom de solene convicção, que teria abalado o notável rapaz, se ele tivesse ouvido isso. Se fossemos duas formosuras ou duas senhoras de fortuna e posição, poderíamos fazer talvez alguma coisa. Mas para nós, isso de amarrar a cara a certos rapazes porque não estamos de acordo com a sua maneira de viver e de sorrirmos para outros, que merecem a nossa aprovação, não produziria nenhum efeito sensível e, como único resultado, seríamos consideradas extravagantes e excessivamente puritanas. — Dessa maneira, temos de agüentar coisas e pessoas que detestamos, só porque não somos nem bonitas nem milionárias, não é assim? Que linda lição de moral! — Não quero saber se é certo ou errado. Sei apenas que é essa a regra do mundo. Quem se revolta contra isso ridicularizado no próprio sentimento. Não gosto de reformadores e espero que não tentes imitar-lhes o exemplo. — Eu gosto deles e, se pudesse, imitaria o seu exemplo, pois, embora
ridicularizados, os reformadores são necessários neste mundo. Você não pode estar de acordo com isso, porque você pertence ao grupo adista e eu pertenço ao modernista, afirmou Jo. — Está bem. Mas, contenha-se, por favor e não aborreça titia com as suas novas idéias. — Farei o possível, mas sempre me vem a tentação de dizer qualquer coisa de revolucionário ou de inconveniente diante dela. É meu destino e não posso evitá-lo. Encontraram a tia Carol com a velha senhora, ambas muito absorvidas num assunto de grande interesse. Mas calaram-se logo quando as mocinhas entraram, dando a entender, com um olhar de inteligência, que falavam a respeito das sobrinhas. Jo não estava de bom humor e a veia irônica voltara, mas Amy, que tinha cumprido virtuosamente o seu dever, contido o seu gênio e agradado a toda gente, mostrava-se no mais angélico estado de espírito. Essa amável disposição fez-se logo notada e ambas as tias a trataram afetuosamente por minha querida, já insinuando o que depois disseram enfaticamente: Essa pequena melhora cada dia. — Você nos vai ajudar na quermesse, querida? perguntou a sra. Carrol, quando Amy se sentou ao seu lado com esse ar confiante que as pessoas idosas gostam tanto de encontrar na gente moça. — Sim, titia. A sra. Chester perguntou-me se eu queria ajudá-la e eu me ofereci para tomar conta de uma mesa, pois não tenho mais nada para dar além do meu trabalho. — Eu não vou, disse Jo resolutamente. Odeio ser tratada com ar de proteção e os Chester pensam que é um grande favor conceder-nos o direito de ajudá-los nessa festa de gente tão bem relacionada. Eu me iro que você tenha concordado, Amy. Eles só querem você para o trabalho. — Estou querendo trabalhar. E uma festa tanto para os pobres como para os Chester e acho que eles foram muito bons deixando-me partilhar do trabalho e do divertimento. Ser tratada com ar de proteção não me aborrece quando é para uma boa causa. — Muito certo e muito direito. Eu gosto do seu espírito agradecido, minha querida. É um prazer ajudar pessoas que apreciam os nossos esforços. Há gente que não pensa assim e é uma pena, observou a tia March, olhando por cima dos óculos para Jo, que estava sentada à parte, balançando-se distraidamente, com uma expressão um tanto aborrecida. Se Jo tivesse sabido ao menos que grande felicidade estava para ser decidida entre ela e a irmã, imediatamente teria ficado como uma pombinha. Mas, infelizmente, não temos janelas em nossos corações e não podemos ver o que se a no íntimo das pessoas amigas. De um modo geral, é melhor que seja assim, mas em alguns casos seria uma alta vantagem adivinhar as disposições alheias, porque isso evitaria aborrecimentos e perda de tempo. Pelo que disse logo depois, Jo privou-se de muitos anos de prazer e recebeu uma duradoura lição sobre a arte de conter a língua. — Não gosto de favores; eles me oprimem e me fazem sentir como uma escrava. Prefiro fazer tudo por mim mesma e ser completamente independente. — Hum! resmungou a tia Carrol, com um olhar para tia March.
— Era o que lhe dizia, comentou a sra. March, com um sinal significativo para tia Carrol, Na santa ignorância do que tinha feito, Jo sentou-se com o narizinho arrebitado e um aspecto revolucionário que não tinha nada de convidativo. — Você fala francês, querida? perguntou a sra. Carrol, segurando a mão de Amy. — Muito bem, graças à tia March, que deixa a Ester falar comigo todas as vezes que quero, respondeu Amy com um. olhar agradecido, que levou a velha senhora a sorrir com agrado. — E como vai você a respeito de língua? perguntou a sra. Carrol a Jo. — Não sei uma palavra. Sou estúpida demais para estudar qualquer coisa. Não o francês. É uma maneira de linguagem tão escorregadia e tão antipática! Foi a desabusada resposta. As velhas entreolharam-se mais uma vez e tia March disse a Amy: — Você agora está bem e robusta, não é assim, minha filha ? Os olhos não a incomodam mais, não é verdade ? — Nada, nada. Obrigadinha, titia. Estou muito bem e penso em fazer grandes coisas no inverno vindouro, de modo que poderei estar pronta para ir a Roma, quando chegar esse tempo feliz. — Que boa menina! Você merece ir e estou certa de que irá mesmo algum dia, disse a tia March, balançando a cabeça afirmativamente. ─ Pega o fuso, fiandeira, Vai fiar junto à lareira. gritou Polly, saltando do poleiro para as costas da. cadeira e fitando a cara de Jo com um olhar cômico e impertinente que era impossível deixar de rir. — Que ave observadora! disse a velha. — Vamos dar um eio, meu bem? gritou o papagaio, saltando para a mesinha de porcelana com o olhar significativo para o açucareiro. — Muito obrigado, irei. Vamos Amy, é Jo deu a visita por terminada, sentindo mais vivamente do que nunca que visitas produziam um mau efeito sobre o seu organismo. Apertou as mãos à maneira masculina, mas Amy beijou as duas tias. E as moças partiram, deixando atrás delas a impressão da luz e da sombra. Essa impressão fez tia March dizer, quando as duas já estavam longe: — Você fará isso melhor, Mary. Eu fornecerei o dinheiro. E a tia Carrol respondeu sem vacilar: — Terei muito gosto, se o pai e a mãe consentirem...
CAPITULO VII Conseqüências A quermesse da sra. Chester era tão elegante e seleta que se considerava uma grande honra para as mocinhas da redondeza o convite para tomar conta de uma mesa. Todas andavam muito interessadas no assunto. Amy foi convidada,
porém Jo não foi, para satisfação de todos, pois as suas sobrancelhas estavam decididamente franzidas nesse período de sua vida e só a custa de rudes golpes era possível ensina-Ia a sair-se bem. A criaturazinha convencida e desinteressante foi deixada rigorosamente só. No entanto, o talento e o bom gosto de Amy eram diariamente elogiados pela incumbência recebida de arranjar a mesa de arte e ela se esforçava para prepará-la, conseguindo contribuições apropriadas e valiosas. As coisas correram suavemente até a véspera da inauguração da quermesse. Então, ocorreu um desses pequenos incidentes impossíveis de evitar quando vinte e cinco mulheres, entre velhas e moças, com todos os seus caprichos e preconceitos, tentam trabalhar juntas. May Chester andava um tanto enciumada com a Amy, porque esta era ainda mais apreciada do que ela. E, exatamente ao mesmo tempo, várias circunstâncias miúdas vieram aumentar a prevenção. Os primeiros desenhos à pena de Amy eclipsaram inteiramente os vasos pintados pela May — e isso era um espinho. A seguir, o irresistível Tudor tinha dançado quatro vezes com a Amy, na última festa, e apenas uma com a May — eis o espinho número dois. Entretanto, o golpe mais profundo que feriu a sua alma e lhe deu o pretexto para a sua conduta inamistosa foi o boato, sussurrado por alguns intrigantes aduladores, de que as meninas March tinham troçado dela em casa dos Lambs. Toda a culpa disso devia recair sobre Jo, porque a sua engraçada imitação de May tinha sido perfeita e os Lambs, muito indiscretos, deixaram que a brincadeira se espalhasse. Nenhuma palavra a esse respeito chegou aos ouvidos das acusadas e pode-se imaginar o espanto de Amy quando, na noite anterior à inauguração da quermesse, ao dar os derradeiros retoques na sua linda mesa, a sra. Chester, que, naturalmente, sentia a pretensa troça à custa da filha, disse num tom suave, porém com uma expressão fria: — Acho, querida, que as moças ficarão sentidas se eu der esta mesa a outra pessoa que não seja uma das minhas filhas. Como é a mais importante e, na opinião de algumas a mais atraente das mesas, será melhor dá-la às minhas pequenas, porque são elas ás principais promotoras da quermesse. Sinto muito, porém tenho a certeza de que você está tão sinceramente interessada por esta obra que não se aborrecerá com isso. E se quiser, poderá ter outra mesa. A sra. Chester pensara, antes que lhe seria fácil dizer tal coisa; mas, quando chegou a hora, sentiu-se embaraçada ante o olhar sem suspeita de Amy, que a íitava firmemente cheia de surpresa e decepção. Amy compreendeu que havia um sentido oculto em tudo isso, mas não podia atinar qual seria, disse serenamente, sem disfarçar a sua mágoa: — Não prefere, talvez, que eu não tome conta de mesa alguma? — Ora, meu bem, não leve a mal, por favor. Simplesmente uma questão de conveniência, veja bem. Minhas filhas, naturalmente, terão as honras da festa e esta mesa é o lugar que lhes compete. Acho que ficaria muito bem para você e agradeçolhe os seus esforços para enfeitá-la; mas devemos deixar de lado as preferências particulares e você terá um bom lugar em qualquer parte. Não gostaria da mesa das flores? As pequenas encarregaram-se dela, porém desanimaram. ─ Você poderá transformá-la numa coisa encantadora e a mesa das flores é sempre atraente, como sabe.
— Especialmente para os rapazes, acrescentou May, com uma expressão que esclareceu Amy sobre uma das causas de sua repentina perda de simpatia. Corou de indignação, mas não tomou conhecimento do sarcasmo pueril e respondeu com inesperada amabilidade. — Pois será como for de seu agrado, sra. Chester. Cederei meu lugar aqui de uma vez e ficarei com as flores, se quiser. — Pode colocar- as suas prendas na mesa que lhe pertence, se preferir, começou May, sentindo uma pontinha de remorso, quando viu os lindos cavaletes, as prateleiras pintadas, as gentis luminárias que Amy fizera tão cuidadosamente e arranjara com tanta graça. Falava com boa intenção, porém a outra interpretou mal o sentido e disse vivamente: — Oh, certamente, se lhe atrapalham, e, recolhendo no avental todas as suas contribuições, Amy foi embora, com o sentimento de que ela e as suas prendas artísticas tinham sido insultadas de uma forma que não itia perdão. — Agora, ela endoideceu. Oh! mamãe, bem quisera não lhe ter pedido para falar nisso! disse May, contemplando desconsoladamente os espaços vazios na sua mesa. — Arrufos de moças am depressa, replicou a mãe, sentindo-se um pouco envergonhada do papel que representava na questão. As pequenas saudaram com alegria Amy e os seus tesouros e essa cordial recepção suavizou em parte o seu perturbado espírito. Entregou-se ao trabalho, disposta a triunfar floridamente, já que não poderia ser artisticamente. Tudo, porém, parecia contra ela. Estava cansada e era já muito tarde. Toda gente estava demasiado ocupada com os seus próprios afazeres para ajudá-la e as crianças só serviam para atrapalhar, pois faziam barulho e chilreavam como arinhos, fazendo grande confusão com os seus desajeitados esforços para garantir a mais perfeita ordem. O arco todo verde não ficou firme quando Amy o levantou; oscilava e prometia cair sobre as suas mãos quando foram penduradas as cestinhas. A melhor tela apanhou um borrão d'água, que deixou uma lágrima de sépia nas faces do Cupido. Amy machucou os dedos com o martelo e molhou-se trabalhando numa fontezinha. Esse último desastre encheu-a de apreensões quanto ao dia seguinte. Qualquer leitorazinha que já ou por essas aflições há de simpatizar por certo com a pobre da Amy e desejará vê-la bem sucedida na sua tarefa. Houve grande indignação na família quando a moça contou a história daquela tarde. Sua mãe disse que era uma vergonha, mas lhe declarou que tinha agido bem. Beth afirmou que não iria mais à festa e Jo perguntou porque não tinha trazido todas as coisas para casa, deixando aquela gente mesquinha arranjar-se sem ela. — Porque elas são mesquinhas, não há razão para que eu seja também. Odeio essas coisas e, embora tenha o direito de ficar sentida, não quero dar o braço a torcer. Elas eentirão mais isso do que palavras indignadas ou gestos de despeito. Não acha, mamãe? — Você tem razão, filhinha. Um beijo em troca de uma bofetada é sempre o melhor, embora às vezes seja difícil fazer isso, disse a sra. March, com o ar de quem tinha aprendido a diferença entre o que se aconselha e o que se faz. Apesar das tentações naturais da mágoa e do despeito, Amy manteve firme a
sua decisão durante todo o dia seguinte, disposta a conquistar pela bondade a sua inimiga. Começou bem, graças a uma lembrança que lhe veio de repente, iras com muita oportunidade. Quando arranjava a mesa pela manhã, enquanto as pequenas estavam enchendo as cestas na ante-sala, ela tomou o seu primeiro presente um livrínho,cuja capa antiga o pai encontrara entre os seus tesouros, e no qual, sobre folhas de pergaminho, a moça tinha lindamente iluminado diferentes textos. Revendo aquelas páginas ricas de suaves conselhos, com perdoável orgulho, seus olhos caíram sobre uma linha que a fez parar e refletir. Enquadrado num brilhante esboço de escarlate, azul e ouro, com pequeninos anjos prazenteiros ajudando uns aos outros, entre rosas e espinhos, lia-se este conselho: Amarás ao próximo como a ti mesmo. — Devia fazer, mas não faço, pensou Amy, quando seus olhos se desviaram da página brilhante para a face enca-bulada de May, vista através dos vasos grandes, que não podiam preencher os claros abertos com a retirada das suas lindas prendas. Amy parou um minuto, virando as páginas e lendo em cada uma novas e doces censuras contra o rancor do coração e a falta de caridade espiritual. Sermões sábios e verdadeiros são pregados diariamente, por missionários na rua, na escola, na oficina, no lar; até mesmo uma simples mesa de quermesse pode tornar-se um púlpito, inspirando palavras boas e cheias de esperança que nunca perdem oportunidade. A consciência de Amy pregava-lhe um pequeno sermão através de um texto aqui e outro ali. E ela fez o que muitas de nós nem sempre fazemos tomou o sermão a sério e pô-lo em prática firmemente. Um grupo de moças rodeava a mesa de May, irando-lhe os encantos e falando sobre a troca das vendedoras. Abaixaram a voz, porém Amy compreendeu que falavam a respeito dela, ouvindo uma parte da história e julgando-a de acordo. Não era nada agradável, mas um espírito melhor a dominou e logo se ofereceu um ensejo para prová-lo. Ouviu May dizer tristemente: — Está muito mal arranjado, pois não há mais tempo para fazer outra coisa e não quero encher a mesa com ve-lharias e esquisitices. A mesa estava completa ontem. Agora, está estragada. — Creio que ela restituiria as prendas, se você lhe pedisse ─ sugeriu alguém. — Como seria possível isso, depois do que houve? ─ começou May, porém não acabou, porque a voz de Amy veio da ante-sala, dizendo alegremente: — Você pode ficar com elas e aproveitá-las, sem pedir nada, se quiser. Estava pensando agora mesmo em oferecê-las dè volta, pois pertencem mais à sua mesa do que à minha. Aqui estão. É um favor aceitá-las e desculpe-me se me apressei a carregá-las ontem de noite. Falando assim, Amy restituiu a sua contribuição, com um cumprimento e um sorriso. Depois, saiu apressadamente, sentindo que era mais fácil fazer um gesto simpático do que ficar ali para receber um agradecimento. — Agora, devo dizer que ela foi gentil, não acha? ─ exclamou uma, das moças. A resposta de May foi imperceptível. Mas uma outra mocinha, cujo gênio era evidentemente azedo demais para fazer limonadas, adiantou-se com uma desagradável risada:
— Muito gentil; pois ela sabia que não venderia essas coisas em sua própria mesa. Francamente, isso era duro! Quando fazemos um pequeno sacrifício, gostamos de ter pelo menos quem o aprecia. Por um minuto, Amy arrependeu-se do que tinha feito, achando que a virtude nem sempre era recompensada. Mas, de fato o é, como descobriu logo. Realmente, seu espírito voltou a animar-se e a sua mesa florescia sob as mãos habilidosas. As garotas portaram-se muito bem e aquele pequenino gesto parecia ter desanuviado milagrosamente a atmosfera. Foi um dia muito comprido e muito fatigante para Amy, que ficou em pé atrás de sua mesa, muitas vezes completamente só, pois as pequenas desertaram bem cedo. Bem poucos cuidavam de comprar flores no verão e os seus buquês começaram a murchar muito antes de anoitecer. A mesa de arte era a mais atraente da sala. Havia uma multidão em torno dela durante o dia todo e as vendedoras corriam daqui para ali, sem cessar, com ares convencidos e tilintantes caixinhas de níqueis. Mais de uma vez Amy olhou ressentida para aquele lado, desejando estar ali, onde ficaria satisfeita e à vontade, ao invés de permanecer num canto onde não havia nada para fazer. Isso pode parecer sem importância para algumas de nós; mas, para uma jovem bonita eanimada, não só era aborrecido, como também cruel. E o pensamento de ser encontrada ali pela família e por Laurie e suas amigas lhe criava um verdadeiro martírio. Só de noite é que voltou para casa e, então, mostrou-se tão pálida e tão quieta que todos perceberam que o dia não correra bem, embora ela não soltasse uma queixa e nem mesmo dissesse o que. tinha feito. A mãe lhe deu cordialmente uma chávena de chá extra e lhe acariciou os cabelos, enquanto Jo espantava a família ao se levantar com excepcional solenidade para declarar que as mesas deviam, ser derrubadas. — Não faça nada de rude, Jo, por favor! Não quero mais discussão sobre o fato. Deixe ar tudo e contenha-no, pediu Amy, quando partiu bem cedo, esperando encontrar novo fornecimento de flores para refrescar a sua pobre mesinha. — Pretendo simplesmente tornar-me agradabilíssima para toda gente que conheço, prendendo-a no seu canto todo tempo possível. Teddy e a sua turma lhe darão ajuda e teremos ainda horas muito boas, respondeu Jo, pendurando-se no portão para ver por onde andava Laurie. Nisso, vislumbrou-o ao longe e .correu ao seu encontro. — És o meu cavalheiro? — Tão certo quanto és a minha dama, e Laurie pôs a mão dela no seu braço, com o ar de um homem que vê satisfeitos todos os seus desejos. — Oh! Teddy, quantas coisas tem havido, e Jo contou com zelo fraternal as desventuras de Amy. — Uma turma dos nossos companheiros está recrutando gente por toda parte e quero ser enforcado se não comprarem todas as flores dela e se não acamparem junto à sua mesa, disse Laurie, que expunha com entusiasmo' o seu plano. — As flores não estão nada bonitas e as novas não chegarão a tempo. Não quero ser injusta nem desconfiada, mas não me iraria se chegassem a fazer
isso. Quem faz uma mesquinharia, não tarda a fazer outra, observou Jo, desgostosa. — Hayes não lhe deu as melhores do nosso jardim? Recomendei-lhe isso. — Eu não sabia. E ele esqueceu, naturalmente. Como seu avô estava indisposto, não quis incomodá-lo com um pedido, embora desejasse algumas. — Ora, Jo! Pensou, então, que era necessário pedir? As flores são tanto suas como minhas. Não dividimos sempre tudo pela metade? começou Laurie, de um modo que sempre deixava a Jo meio espinhada. — Graças! Não penso assim! Metade das suas coisas não me convém absolutamente. Mas não devemos ficar trocando galanteios aqui. Tenho de ajudar Amy. Assim, venha e proceda esplendidamente. E se tiver a bondade de deixar Hayes apanhar algumas flores bonitas para a quermesse,eu lhe agradecerei sempre. — Por que não as leva agora? perguntou Laurie tão sugestivamente que Jo bateu o portão em sua cara, com pressa, e gritou através das grades: — Vá indo, Teddy, estou ocupada. Graças aos conspiradores, a mesa transformou-se naquela noite. Hayes mandou um mundo de flores, com uma cesta linda, arranjada da melhor maneira, para o centro da mesa. A família March compareceu em massa e Jo fez tanta coisa que os visitantes não só apareceram como se demoraram, rindo das suas maluquices, irando o gosto de Amy e dando todas as provas de que estavam satisfeitos. Laurie e seus amigos penetraram cavalheirescamente pela brecha aberta, compraram os buquês, acamparam diante da mesa .e fizeram daquele cantinho o ponto mais animado do salão. Amy estava agora no seu elemento, e esfusiante de gratidão, com toda a sua graça e alegria, chegando à conclusão de que, apesar de tudo, a virtude tinha sempre a sua recompensa. Jo portou-se com exemplar correção. E enquanto Amy se achava venturosamente cercada pela sua guarda de honra, a irmã circulava pelo salão, apanhando aqui ou ali retalhos de conversa, que a esclareciam sobre o motivo da mudança de atitude dos Chester. Censurava-se intimamente pela sua parte de malignidade e resolveu reabilitar a Amy tão cedo quanto possível. Também descobriu o que a irmã tinha feito pela manhã e considerava-a um modelo de magnanimidade. Quando ou pela mesa de arte, deu uma olhada para onde deviam estar as prendas de Amy, porém não as encontrou. — Sou capaz de apostar que foram retiradas de onde se pudesse vê-las, pensou Jo, que perdoava as próprias ofensas mas sentia vivamente qualquer insulto lançado contra a sua família. — Boa noite, senhorita Jo! Como vai indo a Amy? perguntou May num tom conciliatório, pois desejava mostrar que também sabia ser generosa. — Ela já vendeu todas as coisas que podiam ser vendidas e agora está se divertindo. A mesa das flores é sempre atraente, especialmente para os rapazes. Jo não resistiu à tentação de dar essa alfinetada, porém May a recebeu tão mansamente que logo a outra se arrependeu e pôs-se a elogiar os jarros grandes, que ainda estavam sem arrematadores. — As ilustrações de Amy, onde se encontram ? Veio-me a idéia de comprálas para papai, disse Jo, ansiosa por saber qual a sorte do trabalho da irmã. — Tudo que foi feito pela Amy já se vendeu há muito tempo. Tive o cuidado
de mostrar as prendas dela aos visitantes mais distintos. Renderam uma linda soma para nós, respondeu May, que tinha dominado desencontradas ten-taçõezinhas naquele dia. Satisfeitíssima, Jo voltou correndo para contar a boa novidade e Amy apareceu ao mesmo tempo tocada e surpreendida ao saber das palavras e das disposições de May. — Agora, cavalheiros, desejo que cumpram o dever de gentileza para com as outras mesas, tão generosamente como fizeram com a minha -— especialmente com a mesa de arte, disse ela, comandando a turma de Teddy, como as pequenas chamavam aos amigos do colégio. Avançar, Chester, avançar! É a senha para aquela mesa; mas saibam cumprir varonilmente o seu dever, e gastem o dinheiro cõm o que for verdadeiramente artístico, ordenou a impetuosa Jo, quando a abnegada falange se preparava para o assalto. — Ordens são ordens, mas é pela March que eu marcho, disse o pequeno Parker, fazendo visível esforço para ser ao mesmo tempo espirituoso e amável. Mas, perdeu logo a animação quando Laurie disse, alisando-lhe a cabeça com ar paternal: — Muito bem, meu filho. Para um garotinho, não está nada mal! ─ Comprem os jarros! ─ sussurrou Amy a Laurie, como um fecho de ouro para a questão com a sua adversária. Para grande satisfação de May o sr. Laurence não só comprou os jarros, como rodou também pela sala levando um em cada braço. Os outros cavalheiros especulavam com igual ardor na compra de diversas miudezas e aram depois muito embaraçados, com flores de cera, leques pintados, pastas ornadas de filigramas e outras aquisições úteis e apropriadas. Hia Carrol estava ali, ouvindo a história, demonstrou simpatia e disse qualquer coisa à sra. March, que fez esta última resplandecer de contentamento, olhando para Amy, com uma expressão ao mesmo tempo de orgulho, e ansiedade, embora durante muitos dias ainda não traísse a causa da sua alegria. A quermesse foi apreciada como um sucesso; e quando May deu o boa noite a Amy, não se mostrou retraída e, pelo contrário, lhe deu um beijo afetuoso e um olhar que parecia dizer: Perdoa e esquece. Isso satisfez Amy. Quando chegou em casa, encontrou os jarros enfileirados sobre o fogão da ante-sala, com um grande buquê dentro de cada um. A recompensa do mérito para a magnânima srta. March, como Laurie declarou com ênfase. — Você possui mais generosidade e nobreza de caráter do que pensava, Amy. Píocedeu lindamente e iro-a de todo meu coração, disse Jo ardentemente, quando arranjavam os cabelos, já noite avançada. — Sim, é o que todas nós pensamos. E gostamos dela porque perdoa tão facilmente. Isso deve ter sido difícil, depois de tanto trabalho na esperança de que iria vender as lindas prendas feitas com tão boa vontade. Não creio que eu procederia tão bem como você procedeu, acrescentou Beth do seu travesseiro. — Ora, meninas, não precisam elogiar-me. Procedi apenas de acordo com o meu gosto. Vocês troçam de mim quando digo que desejo ser uma dama, mas isso significa para mim verdadeira fidalguia feminina de espírito e de maneiras e procuro agir nesse sentido até onde posso. Não sei explicar muito bem, mas quero pairar acima das pequeninas maldades, loucuras e erros que estragam tantas mulheres.
Estou muito longe de chegar a tanto, porém faço o que posso e com o tempo espero ser o que mamãe é. Amy falou seriamente e Jo disse, com um cordial abraço: — Compreendo agora a sua intenção e não troçarei mais de você. Você está indo mais depressa do que pensa e tomarei consigo algumas lições de verdadeira gentileza, pois você parece conhecer o segredo dela. Continue, querida. Terá a sua recompensa algum dia e ninguém ficará mais contente do que eu. Uma semana mais tarde, Amy teve a sua recompensa e a coitada da Jo achou difícil alegrar-se com isso. Veio uma carta de tia Carrol e, lendo-a de tal modo se iluminou a fisionomia da sra. March que Jo e Beth, presentes na ocasião, perguntaram que agradáveis notícias eram aquelas. — Tia Carrol irá ao estrangeiro no próximo mês e quer. — Que eu vá com ela! precipitou-se Jo, girando em torno da cadeira, num entusiasmo incontrolável. — Não, querida, não é você. É a Amy. — Oh! Mamãe! Ela é jovem demais, é a minha vez agora. Venho sonhando com isso há tanto tempo! Para mim seria tão bom e nós duas nos entenderíamos tão esplendidamente! Eu devo- ir. —-Receio que isso seja impossível Jo. A tia fala em Amy bem claramente, e não nos cabe impor quando ela oferece um favor tão grande. — É sempre assim. Para Amy, todos os prazeres e para mim todo o trabalho. Não é justo! Oh! Não é justo! gritou Jo, apaixonadamente. — Creio que em parte a culpa seja mesmo sua, querida. Quando a tia conversou comigo outro dia, queixou-se das suas respostas desabusadas e da sua índole demasiado independente. E ela escreve aqui, como se se referisse a qualquer coisa dita por você: Meu primeiro plano era convidar a Jo, mas como não gosta de ficar devendo favores e não a o francês penso que não me atreverei a convidála. Amy é mais dócil, será uma boa companhia para Fio e receberá com gratidão a ajuda que esse eio lhe poderá dar. — Oh! Minha língua, minha abominável língua! Por que não aprendi a ser discreta? resmungou Jo, recordando as palavras que tinham causado a sua desventura. Depois que escutou a explicação das frases citadas, a sra. March disse tristemente: — Eu desejaria que fosse você, mas por enquanto não há esperança disso. Esforce-se para receber tudo de boa cara e não perturbe a alegria de Amy com queixas e censuras. — Eu tentarei, disse Jo, piscando os olhos, ao ajoelhar-se para apanhar a cestinha de costura que derrubara na sua precipitada satisfação. Tentarei não só parecer como também ficar alegre, não lhe invejando um só minuto de felicidade. Isso, porém, não será fácil, pois a decepção é tremenda! e a pobre da Jo orvalhou de lágrimas bem amargas a pequenina almofada que tinha em suas mãos. — Jozinha querida, eu sou muito egoísta, porém não posso ar sem você e estou contente porque você não vai agora, murmurou Beth, abraçando-a, com cesta e tudo de um modo tão apertado e com uma expressão tão carinhosa que Jo se sentiu consolada. Mas a mágoa era tão profunda, que até lhe deu vontade de pedir à tia Carrol uma oportunidade para ter o desgosto de ficar devendo aquele
favor e de mostrar a sua gratidão. Nisto, chegou Amy e Jo teve forças para participar do regozijo da família; talvez, não perfeitamente a vontade, como costumava, porém sem lamentar a sorte da irmã. A moça recebeu a novidade numa expansão de grande alegria, andou de um lado para o outro num jovial embevecimento e nessa mesma tarde começou a arrumar as suas tintas e os seus lápis, deixando tais bagatelas como roupas, dinheiro e aporte, para as pessoas menos extasiadas do que ela. — Para mim, meninas, não se trata de mera viagem de recreio, disse com convicção, ao colocar na mala a sua melhor palheta. Ela decidirá também a minha carreira, pois, se tiver algum talento, eu o revelarei em Roma fazendo qualquer coisa capaz de prová-lo. — E se você não tiver? insinuou Jo, que estava a um canto, com os olhos avermelhados, costurando algumas golas novas que Amy devia levar. — Nesse caso, voltarei para aqui e ganharei a vida ensinando desenho, respondeu a candidata à celebridade, com pose filosófica; mas deu uma expressão convencida à fisionomia e arrumou a palheta como se estivesse disposta a lutar muito, antes de abandonar tão altas esperanças. — Não, você não fará isso. Você detesta trabalhos difíceis. Casará com um homem rico e voltará para aqui, para ar a sua vida num ambiente de luxo, disse Jo. — Suas profecias nem sempre dão certo, mas não creio que esta seja errada. Acho que bem desejaria isso, pois se não puder ser mesmo uma artista, gostaria de poder ajudar os que realmente o são, disse Amy sorrindo, como se o papel de Lady Bountiful lhe agradasse mais do que o de uma pobre professora de desenho. — Huh! murmurou Jo com um suspiro. Se você quer assim, assim será feito, pois os seus desejos sempre são atendidos, os meus nunca. — Você gostaria de ir? perguntou Amy, espetando distraidamente o nariz na ponta do estilete. — Um tanto! — Pois bem, dentro de um ou dois anos, chamarei você e faremos excavaçoes no Fórum, à procura de relíquias, e realizaremos todos os planos que tantas vezes esboçamos. — Muito obrigada. Eu lhe lembrarei a promessa quando chegar esse belo dia, se é que ele há de vir, retrucou Jo, aceitando o vago, porém magnífico oferecimento, tão agradecida como podia. Não havia muito tempo para os preparativos e a casa andou em reboliço até a partida de Amy. Jo dominou-se muito bem até que desapareceu o último aceno de despedida. Depois disso, retirou-se para o seu refúgio, no sotão, e chorou até gastar todas as lágrimas dos seus olhos. Da mesma forma, Amy conteve-se firmemente até a partida do navio. Então, exatamente quando a escada era erguida, sentiu subitamente que todo o oceano dentro em breve havia de separá-la das pessoas a quem mais amava no mundo e, abraçada ao Laurie, o último a ficar a bordo, disse num soluço: — Cuida delas por mim, e se acontecer alguma coisa... — Está bem, querida, está bem. Se acontecer alguma coisa, virei para confortá-la, murmurou Laurie, sonhando um pouco em ser chamado para cumprir a
sua promessa. Assim, Amy seguiu ao encontro do Velho Mundo, que é sempre novo e belo para olhares juvenis, enquanto o pai e o amigo a contemplavam do cais, fazendo votos ardentes para que só encontrasse venturas a moça de coração feliz, que agitava o lenço para eles, até não ver mais nada além da claridade do verão resplandecendo sobre o mar.
CAPITULO VIII Nossa correspondente no Estrangeiro Londres. "Querido pessoal. Estou aqui sentada perto de uma janela de frente do Hotel Bath, em Picadilly. Não é um lugar elegante, porém o tio se hospedou aqui faz alguns anos, e não quero ir para outro qualquer ponto. Contudo, não pretendemos permanecer aqui muito tempo e isso, portanto, não tem grande importância. Oh! não sei como principiar a dizer como gozo isso tudo! Não o saberei nunca e, assim, darei apenas a vocês alguns pedacinhos do meu livro de impressões, pois, desde que parti, não tenho feito outra coisa a não ser desenhar e rabiscar. Mandei algumas linhas de Halifax, quando me sentia muito aborrecida, mas depois disso tenho ado esplendidamente, raras vezes enjoada, o dia todo no tombadi-lho, com uma porção de pessoas agradáveis a me divertirem. Todos foram bons para mim, especialmente os oficiais de bordo. Não ria, Jo. Oficiais atenciosos são muito necessários num navio, para ajudar a distrair qualquer pessoa. E quando não têm nada que fazer, é até um favor dar-lhes uma ocupação, pois de outro modo penso que seriam capazes de morrer de tanto fumo. Titia e Fio enjoaram durante toda a viagem e preferiram ficar sós. Desta forma, o que podia fazer para elas era sair do camarote e divertir-me. Que eios para o tombadilho, que crepúsculos, que ar esplêndido e que vaga-lhões! Era quase tão excitante como montar um cavalo árdego, quando galopávamos tão animadamente. Como eu gostaria se Beth tivesse vindo! Teria feito tanto bem para ela! Quanto a Jo, com certeza teria subido ao mastro principal, ou outro nome que tenha essa coisa táo alta; ficaria intima dos maquinistas, sopraria na cometa de comando do capitão e aria todo o tempo num verdadeiro êxtase. Era tudo um céu aberto, porém me alegrei ao ver a costa irlandesa e achei-a adorável, tão verde e tão batida do sol, com barracas escuras aqui e ali, ruínas em algumas montanhas e fidalgos solares campestres nos vales, com criações de veados para a caça nos parques. Foi de manhã bem cedinho, mas valeu a pena sair da cama para ver coisa tão linda, pois a baia estava coalhada de pequeninos barcos, a costa era muito pitoresca e, lá em cima, o céu todo cor-de-rosa. Nunca hei de esquecer isso. Em Queenstown, despediu-se de nós um dos meus novos conhecidos, o sr. Lennox, e quando eu disse alguma coisa sobre os Lagos de Kilarney, ele suspirou e cantou, olhando para mim: Oh! Já ouviste falar de Kate Kearney?
Ela vive à margem do Kilarney. Do olhar dos seus olhos O perigo foge voando, Porque é fatal o olhar de Kate Kearney. Não acham isso sem pés nem cabeça? amos apenas algumas horas em Liverpool. Ê um lugar feio e barulhento e senti-me bem ao deixá-lo. O tio saiu e comprou um par de luvas de pele de cachorro, um tanto feias, sapatos grossos e um guarda-chuva e foi aparar os cabelos à escovinha, como coisa muito importante. Desde então, gabava-se de parecer um verdadeirp cidadão britânico. Mas, a primeira vez em que mandou limpar os sapatos, o pequeno engraxate conheceu logo que se tratava de um americano e disse com um riso trocista: ─ Está pronto, freguês. ei o último lustre ianque. Isso divertiu o tio imensamente. Oh! Devo dizer a vocês que absurdo fez o Lennox! Pediu ao seu amigo Ward, que veio conosco, para me enviar um buquê e a primeira coisa que encontrei no meu quarto, foi um lindo ramalhete com este cartão: Cumprimento de Robert Lennox. Não foi engraçado, meninas? Gosto de viajar. Não chegaria nunca a Londres, se não tivesse pressa. A viagem é como um eio através de uma comprida galeria de pinturas, cheia de paisagens iráveis. Encantavam-me as casas de campo, com os seus tetos de colmo, a hera cobrindo as fachadas, janelas guarnecidas de grades e mulheres robustas mostrando-se à porta, com os filhos corados. O próprio gado parecia mais tranqüilo do que o nosso. As galinhas cacarejavam contentes. Nunca vi cores tão perfeitas, o campo tão verde, tão azul o céu, tão amarelos os trigais, tão sombrios os bosques. Nadava em prazer durante toda a viagem. Assim também a Fio. Saltávamos de um lado para outro, tentando ver tudo, enquanto corríamos a uma velocidade de sessenta milhas por hora. Titia estava cansada e não se interessava por coisa alguma. Foi este o nosso modo de viajar: Amy, pulando: ─ Oh! Deve ser Kenilworth, este lugar cinzento entre as árvores! Fio debruçada na janela. ─ Que encanto! Viremos aqui algum dia, não é papai? E o tio, irando calmamente os patos novos: ─ Não, filhinha, a não ser que deseje tomar chope. Isso aí é uma cervejaria. Uma pausa. Depois, Fio grita: ─ Meu Deus! Olha ali um homem pendurado numa forca! ─ Onde, onde? brada Amy, olhando espantada para dois postes altos, com um travessão de onde pendiam alguns argolões. ─ É uma carvoaria. ─ observa o tio num tom que nos mantém sossegadas até que Fio se senta para saborear a leitura de "Ás Aventuras do Capitão Cavendish", enquanto eu me satisfaço com o cenário. Chovia, naturalmente, quando chegamos a Londres, e não havia mais nada para ver além de nevoeiro e guarda-chuvas. Ficamos aqui e já fizemos algumas compras, atraídas pelas vitrinas. Tia Mary adquiriu várias novidades para mim, pois vim tão precipitadamente que não tive tempo para me preparar completamente: um chapeuzinho branco de pena azul, um vestido de musselina e o mais lindo capotinho que já tive em minha vida. Fazer compras na rua Ftegent é uma delícia, tudo parece
tão barato! Fitas lindas a seis pence a jarda! Fiz um estoque delas, mas deixei para comprar as luvas em Paris. Isso não parece rico e elegante ? Por simples brincadeira, Fio e eu chamamos um carro, numa ocasião em que os tios haviam saído, e fomos dar um eio, ainda que mais tarde viéssemos a saber que não era próprio para moças rodarem sozinhas. Foi tão engraçado! Quando entramos pela avenida arborizada, o cocheiro conduzia o carro com tanta velocidade que Fio se assustou e me pediu que o fizesse parar. O cocheiro não ouviu a minha ordem nem viu o meu sinal com a sombrinha e ficamos assim desamparadas, aos gritos, girando por todos os cantos, entre trambolhões. Afinal, já desesperada, vi uma portinha na , capota, e quando bati para que a abrisse, apareceram dois olhos vermelhos e disse uma voz acervejada: — Agora para onde vamos? Dei as minhas ordens tão sobriamente quanto pude. Fechando a portinhola, após resmungar qualquer coisa, o homem fez o cavalo ir bem devagarinho, como se acompanhasse um enterro. Bati mais uma vez e disse: ─ Um pouco mais ligeiro. Então, abriu numa carreira louca, como antes e entregamo-nos à nossa própria sorte. Hoje, o tempo estava bom e fomos ao Hyde-Park, aqui bem perto, pois somos mais aristocráticas do que parecemos. O Duque de Devonshire mora nas proximidades. Vejo muitas vezes os seus criados de libre no portão do fundo. A casa do Duque de Wellington também não fica longe. Que vistas! Tal e qual como no Puch, pois havia gordas viúvas importantes, rodando nos seus coches verdes e amarelos, com pomposas damas de companhia com meias de seda e toucas de veludo atrás e cocheiros empoa dos na frente, amas-secas bem vestidas, com as crianças mais coradas que já vi; lindas mocinhas, parecendo meio adormecidas; dândis com os seus originais chapéus inglês, andando de um lado para o outro; e soldados compridos, com as suas jaquetas curtas e avermelhadas e o quepe inclinado para um lado, parecendo tão divertidos que até senti vontade de desenhá-los. Rotten Row quer dizer Route de Roi, isto é, a estrada do rei; mas agora dá mais idéia de uma escola de equitação que de qualquer outra coisa. Os cavalos são magníficos e os homens especialmente os moços de estrebaria, montam bem; mas as mulheres seguram na sela e levam tombos, o que não está de acordo com as nossas regras. Senti desejo de mostrar-lhes o que é um galope americano rasgado, pois andam aqui solenemente, num trote pulado, com os seus trajes ajustados e as suas cartolas, parecendo essas muherzinhas de uma Arca de Noé de brinquedo. Toda gente eia a cavalo, velhos, senhoras robustas, criancinhas e a gente moça namora muito aqui. Vi um par trocando botões de rosa, porque é o que se usa na lapela, e achei que era uma linda idèiazinha. De tarde, Abadia de Westíninster. Não esperem, entretanto, por uma descrição. É impossível. Direi apenas: sublime! A noite, iremos ver Fletcher, o que será um condigno fim para o dia mais feliz da minha vida. Meia-noite. É muito tarde, mas não posso deixar que esta carta siga amanhã sem contar o que aconteceu na tarde que ou. Adivinham quem apareceu, à hora do chá ? Os
amigos ingleses de Laurie, Fred e Frank Vaughn! Fiquei tão surpreendida, pois só pelo cartão de visita é que poderia reconhecê-los. Ambos são altos, de suíças. Fred é bonito no estilo e Frank muito melhor, pois apenas puxa de uma perna e não usa muletas. Souberam pelo Laurie onde devíamos estar e vieram convidar-nos para irmos a sua casa. Mas o tio não quer ir e assim só pagaremos a sua visita e iremos vê-los quando pudermos. Foram conosco ao teatro e tivemos horas tão boas, pois Frank se dedicou a Fio e Fred e eu falamos sobre as brincadeiras adas, presentes e futuras, como se nos víssemos todos os dias. Digam a Beth que Frank perguntou por ela e ficou triste quando soube da sua saúde incerta. Fred riu quando falei de Jo e mandou respeitosos cumprimentos ao chapelão. Nenhum dos dois esqueceu o Acampamento de Laurie e as horas divertidas adas ali. Como isso já parece velho, não é? Titia está batendo na parede pela terceira vez e poi isso sou obrigada a parar. Sinto-me realmente como uma fina criatura fútil de Londres, escrevendo aqui, já alta noite, com o meu quarto cheio de coisas bonitas e na minha cabeça uma mistura de parques, teatros, vestidos novos e personagens galantes que dizem: Ah! e torcem os louros bigodes com a verdadeira fidalguia britânica. Anseio por ver vocês todas e, apesar dos meus absurdos, sou, como sempre, a apaixonada de vocês Amy.” Paris. "Irmãzinhas queridas. Na última carta, falei da nossa visita londrina, como foram gentis os Vaughns e que reuniões agradáveis prepararam para nós. Gozei os eios à Corte de Hampton e ao Museu de Kensington mais de que quaisquer outros, pois em Hampton vi esboços de Rafael e, no Museu, salas cheias de quadros de Turner, Lawrence, Reynolds, Hogarth e outras grandes criaturas. Foi encantador o dia no Parque Richmond, pois tivemos um aceitável piquenique inglês e não me foi possível copiar todos os carvalhos e animais. Também ouvi um rouxinol e vi cotovias voando. Fizemos Londres de modo a contentar o coração, graças a Fred e Frank, e sentimos partir. Realmente, embora o povo inglês demore a fazer camaradagem com estrangeiros, quando chega a fazer isso nenhum outro o ultraa em hospitalidade, segundo creio. Os Vaughns têm esperança de encontrar-se conosco em Roma, no próximo inverno, e ficarei muito decepcionada se não aparecerem, pois Grace e eu somos grandes amigas e os meninos são companheiros simpáticos, especialmente Fred. De fato, mal nos tínhamos instalado aqui, ele nos apareceu de novo, dizendo que viera ar umas férias e estava em caminho para a Suíça. Titia mostrou-se reservada a princípio, porém foi tão cordato a esse respeito que ela não podia dizer uma palavra. Agora, entendemo-nos muito bem, e fiquei muito satisfeita com a sua vinda, pois fala francês como um parisiense e nem sei o que poderia fazer sem ele. O tio não conhece dez palavras e teima em falar inglês, muito alto, como se isso seja bastante para que a gente da terra o entenda. A pronúncia de titia já ou de moda e Fio e eu, embora nos gabássemos de saber muita coisa, descobrimos agora que não sabemos nada e somos muito gratas a Fred por se prestar ao papel de intérprete. Que horas deliciosas temos ado, vendo coisas bonitas de manhã à noite, parando para merendas gostosas em cafés alegres e encontrando toda espécie de
aventuras engraçadas! o os dias de chuva no Louvre, contemplando os quadros. Jo torceria o seu narizinho implicante para alguns dos mais bonitos, porque ela não tem alma para a arte; mas eu tenho e estou apurando a vista e o gosto tão depressa quanto posso. Ela apreciaria mais as relíquias dos grandes homens, pois já vi o chapéu e o capote cinzento de Napoleão, o seu berço dé bebê e a sua velha escova de dentes. Assim também o sapatinho de Maria Antonieta, o anel de São Denis, a espada de Carlos Magno e muitas outras coisas interessantes. Falarei horas inteiras a esse respeito quando voltar, mas não tenho tempo para escrever agora. O Palais-Royal é um lugar divino, tão cheio de bijuterias e de coisas tão adoráveis que quase me entristeci porque não podia comprá-las todas. Fred desejava adquirir algumas para mim, mas naturalmente não permiti que fizesse isso. Também o Biis e o Champs ílysées são três magnifique. Fomos ear várias vezes no Jardin des Tuileries, pois é encantador, embora o velho Luxemburgo agrade mais. O cemitério de Père La Chaise é curiosissimo, porque muitos dos túmulos parecem salas pequenas e, olhando-se para dentro, vêem-se uma mesa, com imagens ou retratos dos defuntos, e cadeiras para os parentes se sentarem quando vêm chorar de saudades. Isto é bem francês. Nossos aposentos dão para a rua Rivoli e, sacada, apreciamos de uma ponta a outra a Avenida comprida e elegante. Isso é tão agradável que gastamos aí as últimas horas da tarde, quando já estamos cansadas demais para sair de noite. Fred é muito interessante e talvez o rapaz mais agradável que já conheci exceto Laurie, cujos modos são ainda mais encantadores. Gostaria que Fred fosse moreno, pois não aprecio homens claros; contudo, os Vaughns são muito ricos e de excelente família. Assim, não posso achar defeito no seu cabelo amarelado quando o meu próprio é ainda mais amarelo. Na semana vindbura partiremos para a Alemanha e Suíça. Como viajaremos com pressa só poderei escrever cartas bem rápidas. Continuarei o meu diário e tentarei recordar corretamente e descrever com clareza tudo que vir e irar, como papai aconselha. É um bom exercício para mim e com o meu caderno de esboços darei a vocês idéia melhor da minha viagem do que com esses rabiscos. Adieu. Abraço a todas ternamente. Votre Amie". Heidelberg. "Minha querida mamãezinha. Tendo uma hora sossegada antes de partirmos para Berna, tentarei dizer-lhe o que tem acontecido, pois algumas coisas são muito importantes, como verá. A subida do Reno foi perfeita e gozei-a quanto pude. Apanhe os velhos guias de papai e leia a esse respeito. Não tenho palavras bastante belas para descrever tal maravilha. Em Coblentz amos horas adoráveis, pois alguns estudantes de Bann, com os quais Fred entrou em relações a bordo, nos ofereceram uma serenata. Era uma noite de lua cheia e, lá para uma hora, Fio e eu acordamos com uma música deliciosa sob as nossas janelas. Saltamos e nos escondemos atrás das cortinas; mas com algumas tímidas espiadelas descobrimos Fred e os estudantes que cantavam lá embaixo. Foi a coisa mais romântica que já vi, o rio, a ponte dos barcos, a grande fortaleza do outro lado, o luar por toda a parte e a música capaz de amolecer um coração de pedra.
Quando eles iam partindo, nós atiramos algumas flores e vimos os rapazes correrem para apanhá-las, beijando a mão de invisíveis damas e rindo enquanto iam embora para fumar e beber cerveja, penso eu. Na manhã seguinte, Fred mostrou-me uma das flores apanhadas na lapela do seu paletó e parecia muito sentimental. Ri para ele e disse-lhe que quem tinha atirado a flor não fora eu,. mas sim Fio. Isso pareceu desgostá-lo, pois atirou a flor pela janela e tornou-se mais sentimental ainda. Ando receosa de vir a ter qualquer aborrecimento com esse rapazola, a julgar pelas aparências. Os banhos em Nassau foram muito divertidos. O mesmo posso dizer de Baden-Baden, Fred perdeu algum dinheiro e eu o consolei. Quando não está com Frank Fred precisa de alguém que olhe por ele. Kate disse uma vez que desejava vêlo casado em breve e eu concordei plenamente, achando que isso seria melhor para ele. Frank-fort foi muito agradável; vi a casa de Goethe, a estátua de Schiller, e a famosa Ariadne de Dannecker, muito interessante, mas eu a apreciaria mais se conhecesse melhor a história. Preferi não fazer perguntas, pois toda gente a conhecia ou pretendia conhecê-la. Quero que Jo me conte tudo a esse respeito. Devia ter lido mais, pois acho que não sei coisa alguma e isso me mortifica. Agora vem a parte séria porque isto aconteceu aqui e Fred saiu agora mesmo. Tem sido tão bom e tão agradável que todos nós simpatizamos loucamente com ele. Nunca pensei em mais nada a não ser uma amizade de viagem, até a noite da serenata. Desde então, comecei a compreender que eios ao luar, conversinhas na janela e aventuras durante o dia eram para ele alguma coisa mais do que simples brincadeiras. Não tenho flertado verdadeiramente, mamãe, porém, me recordo do que me disse e tenho agido de acordo. Não posso impedir que gostem de mim. Não faço nada para isso e até me aborrece, quando não me interesso, embora Jo diga que eu não tenho coração. Agora sei que mamãe balançará a cabeça e as meninas dirão. Olhem só a interesseirazinha! Mas já assentei as idéias e, se Fred se declarar, direi que sim, embora não esteja muito apaixonada. Gosto dele e juntos nos daremos bem. Ele é bonito, jovem, bastante inteligente e muito rico mesmo, muito mais rico do que os Laurences. Penso que a sua família não fará objeção e serei muito feliz com isso, pois é gente boa, bem educada, generosa, e gosta de mim. Fred, como o gêmeo que nasceu primeiro, herdará as propriedades, segundo creio. E que esplêndidas elas são! A casa na cidade fica numa rua elegante, não tão vistosa como as nossas casas grandes, porém duas vezes mais confortável e cheia de um luxo sólido, bem ao gosto inglês. Já vi a prataria, as jóias da família, os velhos criados e fotografias da propriedade campestre, com parques, uma casa grande, campos bem tratados e cavalos ótimos. Oh! Seria tal como eu posso sonhar. Prefiro isso a qualquer título de nobreza que outras moças poderiam segurar logo, sem haver nada atrás dele. Posso ser mercenária, mas tenho horror à pobreza e não quero á-la mais um minuto, se puder. Uma de nós deve casar-se bem. Meg não fêz isso, Jo não quer, Beth não pode ainda e assim cabe a mim fazêlo e criar um ambiente confortável para nós. Não me casaria com um homem a quem odiasse ou desprezasse. Pode estar certa disso. E embora Fred não seja meu modelo de herói, procede muito bem e, com o tempo, eu gostarei bastante dele, se
ele gostar de mim e me deixar fazer tudo que me agrade. Tenho pensado no assunto desde a semana ada, pois era impossível deixar de ver que Fred gosta de mim. Não me disse nada ainda, mas há pequenas coisas que mostram isso. Não sai nunca com Fio, fica sempre ao meu lado, na carruagem, na mesa ou durante os eios; mostra-se sentimental quando estamos sós e franze a cara quando alguém se atreve a falar comigo. Ontem, durante o jantar, quando um oficial austríaco olhou para nós e disse qualquer coisa ao companheiro, um barão de cara debochada a respeito de "ein wondes-chõnes Blõndchen", Fred mostrou-se tão furioso como um leão e cortava o bife tão brutalmente que ele quase voou do prato. Não é um desses ingleses frios e fleumáticos, porém um tanto esquentado, porque tem sangue escocês, como se pode facilmente perceber pelos seus alegres olhos azuis. Bem, ontem de tardinha, subimos ao castelo todos nós menos o Fred, que ficou de nós encontrar ali, depois de ver se havia cartas na posta-restante. amos uma hora agradável contemplando as ruínas, as cavernas onde estão as pipas gigantescas e os belos jardins construídos pelo Príncipe Eleitor, há muito tempo para a sua esposa inglesa. Gostei mais do grande terraço, porque a vista dali é divina; assim, enquanto o resto do pessoal foi ver o que havia dentro do castelo, eu me sentei ali, tentando fazer esboços da cabeça do leão de pedra cinzenta sobre o muro, com hastes de trepadeira vermelha em redor dele. Sentia-me como se estivesse dentro de um romance, sentada ali, vendo o Neckar correr através do vale, escutando a música da banda, como uma verdadeira mocinha de novela. Tinha o pressentimento de que alguma coisa estava para acontecer e preparava o meu espírito para isso. Não me senti enrubescida, nem assustada, mas perfeitamente fria e somente um pouco ansiosa. Nisto, ouvi a voz de Fred, que veio correndo ao meu encontro. Parecia tão perturbado que esqueci tudo a meu respeito e perguntei-lhe que tinha acontecido. Disse-me que acabava de receber uma carta pedindo-lhe para voltar, pois Frank estava muito mal. Por isso devia partir logo, pelo noturno, e somente tivera tempo para vir despedir-se de mim. Fiquei muito triste por causa dele e desapontada por mim mesma; mas foi somente por um minuto, porque ele disse, ao me apertar a mão e disse de um modo muito significativo para mim: "voltarei em breve; você não há de me esquecer, não é, Amy?" Nada prometi, mas olhei para ele e isso o satisfez. Não havia mais tempo para outra coisa além de recados e palavras de despedida, pois devia partir dentro de uma hora. Todos nós sentimos muito a sua falta. Eu sei que êle queria declarar-se, mas por certas coisas que uma vez me ensinou, penso que tinha prometido ao pai não fazer nada nesse sentido por enquanto, porque Fred é um rapaz irre-fletido e o velho receia uma nora estrangeira. Nós nos encontraremos brevemente em Roma. Então, se não tiver mudado de idéia, direi: "Sim, obrigada", quando me disser: "quer fazer o favor de casar comigo?" Naturalmente tudo isso é muito confidencial, porém quis informá-la do que se está ando. Não se preocupe comigo; lembre-se de que eu sou a sua prudente Amy e pode ficar certa de que não farei nada precipitadamente. Mande-me tantos conselhos quantos quiser. Hei de aproveitá-los se puder. Queria tanto vê-la para conversarmos longamente, mamãe! Queira-me bem e confie em mim. Sempre sua.”
CAPITULO IX Ternas Inquietações — Jo, ando inquieta por causa da Befh. — Ora, mamãe, ela tem ado tão bem desde que vieram os bebês. — Não é a sua saúde que me preocupa agora; é o seu espírito. Tenho a certeza de que há qualquer coisa na sua alma e quero saber o que é. — Que lhe faz pensar assim, mamãe? — Fica sentadinha num canto durante multo tempo e não conversa mais com o pai, como costumava. Encontrei-a chorando outro dia, junto aos pequerruchos. Quando canta são sempre coisas tristes e de vez em quando encontro no seu rosto uma expressão que não compreendo. Não é a mesma Beth e isso me mortifica. — Já lhe falou a esse respeito? — Tentei uma ou duas vezes, mas ela ou se fazia de desentendida ou parecia tão amargurada que não tive coragem de continuar. Não forço nunca as confidencias das minhas filhinhas e raras vezes tive de esperar tanto por elas. A sra. March olhava para Jo, enquanto falava, mas a face, defronte da sua não parecia conhecer qualquer outra secreta inquietação, a não ser a de Beth. E depois de costurar mais um minuto, Jo disse: — Penso que ela está crescendo e começa a sonhar coisas e a ter esperanças, fadigas, e receios, sem saber por que, sem ser capaz de explicá-los. Beth tem dezoito anos, mamãe, mas nós não damos por isso e continuamos a tra tála como uma criança, esquecendo que é uma mulher. — É mesmo. Meu benzinho, como vocês crescem depressa! murmurou a mãe com um suspiro e um sorriso. — Não há jeito para dar, mamãezinha. Assim, deve resignar-se a toda espécie de aborrecimentos e deixar os seus arinhos sairem do ninho, um atrás do outro. Prometo que nunca voarei muito longe, se isso lhe pode servir de consolo. — Um grande consolo, Jo. Sempre me sinto forte quando você está em casa, agora que a Meg se foi. Beth é tãó fraquinha e a Amy tão nova, que não se pode contar com elas. Mas quando chegam as dificuldades, você está sempre pronta. — Ora, a senhora sabe que não me incomodo com trabalhos pesados. Deve haver sempre um burro de carga na família. Amy é esplêndida para os servicinhos delicados e eu não sou. Sinto-me, porém, no meu elemento quando os tapetes têm de ser sacudidos ou quando metade da família cai doente de uma vez. Amy está distinguindo-se no estrangeiro, mas, se há um desarranjo dentro da casa, sou eu o seu braço direito. — Deixo Beth em suas mãos, neste caso, porque ela abrirá o seu terno coraçãozinho mais facilmente a sua Jo do que a qualquer outra pessoa. Seja muito boa e não lhe deixe perceber que está sendo observada e é assunto de comentário. Se ela recuperasse completamente a saúde e a alegria, não teria mais nenhum desejo neste mundo.
— Que criatura feliz! Eu tenho uma porção deles! — Quais são, minha querida? — Verificarei as inquietações de Beth e depois lhe direi as minhas. Não são muito incômodas e por isso vou fiçar com elas. E Jo escapuliu, com uma sábia reverência que deixou o coração da sra. March sossegado a seu respeito, ao menos no momento. Enquanto parecia absorvida nos seus próprios afazeres, Jo observava Beth: e depois de muitas conjeturas contraditórias, finalmente tocou no ponto que devia explicar a sua transformação. Um ligeiro incidente deu a Jo a chave do enigma, pensou ela. A fantasia ardente e o coração amoroso completaram a obra. Fingia ela escrever preocupadamente, uma tarde de sábado, quando estava só com a Beth. Contudo, enquanto rabiscava, ia vigiando a irmã, que parecia ainda mais quieta que de costume. Sentada à janela, o trabalho de Beth muitas vezes lhe caía no colo e ela apoiava a cabeça na mão, numa atitude de desânimo, enquanto os olhos repousavam na monótona paisagem outonal. Súbito, alguém ou lá embaixo, trau-teando como um lírico arinho, e uma voz gritou lá fora: — Tudo sereno! Vem caindo a noite! Beth estremeceu, inclinou-se na janela, sorriu e cumprimentou. Acompanhou com o olhar o transeunte, até que não se ouviu mais a sua voz e disse então suavemente, como se falasse consigo mesma: — Como este querido menino parece forte, bem disposto e feliz! — Hum! resmungou Jo, observando ainda a fisionomia da irmã. A cor brilhante das suas faces desapareceu tão rapidamente como veio, o sorriso sumiu, e agora uma lágrima estava brilhando no rebordo da janela. Beth soprou-a e olhou apreensivamente para Jo. Ela, porém, rabiscava um tremendo capítulo, aparentemente destinado a engrossar o Juramento de Olímpia. Desde o momento em que Beth lhe deu as costas, Jo começou a espioná-la de novo e viu a mão da pequena ar sossegadamente pelos olhos, mais de uma vez, e leu na sua fisionomia meio velada uma doce tristeza que fez nublarem-se também os olhos da ob-servadora. Temendo trair-se, Jo saiu murmurando alguma coisa a respeito da necessidade de mais papel. — Deus me acuda; Beth ama Laurie! disse ela, sentando-se no seu próprio quarto, muito pálida com o abalo da descoberta que imaginava ter feito. Nunca me ou pela cabeça tal coisa. Que mamãe há de dizer? Não sei se ele. Ai Jo parou e enrubesceu com uma súbita idéia. Se ele não lhe correspondesse, como devia ser horrível! Deve corresponder. Hei de obrigá-lo! e ela sacudiu a cabeça ameaçadoramente ante o retrato do mocinho de expressão travessa que sorria para ela da parede. Oh! querido, estamos crescendo ao peso de uma praga. Aqui está a Meg casada e feita uma mama, a Amy brilhando em Paris e a Beth apaixonada. Eu sou a única que tem juízo bastante para ficar longe do perigo. Jo pensou concentradamente durante um minuto, com os olhos fixos no retrato. Depois, desanuviou a testa franzida e disse, com uma saudação à face que tinha em frente: — Não, muito obrigada, senhor. É muito encantador, mas sou tão instável como uma ventoinha. Assim, não precisa escrever-me bilhetes sentimentais nem olhar para mim desse modo insinuante, pois isso não convém e eu não quero. Então, ela suspirou e caiu num devaneio, do qual só acordou quando as
primeiras sombras do crepúsculo a convidaram a fazer novas observações, que apenas confirmaram as suas suspeitas. Embora Laurie flertasse com a Amy e se divertisse com a Jo, o seu modo de tratar a Beth tinha sido sempre particularmente afetuoso e gentil. Mas toda gente fazia o mesmo. Portanto, não se podia imaginar que êle se interessasse mais por ela do que pelas outras. De fato, ultimamente prevalecia na familia a impressão geral de que o nosso rapazola estava gostando cada vez mais da Jo, a qual, no entanto, não queria ouvir uma palavra sobre o assunto e repelia violentamente quem se atrevesse a abordá-lo. Se a familia tivesse conhecido as diversas agens ternas do ano ado, ou melhor, as tentativas de agens ternas, que tinham sido contidas no nascedouro, teria tido a imensa satisfação de proclamar: ─ Eu não disse? Jo, porém, tinha horror a namoricos e não consentia nisso, tendo sempre uma pilhéria e um sorriso prontos ao primeiro sinal da aproximação do perigo. Quando Laurie foi pela primeira vez para o colégio, apaixonava-se uma vez por mês, mais ou menos. Mas, era tudo fogo de palha, que não deixava queimaduras e divertia Jo, muito interessada nas alternativas de esperanças, desesperos e resignação, que lhe eram confiadas nas suas conferências semanais. Todavia, chegou o tempo em que Laurie deixou de adorar tantos altares, dando a entender a existência de uma paixão absorvente e assumindo, de vez em quando, ares sombrios, no estilo byroniano. Deu para evitar, então, o assunto sentimental, escreveu bilhetes filosóficos a Jo, tornou-se estudioso e avisou que ia! cavar, a fim de se diplomar de modo glorioso. Isso convinha mais à moça do que confidencias ao crepúsculo, enternecidos apertos de mãos e olhares eloqüentes. Pois, no caso de Jo, o cérebro se desenvolveu mais depressa que o coração e ela preferia heróis imaginários aos verdadeiros, porque, quando se cansava deles, aos primeiros podia trancá-los na estante do sótão, até nova ordem, e os segundos não eram tão fáceis de manejar. As coisas estavam neste ponto quando foi feita a grande descoberta e Jo espreitou Laurie aquela noite como nunca fizera antes. Se não estivesse com a nova idéia na cabeça, não teria visto nada de anormal no fato de Beth mostrar-se muito quieta e Laurie muito atencioso para com ela. Mas, soltando as rédeas à sua ardente fantasia, galopou com ela a os largos e o senso comum, um tanto enfraquecido por um longo exercício de escrever romances, não veio ém seu auxílio. Como de costume, Beth ficou no sofá e Laurie sentou-se na cadeira baixa, bem perto, divertindo-a com toda espécie de conversas fiadas. Mas, naquela noite, Jo teve a impressão de que os olhos de Beth repousavam com especial prazer na face simpática e morena que estava ã seu lado e que ouvia com intenso interesse a narrativa de algumas partidas impressionantes de criquete, embora as frases de gíria esportiva fossem tão inteligíveis para ela como o sânscrito. Julgou ver também, com o seu espirto prevenido, um certo aumento de gentilezas no modo de Laurie, que abaixava a voz de vez em quando, ria menos do que antes, estava um tanto distraído e arranjava a mantinha sobre os pés de Beth com uma assiduidade que era realmente quase amorosa. — Quem sabe lá? Coisas mais estranhas têm acontecido, pensou Jo, quando rodava pelo quarto. Ela seria um anjo para ele e, por seu lado, ele faria a vida
deliciosamente fácil e agradável para ela, só por se amarem. Não vejo como ele poderá impedir isso. E creio que levará adiante, se o resto do pessoal não servir de obstáculo. Como ninguém podia servir de obstáculo, a não ser ela mesma, Jo começou a sentir que devia dispor da sua vida a toda pressa. Mas, para onde iria? E ardendo do desejo de prosternar-se ante o altar da devoção fraternal, sentou-se para resolver aquele ponto. Ora, o velho sofá era um respeitável patriarca entre os sofás comprido, largo, bem acolchoado e baixo; um tanto manchado, como era de esperar, pois as moças tinham dormido e brincado ali quando pequerruchas, pescando sobre o espaldar, cavalgando os braços, estabelecendo lojas de brinquedos debaixo dele e, quando meninas, ali repousaram a cabecinha cansada, sonharam lindos sonhos e escutaram histórias suaves com uma seriedade de mulherzinhas. Todas gostavam dele, porque era um refúgio familiar. Um dos cantos tinha sido sempre o lugar preferido de Jo para as suas cismas. Entre as muitas almofadas que adornavam o venerando móvel, havia uma dura, cilíndrica, estofada de crina de cavalo muito espinhosa e guarnecida com uma borla em cada ponta. Esse repulsivo travesseiro era sua propriedade especial, sendo usado como uma arma de defesa, uma barricada ou um severo preventivo contra um sono muito pesado. Laurie também conhecia esse travesseiro e tinha motivos para olhá-lo com profunda aversão, pois fora impie-dosamente bombardeado com ele nos primeiros dias, quando havia licença para toda espécie de brincadeira, e agora era muitas vezes impedido por ele de tomar o lugar que mais cobiçava, pertinho do canto do sofá onde Jo se sentava. Se o "salsichão", como fora apelidado, permanecia numa ponta, isso era um sinal de que podia aproximar-se e repousar; mas, se ficava atravessado no sofá, ai do homem, mulher ou criança que ousasse tirá-lo dali! Essa noite, Jo esqueceu de armar barricadas no seu canto e ainda não tinha ado cinco minutos no seu lugar quando uma forma maciça apareceu a seu lado. Com os braços estendidos no recosto do sofá e as pernas compridas estiradas diante dele, Laurie exclamou com um suspiro de satisfação : — Agora, sim, isso me enche as medidas! — Nada de gíria! cortou Jo, atirando o travesseiro. Mas, era tarde demais, não havia mais lugar para ele; e, rolando pelo soalho, desapareceu de maneira misteriosa. Vil — Venha cá, Jo; não seja mazinha. Depois de estudar a si mesmo num esqueleto durante toda a semana, um camarada tem direito a alguns agradinhos. — Beth tratará disso. Eu estou ocupada. — Não, Beth não é para ser atormentada por mim, mas você aprecia essas coisas, a não ser que tenha perdido o gosto de repente. Perdeu ? Está de mal com o seu camarada e quer bombardeá-lo a travesseiros? Raramente se ouve um apelo tão tocante e afetuoso como aquele, porém Jo desconcertou o "camarada dela", voltando-se para lhe perguntar severamente: — Quantos buquês já mandou à senhorita Randal nesta semana ? — Nenhum, sob minha palavra. Ela está comprometida. Agora então. — Isso me alegra, uma das suas loucas extravagâncias, mandar flores e
presentes a moças pelas quais não se interessa de fato, continuou Jo repreensivamente. — As moças sensíveis, por quem me interesso de verdade, proibem-me de enviar flores e presentes. Assim, que posso eu fazer? Meus sentimentos precisam encontrar uma saída. — Mamãe pão aprova flertes mesmo de brincadeira; e você flerta desesperadamente, Teddy. — Gostaria de poder afirmar por minha vez: Você também. Como não posso, direi simplesmente que não vejo nenhum mal nesse agradável atempo, desde que ambas as partes compreendam que é apenas um brinquedo. — Bem, isso parece agradável, mas não posso aprender como se faz. Já tentei, pois uma pessoa sempre se acanha de estar numa companhia e não fazer o que todos os outros fazem. Parece, entretanto, que não tenho jeito para isso, disse Jo, esquecendo-se do papel de Mentor. — Toma lições com a Amy. Ela tem bastante talento para isso. — Sim, ela faz isso lindamente e nunca parece ir longe demais. Suponho que é natural para algumas pessoas agradar sem esforço, enquanto outras sempre dizem e fazem coisa pior no pior lugar. — Pico satisfeito porque você não pode flertar, realmente saudável ver uma mocinha sensível e direita, que pode ser alegre e boa sem fazer maluquices. Entre nós, Jo, algumas das pequenas que conheço vão a tal ponto que até me envergonha. Não fazem isso por mal, estou certo, mas se soubessem como nós falamos a seu respeito depois, penso que emendariam a sua conduta. — Elas fazem o memo e, como a língua feminina é mais afiada, vocês, rapazes, saem perdendo, pois são igualzinhos nessas coisas. Se vocês procedessem como devem, elas também procederiam; mas, sabendo que vocês gostam de espevitamentos, agem dessa maneira e então vocês censuram. — Sabe muito a esse respeito, minha senhora, disse Laurie num tom superior. Nós não gostamos de flertes e espevitamentos, embora possamos dar a entender o contrário. As moças distintas e modestas nunca são faladas, a não ser com, respeito, pelos cavalheiros. Deus abençoe a sua alma inocente! Se estivesse em meu lugar durante um mês, veria coisas que a espantariam bastante. Palavra de honra, quando vejo uma dessas pequenas estouvadas, vem-me sempre a vontade de dizer como o meu amigo Cock Robin: ─ Vai saindo, dá o fora, críaturinha sem juízo! Era impossível deixar de rir ante o engraçado con flito entre a relutância cavalheiresca de Laurie em falar mal do belo sexo e a sua natural aversão pelas maluquices antifemininas de que a sociedade elegante lhe mostrava tantos exemplos. Jo sabia que o jovem Laurence era Olhado como o partido mais elegível pelas mamas da alta roda e bastante adulado por senhoras de todas as idades para se tornar um convencido. Por isso, ela o observava um tanto eneiumadamente, temendo que ele se estragasse e gostando mais do que confessava de verificar que ainda tinha fé nas moças modestas. Voltando subitamente ao seu ar repreensivo, disse levantando a voz: — Se precisa ter uma saída, Teddy, dedique-se a , uma dessas moças distintas e modestas, a quem respeita, e não gaste seu tempo com as
espevitadas. — Está realmente me aconselhando? Laurie fitou-a com uma singular mistura de alegria e de ansiedade na fisionomia. — Sim, aconselho. Mas, seria melhor esperar até sair do colégio, de uma vez, e ter capacidade para exercer um cargo. Você ainda está longe de ser merecedor de bem, qualquer que seja a moça modesta. E Jo se mostrou um tanto atrapalhada, pois quase lhe escapa um nome. — Eu sei que não sou, concordou Laurie, com uma expressão de humildade inteiramente nova para ela, quando abaixou os olhos e distraidamente deu para enrolar no dedo as franjas do avental de Jo. — Deus nos livre que isso aconteça! pensou Jo, acrescentando em voz alta: ─ Vá e cante para mim. Estou doida por um pouco de música e gosto sempre da sua. — Prefiro ficar aqui. Obrigada. — Ora, você não pode ficar. Aqui não é a sala. Vá e faça-se útil, já que está grande demais para ser ornamental. Eu pensava que você tinha horror a ficar preso à saia de uma mulher, retrucou Jo, citando algumas palavras rebeldes dele mesmo. — Ora, tudo depende de quem usa a saia! E Laurie deu um atrevido puxão no vestido de Jo. — Você não vai? perguntou Jo, apanhando o travesseiro. Ele correu afinal e ela correu atrás, para só voltar quando o rapaz foi embora, muito despeitado. Jo ficou acordada até muito tarde naquela noite e ia quase pegando no sono, quando o som de um soluço estrangulado fê-la voar para a cabeceira de Beth, perguntando ansiosamente: — Que é meu benzinho? — Pensei que você estivesse dormindo ─ soluçou Beth. — A dor antiga, meu anjo? — Não. É uma nova. Mas eu posso agüentá-la, e Beth tentou enxugar as lágrimas. Diga-me tudo a esse respeito e deixe-me tratar dela, como fiz tantas vezes com a outra. — Você não pode. Não há cura. Aí a voz de Beth sumiu e, abraçando-se com a irmã, chorou com tanto desespero que Jo ficou alarmada. — Onde é isso? Chamo mamãe? Beth não respondeu à primeira pergunta. Mas, no escuro, uma das mãos foi involuntariamente para o coração, como se a dor fosse ali; com a outra, puxou Jo para bem perto, sussurando: — Não, não, não chame mamãe, não lhe diga nada. Hei de melhorar depressa. Deite aqui e acaricie a minha cabeça. Ficarei quietinha e dormirei. Éo que eu quero. Jo obedeceu. Mas, quando a sua mão ava docemente sobre a fronte aquecida e as pálpebras molhadas da irmã, seu coração transbordava e sentiu vontade de falar. Mas, apesar de jovem como era, já aprendera que os corações, como as flores, não podem ser tratados com dureza, mas devem desabrochar naturalmente. Por isso, embora acreditasse saber a causa do novo sofrimento de
Beth, disse apenas, com toda a meiguice: — Está sentindo alguma coisa, queridinha? — Estou Jo, foi a resposta depois de tima longa pausa. — Não ficaria aliviada se me contasse o que é? — Não agora; ainda não. — Então, não perguntarei mais; mas não esqueça, Beth-zinha, que eu e mamãe ficaremos sempre satisfeitas por ouvi-la e ajudá-la, se pudermos. — Sei disso. Direi a você qualquer dia destes. — Está melhorzinha da dor? — Oh! sim, muito melhor. Você é tão reconfortante, Jo! — Durma, querida. Ficarei aqui a seu lado. Adormeceram com a face de uma encostada na da outra e, pela manhã, Beth parecia a mesma outra vez, pois, aos dezoito anos, a cabeça e o coração não padecem por muito tempo e uma palavra carinhosa pode remediar muitos males. Mas Jo tinha uma idéia assentada no espírito e, depois de ponderar o projeto durante alguns dias, abriu-se com a mãe. — A senhora perguntou outro dia quais eram os meus desejos. Direi agora um deles, mamãezinha, começou ela, quando se sentaram as duas sozinhas. Quero ir para um lugar qualquer, neste inverno, para mudar de ares. — Por que, Jo ? E a mãe fitou-a tão vivamente, como se as suas palavras traíssem um segundo sentido. Pesando bem as palavras, Jo respondeu sobriamente. — Desejo qualquer coisa de novo; sinto-me ansiosa por ver, por fazer ou por aprender mais do que tenho feito até agora. Tenho-me preocupado demais com os meus próprios negocinhos e preciso espairecer as idéias, também, já que posso ser poupada durante este inverno. Gostaria de voar um pouco mais longe, a fim de experimentar as minhas asas. — Para onde quer voar? — Para .Nova York. Tive ontem uma bela idéia que é a seguinte. A sra. Kirke não lhe escreveu, no sentido de arranjar uma moça decente para ensinar aos seus filhi-nhos, e costurar? É um tanto difícil encontrar-se o que ela quer, mas penso que eu serviria, se experimentasse. — Minha querida, sair de casa para ir trabalhar naquela pensão tão grande ? E a senhora March mostrou-se espantada, porém não aborrecida. — Não é propriamente sair de casa para trabalhar, pois a sra. Kirke é sua amiga — a melhor alma que já existiu, e tudo fará para me ser agradável, eu sei. A família dela vive separada do resto do pessoal e ninguém me conhece ali. E pouco importa que me conheçam. É um trabalho honesto e não me envergonha. — Nem a mim, mas os seus escritos? — Só poderão melhorar com a mudança. Verei e ouvirei coisas novas, apanharei novas idéias e, mesmo se não me demorar muito tempo lá, voltarei para casa trazendo um mundo de assuntos para os meus rabiscos. — Não tenho dúvida em aprovar a idéia. Mas são estas as únicas razões para essa repentina fantasia? — Não, mamãe. — Posso conhecer as outras? Jo olhou para cima e para baixo, e disse depois, devagar, com as faces
subitamente coradas: — Pode ser tolo ou errado dizer isso, mas receio que , Laurie esteja gostando muito de mim. — Então, você não se interessa por ele na forma por que é evidente que ele começa a se interessar por você? E a sra. March parecia inquieta quando fez a pergunta. — Não, decerto! Gosto do rapazinho, como sempre gostei, e o aprecio imensamente. Porém, quanto a qualquer coisa mais, isto está fora de discussão. — Muito me alegro com isso, Jo. — Por quê? Diga, por favor. — Porque, minha filha, não acho que combinem bem um com o outro. Como amigos, dão-se otimamente e as zangas tão freqüentes am depressa; mas tenho medo que venham ambos a rebelar-se, se estiverem ligados por toda a vida. Vocês dois se parecem muito e amam demasiado a liberdade, sem falar de índoles impetuosas e vontades teimosas, para viver felizes juntos, em relações que exigem infinita paciência e tolerância, como as do amor. — Isto é justamente o que sinto, embora não soubesse exprimi-lo. Estou alegre por que a senhora pensa que ele está apenas começando a se interessar por mim. Teria pena de lhe dar um grande desgosto, pois, se não devo amar o querido camaradinha, nem por isso deixo de sentir gratidão, não acha? — Está certa dos sentimentos dele a seu respeito? Ao responder, Jo mostrava na fisionomia essa mescla de prazer, de orgulho e de tristeza, que costuma aparecer no rosto quando se fala dos primeiros amores. — São mesmo os que receio, mamãe. Não me disse nada, mas a sua fisionomia não engana. Penso que á melhor eu ir embora antes que surja qualquer coisa. — Estou de acordo com você e, se isso se puder arranjar, você irá. Jo pareceu aliviada e, depois de uma pausa, disse sorrindo : — Como a sra. Moffat se espantaria do seu desinteresse, se soubesse; e como se alegrará por ver que a Annie ainda pode ter esperanças... — Ah! Jo, as mães podem ser diferentes nas suas ambições, porém todas têm a mesma esperança ver os filhos felizes. Meg é feliz e eu estou satisfeita com a sua ventura. Quanto a você, deixo que goze a sua liberdade até se cansar dela; pois só então você compreenderá que existe alguma coisa mais doce ainda. Amy é atualmente a minha maior preocupação, mas o seu bom senso a protegerá. Quanto a Beth, não ouso ter outra esperança a não ser que melhore de saúde. A propósito, ela parece mais animada de ontem ou anteontem, para cá. Tem falado com ela? — Sim. Ela confessou que tem uma inquietação e prometeu-me contá-la qualquer dia. Não perguntei mais nada porque acho que já sei o que é. E Jo contou a sua pequena história. A sra. March balançou a cabeça e não considerou o caso sob um ponto de vista tão romântico, porém se mostrou sisuda e repetiu a opinião de que, para a salvação de Laurie, Jo devia afastar-se por um certo tempo. — Jo melhor não lhe dizer nada sobre o assunto até que o plano esteja assentado; desse modo, hei de escapulir antes que ele possa assentar as idéias e tomar ares trágicos. Beth deve pensar que vou por prazer, como de fato é, pois não
lhe posso falar a respeito de Laurie. Ela poderá distrai-lo e confortá-lo até que Laurie se cure dessa crise romântica.Ele não ou por muitas experiênciazinhas dessa natureza, está acostumado e em breve n&o restara mais nenhum ressentimento. Jo falou cheia de esperança, mas não conseguiu livrar-se do íntimo receio de que o querido camaradinha pudesse ser mais persistente do que QS outros e não vencesse esta crise romântica tão facilmente como as primeiras. O plano foi discutido em conselho de família e aprovado inteiramente. A sra. Kirke aceitou Jo com prazer e prometeu dar-lhe um bom ambiente em sua casa. O ensino lhe garantiria a independência e as horas vagas que tivesse poderiam ser aproveitadas para escrever, quando não achasse maior prazer ou utilidade em conhecer o novo ambiente e boas relações. Jo gostou das perspectivas e esteve impaciente para seguir viagem, pois o ninho doméstico estava-se tornando estreito demais para a sua natureza inquieta e aventureiro espírito. Quando tudo ficou assentado, foi contar ao Laurie, toda medrosa e trêmula. Mas para sua surpresa, ele recebeu a notícia placidamente. Havia tomado ultimamente um ar mais grave que de costume, porém muito gentil. E quando foi acusado, por troça, de estar lendo uma página nova do livro do amor, respondeu sobriamente: — Fis verdade, mas acredito que ficarei nela. Jo ficou muito aliviada por ver que um dos os virtuosos de Laurie surgia tão oportunamente e fez os seus preparativos de coração tranqüilo, pois a Beth parecia mais animada e dava a esperança de melhorar de uma vez. — Uma coisa eu deixo entregue ao seu especial cuidado, disse Jo, de noite, na véspera da partida. — Refere-se à. sua papelada? perguntou Beth. — Não. E a meu camaradinha. Seja muito boazinha para ele, ouviu? — Naturalmente, serei. Mas não posso preencher o seu lugar se ele há de sentir muito a sua falta. — Isso não há de entristecê-lo. Pois não se esqueça: fica a seu cargo, para que o agrade, repreenda e tome conta dele. — Parei o que puder, por causa de você, prometeu Beth, sem compreender porque Jo a fitava de um modo tão esquisito. Na hora da despedida, Laurie sussurrou de modo significativo. — Isso não vai dar certo, Jo. Estarei alerta. Veja lá o que faz, pois eu irei buscá-la e trazê-la para casa.
CAPITULO X O Diário de Jo “Nova Iorque, Novembro. Mamãezinha e Beth queridas. Começo a escrever-lhes um vasto relatório, pois tenho muita coisa para contar, embora não seja uma jovem fidalga em eio pela Europa. Quando perdi de vista a face querida de papai, senti-me um
tanto abalada e teria enxugado uma ou duas lágrimas, se uma senhora irlandesa com quatro criancinhas choramingas não divertissem o meu espírito, pois eu me entretive em atirar pedacinhos de bolo sobre o banco, toda vez que os pequenos abriam a boca para berrar.O sol repontou bem cedo e, tomando isso como um bom presságio, espaireci as idéias e saboreei a viagem com todo o coração. A sra. Kirke recebeu-me tão carinhosamente que logo me senti como em minha própria casa, embora seja um casarão cheio de estranhos. Deu-me para morar um sotãozinho engraçado tudo de que podia dispor; mas há uma estufa aí e uma linda mesa junto à janela, onde poderei sentar-me e escrever à vontade. Uma vista agradável e uma torre de igreja, além de muitas estrelas, foram o bastante para que me agradasse da minha caverninha. O quarto das crianças onde devo ensinar e coser, é uma sa-leta aprazível, pegado ao aposento particular da sra. Kirke. As suas duas filhas são criancinhas bonitas, um tanto mimadas, penso eu. Mas simpatizaram comigo, depois que contei a história dos "Sete Porquinhos" e não duvido mais que serei uma governante modelar. Farei as refeições em companhia das pequenas, se não quiser sentar-me à mesa grande, e por enquanto não quero mesmo, pois estou acanhada, embora ninguém ai chegue a acreditar em tal coisa. — Agora, minha querida, fique à vontade, disse a sra. Kirke no seu estilo maternal. Vivo sempre atarefada de manhã à noite, como pode avaliar, com uma família tão grande; mas já será de menos uma grande preocupação se souber que as crianças estão em segurança na sua companhia. Meus aposentos estão sempre abertos para você e o seu há de ser tão confortável quanto me for possível contribuir para isso. Há muitas pessoas agradáveis aqui em casa, se está disposta a ser sociável, e pode dispor sempre das suas noites. Avise-me do que não gostar e trate de instalar-se da melhor maneira que puder. Lá está tocando a campainha. Devo tratar da vida. E saiu, deixando-me entregue a mim mesma na acomodação do meu novo, ninho. Quando desci, pouco mais tarde, vi uma coisa que me agradou. Os lanços da escada são muito compridos nesta casa tão alta e, quando fiquei esperando do alt;o de um deles que uma criadinha subisse carregando um pesado saco de carvão, vi um cavalheiro correr atrás dela, tomar-lhe o saco das mãos, carregá-lo para cima e colocá-lo junto da porta mais próxima. Depois, foi embora, dizendo com uma inclinação amável da cabeça e com um acento estrangeiro : — É melhor assim. A pobrezinha é pequena demais para carregar um peso tão grande. Não foi um gesto de bondade? Gosto dessas coisas, porque como diz papai, são as miudezas que revelam o caráter de uma pessoa. Quando contei o caso à sra. Kirke, na mesma noite, ela disse rindo: — Deve ter sido o professor Bhaer. Anda sempre fazendo dessas coisas. A sra. K. contou-me que ele era de Berlim: muito instruído e bom, porém pobre como Jó e dá lições para viver e sustentar dois sobrinhozinhos órfãos, que está educando aqui, de acordo com os desejos de sua irmã, que era casada com um americano. A história não é muito romântica, mas me interessou. Fiquei alegre por saber que a, sra. K. lhe empresta a sua saleta para dar aula a alguns alunos. Há uma porta de vidro entre ela e o quarto das crianças e pretendo espreitá-lo por aí, para lhes dizer
depois qual a impressão. Ele está beirando pelos quarenta. Assim não há mal, mamãe. Depois do chã e de algum esforço jovial para levar as crianças para cama, trabalhei um pouco e ei uma boa parte da noite tagarelando com a minha nova amiga. Pretendo escrever diariamente as minhas impressões e mandarei para vocês, em carta, o que tiver rabiscado durante cada semana. Agora, boa noite e até amanhã. Terça-feira ei horas apertadas esta manhã, na sala das crianças, porque as meninas estavam endiabradas; houve mesmo um momento em que senti ímpetos de atirá-las pela porta afora. Mas, felizmente, um bom anjo me inspirou a idéia de experimentar um pouco de ginástica e com isso elas se alegraram e ficaram quietas. Depois da merenda, a ama levou-as para um eio e eu comecei a costurar com disposição. Estava agradecendo aos céus a sorte de ter aprendido a fazer lindas casas de botão, quando a porta da saleta se abriu e tornou a fechar, e alguém começou a zumbir: ─ Kennst du das land ─ como um besourâo. O que eu fiz não era direito, sei muito bem; mas não pude resistir à tentação e, levantando uma ponta da cortina que cobre a porta, de vidro, espiei para o outro lado. O professor Bhaer estava ali. E en quanto ele arranjava seus livros, observei-o à vontade. E um alemão de tamanho regular um tanto avantajado de corpo, com cabelos castanhos jogados para trás, barba cerrada, nariz bem feito, os olhos mais ternos que já vi e uma voz forte e bem timbrada que faz bem aos ouvidos da gente, depois de escutar nosso sotaque americano tão apressado e fanhoso. As suas roupas são desajeitadas, as mãos mui to grandes, e não há realmente nada de bonito no seu rosto, exceto a magnífica dentadura. Contudo, ele me agrada porque tem uma bonita cabeça. A sua roupa branca era muito limpa e ele dava a impressão de um homem, distinto, embora faltassem dois botões no seu paletó e houvesse um remendo no sapato. Mostrava-se sossegado apesar do zumbido, até- que foi à janela para voltar os ramos de jacinto para o lado do sol e afagou o gato que o recebeu como a um velho amigo. Sorriu, então. E quando bateram na porta, gritou num timbre forte e alegre: — Quem é? Estava justamente para sair dali, quando dei com os olhos numa garotinha que carregava um livro grosso. Parei para ver o que sucederia. — “Quelo" o meu-.Bhaer, disse o pedacinho de gente, jogando o livro no chão e correndo para abraçá-lo. — Você terá o seu Bhaer; venha cá, então, e me dê um abraço bem apertadinho, minha Tina, disse o professor, no seu inglês germanizado, rindo muito e levantando a pequena tão alto que ela teve de curvar a facezinha para lhe dar um beijo. — Agora devo estudar a minha lição, continuou a garotinha graciosa; ele colocou-a junto à mesa, abriu o grande dicionário que tinha trazido, deu-lhe papel, e lápis e ela começou a rabiscar, voltando de vez em quando uma folha e apontando o dedmho gordo numa página, como se encontrasse a palayra procurada. Fazia isso tão direitinho que eu quase me denunciei por uma risada. O sr. Bhaer ficava de pé, alisando a linda cabecinha da criança, com tanto ar de pai, que me fez pensar que
ela devia ser mesmo sua filha, embora parecesse mais sa do ,que alemã. Outra pancada na porta e o aparecimento de duas mocinhas fez-me voltar ao trabalho e nele permaneci virtuosamente, apesar de todo o movimento e falatória que vinha do aposento contíguo. Uma das alunas pôs-se a rir afetadamente, dizendo: ─ Ora, professor! num tom espevitado e a outra pronunciava o alemão com um acento que devia dar muitas dores de cabeça ao mestre. Ambas pareciam dispostas a experimentar a sua paciência, pois mais de uma vez escutei dizer enfaticamente: ─ Não, não é assim; vocês não prestam atenção ao que digo. Mais uma vez ainda, ouviu-se uma pancada forte, como se êle batesse na mesa com um livro, seguindo-se essa exclamação desesperada: ─ Arre! tudo hoje corre mal. Coitado! tive pena dele. E quando as mocinhas foram embora, dei mais uma espiadela, para ver se o professor tinha sobrevivido à lição. Ele parecia ter-se atirado na espreguiçadeira, num cansaço extremo, ficando ali com os olhos semicerrados até que o relógio bateu duas horas. Então pulou da cadeira, pôs os cadernos no bolso, como se se aprontasse para uma nova aula. E tomando nos braços a pequena Tina, que adormecera no sofá, carregou-a pacientemente. Imagino que deve ar uma vida bem difícil. A sra. Kirke perguntou-me se não queria descer para o jantar, às cinco horas. E como mentia um pouco de saudade de casa, pensei. que devia ir ver qual era a espécie de gente que vivia comigo debaixo do mesmo teto. Tomei assim uma pose respeitável e tentei ar despercebida, seguindo atrás da sra. Kirke; mas, como eu sou alta e ela baixa, meus esforços falharam. Deu-me um lugar perto dela e, ado o primeiro instante de aeanhamento, criei coragem e olhei ao redor. A mesa comprida estava cheia. E todos entravam valentemente no jantar principalmente os cavalheiros, que pareciam comer de tudo ao mesmo tempo, porque avançavam no verdadeiro sentido da palavra, desaparecendo logo depois que engoliam a sobremesa. Havia o sortimento comum de rapazes absorvidos consigo mesmos; jovens casais absorvidos um com o outro; matrona com seus bebês e os velhos com a política. Não achei quem me pudesse interessar entre tantas pessoas, exceto uma senhora jovem, de fisionomia suave, que parecia ter qualquer coisa dentro dela. Afastado lá no fundo da mesa, estava o professor, de um lado respondendo estrondosamente às perguntas de um velhinho surdo e muito curioso e de outro lado conversando filosofia com um francês. Se Amy estivesse aqui, teria voltado as costas para ele, porque tenho pena em confessar, estava com muito apetite e devorava o jantar de um modo que teria horrorizado a sua fidalguia. Isso para mim não tem importância, pois gosto de ver gente comer com gulodice, como diz a Hannah, e o pobre homem precisa alimentar-se bastante depois de ensinar a idiotas durante todo o dia. Quando subia, depois do jantar, dois dos rapazes estavam ajeitando o chapéu diante do espelho e ouvi um deles dizer em voz baixa para o outro: — Quem é essa novata? — Governante ou coisa parecida. — Por que, então, se sentou à nossa mesa? — É amiga da velha. — Cabeça bonita, mas nenhuma distinção.
— Nem um nadinha. Fiquei indignada no começo, mas agora isso não me importa, pois uma governante vale tanto como um caixei-Tinho e, se não tenho elegância, possuo bastante juízo, muito mais do que certa gente, a julgar pelos comentários das criaturas distintas que falam à toa, fumando como chaminés. Tenho horror a gente ordinária. Quinta-feira Ontem foi um dia sossegado, gasto em falar, coser e escrever no meu quartinho, que é muito confortável, com luz e fogão. Apanhei boas novidadezinhas e fui apresentada ao professor. Parece que Tina. é a filha da senhora sa que engoma tão bem na lavanderia daqui. O pedacinho de gente é doidinho pelo sr. Bhaer e o acompanha pela casa toda, como uma gatinha. Isso o encanta, porque tem loucura por crianças embora seja solteirão. Kitty e Minnie Kirke lhe dedicam igual consideração. e contam uma porção de histórias sobre os brinquedos que inventa, os presentes que traz e os esplêndidos contos de fada que narra. Ao que parece, os rapazes troçam dele, dão-lhe os apelidos de "Velho Fritz", "Chop Estragado", "Ursa Maior", e fazem toda espécie de trocadilhos com o seu nome. Mas diz a sra. Kirke que isso o diverte como uma criança e aceita as brincadeiras com tão bom humor que todos gostam dele, apesar de seus modos estrangeirados. A moça de quem falei é a srta. Norton rica, educada e boa. Conversou hoje comigo, durante o jantar, pois eu fui à mesa de novo; é tão divertido observar os outros e pediu-me para ir visitá-la em seu quarto. Possui livros e quadros ótimos, conhece pessoas interessantes e parece muito dada. Assim, tratarei de fazer-me agradável também, pois quero franquear a boa sociedade, desde que não seja da mesma espécie que Amy tanto aprecia. Estava eu na nossa saleta, ontem à noite, quando o sr. Bhaer apareceu trazendo alguns jornais para a sra. Kirke. Ela não estava aí, porém Minnie, que já é uma mocinha, me apresentou de um modo muito gentil: — Esta é a amiga de mamãe, srta. March. — Isso mesmo. Ela é camarada e gostamos das suas brincadeiras, acrescentou Kitty, que é um enfant terrible. Trocamos cumprimentos e sorrimos, pois a solene apresentação e o seu desabusado complemento formavam um contraste um tanto cômico. — Ah! Sim. Eu escutei essas travessinhas lhe darem que fazer, srta. March. Se isso acontecer de novo, pode chamar-me e eu virei, disse ele, com uma ameaça que divertiu os dois diabinhos. Prometi que havia de chamá-lo e ele se foi. Parece, entretanto, que estou condenada a vê-lo a toda hora, pois hoje, quando ava pela sua porta para sair, bati nela, distraidamente, com a ponta da sombrinha. A porta escancarou-se e ele apareceu no seu robe de chambre, com uma meia azul numa das mãos e uma agulha na outra. Ele não pareceu de forma alguma envergonhado, pois, quando pedi desculpas e saí correndo, me acenou com a mão, meia e tudo, dizerído no seu tom alto e alegre: — Vai ter um lindo dia para o seu eio. Bon voyage, mademoiselle. Desci a escada numa só risada. Mas, o caso possui também o seu lado patético, quando se pensa no coitado tendo de remendar a própria roupa. Os
homens na Alemanha costumam bordar, eu sei. Mas consertar meias é outra coisa e nada agradável. Sábado Não aconteceu nada que mereça referência, a não ser uma visita à srta. Norton, que tem um quarto cheio de coisas amoráveis e que é encantadora, pois me mostrou todos os seus tesouros e perguntou-me se eu não gostaria de acompanhá-la algumas vezes a conferências e concertos. Deu a entender que seria um favor que eu lhe faria, mas tenho a certeza de que a sra. Kirke lhe falou a nosso respeito e isso deu motivo à sua gentileza. Sinto-me tão orgulhosa como Lúcifer, mas semelhantes favores de pessoa assim não são um fardo para mim e aceitei-os agradecida. Quando voltei ao quarto das crianças, havia tamanha barulheira na saleta que fui espiar o que estava acontecendo. Era o sr. Bhaer de quatro pés, com Tina montada em suas costas, Kitty guiando-o com um barbante e Minnie alimentando com migalhas de bolo dois garotinhos, que saltavam e uivavam dentro de jaulas construídas com algumas cadeiras. — Estamos brincando de circo, explicou Kitty. — Ele é o meu "efalante", acrescentou Tina, na sua linguazinha atrapalhada, enquanto puxava o cabelo do professor. — Mamãe sempre nos deixa fazer o que entendemos na tarde de sábado, depois que Franz e Emil vão embora, não é, sr. Bhaer? O "efalante" levantou-se, parecendo mais animado que os pequenos, e disseme calmamente: — É assim que trabalho. Se fizermos barulho demais, basta-nos dizer: ─ ─ Pára! E nós trataremos de ficar mais sossegados. Prometi-lhe agir assim, mas deixei a porta aberta e gozei a brincadeira tanto quanto eles, pois foi o reboliço mais glorioso a que já assisti. Brincaram de navio e de soldado, dançaram e cantaram, e, quando começou a escurecer, amontoaram-se todos no sofá em redor do professor, enquanto ele contava lindas histórias de fada. Seria bom se os americanos fossem tão simples e naturais como os alemães, não acham? Gosto tanto de escrever a vocês que ficaria rabiscando a vida inteira, se motivos econômicos não me detlvessem; pois, embora use papel fininho e escreva com letra miúda, tremo ao pensar nos selos que precisarei pregar nesta carta. Teddy estará estudando tanto que não acha tempinho para escrever às pessoas amigas? Tome conta dele, por mim, Beth. Diga-me tudo a respeito dos bebês e distribua milhões de lembranças a todos. Da sua sempre fiel Jo P.S. Lendo o que escrevi, impressionei-me com o excesso de comentários sobre o assunto Bhaer; mas sempre me interessei por pessoas extravagantes e não tenho mesmo mais nada sobre que escrever. Muitas saudades! Dezembro Minha adorada Beth, como esta é uma carta rabiscada sem cuidados, vou endereçá-la a você, pois poderá diverti-la e dar-lhe uma idéia sobre a minha vida aqui. Embora sossegada, ela é um tanto divertida. Alegre-se com isso. Depois do que a Amy teria chamado de esforços hercúleos, no estilo de agricultura moral e mental, minhas jovens idéias começam a brotar e as duas crianças se de senvolvem
de acordo com os meus desejos. Não são tão interessantes para mim como a Tina e os meninos, mas cumpro o meu dever e as duas me adoram. Franz e Emil são garotinhos espertíssimos, bem no gênero que aprecio, pois essa mistura de sangue alemão e americano produz um constante estado de efervescência. As tardes de sábado são sempre animadíssimas, sejam adas dentro ou fora de casa. Se o tempo é bom, vão todos ear, como pequenos de um internato, com o professor e eu para manter a ordem no grupo. E não queira saber como se pinta! Somos muito amigos agora e já comecei a tomar lições. Não posso evitar isso e tudo a esse respeito aconteceu de maneira tão engraçada que devo contá-la a você. Para começar mesmo do começo, a sra. Kirke me chamou, quando ei pelo quarto do sr. Bhaer, onde procedia à arrumação. — Já viu tamanha desordem, minha filha? Venha ajudar-me a pôr esses livros no lugar, porque já revirei tudo pelo avesso tentando descobrir o que faz ele de meia dúzia de lenços novos que lhe dei ainda há pouco tempo. Entrei e, enquanto trabalhávamos, eu ia observando tudo o aposento, para ver até onde chegava a confusão. Nem calcula! Livros e papéis por toda parte, um cachimbo quebrado e uma velha flauta sobre o rebordo do fogão, como se fosse o lugar apropriado; um pássaro meio de-penado chilrava pendurado numa das janelas; barquinhos de papel e meadas de barbante entre os manuscritos; sapati-nhos sujos de crianças postos para secar diante do fogão; e por todos os cantos do quarto vestígios dos garotinhos adorados, dos quais se fez um amoroso escravo. Depois de uma busca demorada, foram encontrados três dos artigos desaparecidos um sobre a gaiola do arinho, outro manchado de tinta e o terceiro meio chamuscado. — Que homem! disse rindo a sra. K., quando punha as relíquias no saco da roupa suja. Com certeza os outros três foram rasgados para encher barquinhos de brinquedo, amarrar dedos cortados ou fazer rabos de papagaios. É uma coisa terrível, porém não posso censurá-lo; ele é muito distraído e bom de natureza e deixa os pequenos montarem nas suas costas. Concordei em tratar da lavagem e do remendo de sua roupa, mas se esquece de me entregar as suas coisas e eu me esqueço de pedi-las. Assim, de vez em quando a seus maus pedaços. — Deixe-me remendá-las então, disse eu. ─ Isso não me dará trabalho e o sr. Bhaer não precisará saber. Farei isso com satisfação, pois ele tem a bondade de levar as minhas cartas e me emprestar livros. Dessa forma, tratei de pôr as suas coisas em ordem e remendei o calcanhar de dois pares de meia, pois estavam em petição de miséria com o seu cerzimento mal feito. Não se disse nada e eu tinha esperança de que ele nada viesse a saber, mas num dia da semana ada me apanhou em flagrante. Tem-me interessado e me divertido tanto escutar as lições que ele dá aos outros que me Veio também a idéia de aprender; pois Tina entra e sai freqüentemente, deixando a porta aberta, e assim eu posso ouvir tudo. Estava eu sentada perto da porta, terminando de remendar a última meia e tentado entender o que ele dizia a uma nova aluna, que é tão obtusa como eu. A menina tinha saído e pensei que ele também, pois o silêncio era completo. Pus-me então a soletrar em voz alta um verbo complicado, balançando-me de um lado para outro, de um modo um tanto absurdo, quando um pequenino rumor me fez levantar a vista e vi então o sr. Bhaer sorrindo; e olhando para mim calmamente, enquanto fazia sinais à Tina para não denunciá-lo.
— Então, é assim! ─ disse ele quando parei e olhei ao redor atarantada. ─Você me espia, eu a espio e isto não está nada mau. Mas, pelo que vejo, tem interesse em aprender o alemão, não tem? — Sim, mas já tem trabalho demais e eu sou muito dura de cabeça para aprender, respondi eu embaraçadamente, e vermelha como um camarão. — Ora! Encontraremos tempo e conseguiremos ir para diante. De tardinha, darei com muito prazer uma pequena lição; mesmo porque, srta. March, tenho de lhe pagar uma pequena dívida. E ele apontou para o meu trabalho. ─ Sim, dizem umas para as outras estas boas senhoras, ele é um homem muito esquisito e desajeitado. Não vê o que faz; nunca repara que as meias estão esburacadas, pensa talvez que nascem botões novos na roupa, quando caem os antigos, etc. Mas eu tenho olhos e vejo muito. Tenho coração e sei agradecer o que fazem por mim. Vamos a ver: ou uma liçãozinho de vez em quando ou então não deixarei mais que faça esses bons servicinhos para mim e para os meus. Naturalmente eu não podia dizer mais nada depois disso e, como é realmente uma esplêndida oportunidade, concordei na troca e já começamos as aulas. Tomei quatro lições. Estou entrando firme na gramática. O professor foi muito paciente comigo, mas devo ter sido um tormento para ele e de vez em quando me olhava com uma expressão de tão doce desespero que eu não sabia se devia rir ou chorar. Experimentei uma e outra coisa e quando chegamos a um extremo de mortificação, ele atirou a gramática no assoalho e saiu pela porta a fora. Senti-me diminuída e desamparada para sempre, mas, não lhe fiz a menor censura, e estava juntando os meus papéis, na intenção de correr para o meu quarto e dar livre curso ao meu desgosto, quando ele voltou tão radiante e animado como se eu me tivesse coberto de glória. — Agora iremos experimentar de um modo diferente. Leremos juntos essas pequeninas histórias e não tocaremos mais naquela gramática aborrecida, que vai para um canto, de castigo. Ele falou com tanta bondade e abriu diante de mim tão convidativamente os contos de fada de Hans Andersen que ainda fiquei mais envergonhada do que antes e fui dando a lição num estilo de trancos e barrancos que parecia diverti-lo imensamente. Esqueci meu acanhamen-to e ia tropeçando para diante, não há outra palavra mais apropriada do jeito que podia, atropelando as palavras mais compridas, pronunciando de acordo com a inspiração de momento e arranjando uma saída qualquer para as dificuldades. Quando terminei de ler a minha primeira página e parei para tomar fôlego, ele bateu palmas e exclamou na sua maneira afetuosa: ─ Muito bem. Agora vamos indo. Chegou a minha vez. Vou ler a mesma página e preste bem atenção. E assim fez ele proferindo as palavras com a sua voz bem timbrada e com tanta animação que era tão agradável ver como ouvir. Felizmente a história era "O soldadinho de chumbo", muito engraçada, como você sabe. Assim, tinha de rir mesmo, embora não entendesse a metade do que ele estava dizendo, pois não podia evitar isso. Estava tão sério, tão entusiasmado, e tudo parecia tão cômico! Depois disso, melhoramos bastante e agora leio as minhas lições muito bem, pois esse processo de estudar me agrada e posso entender as regras da gramática através dos contos e das poesias que leio. Gosto muito disso e ele não parece
cansado de me ensinar por enquanto. É uma prova de grande bondade, não acha? Pretendo dar--lhe um presentinho pelo Natal, pois não me atrevo a lhe oferecer dinheiro. Diga a mamãe para me sugerir qualquer coisa bonita. Estou contente por saber que Laurie parece tão feliz e- tão atarefado e que deixou de fumar e não usa mais o cabelo à escovinha. Vê-se que a Beth o dirige melhor do que eu. Não estou enciumada, querida. Faça dele o melhor que puder, contanto que não o transforme num santo. Receio não gostar mais dele sem um pontinha de fraqueza humana. Mostre-lhe alguns trechos de minhas cartas. Não tenho tempo para escrever muito e para ele deve ser a mesma coisa. Graças a Deus sei que você, Beth vai ando bem. Janeiro Feliz Ano Novo para vocês todos, incluindo naturalmente o Sr. L. e um homenzinho que atende pelo nome de Teddy. Não encontro palavras para dizer quanto apreciei o embrulho de presentes que vocês me mandaram, pois só o recebi à noite, depois de ter voltado de um eio. A carta chegou de manhã, mas não dizia nada a respeito do embrulho, naturalmente para que eu tivesse uma surpresa. Por isso, fiquei decepcionada, pois tinha um bom palpitezinho de que vocês não se haviam de esquecer. Senti-me um pouco triste quando voltei ao quarto, após o chá. Mas, quando me trouxeram o pacote, grande, mole e machucado da viagem, abracei-o e pulei de alegria. Sentei-me no soalho, reli a carta, comi os doces, sorri e chorei, no meu sistema absurdo. As coisas que, me enviaram são justamente as que eu queria. O novo únteiro de Beth é importantíssimo e, a caixa de biscoitos de Hannah será um tesouro. Hei de usar as lindas flanelas que você me man dou, mamãezinha, e lerei cuidadosamente os livros que papai escolheu para mim. Obrigada a vocês todos, mil vezes obrigada! Por falar de livros, lembrei-me de dizer que estou ficando rica a esse respeito, pois no dia do Ano Novo o sr. Bhaer me ofereceu um volume muito bonito com as obras de Shakespeare, um autor que ele aprecia muito e muitas vezes eu o irei colocado no lugar de honra, ao lado da Bíblia, Platão, Homero, Milton. Vocês imaginem, portanto, como me comovi quando ele me entregou o livro, sem a capa, e mostrou o meu nome escrito ali, tendo por baixo a dedicatória do amigo Friedrich Bhaer. — Disse-me várias vezes que deseja ter uma bibliotecazinha, pois aqui está uma. Nestas páginas há muitos livros dentro de um só. Leia-o bem, que ele lhe será de muito valor, pois o estudo de caráter nas obras de Shakespeare a ajudará a estudá-lo na realidade e a pintá-lo com a sua pena. Agradeci-lhe com as palavras que encontrei e falamos freqüentemente sobre minha Biblioteca, como se eu tivesse centena de volumes. Eu nunca soube antes quanta coisa havia em Shakespeare, porém, tenho agora um Bhaer para me explicar tudo isso. Não riam do seu nome esquisito. Pronunciado à maneira alemã, não é desagradável. Piquei contente ao saber que vocês gostam que eu fale a respeito dele e tenho esperança de que algum dia hão de conhecê-lo. Mamãe há de irar o seu bom coração e papai a sua cabeça ajuizada. iro tanto uma como outra coisa e considero uma riqueza a amizade de Friedrich Bhaer. Não dispondo de muito dinheiro e não conhecendo os gostos dele, comprei várias coisinhas miúdas e espalhei-as pelo seu quarto, para que as fosse
encontrando ao acaso. São coisas úteis, bonitinhas ou engraçadas: Um tinteiro novo sobre a escrivaninha, um pequeno vaso para flores, ele tem sempre uma flor ou um raminho num copo, para refrescá-lo, como diz e um cabo novo para o seu abanador, a fim de que não precise mais queimar o que Amy chama de "mouchoirs". Fiz uma coisa caprichosa, no estilo das invençõezinhas de Beth. Ele apreciou tanto que pôs o objeto em cima da mesa, como enfeite, desvirtuando assim as suas finalidades. Pobre como é, nem por isso esqueceu de dar presentes a qualquer criada ou a qualquer criança da casa. Também não houve uma só alma aqui, desde a lavadeira sa até a srta. Norton que o esquecesse. Isso me alegrou. Os hóspedes improvisaram um baile de máscaras, para se divertirem na véspera do Ano Novo. Eu não pretendia deixar o meu canto, pois não tinha o que vestir. Mas, no último instante, a sra. Kirke se lembrou de alguns velhos brocados e a srta. Norton emprestou rendas e penas. Fiz uma fantasia improvisada e desci de máscara. Ninguém me reconheceu, pois disfarcei a voz e não era possível imaginar que a silenciosa e altiva srta. March, pois muitos acreditam que sou muito fria e presumida seria capaz de se fantasiar, dançar e ar trotes em tanta gente. Diverti-me muito e, quando arranquei a máscara, era uma graça ver as caras de espanto que me olhavam. Ouvi um rapaz dizer a outro que já me havia conhecido como atriz. De fato, julgava lembrar-se de me ter visto num teatrinho de subúrbio. Meg gostará dessa anedota. O sr. Bhaer fantasiou-se de Nick Bottom e Tina de Titania. Parecia uma menininha de contos de fada nos braços dele. Ver os dois dançando era um espetáculo, para usar a linguagem de Teddy. Tive um felicíssimo Ano Novo, apesar de tudo. E quando pensei a esse respeito, no meu quarto, tive a impressão de que estava progredindo um pouco, apesar de tantos insucessos. Agora, trabalho com prazer e me interesso mais pelas outras pessoas do que costumava fazer. E isso já é bastante. Saudades para todos. Da sempre sua estremecida.
CAPITULO XI Um Amigo Embora tão satisfeita na atmosfera social que a cercava e muito atarefada com o trabalho diário, que era o seu ganha pão e por isso mesmo tornava mais suave o esforço, Jo ainda achava tempo para os seus labores literários. O propósito que a animava era natural numa jovem pobre e ambiciosa, mas os meios que empregava para realizá-lo nem sempre eram os melhores. Viu que o dinheiro dava poder. Portanto, resolveu adquirir dinheiro e poder; não para servirem a ela só, mas para o bem daqueles a quem amava mais do que a si mesma. O sonho de encher a casa de conforto, dar a Beth tudo que quisesse, desde cerejas no verão até um órgão no seu quarto; ir ela própria ao estrangeiro e ter sempre mais do que precisasse, de modo a poder dedicar-se ao luxo da caridade, foi
durante anos o castelo mais acariciado pela fantasia de Jo. A experiência do conto premiado pareceu abrir um caminho que poderia levála depois de longa e penosa viagem, ao castelo encantado. Mas o desastre da novela lhe amorteceu a coragem por algum tempo, pois a opinião pública é um dragão que tem atemorizado mata-mouros muito mais audaciosos do que e,la. Gomo uma personagem de história de Trancoso, repousou, um pouco depois da primeira tentativa fracassada. Mas voltou logo o espirito aventureiro e encetou novamente a escalada. Deu para escrever novelas de sensação, pois, naqueles sombrios tempos, mesmo a irrepreensível América lia dessas coisas. Não disse nada a ninguém, mas fabricou às pressas uma história de arrepiar os cabelos e levou-a corajosamente ao sr. Dashwood, editor de "Vulcano Semanal". Ela nunca lera "Sartor Resartus", mas tinha o instinto feminino de que as roupas exercem sobre muita gente uma influência mais poderosa do que a firmeza de caráter ou o encanto das maneiras. Assim, pôs o melhor vestido e, procurando convencer-se de que não estava nem nervosa nem excitada, subiu desembaraçadamente dois lanços de escada sujos e escuros para ir dar numa sala em desordem, embaçaaa pela fumaça dos cigarros. Ali se encontrou na presença de três senhores, sentados de tal forma que os calcanhares estavam mais altos do que os chapéus, não se dando mesmo, os cavalheiros, ao incômodo de tirar da cabeça esses complementos da indumentária quando a moça apareceu. Um tanto assustada por essa recepção, Jo hesitou no limiar, murmurando toda embaraçada: — Desculpe-me, estou procurando a redação da "Vulcano Semanal". Desejo falar com o sr Dashwood. Baixando o mais elevado par de calcanhares, ergueu-se o cavalheiro mais fumacento. E acariciando cuidadosamente o charuto entre os dedos, avançou com um leve cumprimento de cabeça e uma expressão de quem estava tonto de sono. Achando que devia resolver o assunto de qualquer modo, Jo apresentou o seu manuscrito e, corando cada vez mais à proporção que soltava mais uma frase, mastigou alguns fragmentos da explicação cuidadosamente preparada para tal momento. — Uma amiga minha quis dedicar-me uma historieta apenas como presente, gostaria de ter a sua opinião e teria o maior prazer em escrever mais, se isso servir. Enquanto corava e balbuciava palavras, o sr. Dashwood tomara o manuscrito e ara a folhear as páginas com um par de dedos encardidos, lançando olhares críticos de alto a baixo. — Pelo que vejo, não é a primeira tentativa, disse ao observar que as páginas estavam numeradas e escritas de um lado só, sem a clássica fita para embrulhá-las sinal infalível de estreante. —Não, senhor. Ela tem alguma prática e ganhou um prêmio de conto do jornal "A Bandeira de Blarneystone". — Ah! Ganhou? e o sr. Dashwood lançou sobre Jo um olhar investigador, que parecia tomar nota de tudo, desde a fiía do chapéu até os botões das botinas. Está bem. Pode deixá-lo aqui se quiser. Não sabemos o que fazer de tanta colaboração dessa espécie que temos atualmente. Mas arei os olhos pelo seu escrito e lhe darei uma resposta na próxima semana.
Ora, não agradou a Jo deixar ali a sua produção, pois o sr. Dashwood não lhe deu boa impressão. Mas em tais circunstâncias, não encontrou outra coisa a fazer senão despedir-se e ir embora, tomando um ar excepcionalmente altivo e digno, como costumava fazer quando aborrecida ou decepcionada. Naquele momento estava decepcionada e aborrecida ao mesmo tempo, pois era bem evidente, pelos olhares significativos trocados entre os cavalheiros, que a sua pequena invenção de minha amiga era considerada uma boa pilhéria. E um risinho provocado por qualquer comentário do diretor, que ela não pôde ouvir, completou a sua confusão. Quase resolvida a nunca mais voltar, foi para casa e desabafou a sua irritação da melhor maneira que pôde. Dentro de uma hora ou duas ficou tão serena a ponto de rir do acontecido, ando a esperar com ansiedade a próxima semana. Quando voltou, o sr. Dashwood estava só, coisa que a alegrou. Não mostrava uma cara de tanto sono como da vez ada e isso era agradável. O sr. Dashwood não parecia mesmo tão profundamente absorvido no seu charuto a ponto de esquecer as boas maneiras. Assim, essa segunda entrevista foi muito mais confortável do que a primeira. — Nós publicaremos isso, os editores nunca dizem eu, se não se incomodar com pequenas alterações. Está muito comprido, mas cortando-se as agens que eu marquei terá o tamanho conveniente, disse ele, num tom de homem de negócios. Jo quase que não reconheceu o seu original, tão amarrotados e riscados estavam as páginas e os parágrafos. Mas, vendo-se ha situação de um pai carinhoso que é intimado a cortar as pernas do filhinho a fim de que ele possa caber dentro do berço, a moça olhou para as agens marcadas e ficou surpreendida ao ver que tinham sido cortadas todas as reflexões morais, tão cuidadosamente entremeadas na obra como um contrapeso para compensar o excesso de romantismo. — Mas, meu caro senhor, eu pensava que toda história devia ter qualquer espécie de moralidade e por isso tive o cuidado de fazer que alguns dos meus pecadores se arrependessem. A gravidade redatoriál do sr. Dashwood amenizou-se num sorriso, pois Jo tinha esquecido a sua amiga e falara como autora. — O público quer divertir-se e não quer sermões, como deve saber. Moralidades não se vendem hoje, dissera o sr.Dashwood, o que era uma verdade patente. — Acha então que a história serve com essas alterações ? — Sim. É um enredo original e muito bem trabalhado. O estilo é bom, foi a simpática resposta do sr. Dashwood. — E quanto é que o Sr. quero dizer, qual é a compensação? ─ começou Jo, não sabendo exatamente como se exprimir. — Oh, sim; naturalmente costumamos pagar de vinte e cinco a trinta dólares por coisas assim. O colaborador recebe depois do trabalho publicado, respondeu o sr. Dashwood, como se tivesse esquecido de tocar naquele ponto. Tais bagatelas costumam escapar ao espírito dds editores, como se sabe. — Muito bem. Pode ficar com ele, disse Jo, entregando o manuscrito com ar satisfeito. Depois de escrever-se a um dólar por coluna, vinte e cinco parecem uma boa paga. Posso dizer à minha amiga que o sr. aceitará outro trabalho, se ela tiver
qualquer coisa melhorzinha? perguntou Jo, estimulada pela sua vitória e inconsciente da pequena distração que cometera pouco antes. — Bem, só vendo. Não podemos prometer desde já. Diga-lhe para fazer coisas mais curtas e atraentes e não se importe nunca com a moral. Que pseudônimo a sua amiga quer usar? — Nenhum absolutamente, por favor. Ela não quer que o seu nome apareça e não tem pseudônimo, disse Jo, corando a contragosto. — Pois será como quiser. O conto sairá na próxima semana. Virá buscar o dinheiro ou quer que eu o envie? ─ Perguntou o sr. Dashwood, que sentia o natural desejo de saber quem era a nova colaboradora. — Eu virei buscar. Até a próxima semana. — Quando ela partiu, o sr. Dashwood rodou sobre os calcanhares, com esta graciosa observação: ─ Pobre e orgulhosa, como é de praxe, mas irá para diante. Seguindo as indicações do sr. Dashwood e tomando a sra. Nothbury por modelo, Jo mergulhou num mar tempestuoso de literatura sensacionalista; mas, graças ao salva-vidas que lhe atirou um amigo, voltou à tona outra vez. Como muitos jovens plumitivos, foi buscar no estrangeiro personagens e paisagens. E bandoleiros, condes, ciganas, freiras e duquesas entraram em cena e representaram os seus papéis com tanto espírito e esmero como seria de esperar. Os seus leitores não eram muito exigentes a respeito de tais insignificâncias como gramática, pontuação e verossimilhança, e o sr. Dashwood lhe permitia graciosamente encher as suas colunas pelo mais baixo preço, não julgando necessário explicar-lhe que o motivo verdadeiro da aceitação dos seus trabalhos era o fato de que um dos colaboradores da revista deixara de escrever para lá, por ter encontrado outra que lhe pagava mais. Ela não tardou a se interessar muito pelo seu trabalho, pois estava engordando a sua magra bolsa. E a pequena quantia que estava juntando para levar Beth para as montanhas, no próximo verão, crescia devagar mas con-tinuadamente à proporção que avam as semanas. Só uma nuvem toldava a sua satisfação: era não poder contar à família o que estava escrevendo. Tinha a impressão de que o pai e a mãe não aprovariam e preferia por isso abrir primeiro o caminho e pedir perdão depois. Era fácil guardar segredo, pois, nenhum nome aparecia assinando as histórias. É claro que o sr. Dashwood não tardou a identificar a colaboradora, mas prometeu ser discreto e, coisa assombrosa, manteve a palavra. Jo achava que não havia o menor mal no que estava fazendo, pois sinceramente pretendia não escrever nada de que se pudesse envergonhar e acalmava todos os escrúpulos de consciência pensando no feliz minuto em que mostraria os seus lucros e revelaria sorrindo o seu segredo. Entretanto, o sr. Dashwood rejeitava toda e qualquer história que nâo fosse bem arrepiante e, como tais arrepios só podiam ser produzidos abalando os nervos dos leitores, a História e a fantasia, a terra e o mar, a ciência e a arte, os arquivos de polícia e asilos de loucos, tinham de ser saqueados para esse fim. Jo bem depressa compreendeu que sua inocente experiência quase nada lhe dizia do mundo trágico que forma as camadas mais baixas da sociedade. Mas, considerando o assunto sob o ponto de vista prático, resolveu suprir as suas deficiências com energia e estilo.
Na ânsia de encontrar material para suas histórias e de arranjar enredos originais, embora executados sem mestria, pesquisava nos jornais desastres, incidentes e crimes; despertava suspeitas dos funcionários das bibliotecas públicas pedindo livros sobre venenos; estudava fisionomias nas ruas e observava os caracteres bons ou maus das pessoas que a cercavam; escavava na poeira dos tempos antigos fatos ou lendas tão esquecidas na sua velhice que até pareciam novas, e entrava no terreno da loucura, do pecado e da miséria, até onde lhe permitiam as suas limitadas oportunidades. Pensava • que ia prosperando lindamente; mas, sem dar por isso, estava começando a profanar alguns dos atributos mais femininos do caráter de uma mulher. Vivia numa sociedade má; e, embora fosse ela apenas imaginária, a sua influência era prejudicial, pois estava susten-tando o coração e a fantasia com um alimento perigoso e sem substância e corria o risco de fazer murchar depressa a inocente floração da sua jovem natureza com o. prematuro contato com o lado mais escuro da vida. Ela sentia mais isso do que propriamente compreendia, pois de tanto descrever as paixões e as dores das outras pessoas acabou por estudar e analisar as suas próprias, divertimento doentio, para o qual não se inclinam com prazer os espíritos moços e sadios. Coisas mal feitas sempre tem o seu castigo. E Jo recebeu o seu, quando mais precisava dele. Seja porque o estudo de Shakespeare a ajudou a ler o caráter real ou seja pelo seu natural instinto de mulher para q que é honesto, digno e forte, o certo é que, enquanto dotasse seus imaginários heróis de todas as perfeições, Jo ia descobrindo na vida um herói que a interessava apesar de muitas imperfeições humanas. Numa das suas palestras, o sr. Bhaer a aconselhara a estudar caracteres simples, verdadeiros e atraentes, onde quer que os encontrasse, como um bom exercício para uma escritora. Jo tomou o conselho ao pé da letra, pois ou logo a estudá-lo coisa que o teria surpreendido muito, se soubesse disso, porque o digno professor era muito humilde no juízo sobre si mesmo. O que primeiro feriu a atenção de Jo foi o fato de todos gostarem dele. Não era rico nem influente, nem moço nem bonito. De modo algum poderia ser chamado de fascina-dor, envolvente ou brilhante. Contudo, era tão atraente como uma uma boa lareira numa noite fria e as pessoas iam para junto dele tão naturalmente como para receber o calor de um coração. Era pobre, mas estava sempre dando qualquer coisa; sendo um estrangeiro, era um amigo de todos; longe de juventude, era de natureza tão alegre como um menino; simples e esquisitão, contudo, o seu aspecto parecia belo a muita gente e as suas extravagâncias eram facilmente perdoadas. Jo muitas vezes o observou, tentando descobrir-lhe o encanto e, afinal, decidiu que o milagre era criado pela benevolência. Se tinha qualquer tristeza, guardava-a consigo mesmo e só mostrava aos outros o ânimo contente. Havia rugas na sua fronte, mas o tempo parecia tê-lo tratado com gentileza, lembrando-se de quanto era bom para os outros. As curvas simpáticas em torno da boca eram os vestígios de muitas palavras amistqsas e muitos risos satisfeitos. Seus olhos nunca mostravam uma expressão fria ou dura e a sua mão tão grande tinha um modo de apertar tão forte e tão caloroso que era mais expressivo do que as palavra. As próprias roupas pareciam partilhar da natureza hospitaleira do homem que
as vestia. Davam a impressão de que estavam à vontade e gostavam de lhe dar conforto. O colete folgado sugeria o grande coração que pulsava dentro do peito. O paletó austero tinha um ar social e os bolsos largos provavam simplesmente que mãos de crianças muitas vezes entravam nelas vazias e saíam cheias. As próprias botinas eram benevolentes e os colarinhos não tão duros e apertados como os dos outros. — É isso mesmo! ─ disse Jo intimamente, quando descobriu afinal que a verdadeira boa-vontade para com toda gente aformoseia e dignifica até mesmo um maciço professor alemão, que come apressadamente, remenda as próprias metas fe carrega o peso do nome de Bhaer. Jo dava muito valor à bondade, mas também possuia um! muito feminino respeito pela inteligência e uma pequena descoberta que fez sobre o professor contribuiu para que o irasse ainda mais. Ele nunca falava de si mesmo e ninguém mesmo sabia que na cidade do seu nascimento tinha sido um homem muito acatado e querido pelo saber e pela integridade. Isso só veio a ser conhecido quando um seu compatriota foi visitá-lo e, em conversa com a srta. Norton, divulgou a grata notícia. Foi por intermédio dela que Jo soube do fato e ainda mais o apreciou, porque o sr. Bhaer nada lhe dissera a esse respeito. Sentia-se orgulhosa por saber que ele era um lente respeitado em Berlim, embora fosse na América apenas um pobre professor de idiomas. A sua vida modesta e de penoso trabalho revestia-se de beleza pela nota romântica que tal descoberta lhe dava. Outra qualidade, ainda melhor do que a da inteligência, foi revelada a Jo de uma forma muito inesperada. A srta. Norton tinha Jivre ingresso numa sociedade literária, na qual Jo não tinha outra oportunidade de entrar a não ser por seu intermédio. A solitária criatura interessava-se pela mocinha ambiciosa e bondosamente conferia muitos favores dessa natureza tanto a Jo como ao professor. Certa noite, ela os levou a um banquete, em honra de várias celebridades. Jo foi preparada para reverenciar e adorar aqueles que já tinha idolatrado desde muito tempo, no seu entusiasmo juvenil. Mas, nessa noite, a sua veneração diante do gênio sofreu um rude abalo e muito lhe custou recuperar a calma após a descoberta de que tão grandes personagens eram, afinal de contas, homens e mulheres como toda gente. Imaginem a sua decepção quando, ao dirigir um furtivo olhar de tímida iração para o poeta cujos versos sugeriam um ser etéreo alimentado de espírito, luz e orvalho, viu o seu ídolo devorando a sopa com um ardor que comprometia a sua compostura intelectual. Desviando a vista desse ídolo decaído, fez outras descobertas que rapidamente destruíram as suas ilusões românticas. O grande novelista oscilava entre duas garrafas de vinho com a regularidade de um pêndulo. O famoso filósofo flertava abertamente com uma das Madame Staêls da época. E esta lançava olhares fulminantes para outra Obri-na, que a satirizava amavelmente, depois de contrariar a sua manobra de absorver o profundo pensador, o qual se encharcava de chá e parecia dormir, pois a loquacidade da mulherzinha não lhe dava ensejo para dizer qualquer coisa. Esquecendo os fósseis e os períodos glacias, as celebridades científicas proseavam sobre arte, enquanto investiam contra as ostras e os gelados com extraordinária energia. O jovem musicista, que estava encantando a cidade como um segundo Orfeu, falava sobre cavalos e o
representante da nobreza britânica ali presente demonstrou ser o homem mais vulgar da festa. Antes que a reunião estivesse terminada, Jo sentiu-se tão completamente desiludida que foi sentar-se num canto, para serenar as idéias. O sr. Bhaer não tardou a se aproximar, parecendo um tanto fora do seu elemento. Nesse instante, vários filósofos, cada qual mais cheio de empáfia, apareceram na saleta, sustentando aí um animado torneio intelectual. A conversação estava muito acima da compreensão de Jo, porém a apreciou, embora Kant e Hegels fossem divindades desconhecidas e Subjetivismo e Objetividade termos ininteligíveis. A única certeza que emergiu da sua consciência interior foi uma dorzinha de cabeça provocada pela discussão. Gradualmente ia adquirindo a impressão de que o mundo inteiro estava sendo quebrado em pedacinhos e reorganizado de novo, de acordo com os oradores e sempre sob princípios muito melhores do que os antigos. Via que a religião não valia nada em tais raciocínios e que o intelecto estava para ser proclamado como o único Deus. Jo não sabia coisa alguma sobre filosofia e metafísica, mas veio ao seu espírito uma curiosa oscilação enquanto escutava, com a sensação de que estava flutuando no tempo e no espaço, como um balãozinho de São João. Olhou ao redor para ver se o professor gostava daquilo e notou que ele a fitava com a expressão mais sombria que já aparecera em seu rosto. Balançou a cabeça e lhe fez sinal para saírem. Mas, justamente nessa ocasião, ela estava fascinada pela liberdade da Filosofia Especulativa e ficou no seu lugar, tentando descobrir o que os sábios pretendiam tomar como ponto de apoio, depois que aniquilassem todas as velhas crenças. Ora, o sr. Bhaer era um homem desconfiado e pouco amigo de expressar as suas opiniões, não porque fossem confusas, mas por serem demasiado sérias e sinceras para que falasse delas levianamente. Quando o seu olhar ou de Jo a várias outras criaturas moças, atraídas também pelo brilhantismo da pirotécnica filosófica, franziu as sobrancelhas e quis falar também, pois temia que uma jovem alma inflamável fosse atirada contra os rochedos, para ver depois, quando asse o encantamento, que só havia ali ardidez e desconforto. ou aquilo enquanto pôde. Mas, quando foi convidado a dar a sua opinião, vibrou de honesta revolta e defendeu a religião com a eloqüência da verdade, uma eloqüência que deu sonoridade ao seu inglês mal pronunciado e emprestou uma certa beleza à sua fisionomia tão simples. A luta era dura, pois os sábios argumentavam bem. Mas não se considerou derrotado e manteve varonilmente a sua posição. De qualquer modo, o certo é que, enquanto ele falava, o mundo entrava nos eixos para o espírito de Jo e as velhas crenças, que tinham durado tanto tempo, pareciam melhores do que as novas. Deus não era uma força cega e a imortalidade não era uma bonita fábula, porém um fato abençoado. Tinha ela a impressão de que pisava novamente num terreno firme e, quando o sr. Bhaer parou, sem ter o que responder, mas de forma alguma convencido, Jo sentiu desejo de lhe apertar a mão e agradecer. Não fez nem uma nem outra coisa, mas gravou essa cena na memória e dedicou ao professor o mais fervoroso respeito, pois sabia que só saíra da sua modéstia para falar ali porque a sua consciência não lhe permitiu o silêncio. Ela
começou a ver que o caráter é um dom ainda mais apreciável do que dinheiro, posição, inteligência ou beleza. E sentia também que, se a grandeza é o que o sábio definiu como, verdade, respeito e boa vontade, então o seu amigo Friedrich Bhaer era não só bom, como grande. Essa convicção aumentava dia a dia. Tinha em muito apreço a sua estima, cobiçava o seu respeito e queria ser digna da sua amizade. E justamente quando esse desejo era mais sincero, Jo esteve quase a ponto de perder tudo isso. O caso nasceu de um simples chapéu de papelão. Certa noite, o professor veio tomar a lição de Jo com um boné de brinquedo que Tina tinha posto na sua cabeça e que ele se esqueceu de tirar. — Ele evidente que ele não se mira no espelho antes de sair do quarto, pensou Jo, com um sorriso, quando ele deu a boa noite e se sentou calmamente, na completa ignorância do pitoresco contraste entre o assunto da lição e o gorro de papel, pois se preparava para ler à alma a "Morte de Wallenstein". Ela não disse nada no começo, pois gostava de ouvir a sua larga e sonora gargalhada, quando aparecia um motivo de hilaridade e por isso deixou que ele descobrisse por si mesmo o singular ornamento da sua cabeça. Depois, esqueceu-se do chapévi, pois ouvir um alemão ler Sehiller é unia ocupação absorvente. Após a leitura, seguiu-se a lição, que foi muito agradável, porque Jo estava alegre nessa noite e os seus olhos dançavam de brejeirice ante o espetáculo do gorro de papel. O professor não sabia como lhe chamar a atenção e ou afinal para perguntar, com um ar de suave surpresa que era irresistível: — Srta. Marcli, por que ri assim diante do seu mestre? Não me tem respeito para proceder assim? — Como poderei ser respeitosa, quando o senhor se esquece de tirar o chapéu? ando a mão pela cabeça, o distraído professor descobriu e retirou gravemente o chapéu de papelão, contemplou-o por um minuto e então abaixou a cabeça e abriu numa gostosa risada. — Ah! Agora me lembro! Foi a diabinha da Tina que me fez ar por maluco com esse gorro. Bem, não é nada. Mas, veja lá: se não der a lição direito, a senho-rita é quem há de usá-lo na cabeça. Mas a lição parou por alguns minutos, porque os olhos do professor caíram sobre a ilustração do papel do gorro e, amassando-o disse com um modo muito aborrecido: — Não quero que tais papéis entrem aqui. Não devem ser vistos pelas crianças nem lidos pelos moços. Não são convenientes e não sou tolerante para os que fazem coisa tão má. Jo olhou para a folha e viu uma vistosa ilustração com um lunático, um cadáver, um bandido e uma víbora. Não gostou daquilo. Mas o impulso que lhe fez desviar a vista imediatamente não foi de desagrado, mas de medo, porquê imaginou logo que o papel era do "Vulcano". Em verdade não era e o medo desapareceu quando se lembrou de que, mesmo se tivesse sido até um dos seus próprios contos, o seu nome não saía publicado para denunciá-la. Entretanto, ela mesma se denunciou pelo ru-bor e pela
atrapalhação, pois, embora fosse um homem distraído, o professor via muito mais do que os outros imaginavam. Soube que Jo escrevia e mais de uma vez a encontrou saindo das redações dos jornais. Mas, como ela nunca lhe falou sobre isso, nada perguntou, apesar do ardente desejo de ver as suas produções. Naquele momento, ocorreu-lhe a suspeita de que ela estava escrevendo coisas de que se envergonhava e isso o perturbou. Não disse para si mesmo: Nada tenho a ver com isso. Não me cabe dizer qualquer coisa, como muita gente teria feito. Só se lembrou de que ela era jovem e pobre, uma moça que vivia longe do carinho e do cuidado dos pais. E correu para ajudá-la com um impulso tão vivo e tão natural como se fosse estender a mão para arrancar do pântano uma criança. Tudo isto repontou no seu espírito imediatamente, sem nada transparecer na sua fisionomia. E quando Jo atirou para um lado o jornal e pegou na agulha para costurar, ele se preparou para dizer com perfeita naturalidade, mas em tom sério: — Você tem razão em afastar os olhos disso aí. Não me agrada pensar que moças distintas possam ver tais coisas. Há pessoas que gostam disso, mas eu antes preferiria entregar pólvora aos meus pequenos do que essa má literatura. — Nem tudo pode ser mau, porém somente sem valor. E se há um público para isso, não vejo mal algum em fornecer-se o que ele quer. Muitas pessoas respeitáveis ganham a vida honestamente com as chamadas histórias de sensação, disse Jo, enfiando a agulha nervosamente. — Há também um público que gosta de whisky, porém penso que nem eu nem você devemos tratar de vender a bebida. Se tais pessoas respeitáveis soubessem o mal que fazem, não julgariam honesto esse meio de vida. Não têm o direito de pôr veneno no açúcar e deixar que os pequenos o comam. Não! Deviam pensar um pouco, preferindo varrer as ruas a escrever essas coisas. O sr. Bhaer falou com calor e marchou para o fogão, amassando o jornal nas mãos. Jo continuou sentada, mas parecia estar mais próxima ao fogo, pois as suas faces fi; caram ardendo mesmo depois que o chapéu de brinquedo se tinha transformado em fumaça e fugido inofensivamente pela chaminé. — Gostaria de fazer a mesma coisa com todas as publicações desse gênero, resmungou o professor, voltando com um ar aliviado. Jo pensou na fogueira que poderia ser feita com a papelada que tinha lá em cima e naquele momento o seu dinheirinhc- ganho com tanto esforço pesou bastante na sua consciência. Então procurou consolo nesta idéia: Os meus não são assim. São apenas pueris, mas não fazem mal. Por isso, não devo ficar aborrecida. E tomando o seu livro, disse com uma expressão de estudiosa: — Vamos continuar? Prometo prestar agora toda atenção. — Assim espero, foi toda a sua resposta, porém quis dizer com isso mais do que ela imaginava e o grave e afetuoso olhar que lhe dirigiu deu a Jo a impressão de que as palavras "Vulcano Semanal" estavam impressas em letras grandes na sua testa. Tão depressa voltou ao quarto, ela apanhou a sua papelada e releu cuidadosamente tudo o que havia escrito. Tendo a vista um tanto cansada, o sr. Bhaer usava óculos de vez em quando e certa vez Jo os experimentou, sorrindo ao ver como eles aumentavam as letrinhas miúdas do livro. Agora, parecia também que
ela estava usando as lunetas morais e mentais do professor, pois os defeitos dos seus contos sobressaíam terrivelmente e lhe inspiravam o mais profundo desalento. — São bagaceiras e em breve serão coisa ainda pior do que isso, se eu continuar, pois cada história é mais sensacional do que a outra. Fui indo às cegas, fazendo mal a mim mesmo e aos outros, só para ganhar dinheiro. Compreendo isso agora, pois não posso ler essa bobagem seriamente sem me sentir muito envergonhada. E que seria se essas histórias aparecessem lá em casa ou caíssem nas mãos do sr. Bhaer? Jo corou só em pensar em tal coisa e atirou toda a papelada na estufa, onde ardeu em poucos instantes. — Sim, é o lugar que convém para essas maluquices inflamáveis. Prefiro queimar a casa toda a deixar que outras pessoas apanhem a minha pólvora, pensou ela, quando viu "O Demônio do Jura" pegando fogo. Mas quando não restava mais nada de todo esse trabalho de três meses, exceto um montão de cinzas e o dinheiro na sua bolsa, Jo pareceu mais calma e sentou-se no soalho, dando tratos à bola para descobrir o que devia fazer com os seus lucros. — Penso que não cheguei ainda a fazer muito mal e posso guardar o dinheiro para compensar o que perdi. ─ Disse, depois de longa meditação, acrescentando logo com impaciência: ─ Talvez fosse melhor não ter consciência, pois é tão inconveniente! Se eu não me importasse de proceder direito e não me sentisse constrangida quando ajo mal, ficaria com o meu capitalzinho. Não posso evitar algumas vezes o desejo de que papai e mamãe não fossem tão exigentes sobre essas coisas. Ah! em vez de desejar isso, Jo dava graças a Deus por ter um pai e uma mãe tão exigentes, e sinceramente se compadecia das que não têm tais guardas para levantar em torno deles uma muralha de bons princípios que podem parecer muros de prisão à juventude impaciente, mas que são seguros alicerces para se construir o caráter de uma mulher. Jo não escreveu mais histórias sensacionais, entendendo que o dinheiro não era recompensa bastante para tal ocupação. Mas, indo de um extremo a outro, como fazem geralmente as pessoas do seu temperamento, tomou um curso de aperfeiçoamento evangélico na literatura água-de-flor da sra.Sherwood, srta. Bdgeworth e Harniah Mora. Produziu então um conto que poderia ser mais apropriadamente classificado de ensaio ou de sermão, de tão intensamente moral que era. Teve suas dúvidas a esse respeito, desde o começo, pois a sua ardente fantasia e o seu romantismo de mocinha se sentiam tão contravontade no novo estilo como se estivesse usando num baile de máscaras ás roupas pesadas e incômodas do século ado. Ela enviou a sua jóia didática a vários mercados literários, mas não achou comprador e esteve inclinada a concordar com o sr. Dashwood que moralidades não se vendem. Então fez a experiência de uma história para crianças, de que teria facilmente disposto, se se contentasse com um lucro insignificante. A única pessoa que lhe ofereceu o suficiente para animá-la na tentativa da literatura infantil foi um digno cavalheiro que considerava seu dever converter todo o mundo à sua , crença particular. Mas embora gostasse muito de escrever para crianças, Jo não poderia
consentir em deixar que todos os seus travessos personagens fossem devorados por ursos ou perseguidos por touros bravios, só porque não freqüentavam uma determinada escola dominical, nem poderia itir que só os bons meninos que a freqüentassem, tivessem toda espécie de bênção e felicidades, desde gulodices terrenas até escoltas de anjos, quando partissem desta vida murmurando salmos ou sermões. Desse modo, tais experiências não foram adiante. Jo deixou de lado o tinteiro e disse num o de perfeita humildade: — Não sei coisa alguma. Só devo tentar de novo quando souber o que devo fazer e, por enquanto, varrerei as ruas se não achar coisa melhor. Pelo menos, é honesto. Isso veio provar que o seu segundo insucesso lhe fora proveitoso. Enquanto se operavam essas revoluções internas, a sua vida exterior tinha sido tão serena e tão sem acontecimento como de costume. E se algumas vezes parecia séria ou mesmo um pouco melancólica, ninguém dava por isso, exceto o professor Bhaer. Ele a examinava tão discretamente que Jo nunca percebeu estar sendo observada, para ver se tinha aceitado e aproveitado a lição. Mas, ou o exame e ele ficou satisfeito. Embora não tivessem dito nada um ao outro, o professor percebeu que Jo deixara de escrever. Ele descobriu isso não só porque o segundo dedo da mão direita da moça não estava mais manchado de tinta, como também porque ela não era mais encontrada à porta das redações de jornal e estudava com rara paciência, mostrando assim que o seu espírito se ocupava com alguma coisa útil, se não agradável. Ele a auxiliou de muitas maneiras, demonstrando ser um verdadeiro amigo, e Jo sentia-se feliz. Com efeito, enquanto a sua pena estava parada, a moça ia tomando outras lições, além de alemão, e lançando os alicerces da história sensacional de sua própria vida. Foi um inverno muito agradável e muito comprido, pois só em junho deixou ela a casa da sra. Kirke. Todos se mostraram tristes quando chegou a hora da partida de Jo, as crianças ficaram inconsoláveis e o sr. Bhaer eriçou a cabeleira, pois sempre costumava arrepiá-la quando tinha qualquer preocupação. — Então, vai para casa? Ah! você é feliz porque tem uma lar para onde ir, disse ele, quando Jo lhe falou a respeito, e sentou-se silenciosamente alisando a barba, isolado num canto, enquanto ela entretinha uma pequena roda na sua derradeira noite. Devia partir de manhã bem cedo e por isso fazia de véspera todas as despedidas. Quando chegou a vez do professor, disse calorosamente: — Agora, não se esqueça de ir visitar-me, se fizer mesmo uma viagem lá para o nosso lado. Promete isso? Nunca hei de perdoá-lo se faltar à promessa, pois desejo que todos lá de casa conheçam o meu amigo. — E assim mesmo? Acha que eu devo ir? perguntou ele, fitando-a com uma expressão alvoroçada que ela não notou. — Sim, venha no próximo rnês. Laurie diploma-se nessa época e você há de apreciar a cerimônia de formatura como uma novidade. — Ele é o seu melhor amigo, de quem já me falou, não é? perguntou o professor Bhaer, com voz alterada. — Sim, é o meu pequeno Teddy. Estou muito orgulhosa dele e gostaria que você o conhecesse.
Jo levantou a vista então, inconsciente de qualquer outra coisa exceto o prazer que encontrava na idéia de apresentar um ao outro. Qualquer coisa na fisionomia do sr. Bhaer subitamente lhe lembrou o fato de que ela poderia encontrar em Laurie mais de que o melhor amigo, e, simplesmente porque não desejava deixar transparecer que havia qualquer coisa mais, começou involuntariamente a corar. E quanto mais tentava evitar isso, mais vermelha se tornava. Se Tina não estivesse sentada no seu colo, não saberia o que havia de ser. Felizmente, a criança estava ali, abraçando-a carinhosamente. Assim, Jo conseguiu ocultar a face por um instante, na esperança de que o professor não visse o seu embaraço. Mas ele viu e a sua própria fisionomia mudou de novo, daquela momentânea ansiedade para a sua expressão habitual quando disse cordialmente: — Receio não encontrar tempo para isso, mas desejo ao seu amigo o maior sucesso e faço votos pela felicidade de vocês todos. Deus a abençoe! E com isso ele lhe apertou a mão calorosamente, pôs Tina sobre o ombro e foi embora. Todavia, depois que os meninos se deitaram, ele ficou sentado durante muito tempo diante do fogão, com um ár cansado na fisionomia e cheio de saudades, sentindo o coração pesado dentro do peito. Mais de uma vez, quando lembrava Jo, vendo-a sentada com a criancinha ao colo e uma nova suavidade na fisionomia, afundava a cabeça nas mãos por um momento e depois rodava pelo quarto como em busca de qualquer coisa que não pudesse encontrar. — Não é para mim. Não devo esperar por isso agora, disse para si mesmo com um suspiro que foi quase um gemido. Então, como se reprovasse esse anseio de coração que não podia dominar, correu e beijou as duas cabecinhas cacheadas que repousavam sobre o travesseiro, apanhou o seu velho cachimbo e abriu o sábio Platão. Fez o que pôde, com a coragem de um homem. Mas não creio que tenha achado num par de garotinhos, num cachimbo ou mesmo no divino Platão, substitutos satisfatórios para mulher, filho e lar. Na manhã seguinte, bem cedinho, lá estava na estação para ver Jo seguir. Graças a ele, a moça começou a sua viagem solitária com a lembrança agradável de uma fisionomia amiga sorrindo no seu botafora, um ramo de violeta para lhe fazer companhia e, melhor do que tudo isso, o feliz pensamento de que: — Bem, o inverno se foi e eu não escrevi livros nem ganhei fortuna. Mas fiz um amigo digno desse nome e tentarei guardá-lo para toda a vida.
CAPITULO XII Dor de Coração Fosse lá qual fosse, o certo é que algum motivo especial levou Laurie a estudar seriamente naquele ano, pois terminou o curso com distinção e recitou o juramento de formatura em latim com a graça de um Filipe e a eloqüência de um Demóstenes, como disseram os amigos. Compareceram todos à cerimônia o avô
(Oh, tão orgulhoso), o sr. e sra. March, John e Meg, Jo e Beth. E todos lhe mani festaram a sincera iração que os jovens despertam por um certo tempo, embora nem sempre consigam guardá-la depois na vida prática, por outros triunfos. — Tenho de ficar por causa desta maldita ceia, mas irei para casa amanhã bem cedinho. Vocês virão esperar-me como de costume, não é, meninas? disse Laurie quando se despedia das moças, depois da festa. Disse meninas, mas queria dizer Jo, pois era a única que conservava o antigo costume. E ela não teve coragem para recusar qualquer coisa ao companheiro esplêndido e vitorioso. Assim, respondeu calorosamente: — Eu irei, Teddy, chova ou faça sol, e marcharei diante de você tocando "bem-vindo seja o herói conquistador" numa harpa de judeus. Laurie agradeceu-lhe com um olhar que fez a moça pensar, subitamente assustada: — Oh, meu Deus! Eu sei que ele dirá qualquer coisa e então que hei de fazer. A meditação da noite e o trabalho da manhã amenizaram os seus receios e, tendo assentado que não devia ser vaidosa a ponto de imaginar que alguém estava para lhe fazer declarações quando ele já tinha dado a entender qual seria a sua resposta, saiu ao encontro de Teddy na hora marcada, levando a esperança de que ele não iria fazer nada que lhe desse motivo a magoar os seus pobres sentimentos. Uma visita à casa de Meg e uma refrigerante brincadeira com os dois bebês da irmã ainda mais a fortaleceram para essa entrevista. Contudo, quando viu a figura máscula do rapaz surgir a distância, sentiu uma vontade forte de voltar-se e abrir na carreira. — Onde está a harpa do judeu, Jo? gritou Laurie, assim que se encontrou num ponto em que ela pudesse ouvir sua voz. — Eu me esqueci dela, e Jo criou alma nova, pois essa saudação não parecia amorosa. Costumava dar-lhe o braço nessas ocasiões. Mas desta vez, não agiu assim, e ele não se queixou, o que era um mau sinal. Falaram rapidamente sobre uma porção de assuntos gerais, até que deixaram a estrada para seguirem a pequena trilha que dava para a casa através da alameda. Aí, foram andando mais devagar. Perderam logo a animação da conversa, e, de vez em quando, surgia um silêncio terrível. Para evitar que a conversação parasse mais uma vez, Jo disse apressadamente: — Agora, você deve dar um longo eio. — É que eu pretendo fazer. Qualquer coisa no seu tom resoluto fez Jo levantar a vista vivamente para encontrá-lo olhando para ela com uma expressão que anunciava ter chegado o momento temível. Ela pôs a mão no ombro do rapaz, implorando: — Não, Teddy. Não, por favor! — Quero falar e você deve me ouvir. É inútil, Jo. Devemos esclarecer isso de uma vez e quanto mais cedo tanto melhor para nós, respondeu ele, vermelho e atrapalhado. — Diga então o que quiser; eu escutarei, murmurou Jo, numa espécie de paciência desesperada. Laurie era um principiante no amor, mas o levava a sério e queria decidir o
seu caso sentimental, mesmo se viesse a sofrer mortalmente com isso. Assim, entrou no assunto com a sua característica impetuosidade, dizendo numa voz sufocada de vez em quando, apesar de todos os seus esforços para manter a naturalidade: — Gosto de você desde que a conheci, Jo. Não pude evitar isso, você tem sido tão boa para mim! Tentei mostrar-lhe o que sentia, mas você não me deixou. Agora terá de me ouvir e dar uma resposta, porque não posso continuar assim por mais tempo. — Eu quis poupá-lo desse desgosto. Pensei que você já tinha compreendido. ─ Começou Jo, achando que falar naquela ocasião era muito mais difícil do que imaginara. — Eu sei disso. Mas as moças são tão incompreensíveis que nunca se sabe o que querem dizer. Dizem não quando significam sim e parecem divertir-se à custa da incerteza de um homem, respondeu Laurie, procurando iludir-se diante de um fato incontestável. — Não sei. Nunca desejei que se interessasse por mim dessa maneira e saí daqui para evitar isso, se ainda fosse possível. — Foi o quê imaginei. Um gesto bem seu, mas não adiantou nada. Apenas, amei-a ainda mais e procurei agradecer-lhe no que pude. Abandonei bilhares e outras coisas de que você não gosta, fiquei esperando sem nunca, me queixar, porque tinha sempre a idéia que você havia de gostar de mim, embora eu não mereça isso. Aí, a sua voz teve um engasgo que não pôde evitar. — Sim, você merece. Tem sido bom até demais para mim e lhe sou muito grata. Quero-lhe muito bem e tenho orgulho de você. Mas não sei por que não posso sentir o amor que você quer. Já tentei, mas não consigo mudar o meu sentimento e, se lhe dissesse o contrário, estaria mentindo. — Realmente, verdadeiramente, Jo? Ele parou de repente e segurou as mãos da moça, quando fez esta pergunta com um olhar que ela tão cedo não poderia esquecer. — Realmente, verdadeiramente querido. Estavam agora na alameda. E quando as últimas palavras de Jo caíram com dificuldade dos seus lábios, Laurie largou as mãos dela e voltou-se, como se quisesse ir embora, Mas, pela primeira vez em sua vida, aquele duelo era forte demais para ele. Assim, encostou a cabeça num tronco musgoso e ficou ali tão calado que Jo teve medo. — Oh! Teddy, sinto muito, sinto desesperadamente. Preferia morrer, se isso lhe fizesse bem. Não quero que leve isso tão a sério. Não tenho culpa. Você sabe que é impossível criar um amor por outra pessoa, se ele não nasce espontaneamente, exclamou Jo sem elegância de palavras, mas cheia de remorso, quando batia carinhosamente no ombro do rapaz, relembrando o tempo em que ele costumava consolá-la daquela maneira. — Isso é possível algumas vezes, disse numa voz estrangulada. — Não creio que esta seja a maneira acertada de amar e não a experimentarei, foi a resoluta resposta. Houve uma longa pausa, enquanto um arinho cantava alegremente e os ramos das árvores rumorejavam ao vento. Depois, Jo disse sobriamente, quando se
sentaram um pouco adiante: ─ Laurie, eu quero dizer-lhe uma coisa. Ele estremeceu, como se tivesse recebido um tiro, ergueu a cabeça e gritou num tom altivo: — Não me diga isso, Jo. Não posso agüentá-lo agora! — Dizer o quê? perguntou ela, surpresa com a violência do rapaz. — Que você ama aquele velho. — Que velho? inquiriu Jo, pensando que ele se referia ao avô. — Aquele diabo de professor sobre o qual costumava dizer tantas coisas nas cartas. Se você disser que gosta dele, eu sei que hei de fazer um ato de desespero. Parecia disposto a sustentar, a palavra, pois apertava as mãos, com um brilho de cólera no olhar. Jo queria rir, mas se conteve, e disse calorosamente, pois também estava ficando exaltada com tudo aquilo: — Não diga tolices, Teddy! Não é um homem velho nem mau, porém bom e generoso. E o melhor amigo que já arranjei depois de você. Por favor, não se deixe arrastar pela paixão. Quero ser boa, mas sei que ficarei indignada, se falar mal do meu professor. Não tenho a menor idéia de amá-lo ou a qualquer outro homem. — Mas o amor virá depois de algum tempo e, então, que será de mim? — Você amará também outra, como um rapaz de coração, e esquecerá todo esse aborrecimento de agora. — Não poderei amar ninguém mais. Nunca hei de esquecê-la, Jo. Nunca! nunca! disse Laurie, batendo com o pé no chão para dar mais força às suas palavras apaixonadas. — Que hei de fazer com ele ? suspirou Jo achando que emoções eram mais difíceis de manejar do que pensava. Você ainda não ouviu o que eu queria dizer-lhe. Sente-se e escute, pois quero proceder direito e fazê-lo feliz, disse ela, esperando abrandá-lo com um pequenino argumento, o que provava que ela não sabia nada a respeito do amor. Vendo um raio de esperança nessas últimas palavras, Laurie estirou-se sobre o gramado, aos pês dela, fitando-a com uma fisionomia ansiosa. Ora, essa atitude não era apropriada pára uma conversa calma ou pensamento claro da parte de Jo. Pois, como poderia dizer coisas duras ao seu camaradinha, quando ele a mirava com os olhos cheios de amor e de esperança que a rudeza do coração dela já tinha provocado? Ela voltou delicadamente a cabeça para o outro lado, dizendo enquanto alisava o cabelo ondulado que Laurie deixava crescer por causa dela. — Concordo com mamãe que eu e você não combinamos bem, pois os nossos temperamentos impulsivos e as nossas vontades teimosas provavelmente nos fariam bem infelizes, se fôssemos insensatos ao ponto de Jo parou um pouco na última palavra, mas Laurie a murmurou com uma expressão arrebatada: — De nos casar! Não, não seríamos infelizes, porque eu a adoro, Jo. Seria um santo perfeito, deixando você fazer tudo o que quisesse. — Não, eu não posso. Já tentei e não fui bem sucedida. Não quero arriscar a nossa felicidade numa experiência tão séria. Nós não combinamos um com o outro e nunca havemos de combinar. Assim, devemos ser bons amigos durante toda a nossa
vida, mas não devemos seguir numa aventura. — Sim, devemos tentar essa aventura, murmurou Laurie com rebeldia. — Agora, seja razoável e considere o caso sob um ponto de vista sensato, implorou Jo, custando já a se dominar. — Eu não quero ser razoável. Não quero considerar a caso sob o que você chama um ponto de vista sensato. Isso não me serve de nada e apenas faz você parecer mais insensível. Não creio que você tenha coração. — Antes não tivesse! Houve um leve tremor na voz de Jo e, tomando-o como um bom agouro, Laurie voltou-se, usando de todo o seu poder de persuasão para dizer num tom mais despreocupado : — Não nos dê uma decepção, querida! Todos esperam isso. O vovô já pôs essa idéia no coração, a sua família gostaria e eu não posso ar sem você. Diga que sim e sejamos felizes. Diga, diga! Ainda meses depois Jo não compreendia como tivera força de espírito para sustentar a resolução que tomara quando decidiu que não amava o seu camaradinha e nunca haveria de amá-lo. Era difícil de resolver, mas resolveu sabendo que qualquer atraso seria ao mesmo tempo inútil e cruel. — Não posso dizer sim com sinceridade e por isso não quero dizer de forma alguma. Você há de ver que eu tenho razão, mais cedo ou mais tarde. E até me agradecerá por isso, começou ela solenemente. — Nem enforcado, e Laurie levantou-se de um salto, ardendo de indignação só ao pensar em tal coisa. — Sim, é o que você há de fazer insistiu Jo. Isso de agora ará depois de certo tempo e você encontrará uma moça distinta e bonita, que há de lhe querer muito bem e tornar-se uma linda companheira para sua linda casa. Eu não sirvo. Sou muito caseira, desastrada, extravagante e velha. Você se envergonharia de mim e nós teríamos discussões. Não podemos evitar isso mesmo agora, você vê. Eu não gosto da sociedade elegante e você gosta. Você não a os meus rabiscos e eu não o sem eles. Seriamos infelizes, ficaríamos arrependidos do casamento e tudo seria horrível. — Alguma coisa mais? ─ perguntou Laurie, tendo dificuldade em escutar com paciência esse o profético. — Nada mais, exceto que eu não creio que possa vir a casar algum dia. Sintome feliz como estou e aprecio demais a minha liberdade para querer trocá-la por um homem. — Ah, eu conheço mais a vida do que você! interrompeu Laurie. Agora você pensa assim, mas virá tempo em que sentirá desejo de se interessar por alguém e há de amá-lo imensamente e viver e morrer por ele. Eu sei que será assim. É o seu modo de ser e eu terei de esperar para ver isso. E o moço apaixonado, em desespero, atirou o chapéu para longe, num. gesto que teria parecido cômico, se a expressão do rosto não fosse tão dramática. — Sim, hei de viver e morrer por ele, se algum diá me inspirar amor sem que eu o deseje, e você deve aceitar isso da melhor maneira que puder, respondeu Jo, perdendo a paciência com o seu pobre camaradinha. Já fiz o que pude, mas você não quer ser razoável e é egoismo de sua parte insistir num assunto de que eu não
quero tratar. Sempre hei de gostar de você, gostar muito mesmo, como amigo, mas nunca hei de me casar consigo. Quanto mais cedo você ficar certo disto, tanto melhor para nós dois. Pois que seja desde agora! Isso foi o mesmo que atear fogo em pólvora. Laurie mostrou-se por um momento como se não soubesse ao certo que fazer consigo mesmo. Depois, deu meia volta e foi saindo rapidamente, dizendo num tom desesperado: — Você há de sentir o mesmo, algum dia, Jo. — Oh, aonde é que você vai? ─ gritou ela, amedrontada com a expressão de Laurie. — Para o inferno. ─ Foi a consoladora resposta. Por um minuto, o coração de Jo ficou parado quando o viu dirigir-se para o lado do rio. Mas só mesmo muita loucura, pecado ou miséria, é capaz de levar um jovem a uma morte violenta e Laurie não era da espécie desses fracos que desertam logo após a primeira derrota. Não teve idéia de um melodramático mergulho no rio, mas um instinto cego o levou a se atirar no bote e remar com toda a força, subindo o rio em menos tempo do que teria conseguido em muitas regatas. Jo soltou um longo suspiro e deixou de torcer as mãos quando viu o pobre rapaz tentando vencer a angustia que sentia dentro do peito. — Isso há de lhe fazer bem e voltará para casa num estado de espírito tão doce e arrependido que nem terei coragem de vê-lo, disse ela consigo mesma. E quando voltava lentamente, sentindo como se tivesse matado quaiquer coisa inocence, para depois sepultá-la debaixo das folhas, acrescentou: ─ Agora, devo ir avisar o sr. Laurence, para que seja muito carinhoso com o meu pobre camaradinha. Gostaria que ele amasse Beth e talvez isso possa acontecer algum dia, mas começo a pensar que me enganei a respeito dela. Meu Deus! Como há moças que gostam de ter namorados para rejeitá-los? Acho isso horrível. Convencida de que ninguém desempenharia essa missão melhor do que ela mesma, procurou o sr. Laurence, contou corajosamente toda a embaraçosa história e teve então uma crise de abatimento, chorando tão tristemente por causa de sua própria insensibilidade, que o bom velho, embora profundamente desapontado, não murmurou a menor queixa. Era-lhe difícil compreender como qualquer moça pudesse deixar de sentir amor por Laurie, e esperou que ela mudasse de idéia, mas sabia também, melhor do que Jo, que não se pode forçar o coração. Assim, balançou melancolicamente a cabeça e resolveu tirar o rapaz do caminho do mal, pois as palavras de despedida da Jovem Impetuosidade para Jo o inquietaram muito mais do que deixara transparecer. Quando Laurie voltou para casa, morto de cansado, mas perfeitamente senhor dos seus nervos, o avô o recebeu como se não soubesse de nada e manteve essa atitude, com bons resultados, durante uma ou duas horas. Mas, quando se sentaram juntos, ao pôr-do-sol, hora que tanto apreciavam, foi difícil para o velho tagarelar como de costume e ainda mais difícil para o jovem ouvir o elogio das suas vitórias do último ano, que lhe pareciam agora um sacrifício de amor perdido. ou isso quanto pôde. Depois foi ao piano e começou a tocar. Estavam abertas as janelas. E Jo, ando no jardim em companhia de Beth, dessa vez, compreendeu a música melhor do que a irmã, porque êle tocava a "Sonata Patética", e a interpretava como
nunca o fizera antes. — Isso é muito bonito, mas é tão triste que dá vontade de chorar. Toque qualquer coisa mais alegre, pequeno, disse o sr. Laurence, cujo velho coração generoso estava cheio de uma simpatia que ansiava por demonstrar, mas não sabia como. Laurie atacou uma melodia mais ligeira, tocou estre-pftosamente por alguns minutos e teria chegado brevemente até o fim, se coincidindo com uma momentânea pausa, não se ouvisse a voz da sra. March chamando : — Jo, meu bem, venha cá. Preciso de você. Justamente o que Laurie sentia desejo de dizer, embora com uma significação diferente! Ao escutar, perdeu o domínio de si mesmo. A música findou num acorde abafado e o pianista ficou sentado em silêncio, na sala escura. — Não posso agüentar isso, murmurou o velho. Levantou-se, foi andando às apalpadelas até o piano, pôs a mão carinhosa sobre o ombro largo do rapaz e disse tão docemente como uma mulher: ─ Eu sei, meu pequeno, eu sei. Não houve resposta por um instante. Depois, Laurie perguntou rapidamente: — Quem lhe disse? — A própria Jo. — Então, é o fim de tudo. ─ E ele afastou as mãos do avô, com um movimento de impaciência; pois, embora grato pela companhia., o seu orgulho masculino não agüentava a compaixão do sr. Laurence, — Ainda não, verdadeiramente. Quero dizer-lhe uma coisa e então será o fim disso, retrucou o velho, com excepcional suavidade. Agora, talvez não queira permanecer aqui, não é ? — Não pretendo fugir de uma moça. Jo não me pode impedir de vê-la. Ficarei por isso o tempo que entender, interrompeu Laurie num tom de desafio. — Não fará isso, se é realmente o cavalheiro que me parece ser. Estou decepcionado, mas a moça não tem culpa. O que lhe resta fazer é afastar-se por algum tempo. Para onde quer ir? — Qualquer lugar. Não me importa mais o que me possa acontecer; e Laurie se levantou, com um riso de falsa indiferença que doeu no ouvido do avô. — Agüente firme como homem e não faça uma tolice, por amor de Deus! Por que não vai ao estrangeiro, oomo tinha planejado, e não trata de esquecer? — Não posso. — Mas você andava doido por essa viagem que eu lhe prometi para quando terminasse o curso. — Ah! Mas, eu não tinha idéia de realizá-la sozinho! e Laurie rodou nervosamente pela sala, com uma expressão tal que foi bom o avô não poder vê-lo. — Não estou pedindo que vá só. Há alguém que tem disposição e alegria para acompanhá-lo a qualquer lugar do mundo. — Quem? perguntou Laurie, parando para escutar. — Eu mesmo. O rapaz afastou-se tão rapidamente como se aproximara e, largando as mãos, disse asperamente: — Sou um animal egoísta. Mas o senhor sabe vovô.
— Deus me ajude! Sim, eu sei, pois também já ei por isso, uma vez, quando era moço, e depois vi a mesma coisa em seu pai. Agora, meu querido rapaz, sente-se calmamente e ouça o meu plano. Já está assentado e pode ser executado a qualquer hora, disse o sr. Laurence, apertando o cerco junto ao moço, como se receasse que ele fosse arrebatado pela dor, como acontecera antes com o pai. — Bem, vovô qual é o plano? e Laurie sentou-se, sem o menor sinal de interesse no rosto ou na voz. — Há um negócio em Londres que precisa ser resolvido. Pensava que você pudesse cuidar dele. Mas eu mesmo seria melhor e as coisas aqui irão muito bem com o Brooke para tomar conta. Meus sócios fazem quase tudo. Estava apenas guardando o meu lugar para você e posso sair em qualquer tempo. — Mas o senhor odeia viajar. Não posso pedir que me acompanhe na sua idade, começou Laurie, que era grato pelo sacrifício, mas preferia, ir sozinho, se chegasse mesmo a ir. O velho sabia perfeitamente disso e estava muito interessado em evitá-lo, pois a disposição que encontrou no neto lhe mostrava que não era prudente abandoná-lo a seus próprios impulsos. Assim, abafando o natural pesar que lhe inspirava a idéia de desistir dos confortos do lar, disse energicamente: — Deus me abençoe! Ainda não sou tão velho assim! A idéia de viajar me agraria. Há de me fazer bem e a minha carcaça ará facilmente o eio, pois viajar hoje é quase tão cômodo como ficar sentado nesta cadeira. Um movimento impaciente de Laurie deu a impressão que a sua cadeira não lhe parecia cômoda ou que não gostava do plano, e fez o velho acrescentar precipitadamente: — Nao pretendo ser um fardo ou um espião. Irei porque penso que você se sentirá mais feliz assim do que se me deixasse aqui. Não tenho idéia de ficar agarrado a você, quero deixá-lo com liberdade de ir aonde quiser, enquanto tratarei de me divertir cá a meu modo. Tenho amigos em Londres e Paris e gostaria de visitálos. Enquanto isso, você poderá ir à Itália, Alemanha, Suíça, onde quiser, e apreciar o encanto dos quadros, da música, das paisagens e das aventuras, bem a seu gosto. Laurie sentiu então que o seu coração estava completamente despedaçado e que o mundo lhe parecia um deserto aterrador. Mas, ao som de algumas palavras que o velho introduzia habilmente em suas frases finais, o coração arrebentado deu um salto imprevisto e um ou dois oásis convidativos apareceram no deserto aterrador. O rapaz suspirou e disse então numa voz sem expressão: — Seja como quiser. Não tem importância para mim o lugar onde ir e o que fazer. — Lembre-se, porém, que para mim isso é importante, meu garoto. - Eu lhe dou inteira liberdade, mas espero que faça dela um uso honesto. Prometa-me isso, Laurie. — Tudo o que quiser, vovô. — Está bem, pensou o velho. Agora, você não lhe dê importância, mas virá o tempo em que essa promessa o afastará do mal, se não me engano. Sendo um temperamento enérgico, o sr. Laurence malhou enquanto o ferro estava quente e, antes que a criatura esbraseada recuperasse ânimo bastante para
se rebelar, já os dois estavam de viagem. Durante o tempo necessário para os preparativos Laurie procedeu como os jovens costumam fazer em tais circunstâncias. Mostrava-se mal humorado, irritadiço e pensativo, sucessivamente. Perdeu o apetite, descuidou-se do modo de vestir e ava horas inteiras tocando tempestuosamente no piano. Evitava encontrar-se com Jo, mas se consolava contemplando-a da janela, com uma fisionomia trágica que, de noite, a assustava em sonho e, de dia, lhe pesava na consciência com a sensação de culpa. Ao contrário de muitos sofredores, nunca falou de sua paixão infeliz e não permitia a ninguém, nem mesmo à sra. March, qualquer tentativa de consolo ou de simpatia. Sob vários aspectos, isso era um alivio para os seus amigos. Mas as semanas que precederam a partida foram muito aborrecidas e todos se alegraram por saber que o pobre companheiro querido ia embora para esquecer a sua mágoa e voltar feliz para casa. Decerto, ele sorriu sombriamente de tão absurdas esperanças, mas não tocou no assunto, com a melancólica superioridade de quem sabe que a sua fidelidade, como o seu amor, era inalterável. Quando chegou a hora da partida, simulou grande naturalidade, para evitar certas emoções inconvenientes que pareciam dispostas a transparecer, apesar de tudo. Essa alegria não convenceu a ninguém, porém todos tentaram dar a impressão de que acreditavam nela, por atenção, e o rapaz portou-se muito bem até quando a sra. March o beijou, com um suspiro cheio de maternal solicitude. Então, sentindo que ia fraquejar, ele abraçou a todos rapidamente, sem esquecer a angustiada Hannah, e desceu correndo as escadas. Jo o seguiu um minuto depois, para lhe acenar com o lenço, se olhasse para trás. Ele olhou para trás, retrocedeu, pôs os braços em torno dela, quando a moça parou um degrau acima dele, e fitou-a com uma expressão que fez o seu curto apelo ao mesmo tempo eloqüente e patético: — Oh, Jo! Você não pode? — Teddy, querido. Eu bem queria poder. Foi só isso, exceto uma pequenina pausa. Então, Laurie retomou coragem e disse: — Está bem. Não se incomode. E foi embora sem mais outra palavra. Ah! Mas não esteve bem e Jo se incomodou, pois enquanto a cabeça do rapaz repousou sobre o braço dela, um minuto após a sua dura resposta, a moça sentiu como se tivesse apunhalado o amigo mais querido. E quando partiu, sem olhar para trás, ela compreendeu que o garoto Laurie nunca mais voltaria.
CAPITULO XIII
O Segredo de Beth Quando, naquela primavera, Jo voltou para casa, ficou muito impressionada
com a mudança de Beth. Ninguém lhe falou a esse respeito nem mesmo parecia notá-lo, porque ela foi aparecendo tão gradualmente que não chamou a atenção dos que observavam a menina todos os dias. Mas, para os olhos aguçados pela ausência, a transformação pareceu muito clara e Jo sentiu um peso no ração quando observou a fisionomia da irmã. Não estava mais pálida, mas apenas um pouco mais fina do que no outono. Contudo, havia nela uma expressão estranha, transparente, como se a sua parte mortal se estivesse esgarçando lentamente e a sua parte imortal brilhando através do corpo frágil como uma beleza indescritivelmente patética. Jo viu e sentiu isso, mas não disse nada por algum tempo e logo à primeira impressão perdeu muito de sua força. Beth parecia feliz, ninguém duvidava que estivesse melhor e, preocupada em outros casos, Jo esqueceu por algum tempo os seus receios. Todavia quando Laurie partiu e a paz prevaleceu novamente, a ansiedade voltou para inquietar o seu espírito. Ela confessara os seus pecados literários e fora perdoada. Mas, quando mostrou as suas economias e propôs um eio à montanha, Beth agradeceu-lhe de coração, mas pedia para não se afastar da casa. Outra visitinha à praia lhe agradava mais e, como a sra. March não podia deixar os netinhos, Jo foi com Beth para um sossegado lugar, onde a doente poderia ar muito tempo ao ar livre, deixando que as frescas brisas marinhas dessem um pouco de cor às suas faces pálidas. Não era um lugar de luxo, e mesmo entre as pessoas agradáveis dali, as moças fizeram poucas amizades, preferindo viver uma para outra. Beth era acanhada demais para gostar de sociedade e Jo estava muito preocupada com ela para cuidar de quem quer que fosse. Assim, ficaram sempre unidas, rodando de um lado para outro, sem tomar conhecimento do interesse que despertavam em torno, entre os que observavam com simpatia a irmã forte sempre ao lado da fraquinha, como se as duas sentissem instintivamente que não estava distante uma longa separação. Ambas tinham esse pressentimento, embora não falassem a respeito, pois muitas vezes entre nós mesmos e os que nos são mais próximos e queridos existe uma reserva que é muito difícil de vencer. Jo sentia como se um véu tivesse caído entre o coração dela e o de Beth. Mas, quando estendia a mão para levantá-lo, parecia haver qualquer coisa de sagrado no silêncio e esperava que Beth falasse primeiro. Jo se irava que os pais não parecessem ver o que ela via e dava graças a Deus que assim acontecesse. Durante as semanas tranqüilas, enquanto a sombra Se tornava mais visível para ela, não disse nada aos de casa, acreditando que eles notariam isso por si mesmos quando Beth voltasse sem nenhuma melhora. Ela indagava a si mesma se a sua irmã realmente conhecia a dolorosa verdade e quais os pensamentos que avam através do seu espírito durante as longas horas em que ficava deitada sobre os rochedos, com a cabeça no colo de Jo, enquanto os ventos sopravam salutarmente e o mar rumorejava aos seus pés. Um dia, Beth lhe falou. Jo pensava que ela estivesse adormecida, tão quieta parecia. E, fechando o livro, olhou para ela com boa vontade, tentando ver sinais de esperança na cor esmaecida do rosto de Beth. Mas, não encontrou nada que a satisfizesse, pois as faces ainda pareciam mais transparentes e as mãos tão fracas que nem podiam sustentar as conchinhas rosadas que as duas estiveram apanhando
na praia. Veio-lhe ainda ainda mais amarga a impressão de que Beth estava aos poucos se afastando dela e os braços de Jo instintivamente apertavam, como para guardar na terra o tesouro mais querido que possuía. Por um momento nada pôde ver na escuridão e, quando os olhos de Jo se habituaram à penumbra, viu Beth contemplando-a tão ternamente que quase não havia necessidade de dizer: — Jo querida, estou contente porque você sabe disso. Tentei dizer-lhe, mas não pude. Não houve outra resposta a não ser uma face que se encosta a outra. Não houve mesmo lágrimas, pois, quando profundamente comovida, Jo hão chorava. Ela, então, era a mais fraca das duas e Beth tentou confortá-la e ampará-la com os braços em torno dela e as palavras mais macias sussurradas ao seu ouvido. — Já sei disso há muito tempo, querida, e já me acostumei com essa idéia. Não me custa pensar a esse respeito. Tente ver as coisas desse modo e não se inquiete por minha causa, pois é melhor. Sem dúvida, é melhor assim. — Foi isso que a fez tão triste no outono, Beth? Será possível que tenha sentido isso desde então e guardado segredo por tanto tempo? perguntou Jo, recusando-se a ver e a dizer que era melhor assim, porém alegre de descobrir que Laurie não entrava nas inquietações de Beth. — Sim, desde então eu estou esperando, mas não queria confessar. Tentei convencer-me de que era uma impressão doentia e não quis deixar que ela preocue qualquer pessoa. Mas, quando via vocês todas tão bem, tão sadias e tão cheias de planos felizes, era triste sentir que eu nunca havia de ser como vocês. Então eu sofria Jo. — Oh, Beth! Você não me disse nada, não me deixou consolá-la e ajudá-la! Como pôde ficar calada, ando sozinha tudo isso? A voz de Jo estava impregnada de carinhosa repreensão e a sua alma doía ao pensar na luta solitária que se travou no coração de Beth até que ela aprendesse a dizer adeus à saúde, ao amor e à vida, levando a sua cruz tão corajosamente. — Fiz mal talvez, mas com boa intenção. Não tinha certeza, ninguém disse nada, e ainda nutria esperanças de que estivesse enganada. Seria muito egoísmo assustar vocês todos quando mamãe estava tão ansiosa por causa de Meg, e Amy fora, e você tão feliz com o Laurie pelo menos eu pensava assim, então. — E eu pensei que você o amasse, Beth. E sai de casa porque eu não o queria, exclamou Jo, contente por dizer toda a verdade. Beth pareceu tão espantada com a idéia que Jo sorriu, apesar da sua tristeza, e acrescentou suavemente: — Então, você não o amava, meu benzinho? Receava que isso estivesse acontecendo e imaginava o seu pobre coraçãozinho padecendo de amor durante todo esse tempo. — .Ora, Jo, como poderia fazer isso, quando ele estava tão doido por você ? ─ Disse Beth, com uma inocência de criança. ─ Gosto muito dele. É tão bom para mim! Mas nunca poderia considerá-lo de outro modo, a não ser como irmão. E tenho a esperança de que ele ainda há de ser, um dia, meu irmão de verdade. — Não por meu intermédio, disse Jo firmemente. Amy está destinada para ele e os dois combinarão muito bem. Mas eu não tenho coração para essas coisas, agora. Só quero saber de você, Beth. Você deve ficar boa.
— Oh, eu quero tanto isso, tanto! Eu tento, mas cada dia me enfraqueço mais um pouco e sinto, ainda mais, que nunca voltarei a ser o que era. É como a maré, Jo; quando vaza, afasta-se lentamente, mas ninguém pode detê-la. — Ela será detida. A sua maré não pode retirar-se tão depressa, pois ter dezenove anos é ser ainda muito jovem. Beth, eu não posso deixar você ir embora. Trabalharei, rezarei, combaterei contra isso. Hei de guardá-la comigo, apesar de tudo. Ainda deve haver um meio de evitar isso, não pode ser tarde demais. Deus não há de ser tão cruel para levá-la de mim, exclamou a pobre Jo com rebeldia, porque o seu espirito esteve muito mais longe da piedosa submissão do que o de Beth. As pessoas simples e sinceras não costumam falar muito da sua própria piedade. Ela aparece mais em atos do que em palavras e tem mais influência do que súplicas e protestos. Beth não saberia explicar a fé que lhe deu tanta coragem e tanta paciência para renunciar a vida e esperar alegremente a morte. Como uma criança confiante, não fazia perguntas, maa entregava tudo a Deus e à natureza. Pai e mãe de todos nós, tenho a certeza de que eles e só eles ensinam e fortalecem o coração nesta vida e na outra. Ela não respondeu a Jo com frases piedosas, mas somente lhe quis ainda mais pela sua afeição apaixonada. Ela não saberia dizer estou contente porque vou embora, pois a vida lhe era muito doce. Pôde apenas murmurar num soluço: — Tentarei não ficar triste; e quando apertou Jo contra o peito a onda mais amarga dessa grande tristeza caiu sobre as duas Logo depois, Beth disse recuperando a serenidade: — Você vai contar isso ao meu pessoal, quando voltarmos para casa? — Penso que todos poderão ver sem explicações, suspirou Jo, pois agora lhe parecia que Beth mudava dia a dia. — Talvez não. Já ouvi dizer que as pessoas que nos querem mais bem são muitas vezes as que mais demorara a ver tais coisas. Se ninguém notar isso, você deve avisar por mim. Não quero segredos e será melhor preparar-lhes o espírito. Meg tem John e os bebês para consolá-la, mas você deve amparar papai e mamãe, não é, Jo? — Se puder. Mas, Beth, eu ainda não desanimei. Estou quase acreditando que é apenas uma impressão doentia e não me deixe pensar que ela é verdadeira, disse Jo, tentando falar com animação. Beth ficou pensativa por um minuto e disse depois com o seu modo tranqüilo: — Eu não sei como me exprimir e não poderia explicar-me com mais ninguém, exceto você, porque somente com a minha Jo é que eu posso falar assim. Quero dizer apenas que tenho o pressentimento de que nunca fui destinada a viver muito tempo. Não sou como vocês. Nunca fiz planos sobre o que havia de fazer quando crescesse. Nunca pensei em me casar, como vocês todas. Não me parecia mesmo possível imaginar-me sendo outra coisa além da Bethzinha tola, rodando pela casa, inútil em qualquer outra parte a não ser ali. Não desejei nunca sair de casa e o que há de mais doloroso agora é deixar vocês todas. Não tenho medo, mas parece que sentirei saudade de casa mesmo no céu. Jo não pôde falar. Durante alguns minutos, só se ouviram o suspiro do vento e o rumorejar da maré. Uma gaivota de asas brancas adejava, tocada da luz do sol na sua penagem de prata. Beth observou-a até que o pássaro cantou e os seus olhos se
encheram de melancolia. Uma andorinha veio voando sobre a praia trinando docemente como se estivesse contente com o sol e o céu. Veio bem pertinho de Beth, olhando para ela, cordialmente, e pousou sobre uma pedra, sacudindo as penas úmidas, perfeitamente ã vontade. Beth sorriu e sentiu-se confortada, pois a avezinha parecia oferecer-lhe a sua pequenina amizade, lembrando-lhe que ainda havia prazer neste mundo tão agradável. — arinho querido! Veja, Jo, como é mansinho. Gosto mais da andorinha do que da gaivota. Não é tão bonita nem selvagem mas parece uma coisinha feliz, cheia de confiança. No último verão, eu me habituei a chamar as andorinhas de meus arinhos, e mamãe disse que elas se parecem comigo criaturinhas ocupadas, pálidas, sempre perto da praia e sempre chilreando com alegria. Você é gaivota, Jo, forte e selvagem, enamorada do ar livre e das tempestades, voando muito longe e sentindo-se feliz sozinha. Meg é como uma pombinha e Amy é como a co-tovia, que faz curvas no ar; tentando subir até as nuvens, mas sempre descendo para o ninho mais próximo. Meni-nazinha querida! Ela é tão ambiciosa, mas o seu coração é bom e meigo. E não importa que voe longe, porque nunca esquecerá o lar. Espero vê-la ainda, porém me parece tão distante! — Ela voltará na primavera e espero que você até lá fique boa para recebê-la com alegria. Hei de fazer que você fique sadia e rosada durante esse tempo, começou Jo, sentindo que, de todas as mudanças de Beth, a maior era a do modo de falar. Isso agora não lhe parecia custar nenhum esforço e pensava em voz alta de uma maneira muito diferente daquela Bethzinha tão acanhada. — Jo querida, não alimente mais esperança. Isso não serve de nada, estou certa. Não vamos ficar tristes, mas trataremos de gozar o prazer de ficar juntas, enquanto esperamos. Teremos dias felizes, pois eu não sofro muito e penso que tudo ará facilmente, se contar com a sua ajuda. Jo inclinou-se para beijar a face tranqüila, e, com aquele beijo silencioso, dedicou-se de corpo e alma a Beth. Tinha ela razão. Não houve necessidade de palavras quando voltaram para casa, pois o pai e a mãe viram claramente, agora, o que tanto tinham rezado para que não chegassem a ver. Cansada da curta viagem, Beth foi de uma vez para a cama, dizendo como se sentia alegre por estar de novo em sua casa. E quando Jo chegou compreendeu que lhe tinha sido poupada a triste tarefa de contar o segredo da irmã. O pai ficou com a cabeça encostada na janela e não se voltou quando ela entrou. Mas a mãe a apertou nos braços, como a pedir socorro, e Jo foi consolá-la em silêncio.
CAPITULO XIV Novas Impressões As três horas da tarde, todo o mundo elegante de Nice pode ser visto na "Promenade des Anglais", que é um lugar encantador. O largo eio, ornado de palmeiras, flores e arbustos tropicais, tem de um lado o mar e do outro a grande
avenida formada de hotéis e de vilas enquanto mais ao longe se vêem os pomares de laranjeiras e as colinas. Representam-se ali muitas nações, falam-se muitos idiomas, usam-se muitos trajes pitorescos e, num dia de sol, o espetáculo é tão alegre e colorido como um carnaval. Ingleses arrogantes, ses amáveis, plácidos alemães, belos espanhóis, russos esquisitos, melífluos judeus, americanos despreocupados, todos eiam, sentam-se ou param para conversar, discutindo as novidades e criticando a última celebridade que chegou. As carruagens são tão variadas como as criaturas e atraem a mesma atenção, especialmente as que são guiadas por senhoras. Ao longo desse eio, no dia de Natal, um rapaz alto andava lentamente, com as mãos para trás, e com uma expressão um tanto distraída no rosto. Parecia um italiano, estava vestido como um inglês e tinha o ar independente de um americano, combinação essa que despertava a aprovação simpática de lindos olhos femininos e que causavá inveja aos almofadinhas com as suas roupas de ve-ludo preto, as suas luvas de camurça e a clássica flor de laranjeira na lapela. Havia uma quantidade de caras bonitas para irar, mas o jovem não parecia tomar conhecimento disso, contentando-se em contemplar de vez em quando uma mocinha loura ou uma senhora de azul. Num momento, o rapaz deixou o eio e ficou na esquina, como se quisesse atravessar a avenida, sem saber se devia ir escutar a retreta no jardim público ou rodar pela praia até a Colina do Castelo. O trote apressado de um par de pôneis fê-lo levantar a vista quando uma das pequenas carruagens, dessas que são conduzidas por uma só pessoa, descia rapidamente a rua. Dentro da carruagem estava uma dama jovem, loura e vestida de azul. Ele ficou parado por um momento, depois toda a sua face irradiou alegria. Agitando o chapéu, como um garoto, correu ao encontro dela. — Oh! Laurie, é realmente você? Já estava pensando que não vinha mais! gritou Amy, soltando as rédeas e levantando as duas mãos, para grande escândalo de uma mamãe sa, que se apressou em arrastar a filha dali, para que não aprendesse os modos sem cerimônia desses malucos ingleses. — Fui detido no meio do caminho, mas prometi ar consigo o Natal e aqui estou. — Como vai o seu avô? Quando você veio? Onde está hospedado? — Muito bem — ontem de noite — no "Chauvain". Procurei-a no seu hotel, mas não a encontrei. — Tenho tanto que lhe contar, que nem sei mesmo por onde começar. Suba aqui e poderemos conversar à vontade. Sai para um eio e estava doida por uma companhia. Fio está se poupando para a noite. — Que haverá, então? Um baile? — Uma festa de Natal em nosso hotel. Lá estão muitos americanos e são eles que oferecem a festa. Você virá conosco, naturalmente, não é? Titia ficará encantada. — Obrigado. E agora, aonde vamos? perguntou Laurie, reclinando-se e cruzando os braços, atitude que agradou muito a Amy, pois preferia guiar a carruagem, para satisfação dos seus ares de elegância. — arei primeiro pelo Correio e depois irei à Colina do Castelo. A vista ali
é uma beleza e gosto de dar comida aos pavões. Nunca esteve lá ? — Muitas vezes, faz alguns anos. Mas não me incomodaria de ir lá mais uma vez. — Agora, diga-me tudo a seu respeito. A última notícia que eu tive de você foi pelo seu avô, que escreveu dizendo aguardar sua volta de Berlim. — Sim, ei um mês ali e depois voltei a encontrá-lo em Paris, onde se instalou para o inverno. Ele tem amigos lá e sempre encontra quem o divirta. Assim, eu vou e volto e nos damos otimamente. — É uma combinação razoável, disse Amy, sentindo no modo de Laurie a falta de qualquer coisa, embora não soubesse explicar qual fosse. — Porque, veja você, ele odeia viajar e eu tenho horror a ficar parado. Assim, combinamos bem e não há o menor aborrecimento. Estou muitas vezes com ele, que parece divertir-se com as minhas aventuras, enquanto eu gosto de sentir que alguém se alegra por me ver quando volto das mihhas peregrinações. Que buraco feio e sujo é isto aqui, não acha? acrescentou ele, com uma expressão de desgosto, quando rodavam através do "boulevard" para a Praça Napoleão, na parte velha da cidade. — A sujeira é pitoresca e assim não reclamo contra ela. As colinas e o rio são deliciosos e esses aspectos de vielas estreitas são o meu encanto. Agora, teremos de esperar que e a procissão. Está indo para a igreja de São João. Enquanto Laurie observava em silêncio a procissão, de padres sob os seus pálios, freiras de toucas brancas conduzindo velas acesas e algumas irmandades de azul que caminhavam cantando, Amy examinava o rapaz e sentiu uma espécie de timidez tolher os seus movimentos. Ele tinha mudado e ela não poderia mais achar no homem melancólico que estava a seu lado o garoto de cara alegre que deixara antes. Estava mais belo e muito melhorado, pensou ela. Mas agora que a primeira impressão do prazer de encontrá-lo tinha ado, ele parecia cansado e sem animação, não enfermo, não exatamente infeliz, porém mais velho e mais sisudo do que um ano ou dois de boa vida devia fazer dele. Ela não podia entender tal mudança e também não se aventurava a fazer perguntas. Limitou-se a balançar a cabeça e a tocar os pôneis para frente, quando a procissão atravessou os arcos da ponte Paglioni e desapareceu na igreja. — Que pensez vous ? disse ela, exibindo o seu francês que tinha melhorado em quantidade, senão em qualidade, desde que viera ao estrangeiro. — Que mademoiselle tem feito bom uso do seu tempo, com um resultado encantador, replicou Laurie, numa reverência, com a mão no peito e um olhar de iração. Ela corou com prazer, mas de certo modo o elogio não a satisfez tanto como os galanteios exaltados que ele lhe costumava dedicar antigamente, quando eava ao seu lado nas ocasiões de festa e dizia que ela era bonita de fato, com um sorriso expansivo e um balançar simpático de cabeça. Não lhe agradou o novo tom, pois, embora não "blase" soava falso apesar da expressão do rapaz. — Se é deste modo que ele vai crescer, seria melhor então que ficasse sempre menino, pensou ela, com uma curiosa sensação de desapontamento e desconforto, embora tentasse parecer perfeitamente alegre e à vontade. Na Posta-Restante ela encontrou as preciosas cartas de casa e, ando as rédeas a Laurie, leu-as com delícia, enquanto seguiam pela estrada sombreada entre
verdes sebes, onde as rosas-chá floreciam tão frescas como em junho. — Mamãe diz que a Beth está muito fraquinha. Penso muitas vezes que devo voltar para casa, mas eles todos dizem fique e eu vou ficando, pois nunca mais terei uma oportunidade como essa, disse Amy, lendo com seriedade uma página da carta. — Acho que neste ponto você tem razão. Em casa não poderia fazer nada e é um grande conforto para a sua família saber que você está bem e divertindo-se muito. Ele chegou para mais perto e tomou um pouco do seu ar antigo quando disse isso. E o medo que algumas vezes pesava no coração de Amy logo se aliviou, pois o olhar, a palavra, o fraternal minha querida pareciam dar-lhe a certeza, de que, se surgisse qualquer complicação, ela não ficaria sozinha numa terra estranha. Sorriu e mostrou-lhe um pequeno esboço de Jo, nos seus trajes de escritora, a aba do gorro levantada e saindo da sua boca estas palavras: ─ O gênio está fervendo! Laurie sorriu também, tomou o pequeno desenho e guardou-o no bolso do paletó para que não fosse levado pelo vento, e escutou com interesse a animada carta que Amy lia em voz alta. — Está sendo um Natal bem bonzinho para mim, com presentes pela manhã, você e as cartas do pessoal de tarde, e uma festa de noite, disse Amy quando atravessaram as ruínas do velho forte e um bando de esplêndidos pavões veio ao encontro deles, esperando mansamente que lhes dessem o que comer. Enquanto Amy sorria trepada no banco, a espalhar migalhas para as lindas aves, Laurie pôs-se a observá-la, tal como a moça fizera com ele, nessa natural curiosidade de ver que mudança o tempo e a ausência tinham feito. Não encontrou nada que o surpreendesse e o desapontasse, porém, muito para irar e aprovar. Com efeito, deixando de lado certas afetaçõezinhas de linguagem e de maneiras, Amy estava mais animada e graciosa do que nunca, com o acréscimo dessa qualquer coisa indefinível no modo de vestir e de se conduzir que nós chamamos de elegância. Sempre precoce, Amy tinha adquirido um certo "aplomb", tanto no porte como na conversação, o que lhe dava uma aparência excessiva de dama da alta roda. Mas a sua velha petulância ainda se denunciava uma vez por outra, a força de vontade ainda a ajudava e a franqueza nativa não tinha sido estragada pela polidez estrangeira. Laurie não observou tudo isso enquanto a contemplava dando de comer aos pavões, mas viu bastante para se satisfazer e interessar-se. E guardou a imagenzinha linda de uma moça de fisionomia alegre, iluminada pelos raios do sol, que realçava o tom suave do seu vestido, a cor fresca da sua face, o brilho dourado do seu cabelo, fazendo-a uma figura destacada na deliciosa cena. Quando subiram ao terraço de pedra que fica no alto da colina, Amy acenou com a mão, como a lhe dar as boas vindas ao seu retiro preferido, e disse, apontando de um lado para outro. — Lembra-se da Catedral e do Corso, dos pescadores lançando as suas redes na baía e da adorável estrada de Vila Franca? Lá embaixo, fica a torre de Schubert e lá muito longe, essa mancha do mar, que eles dizem,ser a Córsega. — Eu me recordo. Não mudou muito, respondeu ele sem entusiasmo. — Como Jo gostaria de ver essa famosa mancha sobre o mar! disse Amy,
sentindo-se animada e desejosa de o animar também. — É mesmo, foi toda a resposta dele. Mas logo se voltou e apurou a vista para observar a ilha que uma usurpa-dora maior mesmo do que Napoleão agora tornava muito interessante de ver. — Olhe bem isso em nome dela e depois me venha dizer o que fez durante todo esse tempo, falou Amy, sentindo-se pronta para uma boa conversa. Mas não a teve, pois, embora Laurie se tivesse aproximado e respondido desembaraçadamente às suas perguntas, ela mesma veio a saber que ele tinha rodado pelo continente e visitara a Grécia. Assim, depois de uma hora de eio, voltaram para casa. Tendo apresentado os seus respeitos à sra. Carrol, Laurie despediu-se, prometendo voltar à noite. Quanto a Amy, convém lembrar que ela se enfeitou deliberadamente naquela noite. O tempo e a ausência tinham feito a sua obra junto aos dois jovens. Ela vira o seu velho amigo a uma luz nova; não como o nosso menino, mas como um homem belo e agradável, e tinha consciência do seu desejo muito natural de lhe dar boa impressão. Amy conhecia os seus pontos fortes e tratava de valorizá-los ainda mais, com o gosto e a finura que são a melhor fortuna de uma mulher bonita e pobre. Tarlatana e tule eram baratas no comércio de Nice. Assim, ela se envolvia nessas fazendas em tais ocasiões e, seguindo a delicada moda inglesa de vestidos simples para as mocinhas, combinava encantadoramente pequenas toilettes com algumas flores, enfeitezinhos miúdos e toda espécie de sutis recursos de elegância, que ao mesmo tempo são valiosos e não custam quase nada. Deve-se confessar que a artista algumas vezes tomava conta da mulher, permitiam-se coiffures antigas, roupagens clássicas e atitudes de estátua. Mas, Deus meu! todos nós temos as nossas pequenas fraquezas e é fácil perdoá-las numa jovem que satisfaz ao nosso olhar com a sua graça e nos alegra o coração com as suas vaidades sem artifício. — Eu quero dar-lhe uma boa impressão, para que ele possa dizer isso lá em casa, murmurou Amy para si mesma, quando pôs o velho vestido de baile de seda branca de Fio e o cobriu com uma nuvem fresca ilusão, da qual as suas espáduas brancas e a cabeça alourada emergiam com um efeito realmente artístico. Quanto ao cabelo, teve o bom gosto de deixá-lo sem enfeite, depois de prender as suas madeixas espessas e macias num coque atraz da cabeça, como o de Hebe. — Isso não está na moda, mas fica bem e me parece mais natural, costumava dizer, quando a aconselhavam a modificar o penteado, de acordo com o último estilo. Não tendo ornamentos bastante finos para essa importante ocasião, Amy enfeitou a saia branca com ramos rosados de azálea e as alvas espáduas com delicadas folhas verdes de parreira. Recordando-se dos sapatos pintados, examinou o seu forro de cetim branco com visível satisfação e rodou já calçada pelo quarto, irando consigo mesma os seua aristocráticos pezinhos. — Meu novo leque combina bem com as minhas flores, minha luva é um encanto e as rendas do lenço de titia dão graça a todo o vestido. Se eu tivesse uma boca e um nariz de estilo clássico, seria perfeitamente feliz, disse ela, mi-rando-se com um olhar crítico e uma candeia em cada mão. Apesar dessa aflita reflexão, ela parecia excepcionalmente alegre e graciosa, quando deslizou para o salão. Deslizar é bem o termo. Ela raramente andava apressada, pois era de opinião que isso não combinava com o seu estilo. Sendo alta,
o modo lento e pausado do andar ia mais de acordo com o seu tipo do que a ligeireza esportiva. eava de um lado para outro através do comprido salão, enquanto esperava Laurie, e mais de uma vez retocou a sua elegância à luz do grande lustre, cuja claridade produzia um bom efeito sobre os seus cabelos. Então, ficava mais animada e seguia para o outro lado da sala, como envergonhada do seu desejo infantil de causar boa impressão à primeira vista. E tudo aconteceu da melhor maneira. Laurie veio tão silenciosamente que ela nem o percebeu. E quando ficou junto à janela, com a cabeça um tanto inclinada e uma das mãos segurando o vestido, a figurinha branca e esbelta contra a cortina vermelha era tão atraente como uma estátua bem colocada. — Boa noite, Diana! disse Laurie, com uma satisfação que ela gostou de ler nos olhos do rapaz, quando eles pousaram na sua figura. — Boa noite, Apolo! respondeu sorrindo. — Aqui estão as suas flores. Eu mesmo as arranjei, recordando-me de que você aprecia um bonito ramalhete, disse Laurie entregando-lhe o delicado buquê. — Quanta bondade! exclamou ela agradecida. Se eu soubesse que você vinha mesmo, teria preparado qualquer coisa para você hoje, embora, não tão bela quanto essa. — Obrigado. O ramalhete não é o que devia ser, mas na sua presença parece melhor, respondeu ele. — Por favor, não fale assim. — Não gosta desse modo de falar? — Não, quando se trata de você. Não parece natural e prefiro a sua velha franqueza. — Muito me alegra com isso, respondeu ele, com um ar de alívio. Então, abotoou as luvas dela e perguntou-lhe se a sua gravata estava bem, tal e qual como costumava fazer antigamente, quando saíam juntos de casa para alguma festa. As pessoas reunidas na espaçosa sala de jantar, aquela noite, eram essas tais que não se encontram em nenhuma outra parte, a não ser na Europa. Os hospitaleiros americanos tinham convidado todas as pessoas das suas relações em Nice, e, não tendo preconceitos contra títulos de nobreza, garantiram a presença de alguns aristocratas para melhor brilho do baile de Natal. Um príncipe russo condescendeu em sentar-se num canto do salão durante uma hora, conversando com uma dama corpulenta, vestida como a mãe de Hamlet, de veludo preto, com um broche de pérolas preso ao vestido. Um conde polonês, de 18 anos de idade cortejava as senhoras, que já o consideravam um rapazinho fascinante, e um nobre alemão, von Qualquer Coisa, ficara sozinho junto à mesa do buffet, resmungando não se sabe o que e procurando o que devorar. O secretário particular do Barão de Rothschild, um judeu de nariz recurvo, irradiava a sua importância pelo salão, como se o prestígio do seu amo o envolvesse também num halo dourado. Um francês soleníssimo, que conhecera o Imperador, veio cultivar a sua mania da dança, enquanto Lady de Jones, uma matrona inglesa, adornava a cena com seus oito filhos. Naturalmente havia muitas moças americanas, alegres e animadas no modo de falar, assim como inglesinhas bonitas e sem vida e algumas sinhas alegres e um tanto espe-vitadas. Enfim, havia a turba habitual de rapazes em eio, que se divertiam alegremente,
enquanto mamães de todas as nacionalidades, alinhadas junto às paredes, sorriam simpaticamente para eles quando dançavam com as suas filhas. Toda e qualquer mocinha pode imaginar o estado de espírito de Amy quando desceu à cena àquela noite, apoiada ao braço de Laurie. Ela sabia que estava bonita, gostava de dançar, sentia que seus pés pisavam com agilidade num salão de baile e saboreava o delicioso sentimento de força própria que vem ao espírito das jovens no momento em que descobrem o reino novo e adorado e que nasceram para governar pela virtude da beleza, da juventude e da feminilidade. Teve pena das meninas Davis, que eram acanhadas, simples demais e destituídas de outra companhia a não ser pai feroz e três rabujentas tias solteironas. Ao ar, cumprimentou-as da maneira mais amável, contentes de lhes dar uma oportunidade de verem o seu vestido e sentirem a curiosidade de saber quem era o seu companheiro de aspecto tão distinto. Ao primeiro acorde da orquestra, Amy animou-se, seus olhos começaram a brilhar e os pés batiam no soalho com impaciência, porque dançava bem e queria que Laurie notasse isso. Portanto, pode ser melhor imaginado do que descrito o choque que ela recebeu quando o rapaz disse num tom perfeitamente tranqüilo: — Você se interessa pela dança? — É, o que interessa geralmente num baile. O ar de surpresa e a rapidez da resposta levaram Laurie a reparar o erro tão depressa quanto possível. — Sou candidato à primeira contradança. Posso ter esta honra ? — Posso dá-la, se me livrar do conde. Ele dança divinamente, porém me desculpará sendo você um velho amigo, disse Amy, esperando que o título de nobreza produzisse um bom efeito e mostrasse a Laurie que ela era uma criaturinha importante. — É um rapazinho bem afeiçoado, mas, um pedestal curto demais para ar. ─ Uma filha dos deuses, divinamente alta e muito divinamente bela. Foi toda a satisfação que ela pôde obter. O grupo em que se encontravam era composto de ingleses e Amy foi compelida a dançar soberbamente uma quadrilha, sentindo-se durante todo o tempo como se dançasse com prazer a Tarantella. Laurie resignou-se a entregá-la ao rapazinho bem afeiçoado e foi cumprir os seus deveres de gentileza junto a Fio, sem garantir para si, com a Amy, as alegrias futuras. E essa repreensivel falta de visão foi devidamente punida, pois ele imediatamente se comprometeu para todas as danças até a hora da ceia, com a intenção, porém de parar se Laurie desse qualquer sinal de arre pendimento. Mostrou-lhe o seu canhenho de baile com vaidosa satisfação, quando ele avançou lentamente, em vez de precipitar-se, para lhe pedir a contradança seguinte, uma gloriosa polca. Mas as suas polidas lamentações não a impressionaram e, quando girava nos braços do conde, viu Laurie sentar-se perto da tia com uma expressão de alívio. Isso era imperdoável. E Amy não mais tomou conhecimento dele durante largo tempo, só lhe murmurando uma ou outra palavra, quando vinha ao encontro da velha paren-ta, no intervalo das danças, à procura de um alfinete ne cessário ou de um momento de repouso. A sua cólera produziu, aliás, um bom efeito, porque ela simulava uma face risonha e parecia invulgarmente alegre e brilhante.Os
olhos de Laurie acompanhavam-na com prazer, pois Amy dançava com graça e delicadeza, sem um gesto exagerado. Ele deu para estudá-la muito naturalmente sob esse novo ponto de vista, e, antes de chegar à metade da festa, tinha concluído que a Amyzinha se estava tornando uma mulher muito encantadora. Toda a cena era deliciosa, porque bem cedo o espírito da festa tomou posse de todos os convidados e a alegria do Natal dava brilho aos semblantes, felicidade aos corações e leveza aos calcanhares. Os músicos tocavam com tanta animação como se o fizessem só por prazer. Dançaram todos os que podiam e os que não podiam iravam os outros com excepcional animação. O secretário dourado aparecia de vez em quando, através da sala, como um meteoro, ao lado de uma sa fascinante que atapetava o soalho com a longa cauda do seu vestido de cetim cor-de-rosa. Havia uma porção de Davises e muitas Joneses saltando de um lado para outro, como um rebanho de jovens girafas. O von alemão encontrou o buffet e sentiase feliz, fazendo devastações que alarmavam os garçons. Mas quem se cobriu de glória foi o amigo do Imperador, pois dançava tudo, sabendo ou sem saber, e introduzia pirúetas improvisadas quando se atrapalhava nos os mais complicados. Era um encanto ver o abandono infantil desse homem avantajado, pois, embora pesado de corpo, dançava na sala com a ligeireza de uma bola de borracha. Corria, voava, pulava. A fisionomia brilhava, resplandecia a cabeça calva. As abas da CclScLCcL ondulavam desesperadamente, os escarpins rodavam infatigavelmente e, quando a música parava, o homem enxugava as sobrancelhas orvalha-das e irradiava felicidade entre os companheiros, como um Piekwick francês e sem óculos. Amy e o conde distinguiam-se também por igual entusiasmo, e mais ainda pela graciosa agilidade. Laurie deu involuntariamente para marcar como, acompanhando os mdvimerítos rítmicos dos sapatos brancos da moça, quando voavam tão infatigavelmente como se tivessem asas. Quando o pequeno Vladimir finalmente a deixou, afirmando que sentia muito abandoná-la tão cedo, ela tratou logo de repousar e de ver como o seu infiel cavalheiro tinha ado o castigo. Deu bom resultado, pois aos vinte e três anos amizades estremecidas encontram um bálsamo numa sociedade amiga e os nervos jovens vibram, o sangue jovem dança e o sadio espírito dos moços se anima ao encantamento da beleza, da luz, da música e do movimento. Laurie já parecia outro, ao se levantar para lhe ceder a cadeira, e, quando o rapaz correu para ir buscar qualquer coisa da ceia, ela disse consigo mesma, num sorriso satisfeito: — Ah! Eu bem sabia que isso lhe faria bem! — Você parece com a obra de Balzac: ─ Femme pein-te par elle-même, disse ele, quando a abanava com o leque numa das mãos e com a outra lhe entregava a xícara de café. —. Meu rouge não quer sair, e Amy esfregou com a mão a face brilhante e mostrou depois ao rapaz a luva branca, com um ar tão simples e tão sério que ele não pôde deixar de rir. — Como se chama esta fazenda? perguntou ele .tocando numa dobra do vestido da moça que tinha caído sobre os seus joelhos. — Ilusão.
— É um nome bem adequado. Muito bonito. E coisa nova, não é? — Tão velha como as montanhas. Você já a viu em dezenas de moças e só agora é que veio achá-la bonita. Ora essa! — Eu nunca vi essa fazenda em você, o que explica o engano. — Nada disso. Galanteio é proibido. Neste momento prefiro café a elogios. Não, não brinque, isso me deixa nervosa. Laurie sentou-se calado, e suavemente tomou o prato vazio da moça, sentindo um prazerzinho todo especial em receber ordens da "Amyzinha". Sim, porque ela perdera agora a timidez e sentia o desejo irresistível de espezinhá-lo como as moças gostam de fazer quando os reis da criação demonstram sinais de fraqueza. — Onde você aprendeu toda essa espécie de coisa? perguntou a ela. — Como essa espécie de coisa é uma expressão um tanto vaga, quer ter a bondade de explicá-la? replicou Amy, sabendo perfeitamente bem o que ele queria dizer, mas deixando maldosamente o rapaz descrever o que é indescritível. — Bom quero dizer, o aspecto geral, o estilo, o domínio de si mesma, a ilusão, você sabe. ─ Disse Laurie sorrindo, procurando livrar-se da dificuldade com a palavra nova. Amy ficou lisonjeada, mas, naturalmente, não deu a entender e respondeu com falsa modéstia. — A vida no estrangeiro educa qualquer pessoa, mesmo sem ela querer. Eu estudo ao mesmo tempo que me divirto. E quanto a isto, com um pequeno gesto para o vestido de tule, é barato, os enfeites não custam quase nada e eu sei fazer realçar o pouco que tenho. Amy se arrependeu um pouco dessa última frase, receando que não fosse de bom gosto, mas Laurie ainda mais a apreciou e ao mesmo tempo irava e respeitava a corajosa paciência que sabia aproveitar as oportunidades e o animado espírito que cobria de flores a pobreza. Amy não sabia porque ele a olhava tão meigamente nem porque enchia o caderninho dela com o seu próprio nome, devotando-lhe todas as atenções para o resto da noite, na maneira mais prazenteira. Mas o impulso que realizou essa agradável mudança foi o resultado de uma dessas novas impressões que ambos estavam inconscientemente dando e recebendo.
CAPITULO XV Num Mundo à Parte Na França as moças levam a existência monótona até que se casam e, então, Vive Ia liberte torna-se o seu lema. Na América, como toda gente sabe, as moças assinam bem cedo a declaração de independência e gozam a sua liberdade com um entusiasmo republicano. Mas as jovens esposas, desde o primeiro herdeiro, geralmente abdicam ao trono e am a viver num recolhimento quase tão absoluto como num convento de freiras na França, embora de forma alguma tão sossegado.
Queiram ou não queiram, são postas, virtualmente, à margem logo que a a vibração do casamento e muitas dentre elas podem exclamar, como fez recentemente uma linda mulher: ─ Ainda sou tão bonita quanto antes, mas ninguém mais toma nota disso porque sou casada. Não sendo uma beldade nem mesmo uma dama elegante, Meg não se afligiu com essa experiência até que os seus bebês completaram um ano de idade, pois no seu pequenino mundo prevaleciam os costumes primitivos e ela se viu mais irada e querida do que nunca. Como era uma mulherzinha bem feminina, o seu instinto maternal revelou-se bem forte e ela absorveu-se inteiramente em cuidar das crianças, com completa exclusão de todas as outras coisas e de todas as outras pessoas. Dia e noite ela se dedicava aos pequenos com infatigável devoção e ansiedade, deixando John à mercê do cuidado alheio, pois uma dama irlandesa dirigia agora o departamento da cozinha. Sendo um homem caseiro, John sentia decididamente a falta das atenções que estava acostumado a receber da esposa. Mas, como adorava os bebês, renunciou corajosamente ao seu conforto por algum tempo, supondo, com masculina ignorância, que a paz do lar seria em breve restabelecida. Porém três anos se aram e o repouso não voltou. Meg parecia cansada e nervosa, as crianças absorviam todos os minutos do seu tempo, a casa estava sendo descuidada e Kitty, a cozinheira, que gostava da vida folgada, deixava o patrão quase entregue a si mesmo. Quando ele saía de manhã, ficava atrapalhado com tantas pequenas encomendas que tinha de fazer para a cativa mamãe. Se voltava alegremente para casa ao anoitecer, ansioso por abraçar a sua família, era detido no seu entu siasmo por um: ─ Psiu, pegaram no sono agora mesmo, depois de me atrapalharem o dia inteiro. Se propunha um pequeno divertimento no próprio lar. ─ Não, isso incomoda as crianças. Se sugeria um eio ou um concerto, recebia como resposta um olhar de repreensão e um decidido: ─ Deixar os meus bebês, para me divertir, nunca! O sono de John era interrompido por choros de crianças e as visões de um fantasma andando de um lado para outro, silenciosamente, nas vigílias noturnas. As suas refeições eram cortadas freqüentemente pela fuga da dona da casa, que o abandonava, meio servido, se um canarinho ainda implume piava lá em cima no ninho. E quando ele ia ler o seu jornal da noite, a lista dos navios e os preços do mercado já tinham sido arrancados pelos bebês, pois a sra. Brooke só se interessava pelas notícias domésticas. O pobre homem andava muito sem conforto, pois as crianças lhe haviam arrebatado a esposa. O lar era apenas uma creche e o perpétuo psiu, lhe dava a impressão de ser um brutal intruso toda vez em que transpunha os limites secretos da bebelândia. Ele ou isso com muita paciência durante seis meses, e, não vendo aparecer qualquer sinal de melhoria, fez o que outros exilados paternais costumam fazer, tentou arranjar um pouco de conforto em qualquer outro lugar. Scott se tinha casado e morava perto dali. John deu para sair de casa durante uma hora ou
duas cada noite, quando a sua própria sala estava vazia e sua jovem esposa cantava canções de embalar que não tinham fim. A sra. Scott era uma moça bonita e gentil, sem ter outra coisa que fazer além de se tornar agradável, e ela cumpria essa missão de modo satisfatório. A sala estava sempre animada e atraente, preparado o tabuleiro de xadrez, bem afinado o piano, conversas alegres e uma linda ceiazinha apresentada sempre num estilo tentador. John teria preferido o seu próprio lar, se ele não estivesse tão deserto. Mas, da forma por que estava, aceitou agradecidamente a coisa melhor que encontrou por perto e distraiu-se na companhia dos vizinhos. No começo, Meg chegou a aprovar o novo estado de coisas e considerou um alívio saber que John estava ando uma hora agradável em vez de cochilar na saleta ou andar à toa por toda a casa, acordando as crianças. Mas pouco a pouco, quando aram as apreensões da dentição e os idolozinhos iam dormir nas horas apropriadas, deixando à mamãe algum tempo de repouso, ela começou a sentir a falta de John e a achar que a sua cesta de costura era uma companhia desinteressante, quando ele não estava sentado defronte dela, repousando confortavelmente a ponta dos chinelos na borda da lareira. Não lhe pedia para ficar em casa, mas ficava sentida, porque ele não lhe adivinhava o desejo sem precisar que ela dissesse, esquecendo inteiramente tantas noites que John a esperara em vão. Ela andava nervosa e cansada com o trabalho e a vigilância que os bebês lhe exigiam e nesse perturbado estado de espírito que as melhores das mães experimentam ocasionalmente quando as afligem preocupações domésticas. A falta de exercício tira-lhes a animação e o devotamento excessivo a esse ídolo das mulheres americanas, que é o bule de chá, faz que sintam como se fossem feitas só de nervos e não de músculos. — Sim dizia ela, observando-se diante do espelho, estou ficando velha e feia. John já não me julga interessante e por isso deixa a sua esposa emurchecida e vai ver a sua linda vizinha, que não tem trabalhos nem aborrecimentos. Não faz mal. Os bebês gostam de mim. Não procuram saber se eu estou magra e pálida e não tenho tempo para arranjar o cabelo. Eles são o meu consolo e um dia John há de ver que eu me sacrifiquei alegremente por eles. Não é, meu benzinho? A esse patético apelo, Daisy ou Demi respondia engrolhando qualquer coisa na sua linguagem infantil e Meg deixava as suas lamentações para cair numa folia maternal, que suavizava por algum tempo a sua solidão. Mas o sofrimento aumentou quando a política deu para absorver o espírito de John, que estava sempre correndo para a casa de Scott a fim de discutir problemas interessantes, sem notar a falta que dele sentia Meg. Ela, entretanto, não disse nada, até que a sua mãe foi encontrá-la chorando certo dia e insistiu em conhecer o motivo das lágrimas, pois o desânimo crescente de Meg não havia escapado à sua observação. — A ninguém mais, a não ser à senhora, mamãe, eu contaria o que há. Mas, realmente preciso de quem me aconselhe, pois, se John continuar assim por muito tempo, estarei quase na situação de uma viúva, disse a sra. Brooke, enxugando as lágrimas no babador de Daisy, com um arzinho sentido. — Continuar como, minha querida? perguntou a mãe ansiosamente. — a fora de casa o dia inteiro e, de noite, quando eu quero vê-lo, vai seguidamente para a casa dos Scott. Não é justo que eu tenha de fazer o trabalho
mais pesado, sem qualquer divertimento. Os homens são muito egoístas, até mesmo os melhores entre eles. — A mesma coisa eu digo das mulheres. Não censure o John antes de ver que você mesma está errada. — Mas eu não acho direito que ele se descuide de mim. ─ Você não se descuida dele? — Ora, mamãe, eu pensava que a senhora havia de ficar do meu lado! — E eu estou do seu lado, quando se trata de sentimentos. Mas acho que a culpa é sua, Meg. — Não sei por quê. — Deixe mostrar-lhe. John sempre se descuidou de você, como diz, enquanto Você teve o cuidado de fazer-lhe companhia durante a noite, que são as suas únicas horas de descanso ? — Não. Mas eu não posso fazer isso agora, tendo duas crianças para cuidar. — Penso que você pode querida. E penso também que você deve. Quer que eu lhe fale com franqueza e quer lembrar-se de que a mãe que censura é também a mãe que quer bem? — Quero, sem dúvida! Pale-me como se eu fosse de novo a Megzinha. Tenho a impressão de que necessito que me ensinem agora mais do que nunca, desde que essas criancinhas dependem de mim para todas as coisas. Meg arrastou a sua cadeira para perto da sra. March e, bem juntinho uma da outra, as duas mulheres coseram e conversaram carinhosamente, sentindo que o laço da maternidade as unia ainda mais do que antes. — Você fez somente o erro que muitas jovens esposas costumam praticar, esqueceu o seu dever para com o marido no muito amor pelos filhos. É um erro muito natural e muito perdoável, Meg, mas deve ser remediado antes que produza conseqüências sérias. As crianças devem unir vocês dois mais do que nunca e não separá-los, como se fossem exclusivamente suas e John não tivesse outra coisa a fazer a não ser sustentá-las. Vinha notando isso desde algumas semanas, mas não disse nada, estando certa de que com o tempo tudo se concertaria. — Tenho medo que não se concerte. Se lhe pedir para ficar em casa, ele há de pensar que estou com ciúmes e não quero insultá-lo com semelhante idéia. John não vê que eu sinto falta dele e não sei como explicar isso sem ser preciso falar. — Faça isto aqui tão agradável que ele não sinta mais vontade de sair. Meu bem, ele está doido pelo seu larzinho, mas sem você não há o lar, e você está sempre na creche. — Eu não devo ficar ali? — Não durante todo o tempo. O isolamento excessivo torna-a nervçra e assim você fica incapaz de qualquer outra coisa. Além disso, você tem tantas obrigações para com o John como para com as crianças. Não abandone o marido por causa dos filhos, não o afaste de onde estão os bebês, mas lhe ensine a ajudá-la ai. O lugar de John ó junto deles, como é o seu, e os pequenos precisam também do pai. Dá-lhe a entender que ele também tem a sua parte nessa obra e há de realizá-la alegre e fielmente. E isso será melhor para vocês todos. — Pensa realmente assim, mamãe?
— Sei o que digo, Meg, porque também já ei por isso. Raramente dou conselhos cuja praticabilidade não experimentei eu mesma. Quando você e Jo eram pequeninas, eu procedi tal e qual como você, sentindo que eu não cumpriria completamente o meu dever se não me dedicasse só e só às crianças. O pobre do seu pai fechou-se lá com os seus livros, depois que eu recusei todos os oferecimentos de auxílio, e deixou-me tentar sozinha a minha experiência. Lutei enquanto pude, porém Jo me dava trabalho demais. Quase que a estraguei pelo excesso de mimos. Você era fraquinha e me devotei, tanto que no fim eu mesma cal doente. Então seu pai veio em meu socorro, consertou placidamente todas as coisas e tornou-se tão ütil que eu vi logo o meu erro e desde então nurtca mais dispensei o seu auxílio. Este é o segredo da felicidade do nosso lar. Ele não deixa que os negócios o afastem dos pequeninos deveres e cuidados que dizem respeito a todos nós e eu não deixo que os afazeres domésticos destruam o meu interesse pelos seus planos. Cada qual faz sozinho a sua parte em muitas coisas, mas dentro do lar sempre trabalhamos juntos. — É assim mesmo, mamãe. Meu maior desejo é ser para o meu marido e para os meus filhos o que a senhora foi para os seus. Ensine-me como agir. Eu farei tudo que disser. — Você foi sempre a minha filhinha mais dócil. Pois bem, querida, no seu caso, eu deixaria que John fosse cuidando cada vez mais do Demi, porque todo garoto precisa de treinamento e nunca é cedo demais para começar. Então, eu faria o que já lhe propus muitas vezes, isto é, ter a Hannah aqui para ajudá-la. Ela é uma ama-seca de primeira ordem e você lhe deve confiar os dois preciosos pequerruchos, enquanto tiver de cuidar da casa. Você precisa de exercício. Hannah gostaria do descanso e John encontraria de novo a sua esposa. Vá mesmo mais longe. Façase alegre, ao mesmo tempo que ativa, pois você é o sol da família e, se não aparece, não há mais bom tempo. Além disso, no seu lugar, eu trataria de interessar-me pelo que John mais aprecia, conversaria com ele, pedir-lhe-ia que lesse para mim, trocaria idéias e nos ajudaríamos um ao outro dessa maneira. Não fique dentro de uma caixinha de segredos, só porque é uma mulher, mas trate de compreender o que está acontecendo e de educar-se a si mesma para tomar a sua parte no trabalho do mundo, porque tudo isso se relaciona consigo e com os seus. — John é tão sensível. Tenho medo que ele me venha a julgar muito boba se der para lhe fazer perguntas sobre política e outras coisas. — Não creia nisso. O amor cobre uma porção de pecados. E com quem você pode falar mais francamente do que com ele? Experimente e verá se não há de achar a sua companhia muito mais agradável do que as ceias da sra. Scott. — Quem dera! Coitado do John! Receio muito que o abandonei melancolicamente, mas eu pensava que agia bem e ele nunca disse nada. — Ele tentou não parecer egoísta, mas deve ter-se sentido um tanto desprezado, creio eu. Essa é exatamente a ocasião, Meg, em que os recém-casados tendem a se aias-tar um do outro cada vez mais. No entanto, esse é o tempo em que se devera unir ainda mais, porque as primeiras ternuras am depressa, quando não se tem o cuidado de guardá-las. E tempo algum é tão belo, tão precioso para os pais como os primeiros anos das vidazinhas que têm de desenvolver. Não deixe que John seja um estranho para os bebês, pois eles farão mais do que ninguém para
conservá-lo são e feliz neste mundo de luta e de tentações. Com as crianças, vocês dois aprenderão a conhecer e amar um ao outro como devem. Agora, meu bem, adeus. Pensa nos conselhos da mamãe, proceda como lhe parecer melhor e Deus abençoe a vocês todos. Meg pensou, procedeu como lhe pareceu melhor e agiu de acordo com os conselhos, embora a primeira tentativa não saísse exatamente como tinha planejado. Naturalmente as crianças a tiranizavam e governavam a casa desde que perceberam que berrando e esperneando conseguiam sempre tudo o que queriam. Mamãe era uma escrava submissa aos seus caprichos, porém papai não se deixava subjugar tão facilmente e uma vez por outra afligia a sua terna esposa tentando exercer a disciplina paternal sobre o seu travesso filho. Porque Demi herdou um pouco da firmeza de caráter do pai podemos mesmo chamá-lo de obstinação. Quando lhe encasquetava na cabeça a idéia de que devia ter ou fazer alguma coisa, não havia neste mundo quem mudasse aquele espiritozinho teimoso. Mamãe achava que o benzinho era ainda muito novo para que se lhe ensinasse a dominar os seus impulsos, porém papai entendia que nunca era cedo demais para se aprender a obediência. Assim, o senhor Demi bem cedo descobriu que quando jogava as cristas com o papai sempre saíra perdendo. Contudo, tal e qual um inglês, o bebê respeitava o homem que o conquistara e amava o pai, cujo severo não, não, impressionava muito mais do que os apelos amorosos da mamãe. Alguns dias depois da conversa que teve com sua mãe, Meg resolveu tentar uma noite de vida social com John. Mandou preparar uma linda ceia, pôs em ordem a sala de visitas, vestiu-se lindamente, levou as crianças bem cedo para a cama, a fim de que nada atrapalhasse a sua experiência. Mas, infelizmente, a mais invencível prevenção de Demi era ir para a cama e nessa noite ele resolveu fazer uma greve de insônia. Assim, a coitada Meg cantou e embalou, contou histórias e recorreu a todos os planos capazes de provocar o sono, mas foi tudo em vão, pois o pequeno continuava com os olhos escancarados. E muito tempo depois que a Daisy já estava sonhando com bonecas e bombons, como uma menina boazinha que era, o impertinente Demi continuava olhando fixamente para a luz, com a mais desanimadora expressão de quem pretendia ar a noite acordado. — Demi quer ser um bom menino e deitar-se direitinho, enquanto mamãe vai descer para dar chá ao pobrezinho do papá? perguntou Meg, quando a porta da sala se fechou de vagar e os os bem conhecidos do esposo soavam na sala de jantar. — Telo chá! disse Demi, preparando-se para tomar parte na festança. — Não é possível, mas eu guardarei alguns docinhos para amanhã, se você for dormir como a Daisy. Você vai, não é benzinho ? — Mum!... e Demi fechou os olhos depressa, como se estívesse disposto a dormir, para apressar a vinda do desejado amanhã. Aproveitando-se dessa boa ocasião, Meg desceu jeitosamente e correu para saudar o marido com uma face risonha e o pequeno laço azul nos cabelos, que era do seu especial agrado. Ele notou isso afinal e disse, alegremente surpreendido: — Que é isso, mamãezinha? Hoje estamos alegres. Vamos ter visitas? — Não. Só você, querido. Estou cansada de ser uma gata borralheira e assim me preparei toda hoje, para mudar um pouco de aspecto. Você sempre se arranja
para o jantar, esteja cansado ou não. Por que não hei de fazer o mesmo, quando tenho tempo para isso? — Procedo assim em atenção a você, minha querida, disse o adista John. — Muito bem dito, sr. Brooke, sorriu Meg, parecendo de novo bonita e jovem quando se inclinou para o marido, a fim de servir o chá. — Muito bem, isso é um tanto agradável e parecido com o nosso bom tempo. Eu bebí à sua saúde, querida, e John sorveu o chá com um jeito de tranqüila ventura, que foi, aliás, de curta duração. Realmente, quando colocou de novo a xícara no pires, o gonzo da porta rangeu misteriosamente e uma vozinha gritou com impaciência: — Mamãezinha eu também "telo"! — Esse menino é impertinente. Eu lhe disse para ir deitar sozinho e ele aqui está, embaixo, dispondo-se a apanhar um resfriado. — Já é de manhã "agola", anunciou Demi, num tom alegre, ao entrar, com a sua comprida camisola de dormir enrolada no braço e os cachinhos balançando animadamente, quando trepou na mesa para namorar os doces com olhares carinhosos. — Não, ainda não é de manhã. Você deve voltar para a cama e não atrapalhar mais a pobre da mamãe. Então, você poderá ter aí um bolinho com açúcar. — "Telo brinca" com papai, disse o pequerrucho astucioso, preparando-se para cavalgar o joelho paterno e tomar parte em alegrias proibidas. Mas John balançou a cabeça e disse: —- Se você lhe disse que devia ficar lá em cima, deitado na cama, faça com que ele obedeça, pois, do contrário, nunca mais se importará com as suas ordens. — Sim, naturalmente. Venha, Demi, e Meg saiu da sala arrastando o filho com um forte desejo de dar palmadas no diabinho que esperneava, embora alimentando a ilusão de que teria um agradinho quando chegasse lá em cima. E realmente não perdeu por esperar. Pois aquela mulher de vistas curtas lhe deu um torrãozinho de açúcar, ao mesmo tempo que o deitava e o proibia de fazer novos eios, até o dia seguinte. — Hum!... resmungou novamente Demi, o perjuro, chupando bem aventuradamente o seu açúcar e considerando a sua primeira tentativa como plenamente bem sucedida. Meg voltou ao seu lugar e a ceia estava correndo agradavelmente, quando o demoniozinho apareceu outra vez e denunciou a fraqueza materna, pedindo ousadamente: — Mais açúcar, mamãe. — Ora, isso não se faz disse John, mostrando cara de poucos amigos diante do simpático delinqüentezinho. Não teremos nunca paz dentro da casa enquanto esta criança não aprender a ficar na cama nas horas certas. Você já se sacrificou demais. Dê-lhe uma lição e verá como isso acaba. Ponha-o na cama e deixe-o lá, Meg. — Ele não há de ficar ali. Não fica nunca, a não ser quando eu me sento perto.
— Deixe por minha conta. Demi, já para cima e vá para a cama, como mamãe mandou. — Não "telo", retrucou o pequenino revoltoso, servin-do-se do cobiçado bolo e começando a comê-lo com o mais tranqüilo atrevimento. — Você não deve dizer isso nunca ao papai. Eu o arrastarei para cima, se não for por si mesmo. — Vá se "embola". Não "telo" mais "sabe" de papai, e Demi correu, procurando uma trincheira de defesa nas saias maternas. Contudo, nem esse refúgio serviu, pois foi entregue ao inimigo com um: ─ Tenha paciência com ele, John, que ainda mais assustou o reuzinho. Pois, se mamãe o abandonava, isso queria dizer que tinha chegado o dia do juízo final. Perdendo o bolo e a trayessura, arrastado por uma mão forte para a tão detestada cama, o pobre do Demi não podia conter a sua zanga e desafiava abertamente o papai, berrando e batendo com os pés enquanto era levado para cima. Um segundo depois de ser metido na cama, já ele tinha saltado de novo e marchava para a porta, mas foi vergonhosamente apanhado pela cauda da camisola e recolocado no devido lugar. Essa encantadora experiência se repetiu várias vezes até que a força do homenzinho se foi embora, entregando-se apenas a um chorinho em surdina. Esse exercício vocal costumava amolecer o coração de Meg. Mas John permaneceu inflexível, inteiramente surdo ao sentimental apelo. Nem agradinhos, nem açúcar, nem cantorias, nem histórias de Trancoso. Até a luz foi apagada e só o revérbero vermelho do fogão alumiava a treva que Demi olhava com mais curiosidade do que propriamente medo. Essa nova ordem de coisas desgostou o pequerrucho e ele deu para chamar aflitamente pela mamãe, enquanto subsistiam as suas coléricas paixões é voltavam ao espírito do vencido autocrata as lembranças da boa serva que tivera. O murmúrio queixoso que sucedeu ao estrondo indignado tocou a alma de Meg e ela subiu dizendo quase numa súplica: — Deixa-me ficar com ele. Agora há de proceder direitinho, John. — Não, minha querida. Eu já disse que ele deve ficar na cama como você mandou. E há de fazer assim, nem que eu tenha de ar aqui a noite inteira. — Mas ele há de ficar doente de tanto chorar, advogou Meg, censurando-se a si mesma por não ter defendido ainda o filho. — Não, isso não acontecerá. Ele está tão cansado que deixará de chorar dentro em breve e então tudo ficará resolvido, pois há de compreender o que está observando agora. Não intervenha. Deixe o caso por minha conta. — Ele é meu filho e não posso itir que o seu espiritozinho seja esmagado por tanta dureza. — Ele também é meu filho e não quero que a sua índole seja estragada por excesso de indulgência. Desça, minha querida, e deixe o menino comigo. Quando John falava em voz de comando, Meg sempre obedecia e nunca tinha de lamentar a sua docilidade. — Por favor, John, você me deixa beijá-lo ainda uma vez? — Naturalmente: Demi, diga boa noite à mamãe, e deixe que ela vá repousar, pois está cansada de cuidar de você o dia todo. Meg pensava sempre que o beijo conquistaria a vitória. Com efeito, depois
que foi dado, Demi soluçou mais mansamente e acabou ficando silencioso no meio do leito, embora ainda com o espírito perturbado. — Coitado do homenzinho! Está tonto de sono e cansado de tanto berreiro. Vou cobri-lo direitinho e depois descerei para tranqüilizar o coração de Meg, pensou John, aproximando-se cautelosamente da cena, na esperança de encontrar adormecido o seu tão rebelde herdeiro. Foi em vão a esperança. No momento em que o pai se aproximou, os olhos de Demi se abriram, o queixinho começou a tremer e o menino ergueu os braços, dizendo num murmúrio penitente: — "Mim tá bonzinho, agola". Sentada num degrau, do lado de fora, Meg estranhou o longo silêncio que sucedeu à trovoada. E depois de imaginar toda espécie de impossíveis acidentes, entrou de mansinho no quarto, para sossegar em seguida. Demi dormia profundamente. Não na sua atitude de águia desafiadora, mas todo encolhidinho, apertado no círculo do braço do seu pai e segurando um dedo de John, como se compreendesse que a justiça era adoçada pela clemência. E assim adormeceu, como um bebê mais triste e também mais ajuizado. Preso assim, John tinha esperado com paciência feminina que a mãozinha do filho o soltasse. E enquanto esperava, adormecera também, mais cansado pela luta com o filho do que por todo o trabalho do seu dia. E Meg, depois de espiar as duas faces inclinadas sobre o travesseiro, sorriu para si mesma e saiu de novo cautelosamente, pensando com ar satisfeito: — Não terei nunca motivos para recear que John seja áspero demais com os meus bebês. Ele sabe como educá-los e a sua ajuda será muito útil, pois sozinha já não posso com Demi. Quando John desceu afinal, esperando encontrar uma esposa pensativa ou ressentida, teve a agradável surpresa de deparar a Meg enfeitando placidamente um chapelinho e agradando-o com o pedido para ler alguma coisa a respeito das eleições, se não estivesse muito cansado. John percebeu imediatamente que uma revolução se estava operando, 'mas teve a habilidade de não fazer perguntas, sabendo que Meg era uma criaturinha transparente e nem mesmo para salvar a sua própria vida saberia guardar um segredo. O marido leu um longo debate na Câmara com a mais amistosa solicitude e então o explicou da maneira mais lúcida, enquanto Meg tentava parecer profundamente interessada, fazendo perguntas inteligentes e tratando de impedir que os seus pensamentos voassem da posição do país para a posição do chapéu. Contudo, no íntimo do seu coração, ela achava que política era uma coisa tão complicada como matemática e que a missão dos políticos parecia consistir em dizer desaforos uns aos outros. Entretanto, guardou para si mesma essas idéias femininas e, quando John parou de ler, ela balançou a cabeça e disse com uma ambigüidade que lhe parecia diplomática: — Francamente, eu não vejo onde é que vamos parar. John sorriu e observou por um momento, enquanto ela ajustava uns pequeninos enfeites de renda e de flores, exa-minando-os com o genuíno interesse que os discursos parlamentares não tinham conseguido despertar. — Ela está procurando ver se gosta de política, por minha causa; assim, tentarei também gostar de assuntos de moda. Isso é justo, pensou John, acrescentando em voz alta:
— Isso é bonitinho. fi o que se chama um gorro para eios matinais, não é? — Ora, meu maridinho, isso é um chapéu para grandes ocasiões, é o que tenho de melhor para ir a teatro e concertos. — Peço-lhe perdão. É tão pequenino que eu naturalmente o confundi com essas touquinhas ligeiras que você usa de vez em quando. Como é que isso se mantém na cabeça ? — Essas pontas de fita são atadas sob o queixo com um botão de rosa, assim, e Meg ilustrou o que dizia pondo o chapéu e fitando o marido com um ar de tranqüila satisfação, que era irresistível. — E é um amor de chapéu, mas eu prefiro o rosto que está debaixo dele, porque parece jovem e feliz outra vez, e John beijou à face risonha, com grande perigo para o botão de rosa que estava sob o queixo. — Alegro-me em saber que você gosta desse chapeu-zinho, pois quero que me leve qualquer noite dessas a um concerto. Preciso realmente de um pouco de música para ficar afinada. Quer fazer-me esse favorzinho? — Naturalmente. Irei com você aonde quiser, de todo o meu coração. Você tem vivido fechada dentro de casa e um eiozinho de vez em quando há de lhe fazer muito bem. Quanto a mim, prefiro isso a qualquer outra coisa. Quem lhe pôs essa idéia na cabeça, mamãezinha? — Bem, andei conversando outro dia com mamãe e lhe disse como andava nervosa, cansada e tudo o mais que sentia. Ela achou que eu preciso distrair-me um pouco e ter menos preocupações. Assim, Hannah veio ajudar-me na lida eom as crianças e eu posso cuidar mais da casa e me divertir de vez em quando, para não ficar uma mulher velha e rabujenta antes do tempo. É apenas uma experiência, Jóhn, e quero tentá-la também por você quanto por mim, porque ultimamente eu me descuidei muito de agradá-lo, mas vou agora fazer do lar o que ele costumava ser, se ainda puder. Você não se opõe a isso, não é? Não importa o que John disse nem que perigo correu de novo o chapeuzinho que enfeitava a face de Meg. Só é necessário saber que John não pareceu fazer qualquer oposição, a julgar pelas transformações que gradualmente se verificaram na casa e nos seus moradores. Por certo, nem tudo ali era paradisíaco, porém tudo ia correndo muito melhor pelo sistema de divisão do trabalho. As crianças andavam direitinhas sob as ordens paternas, pois o cuidadoso e enérgico John impôs respeito e obediência no reino de Bebê, enquanto Meg recuperava o ânimo e acalmava os nervos pelo exercício diário, por algum divertimento e muitas conversas confidenciais com o seu sensível esposo. O lar tornou-se outra vez como deve ser um lar e John não tinha coragem de sair de casa, a não ser acompanhado de Meg, Os Scott agora é que vinham visitar os Brooke e toda gente achava a residenciazinha um lugar agradável, cheio de felicidade, paz e amor familiar. Até a tão alegre Sallie Moffat gostava de ir ali. ─ É tão quieta e aprazível a sua casa! Ela me faz bem Meg, costumava dizer, observando tudo com atenção, como se tentasse descobrir o encanto que devia pôr na sua casa tão grande e cheia de tão esplêndida solidão; pois não havia lá crianças coradas e travessas. Essa facilidade doméstica não veio toda de uma vez, mas John e Meg tinham encontrado o segredo dela e cada ano de vida em comum lhes
ensinava como aumentá-la, abrindo os tesouros do verdadeiro amor conjugai e do auxílio mútuo, que os mais pobres podem possuir. Esse é o mundo à parte no qual jovens esppsas e mães podem consentir em ficar, longe da inquietação, encontrando quem lhes queira bem com sinceridade nos filhinhos e filhinhas, que as abraçam, indiferentes às devastações da dor, da pobreza ou do tempo; andando em estradas luminosas ou sombrias, ao lado de um fiel companheiro, que é, no verdadeiro sentido de uma velha palavra saxônica, o house-band, isto é, o marido; e aprendendo, como Meg aprendeu, que o reino mais feliz da mulher é o lar; que a sua mais alta honra está na arte de governá-lo, não como uma rainha, mas como uma sábia esposa e mãe.
CAPITULO XVI 0 Vadio Laurence Laurie foi a Nice, pretendendo ficar ali uma semana, e demorou-se um mês. Estava cansado de vaguear sozinho e a presença familiar de Amy parecia dar um encanto doméstico às cenas estrangeiras em que ela tomava parte. Tinha sentido um pouco a falta dos agradinhos que costumava receber e agora estava experimentando outra vez aquele sabor, pois todas as atenções, embora lisonjeadoras, de pessoas estranhas não eram tão apreciadas como a fraternal adoração das mocinhas suas amigas. Amy nunca o acariciou como as outras, mas parecia muito satisfeita por vêlo agora e muito ligada a ele, sentindo que era o representante de uma família querida, por quem se interessava mais do que ousaria confessar. Naturalmente ambos se sentiram muito bem em companhia um do outro e andavam sempre juntos, cavalgando, eando a pé, dançando, ou apenas vadiando, pois em Nice ninguém pode ser muito trabalhador na estação alegre. Mas, enquanto aparentemente se divertiam do modo mais descuidado, ambos estavam meio-conscientemente fazendo descobertas e formando opiniões um a respeito do outro. Amy subia diariamente no apreço do amigo, enquanto o rapaz descia no conceito dela, e ambos compreendiam essa realidade antes que trocassem qualquer palavra. Amy procurava agradar e era bem sucedida, pois agradecia os variados divertimentos que ele lhe proporcionava e lhe dava a compensação nesses servicinhos a que as mulheres de temperamento bem feminino sabem emprestar um encanto inefável. Laurie não fazia esforço de qualquer espécie, mas se deixava levar pela vida tão confortavelmente quanto possível, tentando esquecer e sentindo que todas as mulheres deviam ter uma palavra boa para ele, porque uma só lhe tratou com frieza. Não lhe custava nenhum esforço ser generoso e ele teria presenteado Amy com todas as miudezas existentes nas lojas de Nice, se ela as aceitasse. Mas, ao mesmo, tempo, Laurie compreendia que nem assim mudaria a opinião que ela estava formando a seu respeito e temia um pouco a penetração daqueles olhos azuis que pareciam perscrutá-lo com uma surpresa meio triste e meio decepcionada.
— Todo o pessoal foi ar o dia em Mônaco. Eu preferi ficar em casa e escrever algumas cartas. Elas já estão prontas agora e eu vou a Valrosa para fazer alguns esboços. Quer vir também? disse Amy quando se encontrou com Laurie num dia delicioso em que éle, como de costume, espairecia as idéias, sem ter o que fazer. — Pode ser. Mas não acha, que está um tanto quente para tão longo eio? disse vagarosamente, pois a sombra do salão parecia convidativa diante da claridade excessiva da rua. — Vou mandar chamar uma pequena carruagem e Batista poderá guiar. Assim, você não terá outra coisa a fazer senão segurar o seu chapéu-de-sol e tomar cuidado para não sujar as luvas, respondeu Amy, com um olhar sarcástico para as imaculadas luvas de Laurie, que era uma das suas fraquezas. — Nesse caso, irei com prazer, e ele estendeu o braço para apanhar o caderno de desenhos da moça porém ela o segurou antes dele, dizendo logo: — Não se incomode. Não é peso para mim, mas não parece que seja assim também para você. Laurie franziu as sobrancelhas e seguiu num o indolente, enquanto ela descia as escadas correndo. Mas quando subiram à carruagem, o rapaz tomou as rédeas e não deixou ao pequeno Batista outra coisa a fazer senão cruzar os braços e cochilar na boléia. Os dois nunca discutiram. Amy era educada demais para isso e Laurie naquele tempo tinha até preguiça de brigar. Assim, no momento em que ele olhava curiosamente para a face bonita que se via sob a aba do chapéu de palha, ela respondia com um sorriso e ambos iam indo da maneira mais amistosa. Foi um eio adorável, através de estradas frescas e ricas de cenas pitorescas, que deliciavam os olhos enamorados da beleza. Aqui havia um velho mosteiro, de onde chegava até eles a cantoria solene dos frades. Ali um pastor de calças curtas, e de tamancos, chapéu pontudo e jaqueta caindo sobre um dos ombros, fumava sentado numa pedra, enquanto as suas cabras pulavam entre os rochedos, ou se deitavam aos seus pés. Burricos quietos, carregando feixes de capim recentemente cortado, avam por ali, com uma linda moça sentada entre as pilhas verdes ou uma velha que fiava com uma roca, enquanto seguia. Crian ças morenas, de olhos suaves, corriam de cabanas de tijolo para oferecer ramalhetes ou laranjas ainda presas ao galho. Nodosas oliveiras cobriam as colinas com a sua folhagem, frutos dourados pendiam das árvores nos pomares e grandes anêmonas esearlates bordeavam a estrada. Acima dos verdes declives e das alturas fragosas, os Alpes Marítimos erguiam-se abruptos e brancos contra o azulado céu italiano. Valrosa bem merecia esse nome, porque naquele clima de perpétuo verão as rosas floresciam por toda parte. Cobriam a varanda, metiam-se entre as grades do portão como uma saudação .amável aos que avam e bordavam toda a avenida, balançando-se entre limoeiros e palmeiras até a vila sobre a colina. Cada tianto sombreado, onde bancos convidavam ao repouso, era um imenso ramalhete. Cada gruta fresca tinha a sua ninfa de mármore sorrindo por entre véus de flores e cada fonte refletia rosas brancas, vermelhas, de várias cores, que se inclinavam para sorrir à sua própria beleza espelhada na água. Rosas cobriam os muros das casas, vestiam as cornijas, trepavam pelos pilares e corriam sobre a balaustrada do amplo terraço, de onde se podia olhar para o Mediterrâneo brilhando ao sol e para a cidade
branca que se estendia a sua margem. — Isto aqui é um paraisozinho bem bom para uma lua-de-mel, não acha? Já viu alguma vez tantas rosas? ─ perguntou Amy, detendo-se no terraço para gozar o panorama e um delicioso eflúvio perfumado que vinha de toda parte. — Não, nem senti tantos espinhos, retrucou Laurie, com a ponta de um dedo na boca, depois de um vão esforço para apanhar uma solitária flor vermelha que estava um pouco acima do seu alcance. — Tente com as que estão maie embaixo e arranque as que não tenham espinhos, disse Amy, colhendo três florezinhas cor de creme que enfeitavam a parede etrás dela. Colocou-as na lapela de Laurie, como uma proposta de paz, e ele ficou um minuto olhando para as flores com uma curiosa expressão, porque na parte italiana da sua natureza havia traços de superstição e estava exatamente num estado de melancolia agridoce, no qual os jovens cheios de imaginação encontram um sentido nas coisas mais simples e vêem romanticismo por toda parte. Pensava em Jo quando quis apanhar a rosa vermelha e cheia de espinhos, pois as flores bem vivas eram as que ela mais apreciava e muitas vezes tinha arrancado algumas da roseira da casa de Laurie. As rosas pálidas que Amy lhe der são as que os italianos põem nas mãos dos mortos e nunca no ramalhete das noivas e, por um momento, ele perguntou a si mesmo se o mau presságio seria para Jo ou para ele. Mas, no instante seguinte, o seu bom senso americano reagiu contra o sentimentalismo e ele riu o riso mais franco que Amy já ouvira desde que ele viera. — É um bom aviso. Deve aceitá-lo para salvar os seus dedos, disse ela pensando que a sua observação divertia o rapaz. — Obrigado pelo conselho. Vou segui-lo, respondeu ele em brincadeira, mas alguns meses depois havia de fazê-lo a, sério. — Laurie, quando você vai para a companhia de seu avô? ─ perguntou ela, ao sentar-se num banco rústico. — Muito breve. — Você já disse isso uma dúzia de vezes durante essas três últimas semanas. — Acho que as respostas curtas evitam aborrecimentos. — Ele está esperando por você e você realmente deve ir. — Hospitaleira criatura! Eu sei disso. —- Então, por que não vai? — Insensibilidade natural, creio eu. — Indolência natural, é o que eu digo. Isso é realmente horrível. E Amy parecia severa. — Não é tão mau como parece, porque eu só poderei contagiá-lo, se for. Assim, é melhor que eu fique e a contagie mais um pouco, pois você pode ar mais facilmente. Aliás, eu acho que isso vai muito bem com a sua natureza, e Laurie preparou-se para um eio pela borda larga da balaustrada. — Que é que você está fazendo agora? — Espiando lagarto. — Não, não, é isso. Quero dizer: o que é que você pretende fazer? — Fumar um cigarro, se me der licença. — Como você é implicante! Não aprovo o fumo e só deixo você experimentar
um cigarrinho sob a condição de posar para o meu desenho. Preciso de um modelo. — Com o máximo prazer. Como quer desenhar-me em tamanho natural, só o busto, ou de cabeça para baixo? Eu muito respeitosamente sugiro uma pose reclinada. Ponha toda a sua alma nisso e lhe dê um título: "Dolce far niente". — Fique como está e pegue no sono, se quiser. Pretendo trabalhar com afinco. ─ Disse Amy no seu tom enérgico. — Que delicioso entusiasmo! ─ E ele se inclinou contra uma urna alta, com um ar de inteira satisfação. — Que diria Jo se visse você agora?─ Perguntou Amy impacientemente, com a esperança de aqüietá-lo ao mencionar o nome de sua ainda mais enérgica irmã. — Diria como sempre: Vai embora, Teddy, estou ocupada. E riu quando disse isso, mas riu sem naturalidade e uma sombra ou pelo seu rosto, pois o nome lembrado viera tocar na ferida que ainda não estava cicatrizada. Esse riso falso e essa sombra de tristeza impressionaram Amy que já havia notado antes a mesma coisa. Ela procurou então aproveitar um momento para colher uma nova expressão na face de Laurie, um aspecto amargurado, rude, cheio de dor, insatisfarão e pesar. Mas essa expressão desapareceu antes que ela pudesse estudá-la e o ar distraído e brincalhão voltou outra vez. Ela o observou por um instante, com prazer artístico, pensando como ele parecia italiano, aquecendo-se ao sol com a cabeça descoberta e os olhos sonhadores de meridional. Laurie parecia tê-la esquecido, caindo num devaneio. — Você se assemelha à efígie de um jovem cavaleiro adormecido em seu túmulo, disse ela, traçando cuidadosamente o bem delineado perfil contra a pedra escura. — Antes fosse! — É um desejo maluco, a menos que já tenha estragado a sua vida. Você está tão mudado!. As vezes chego a pensar. Aí Amy parou, com uma expressão meio tímida, meio provocante, mais significativa do que a sua frase inacabada. Laurie notou e compreendeu a afetuosa ansiedade que ela hesitava em exprimir e, com os olhos cravados nos dela, disse naturalmente: — Tudo vai bem. Isso a satisfez e afastou as dúvidas que tinham começado a inquietá-la ultimamente. Também a comoveu, e ela quis mostrá-lo pelo tom cordial com que disse: — Isso me alegra muito. Nunca pensei que você fosse um mau menino, mas imaginei que tivesse gasto muito dinheiro naquele maldito Baden-Baden, perdido a cabeça por causa de qualquer sinha encantadora ou caído numa dessas armadilhas que os rapazes parecem considerar como uma parte necessária de toda viagem pelo estrangeiro. Não fique aí tomando sol; venha para cá, deite-se na grama e sejamos bons amiguinhos, como Jo costumava dizer quando íamos para o canto do café trocando confidencias. Laurie obedientemente deitou-se sobre a relva e começou . a se divertir enfiando margaridas por entre as fitas do chapéu de Amy, que estava jogado ali. — Estou pronto para as confidencias, e ele demonstrou nos olhos uma decidida expressão de interesse.
— Eu não tenho nada para dizer. Você pode começar. — Também não tenho nada que valha a pena contar. Pensei que talvez você tivesse algumas notícias novas de casa. — Tudo que veio ultimamente você já conhece. Já não lhe falei muitas vezes sobre as cartas? — Eu imaginava que Jo lhe enviaria verdadeiros relatórios. — Ela anda muito ocupada. Além diso, tenho andado de um lado para outro e por isso é impossível receber cartas com regularidade. — Quando você começa a sua grande obra-de-arte, Rafaela? Perguntou ele mudando abruptamente de assunto, depois de uma pausa, em que estivera perguntando a si mesmo se Amy conhecia o seu segredo e desejava que êle lhe dissesse alguma coisa. — Nunca, respondeu ela, com ar desanimado, porém firme. Roma tirou-me todas as vaidades. Depois de ver ali tantas maravilhas, senti-me insignificante demais e todas as minhas loucas esperanças se transformaram em desespero. — Por que isso, com tanta energia e talento? — Porque ora, porque talento não é gênio e não há energia que possa transformá-lo. Quero ser uma grande artista ou coisa alguma. Não quero ser uma vulgar pintora de tabuletas, e por isso não continuei nas minhas tentativas. — E que pretende fazer de si mesma agora, se me permite fazer essa pergunta? — Apurar os meus outros talentos e ser um ornamento de sociedade, se for possível. Foi o modo de falar bem característico e pareceu audacioso; mas audácia vai bem com a juventude e a ambição de Amy tinha uma boa base. Laurie sorriu, mas apreciou o ânimo com que ela abraçava um novo ideal quando morrera um tão antigo e tão acariciado, sem perder tempo em lamentações. — Ora, muito bem! E é aí que o Fred Vaughn entra em cena, creio eu. Amy guardou , um discreto silêncio, mas havia na sua face qualquer coisa que fez Laurie sentar-se e dizer gravemente : — Agora eu vou representar o papel de irmão e fazer algumas perguntas. Consente? — Não prometo responder. — A sua fisionomia responderá, se a língua não o quiser. Você ainda não está bastante treinada na sociedade para dissimular o seu sentimento, meu bem. Ouvi certos boatos a respeito de você e de Fred no ano ado e é minha opinião íntima que, se não tivesse sido chamado para casa tão subitamente e detido ali por algum tempo, alguma coisa já teria saído disso. Que tal? — Isso não me cabe dizer, foi a resposta afetada de Amy. Mas os seus lábios queriam sorrir e havia no olhar um brilho traiçoeiro, dando a entender que ela conhecia a sua própria força e saboreava esse conhecimento. — Não existe ainda um compromisso entre vocês, espero. Não é assim? ─ E Laurie tomou ares de irmão mais velho, tornando-se subitamente muito sério. — Não. — Mas haverá, se ele voltar a cair aos seus pés, não é? — É muito provável.
— Então você está doidinha pelo Fred? — Ficarei, se tentar. — Mas você não pretende fazer essa tentativa até o momento apropriado? Meu Deus, que prudência sobre-humana! Ele é um bom camarada, Amy, mas não é o homem que eu julgo capaz de lhe inspirar amor. — Ele é rico, procede como um gentleman e tem maneiras muito agradáveis, começou Amy, tentando mostrar-se perfeitamente fria e digna, mas sentindo-se um pouco envergonhada da sinceridade das suas intenções. — Compreendo. As rainhas da sociedade não podem governar sem dinheiro. Assim, você pretende arranjar um bom partido e está disposta a agir nesse propósito, não é? Perfeitamente certo e direito, na opinião do mundo; mas soa falso nos lábios de uma das filhas de sua mãe. — No entanto, é verdadeira. Foi uma resposta curta, mas a tranqüila decisão com que foi pronunciada contrastava curiosamente com a jovem criatura. Laurie sentiu isso instintivamente e deitou-se de novo na relva, com um sentimento de decepção que êle mesmo não poderia explicar. O seu ar e o seu silêncio, assim como uma certa reprovação íntima, perturbaram Amy, que resolveu então explicar os seus pontos de vista sem mais demora. — Quer fazer-me o favor de levantar-se um pouco? disse ela secamente. — Se é uma boa menina, levante-me você. — Levantaria mesmo, se quisesse, e ela parecia estar disposta a fazê-lo no estilo mais sumário. — Tente, então. Eu lhe dou licença. ─ Respondeu Laurie que se divertia tendo alguém para desafiar, depois de uma larga abstinência do seu a tempo favorito. — Você ficará zangado dentro de cinco minutos. — Eu nunca me zango com você. Você é tão gelada e tão macia como a neve. — Você não sabe o que eu posso fazer. A neve também arde e queima, quando aplicada com jeito. A sua indiferença tem pelo menos metade de afetação e uma boa esfregadela pode provar isso. — Então não se acanhe. Isso não me dói e pode até diverti-la, como dizia o gigante quando a sua mulherzinha lhe dava pancada. Faz de conta que eu sou um marido ou um tapete e bate-me até que eu fique cansado, se essa espécie de exercício lhe agrada. Tendo sido francamente desafiada e desejosa de vê-lo abandonar o estado de apatia que tanto o transformara, Amy afiou o lápis e a língua e começou: — Fio e eu arranjamos um novo apelido para você. É o vadio Laurence. Que tal lhe parece? Ela pensou que isso iria aborrecê-lo. Entretanto êle apenas cruzou os braços sob a cabeça, com um imperturbável : — Não está mal. Muito obrigado, minha senhora. — Quer saber o que eu penso sinceramente a seu respeito ? — Estou doidinho por isso. — Pois bem: eu o desprezo.
Se ela tivesse mesmo dito eu o odeio, num tom petulante ou coquete, ele teria rido e gostaria um pouco disso. Mas o acento grave, quase melancólico, da sua voz fez que o rapaz abrissse os olhos e perguntasse vivamente; — Por que, se me faz favor? — Porque tendo todas as possibilidades para ser bom, útil e feliz, você está cheio de culpas, é preguiçoso e infeliz. — A linguagem é muito forte, senhorita. — Se gosta, continuo. — Continue, eu lhe peço. Isso é muito interessante. — Eu já sabia que você tinha de achar assim. Gente egoísta gosta sempre que se fale a seu respeito. — Eu egoísta? A resposta saltou involuntariamente dos seus lábios, num tom de surpresa, pois a única virtude de que se envaidecia era a da generosidade. — Sim, muito egoísta, continuou Amy numa voz calma e fria, muito mais eficiente, naquele momento do que se fosse colérica. Eu lhe mostrarei como você é egoísta, pois o venho estudando enquanto andamos por aí em festas e eios e não estou de forma alguma, satisfeita consigo. Há quase Seis meses que você anda aqui pelo estrangeiro e não fez ainda nada a não ser gastar tempo e dinheiro e desapontar os seus amigos. — Então, um camarada não tem direito a se divertir um pouco depois de quatro anos de lutas? — Você não dá a impressão de que se está divertindo muito. Pelo menos, até onde posso observar, você não parece que tem melhorado com tão longas férias. Quando eu o encontrei aqui pela primeira vez, disse-lhe que você tinha melhorado. Agora, dou o dito por não dito, pois não acho que você valha agora a metade que valia quando o deixei lá em casa. Você tornou-se abominavelmente preguiçoso, gosta de conversa fiada e gasta um tempo precioso em coisa frívola. Fica satisfeito por ser irado e adulado por gente fútil, em vez de ser querido e respeitado pelas pessoas ajuizadas. Com tanto dinheiro, talento, posição, saúde e beleza, você ainda gosta, dessas coisas. Oh, velha vaidade! Essa é a verdade e não resisto a tentação de dizê-la. Com tão esplêndidas qualidades para ser útil e feliz, você não encontra outra coisa a fazer senão mandriar. E em vez de ser o homem que pode e deve ser, você é apenas... Ela parou aí, com uma expressão em que havia ao mesmo tempo tristeza e piedade. — Um anjo decaído, acrescentou Laurie, completando serenamente a frase. Mas, o sermão começou a produzir efeito porque agora havia um brilho de animação nos olhos do rapaz, e uma expressão meio zangada e meio sentida substituía a indiferença de antes. — Eu já supunha que você havia de interpretar assim o que eu lhe digo. Todos os homens nos garantem que nós somos anjos e afirmam que poderemos fazer deles o que quisermos. Mas, no momento em que honestamente tentamos levá-los ao bom caminho, riem em nossa cara e não nos escutam, ficando assim provado o que valem as suas lisonjas. Amy falou amargamente e deu as costas ao mártir em desespero que estava a seus pés. Num minuto, a mão do rapaz cobriu a página, de modo que a moça não podia desenhar e a voz de Laurie disse, numa engraçada imitação de criança
arrependida: — Serei bonzinho, oh, bem bonzinho! Amy, porém, não sorriu, porque estava tratando do caso a sério. E batendo na mão aberta de Laurie com o lápis, disse-lhe calmamente: — Você não se envergonha de mão como esta? É tão macia e tão branca como a de uma mulher e parece que até hoje nunca fez outra coisa a não ser usar as melhores luvas e arrancar flores para as damas. Você não é um almofadinha, graças a Deus! Assim, alegro-me por ver que não há nos seus dedos nem diamantes nem anelões, mas somente esse anelzinho que Jo lhe deu há muito tempo. Meu Deus! Eu bem quisera que ela estivesse aqui para me ajudar. — Eu também. A mão desapareceu tão subitamente como surgiu. Amy olhou para Laurie com um novo pensamento em seu espírito. Mas, ele estava deitado com o chapéu cobrindo metade do rosto, como se quisesse escondê-lo, e p bigode escondia a boca. Ela apenas pôde ver o seu peito que arfava e a mão que usava o anel metida por entre a grama, como para ocultar alguma coisa preciosa ou enternecedora demais para servir de assunto à conversa. Todas no mesmo minuto, várias sugestões, e pequenas coisas tomaram forma e sentido ao espírito de Amy e lhe disseram o que a sua irmã nunca lhe confiara. Lembrou-se de que Laurie nunca falava voluntariamente de Jo. Recordou a sombra que caiu sobre o seu rosto, um pouco antes; a mudança do seu caráter e o uso permanente daquele velho anelzinho, que não era por certo um enfeite para tão bela mão. As moças decifram rapidamente esses sinais e sentem a sua eloqüência. Amy já havia imaginado que talvez um caso de amor estivesse no fundo daquela alteração e agora tinha a certeza disso. Seus olhos se enterneceram e, quando falou de novo, foi numa voz que sabia ser suave e boa, quando havia motivo para ser assim. — Eu sei que não tenho o direito de lhe falar dessa maneira, Laurie, e se você não fosse o camarada de temperamento mais doce que existe no mundo, com certeza estaria com raiva de mim. Mas todas nós gostamos tanto de você e lhe dedicamos tanta iração, que eu nem podia pensar que viesse a produzir lá em casa a mesma decepção que me causou, embora, talvez, o meu pessoal pudesse entender melhor a mudança do que eu. — Eu penso que eles poderiam, disse uma voz vinda de baixo do chapéu num tom desanimado; que era tocante. — Eles deviam ter-me dito isso, para que eu não me tornasse áspera e implicante, exatamente quando devia ser mais atenciosa e paciente do que nunca. Eu já não gostava daquela srta. Randal e agora eu a odeio! disse a astuciosa Amy, querendo dessa vez esclarecer os fatos. — Qual srta. Randal, qual nada! E Laurie jogou o chapéu para longe, com um ar de que não deixava dúvidas sobre os seus sentimentos a respeito daquela moça. — Desculpe-me, eu pensava... ─ E aí ela parou diplomaticamente. — Não, você não pensava. Você sabe muito bem que eu nunca me interessei por outra qualquer pessoa que não fosse a Jo, disse Laurie. na sua velha maneira impetuosa. — Eu pensava assim.mas como nunca me disseram nada a esse respeito e
você veio embora, supus que era um engano. E Jo não foi boazinha consigo? Sim, porque eu estou certa de que ela lhe quer muito bem. — Ela foi muito boa, porém não no estilo que eu queria. Aliás, foi uma sorte para ela não me amar, se eu sou o camarada imprestável que você me considera. Contudo, a culpa é dela e você pode dizer-lhe isso. A expressão rude e amarga voltou novamente à fisionomia do rapaz quando ela disse isso e perturbou o espírito de Amy, pois ela não sabia que bálsamo aplicar. — Eu estava enganada, não sabia. Sinto muito ter sido são rabujenta, mas não posso vencer o desejo de vê-lo ar isso mais firmemente, Teddy querido. — Não me chame assim, esse é o modo de Jo me tratar! ─ E Laurie levantou a mão num gesto nervoso para calar as palavras faladas naquele tom de Jo, meio carinhoso, meio repreensivo. Espere até que você mesma e por isso, acrescentou, em voz baixa, quando arrancou com a mão zangada um punhado de grama. — Aguentarei isso varonilmente, hei de inspirar respeito, senão amor, disse Amy, com a decisão de quem não conhece nada sobre o assunto. Ora, Laurie gabava-se intimamente de ter ado tudo extraordinariamente bem, sem fazer uma queixa, sem apelar para a piedade de ninguém e arrastado para o estrangeiro a sua magoa, para viver só com ela. A recriminação de Amy punha o assunto sobre uma luz noVa e pela primeira vez lhe pareceu franqueza e egoísmo perder a cabeça no primeiro insucesso do coração e fechar-se numa indiferença mal-humorada. Laurie sentiu como se tivesse acordado de repente de um pesadelo e achou impossível adormecer de novo. Levantou-se e perguntou medindo as palavras : — Você pensa que Jo me desprezaria, como você faz? — Sim, se ela o visse agora. Tem horror a gente preguiçosa. Por que você não faz qualquer coisa esplêndida, de modo a lhe inspirar amor? — Fiz o que pude, ma não adiantou nada. — Formando-se com boas notas, é o que quer dizer? Fez apenas o que devia, em atenção pelo seu avô. Teria sido vergonhoso fracassar depois de tanto dispêndio de tempo e dinheiro, quando toda gente sabia que você tinha aptidões para se sair bem. — Diga o que quiser, o certo é que fracassei mesmo, pois Jo não me amou. ─ Começou Laurie, apoiando a cabeça nas mãos numa atitude desanimada. — Não, você não fracassou e há de compreender afinal, porque isso lhe fez bem e provou que você pode fazer alguma coisa, quando quer. Se ao menos você. tentasse outra proeza de qualquer espécie, logo você ficaria animado, novamente feliz consigo mesmo e esqueceria as suas mágoas. — Isso é impossível. — Tente e verá. Não precisa sacudir os ombros e pensar. Que é que ela sabe sobre tais coisas? Eu não pretendo ser uma sabichona, mas tenho observado e vejo muito mais do que você imagina. Interesso-me pelas experiências e inconsistências das outras pessoas, e embora não me possa explicar muito bem, guardo na cabeça e uso dessas ojpervações para meu próprio proveito. Ame a Jo todos os dias, se quiser, mas não deixe que esse amor o prejudique, pois é um erro abandonar tantos
dons da vida só porque não tem aquele que deseja. E agora basta de sermões, pois tenho a certeza de que você acordou do pesadelo e há de proceder como um homem, apesar daquela pequena de coração inflexível. Ficaram calados os dois por alguns minutos. Laurie deu para fazer girar no dedo o anelzinho e Amy pôs os últimos retoques no apressado desenho, que estivera traçando enquanto falava. Depois, ela colocou o seu trabalho no joelho do rapaz, perguntando, simplesmente: — Que tal lhe parece? Ele olhou e sorriu então como não podia deixar de fazê-lo, pois o desenho estava lindamente traçado: a figura comprida e indolente, deitada sobre a relva, com a face parada, os olhos semicerrados, é uma das mãos sustentando o cigarro, do qual se evolava uma pequena espiral de fumaça, que envolvia a cabeça do sonhador. — Como você desenha bem! disse ele com verdadeira surpresa e satisfação ao notar a habilidade da moça, acrescentando num meio sorriso: Sim, sou eu tal e qual. — Como você é, e este aqui mostra como você era. E Amy entregou-lhe outro desenho. Não era tão bem feito como o primeiro, mas havia nele uma vida e um espírito que compensavam muitas falhas, recordando o ado de modo tão vivo que uma súbita mudança se operou logo na fisionomia do rapaz. Era apenas um tosco esboço de Laurie amánsando um cavalo; o chapéu e ó paletó estavam atirados para longe e todos os traços da figura ativa, da face resoluta e da atitude de comando, eram cheios de energia e significação. O belo animal, subjugado, estava arqueando o pescoço sob as rédeas firmemente sustentadas, com um pé batendo impaeientemente no chão e as orelhas eriçadas, como a escutar a voz de quem o domava. Na crina agitada do animal, no cabelo, revolto do. cavaleiro e na sua atitude ereta, havia uma sugestão de movimento subitamente detido, de força, de coragem e de agilidade juvenil, que contrastava agudamente com a graça mole do esboço do “Dolce far niente”. Laurie não disse nada, mas os seus olhos corriam de um para outro desenho e Amy o viu corar e morder os lábios, como se tivesse compreendido e aceitado a pequena lição que ela lhe dera. Isso a satisfez e, sem esperar que ele falasse primeiro,disse-lhe na sua maneira desembaraçada: — Você se lembra do dia em que representou Rarey com Puck e todas nós ficamos olhando? Meg e Beth ficaram assustadas, mas Jo meteu as esporas no animal esaltou com o cavalo e eu sentei-me na cerca e tirei esse esboço de você. Encontrei esse desenho na minha pasta outro dia e o guardei para lhe mostrar. — Muito obrigado. Você tem melhorado imensamente desde então e eu a felicito. Posso atrever-me a sugerir-lhe, neste paraíso para uma lua de mel, que já é a hora do jantar do seu hotel? Laurie levantou-se ao falar, restituiu os desenhos com um sorriso e uma mesura e olhou para o relógio, como para lembrar a Amy que até as conferências moralizadoras deviam ter um fim Ele tentou assumir novamente o seu ar despreocupado e indiferente, mas isso parecia agora uma afetação, pois a lição tinha sido muito mais eficaz do que ousaria confessar. Amy sentiu uma sombra de frieza
no modo do rapaz e disse consigo mesma: — Parece que eu o ofendi. Ora, se for para seu bem, fico alegre; se me odiar por isso, ficarei triste; mas é a verdade e não posso retirar uma palavra do que disse. Riram e tagarelaram durante o regresso. E o pequeno Batista sentado atrás, pensava que monsieur e mademoiselle estavam em esplêndida disposição de espírito. Entre tanto, os dois nâo se sentiam à vontade. A franqueza de amigos tinha sido perturbada, sombras no horizonte turvavam a claridade da tarde, e, apesar de sua aparente alegria, havia no coração de cada um deles um secreto descontentamento. — Nós o veremos esta noite, mon frère? ─ Perguntou Amy, ao se despedir na porta. — Infelizmente, tenho um compromisso. Au revoir, mademoiselle. E Laurie inclinou-se, como se fosse beijar a mão da moça, segundo a moda estrangeira. Qualquer coisa na sua fisionomia fez Amy dizer viva e ardentemente: —Não; seja natural comigo, Laurie, e nos separemos no nosso velho e bom estilo. Prefiro o aperto de mão cordial à inglesa, a todos esses cumprimentos sentimentais que se usam na França. — Adeus, querida. E com essas palavras, pronunciadas num tom que lhe agradou, Laurie deixou Amy depois de um aperto de mão quase doloroso para os dedos, pelo excesso de cordialidade. Na manhã seguinte, em vez da visita habitual, Amy recebeu um bilhete-que no começo provocou um sorriso e no fim um suspiro: "Minha querida Mentora: Tenha a fineza de apresentar as minhas despedidas à sua tia e de regozijar-se consigo mesma, pois o vadio Laurence volta para junto do avô, como o melhor dos meninos. Desejo-lhe um inverno agradável e possam os deuses presenteá-la com uma venturosa lua de mel em Valrosa! Penso que Fred lucraria muito em ter uma pessoa para despertá-lo. Diga-lhe isso, com as minhas felicitações. Sempre seu, muito grato, Telêmaco". — Que bom menino! Fico contente com a sua ida, disse Amy, com um sorriso de aprovação. Mas, um minuto depois, a sua fisionomia se entristeceu quando ou os olhos pelo quarto vazio, e acrescentou com um involuntário suspiro: — Sim, fico contente, mas que falta vou sentir!
CAPITULO
XVII
No Vale das Sombras Quando a primeira amargura chegou, a família aceitou o inevitável e tentou á-lo com coragem, ajudando-se uns aos outros pela afeição maior que costuma unir ternamente as pessoas de uma casa nas horas de sofrimento. Cada qual tratou de dominar a sua tristeza, fazendo o que podia para alegrar os últimos dias. O quarto mais agradável da casa foi reservado para Beth e ali se reuniam todas
as coisas que ela mais amava, flores, quadros, o seu piano, a mesinha de trabalho e os seus queridos gatinhos. Ali se encontravam os melhores livros do pai, a cadeira de descanso da mãe, a escrivaninha de Jo e os mais lindos desenhos de Amy. Todos os dias Meg trazia os seus bebês numa peregrinação amorosa, para divertirem a titia Beth. John punha de lado, tranqüilamente, uma pequenina quantia para ter o prazer de dar à inválida todas as frutas que lhe apeteciam. A velha Hannah nunca se cansava de preparar quitutezinhos delicados para tentar um apetite caprichoso, derramando lágrimas enquanto trabalhava. E do outro lado do oceano vinham presentezinhos e cartas .carinhosas, parecendo trazer um pouco do calor e do perfume de terras que não conhecem o inverno. Ali, adorada como uma santa em seu altar doméstico, ficava Beth, tranqüila e tão atarefada como sempre, pois nada mudaria a sua natureza suave e sem egoísmo e, mesmo quando se preparava para deixar a vida, tentava fazê-la mais feliz, parar aqueles que ficariam ainda neste mundo. Os dedinhos frágeis nunca estavam ociosos e um dos seus prazeres era fazer pequenas coisas para as crianças da escola que diariamente avam pela sua porta, atirar da janela um par de luvas para um par de mãozinhas ar-roxeadas pelo frio, um agulheiro para uma qualquer mãezinha de muitas bonecas; mata-borrões para jovens escritores atrapalhados numa floresta de garatujas, cadernos de desenho para olhares que amam ver figuras e toda espécie de agradáveis invenções até que os relutantes peregrinos da estrada da instrução encontraratn o sèu caminho atapetado de flores e aram a considerar a gentil amiga como uma espécie de fada, que morava nas alturas e espalhava pela terra presentes que convinham miraculosamente ao gosto e às necessidades dos pequenos. Se Beth tivesse querido qualquer recompensa, tê-la-ia encontrado nas facezinhas animadas que sempre se voltavam para sua janela com acenos e sorrisos, e nas cartazinhas engraçadas que costumava receber, todas cheias de agradecimentos e borrões. Os primeiros meses foram felizes e Beth costumava olhar ao redor e dizer: ─ Como isto é belo! ─ Quando estavam todos sentados no seu quarto tão claro, os bebês brincando e engatinhando no soalho, a mãe e as irmãs trabalhando ali perto e o pai lendo com a sua voz agradável um desses velhos livros cheios de sabedoria que parecem tão ricos em palavras boas e confortáveis, cujo sentido tem hoje a mesma qualidade do que nos séculos longínquos em que foram escritos. Era uma pequenina capela, onde um pastor paternal ensinava o seu rebanho severas lições que todos devem aprender, tentando mostrar-lhes que a esperança pode ser o conforto do amor e que a fé torna possível a resignação. Sermões muito simples, que tocavam de perto as almas dos que o escutavam, pois o coração do pai se inspi rava na religião do sacerdote e os freqüentes tremores da sua voz davam uma dupla eloqüência às palavras que dizia. Foi bom que todo esse tempo sossegado servisse de preparação para as horas melancólicas que estavam para chegar, pois, pouco a pouco, Beth disse que a agulha era pesada demais e abandonou-a para sempre. A conversa a fatigava, as fisionomias turvavam-lhe a vista, a dor a reclamava como sua presa e o seu tranqüilo espírito estava tristemente perturbado pelos males que afligiam o seu débil corpo. Meu Deus! Que dias pesados, que noites compridas, tão compridas. Que corações doloridos, que preces angustiadas, quando aquelas pessoas que a amavam viram as mãos descarnadas estendendo-se para eles numa
súplica e ouvindo o grito amargo: ─ Ajude-me, ajude-me! E todos sentiam que não podiam ajudar. O melancólico eclipse da alma serena, uma luta renhida da vida tão jovem com a morte; mas ambos foram felizmente breves e, então, ao ar a crise, a velha paz voltou mais bela do que nunca. Com o enfraquecimento do seu corpo tão frágil, a alma de Beth tornou-se mais forte; e, embora falasse pouco, os que a cercavam sentiram que ela estava pronta para fazer a viagem, viram que o primeiro peregrino a ser chamado era também o mais capaz e esperaram com ela na margem, tentando ver os anjos resplandecentes vindo recebê-la quando atravessasse o rio. Jo nunca mais a deixou, nem por uma hora sequer, desde que Beth disse: ─ Eu me sinto mais forte quando você está aqui. Ela dormia num sofá no quarto da irmã, acordando muitas vezes para reammar o fogo, para alimentar, levantar da cama ou apenas observar a paciente criatura, que raras vezes pedia qualquer coisa e tentava não ser um incômodo. Durante o dia, rodava pelo quarto, com ciúme de qualquer outra enfermeira e mais orgulhosa de ter sido escolhida para aquela tarefa do que de qualquer outra honra que a vida lhe pudesse trazer. Foram horas preciosas e úteis para Jo, porque agora o seu coração recebia o ensinamento de que precisava. Lições de paciência lhe eram tão suavemente ministradas que tinha mesmo de aprendê-las, assim como caridade para todos, o amorável espírito que pode perdoar e verdadeiramente esquecer a maldade, a fidelidade ao dever que torna fácil o que é mais difícil e a fé sincera, que nada teme, mas confia sem duvidar. Muitas vezes quando despertava, JO encontrava Beth lendo no seu livro já muito usado ou cantando docemente, para embalar a noite sem sono, quando não a via encostar o rosto . magro na mão, enquanto lágrimas escorriam lentamente por entre os seus dedos pálidos. E Jo ficava obser-vando-a, com pensamentos profundos demais para provocar lágrimas, compreendendo que Beth, na sua maneira simples e sem egoísmo, estava tentando privar a si mesma de sua velha vida querida e preparando-se para a outra, com sagradas palavras de conforto, preces tão tranqüilas e a música que tanto amava. A visão de tudo isso fez mais impressão ao espírito de Jo do que os sermões mais sábios, os hinos mais santos e as orações mais fervorosas que uma voz humana poderia murmurar; pois, com os olhos que viam mais claro depois de tantas lágrimas e um coração suavizado pela mais terna tristeza, ela reconheceu a beleza da vida de sua irmã tão sem acontecimentos, tão sem ambições, mas tão cheia de autênticas virtudes e desse esquecimento de si mesma que faz os mais humildes na terra serem os primeiros lembrados no céu. Uma noite, quando Beth remexia os livros sobre a mesa, para encontrar alguma coisa que a fizesse esquecer o seu mortal cansaço que era quase tão difícil de ar como a própria dor, ela viu, ao folhear as páginas do seu velho livro predileto,o Progresso do Peregrino, um papelzinho escrito pela mão de Jo. O título chamou-lhe a atenção. E o aspecto manchado das linhas lhe deram a certeza de que lágrimas.Tinham caido sobre elas. — Pobre Jo! Ela está dormindo e por isso não convém acordá-la para lhe pedir licença; ela me mostra todas as suas coisas e não creio que se zangará se eu ler o que está escrito aqui, pensou Beth, com um lance de olhos para a sua irmã, que
estava deitada sobre a coberta, com as tenazes do fogão junto dela, pronta a acordar quando a acha de lenha caísse fora da lareira. "Minha Beth Sentando-se na sombra, paciente. Até chegar a luz abençoada. Uma presença calma e comovente. Santifica esta casa perturbada. Tristezas e alegrias deste mundo. Quebram-se, como vagas, contra a margem. Deste solene rio, tão profundo. Onde ela espera a hora da viagem. E ando por mim. Oh! doce irmã! Longe de tanto esforço e humana lida. Deixe-me aqui esta virtude sã. Que tanto embelezou a sua vida. Dê-me essa grande e bela paciência. Que tem tanto poder para amparar. Uma alegre e serena consciência. No cárcere da dor e do pesar. Dê-me, porque também preciso ter, Essa coragem plácida e suave. Que aveluda o caminho do dever. Dê-me essa natureza sem rancor, Oh! Doce coração! Ao meu perdoa! Sem egoísmo, caridosa e boa, Que o mal esquece, pelo bem do amor, Para o seu o tão ligeiro de ave. A partida assim perde cada dia Sempre um pouco da sua dor tamanha. E enquanto aprendo essa lição sombria Ao perdê-la, talvez, minha alma ganha. Tão grande golpe há de me dar, querida, Um gênio mais pacífico também Aspiração mais alta nesta vida E uma nova crença mais feliz no Além. E seguindo no oceano desta vida. Desde então, hei de ver nesta viagem A sua alma saudosa e comovida. Esperando por mim, de uma outra margem. E a fé, nascida da tristeza assim. Há de ser o meu anjo tutelar. Pois a irmã que se foi antes de mim. Há de me conduzir ao novo lar." Manchadas e riscadas, fracas e defeituosas, como eram essas linhas, elas deram, entretanto, uma expressão de inex-premível conforto à fisionomia de Beth, pois o seu único pesar era o de ter feito tão pouco. Ora, aqueles versos lhe pareciam
garantir que a sua vida não tinha sido inútil e que a sua morte não traria o desespero que ela receava. Quando se sentou, com o papel amassado entre as mãos, a acha de lenha meio carbonizada partiu-se em duas partes, caindo. Jo acordou, reavivou o fogo e arrastou-se até a cabeceira da irmã, esperando ver Beth adormecida. — Não estou dormindo, porém me sinto muito feliz, querida. Olha, encontrei isso e li; eu sabia que você não se zangaria. Tenho sido tudo isso para você, Jo ? ─ Perguntou ela. — Oh! Beth, tem sido tanto, tanto! e a cabeça de Jo encostou-se no travesseiro ao lado da irmã. — Então não devo me sentir como se tivesse desperdiçado a minha vida. Não sou tão boa como você me imagina, mas tenho tentado agir bem; e agora, quando é tarde demais mesmo para começar a agir melhor, é um conforto saber que há alguém que me ama tanto e crê que eu ajudei vocês. — Muito mais do que ninguém no mundo, Beth. Eu costumava pensar que não poderia deixar você partir; mas agora estou aprendendo a sentir que não a perderei. Você estará mais perto de mim do que nunca e a morte não nos pode separar, embora pareça. — Eu sei que ela não pode e não tenho mais medo dela, pois estou certa de que serei ainda a sua Bethzinha, para amar e ajudá-la mais do que nunca. Você deve tomar o meu lugar, Jo, e ser tudo para papai e mamãe, quando eu fôr embora. Eles se voltarão para você, não os desiluda; e se é difícil trabalhar sozinha, lembrese de que eu não a esqueço e você será mais feliz fazendo isso do que escreven do livros esplêndidos ou vendo tudo que existe no mundo, pois o amor é só o que podemos levar conosco quando partimos e é o que faz tão fácil a partida. — Tentarei Beth, e desde então Jo renunciou à sua velha ambição, entregando-se a uma nova e melhor, compreendendo a pobreza dos outros desejos e sentindo o abençoado conforto da crença na imortalidade do amor. Assim, vieram e foram embora os dias da primavera, o céu tornou-se mais claro, a terra mais verde, desabrocha-ram flores bonitas' e os pássaros voltaram ainda em tempo de dizer adeus a Beth, que como uma criança cansada, mas confiante, se uniu às mãos que a tinham guiado por toda a sua vida, quando o pai e a mãe a conduziram terna-mente através do Vale das Sombras e aí a entregaram a Deus. Raras vezes, a não ser em romances, os moribundos pronunciam palavras memoráveis, têm visões ou deixam a vida com o semblante sereno e belo. Os que têm visto a partida de muitas almas sabem que para a maioria o fim vem tão naturalmente, tão simplesmente como o sono. Como Beth esperava, tudo foi fácil. E na hora sombria que precede ao alvorecer, sobre o colo maternal onde tinha soltado o primeiro suspiro, ela também exalou quietamente o derradeiro, sem nenhuma despedida, mas só um olhar enorme e um pequenino suspiro. Entre lágrimas e preces, com as mãos trêmulas pela comoção, a mãe e as irmãs a prepararam para o longo sono que a dor nunca mais viria perturbar, contemplando com olhares agradecidos a bela serenidade que logo substituiu a patética paciência que tocava os seus corações desde tanto tempo, e sentindo, com reverente alegria, que para a que-ridinha delas todas a morte era um anjo benigno e não um fantasma apavorado. Quando veio a manhã, pela primeira vez em muitos meses, o fogo estava apagado, vazio o lugar de Jo e o quarto muito silencioso. Mas
um pássaro cantou alegremente num galho florido, os últimos flocos de neve floriam frescamente na vidraça e o sol da primavera entrou no quarto, banhando de luz, como uma bênção, a face pálida encostada no travesseiro, uma face tão cheia de serenidade, sem dor que todos que a amavam sorriam quase entre as suas lágrimas e agradeciam a Deus que Beth se sentisse bem afinal.
CAPITULO XVIII Aprendendo a Esquecer O sermão de Amy fez bem a Laurie, embora, naturalmente, não o confessasse até muito tempo depois. Os homens raramente fazem isso, pois, quando as mulheres são as conselheiras, os reis da criação não aceitam o conselho até se convencerem primeiro que isso era justamente o que eles pretendiam fazer. Só então, resolvem agir de acordo e, se o conselho dá certo, o elemento feminino tem metade da honra, mas, se não dá certo, os homens lhe atribuem generosamente toda a culpa. Laurie voltou para a companhia do avô e lhe foi tão dedicado durante muitas semanas que o velho declarou que o clima de Nice lhe fizera um bem maravilhoso e que devia experimentá-lo novamente. Não havia nada que agradasse mais ao rapaz do que isso. Mas o orgulho o detinha e, quando a saudade era muito forte, Laurie fortalecia o ânimo repetindo as palavras que lhe fizeram a mais profunda impressão: ─ Eu o desprezo; faça alguma coisa esplêndida que assim há de inspirar amor a Jo. Laurie pensou tanto sobre o assunto que levou a si mesmo a confessar, dentro de pouco tempo, que tinha sido realmente egoísta e preguiçoso. Mas, quando um homem tem uma grande tristeza, entrega-se a toda espécie de manias, até que vença a sua mágoa. Ele sentiu que a sua afeição contrariada estava perfeitamente morta agora. Embora não cessasse nunca de ser uma fiel carpideira, não havia ocasião para usar ostensivamente as suas roupas de luto. Jo nunca o amaria, porém ele poderia conquistar o seu respeito e a sua iração, fazendo alguma -coisa para provar que o não de uma moça não estragava a sua vida. Sempre tivera a idéia de fazer alguma coisa e o conselho de Amy era perfeitamente desnecessário. Estivem apenas esperando que as afeições contrariadas fossem decentemente sepultadas. Tendo feito isso, julgou-se capaz de esconder o coração ferido e trabalhar em silêncio. Como Goethe, quando tinha uma tristeza e uma alegria, costumava transformá-la numa canção, assim também Laurie resolveu embalsamar em música a sua mágoa de amor e compor um "Requiem", que apertaria o coração de Jo e comoveria a sensibilidade de todos que o escutassem. Portanto, na primeira vez que o velho o encontrou um tanto inquieto e melancólico e o aconselhou a fazer uma viagem, Laurie seguiu para Viena, onde tinha alguns amigos musicistas, e pôs-se a trabalhar com o firme propósito de distinguir-se. Mas, seja porque a tristeza era
grande demais para caber dentro da música ou seja porque a música é demasiado leve para ar o peso de uma desgraça mortal, o certo é que ele bem cedo descobriu que o "Requiem" estava acima das suas possibilidades, pelo menos naquele momento. Era evidente que o seu espírito ainda não podia trabalhar em ordem e as suas idéias ainda estavam confusas. Muitas vezes, no meio de um acorde plangente, éle dava, sem querer, para martelar alguns comos de dança, que recordavam nitidamente o baile de Natal em Nice, especialmente o francês corpulento, não podendo continuar a sua trágica composição. Então, tentou uma ópera, pois nada parecia impossível no começo; mas, aí, dificuldades imprevistas mais uma vez o embaraçaram. Desejava que Jo fosse a sua heroína e recorria à memória para suprir-se de ternas lembranças e românticas visões do seu amor. Mas a memória tornara-se traidora, e, como que possuída pelo espírito perverso da moça, só lhe contava as extravagâncias, travessuras e caprichos, mostrando-a sempre em aspectos que nada tinham de sentimentais, batendo tapetes e capachos com a cabeça amarrada num lenço, entrincheirando-se com os travesseiros no sofá ou jogando água fria na sua paixão romanesca. E um riso irresistível estragava a figura pen-sativa que se estava esforçando para evocar. Jo não poderia ser nunca esposta numa ópera e ele teve de abandonar a idéia com um. Que tormento é essa pequena! O um puxão nos cabelos, quando se tornava um compositor distraído. Quando procurava uma outra donzela menos intratável para imortalizar em música, a memória logo apresentava uma candidata com a mais solicita prontidão. O fantasma usava muitas faces, mas tinha sempre os cabelos louros, aparecia envolta numa nuvem diãfana e flutuava aèrea-mente diante do olhar da sua imaginação num agradável caos de rosas, pavões, carruagens e fitas azuis. Ele não escolhera ainda o nome para essa complacente fada, mas tomou-a para sua heroína e logo ficou doidinho por, ela, como era natural que ficasse, pois lhe emprestara todos os dotes e graças e a acompanhava, sempre incólume, através de provações que teriam aniquilado qualquer mulher mortal. Graças a essa inspiração, andou de vento em popa durante algum tempo, mas o trabalho foi perdendo gradualmente o seu encanto e Laurie se esquecia de compor, e quanto sentava pensativo, com a pena na mão, ou rodava pela alegre cidade para colher novas idéias e refrescar o ospírito, que parecia um tanto perturbado naquele inverno. Não fez muito, mas pensou demais e tinha consciência de que uma mudança qualquer se estava operando dentro dele. — É o gênio fervendo, talvez. Deixe-o ferver, para ver o que é que sai dali. ─ Disse ele, com a secreta suspeita de que não era propriamente gênio, porém outra coisa muito mais comum. Fosse lá o que fosse, ò certo é que fingia por algum propósito, pois o rapaz se tornou cada vez mais descontente com a sua vida contraditória, começou a stnsias por algum trabalho sério que pudesse fazer de corpo e alma e chegou finalmente à sábia conclusão que nem todos os que amam a música são compositores. Voltando de assistir a uma das grandes óperas de Mozart, magnificamente executada no Teatro Royal, examinou a sua própria obra, tocou alguns dos seus trechos melhores e depois deu para fitar os bustos de Mendelssohn, Beethoven e Bach que o miravam benignamente; então, num impulso repentino, rasgou todas as
páginas da sua música, uma por uma e, quando a última foi cortada pelas suas mãos, disse ajuizadamente para si mesmo: — Ela tem razão. Talento não é gênio e não há quem possa transformá-lo. Aquela música de Mozart tirou a minha vaidade, como Roma tirou a dela, e eu não quero ser um embuste por mais tempo. Agora, que hei de fazer? Pareceu-lhe bem difícil dar uma resposta a esta pergunta e Laurie começou a desejar que tivesse de trabalhar para o seu pão de cada dia. Agora, mais do que nunca, tinha-uma oportunidade, para ir ao inferno, como disse uma vez por força da expressão, pois tinha muito dinheiro e nada que fazer e Satanás gosta loucamente de dar emprego às mãos ociosas e fartas de moedas. O pobre rapaz tinha muitas tentações dentro e fora de si mesmo, mas as dominou perfeitamente, pois, por mais que desse valor à liberdade, ainda mais apreciava a boa fé e a confiança. Assim, a promessa que fizera ao avô e o desejo de ser capaz de demorar sem constrangimento o seu olhar no das mulheres que tanto bem lhe queriam, podendo dizer: ─ Tudo vai bem. ─ O mantiveram são e salvo, longe do perigo. Laurie pensava que a tarefa de esquecer o seu amor por Jo absorveria todas as suas forças durante anos; mas, para grande surpresa sua, descobriu que isso se tornava cada vez mais fácil dia a dia. No começo, até se recusou a acreditar; zangouse consigo mesmo e não podia entender o fenômeno. Mas os corações humanos são contraditórios e o tempo e a natureza fazem a sua obra, a despeito da nossa vontade. O coração de Laurie não poderia ficar doente; a ferida persistia em cicatrizar com uma rapidez que lhe espantava e, em vez de tentar esquecer, ele se encontrava tentando recordar. Não tinha previsto essa reviravolta e não estava preparado para ela. Aborrecia-se consigo mesmo, surpreendido com a sua própria volubilidade, sentindo ao mesmo tempo decepção e alívio por se restabelecer tão depressa do golpe tão formidável. Revolvia cuidadosamente as cinzas do seu amor perdido, porém não encontrava nenhuma brasa a arder; havia somente um confortável revérbero, que o aquecia e lhe fazia bem, sem lhe provocar queimaduras. E embora com relutância, via-se forçado a confessar que a sua paixão juvenil se estava transformando lentamente num sentimento mais tranqüilo, muito terno, um pouco melancólico e ainda ressentido, mas tinha certeza de que havia de ar com o tempo, deixando apenas uma afeição fraternal que ficaria intata até o fim. Quando a palavra fraternal ou pelo seu espírito nessas divagações, Laurie sorriu e olhou para o retrato de Mozart que estava diante dele: — Ele foi um grande homem; e, quando não pode ter uma irmã, tomou a outra e foi feliz. Laurie não pronunciou essas palavras, mas elas aram pelo seu pensamento; e no instante seguinte beijou o velho anelzinho, dizendo para si mesmo: — Não, eu não quero isso! Não esqueci, nunca poderei esquecer. Tentarei de novo e, se fracassar, então é porque... Deixando inacabada essa frase, apanhou tinta e papel e pôs-se a escrever para Jo, dizendo-lhe que não tomaria outra resolução na vida enquanto tivesse a mínima esperança que ela quisesse mudar de idéia. Ela não podia, não queria? Ele poderia voltar e os dois serem felizes. Enquanto esperava uma resposta, não fez
nada, porém viveu energicamente, porque estava numa impaciência febril. A resposta veio afinal e deu ao seu espírito oportunidade para tomar uma resolução, pois Jo decididamente não podia e não queria. Estava absorvida no caso de Beth e nunca mais queria ouvir a palavra amor. Depois, ela lhe pedia para ser feliz com outra moça qualquer, mas que guardas-íe sempre um cantinho no seu coração para a sua afe-tousa irmã Jo. Num post-scriptum, ela lhe pedia para não dizer a Amy que Beth tinha piorado; ela devia voltar para casa na primavera e não havia necessidade de entristecer o resto do seu eio. Ainda havia muito tempo, se Deus quisesse, porém Laurie devia escrever-lhe freqüentemente para que ela não se sentisse só, saudosa e preocupada. — Naturalmente que hei de lhe escrever. Pobre criaturinha! Será bem triste o seu regresso, receio eu, e Laurie abriu a escrivaninha, como se escrever para Amy tivesse sido a conclusão adequada para a frase que tinha deixado inacabada algumas semanas antes. Mas não escreveu a carta naquele dia; pois, ao procurar o seu papel melhor, deu com alguma coisa que lhe fez mudar de propósito. Num canto da escrivaninha, entre pa-peletas, aportes e documentos diversos, havia várias cartas de Jo e noutro compartimento estavam três bilhetes de Amy, cuidadosamente amarrados com uma das suas fitas azuis e que suavemente lhe recordavam as rosas murchas postas dentro deles. Com uma expressão meio arrependida e meio prazenteira, Laurie fitou todas as cartas de Jo, esticou-as, dobrou-as e tratou de arrumá-las numa gavetinha da escrivaninha. Em seguida, rodou o anel pensativamente no dedo, durante um minuto, e depois, tirou juntamente, juntou-o com as cartas, fechou a gaveta e foi ouvir a missa cantada na igreja de Santo Estêvão, sentindo como se tivesse ido a um funeral. Embora não estivesse muitc aflito, isso lhe pareceu um modo muito mais digno de gastar o resto do dia do que escrever cartas a mocinhas encantadoras. Contudo, a carta não demorou a seguir. E foi logo respondida, pois Amy estava saudosa e o confessou da maneira mais deliciosamente confidencial. A correspondência desenvolveu-se animadamente e as cartas iam e vinham com infalível regularidade, durante toda a primeira fase da primavera. Laurie vendeu os seus bustos, serviu-se das páginas de sua ópera para acender o fogo, e voltou a Pa ris, esperando que alguém chegasse muito antes. Queria loucamente ir a Nice, mas não se animava a seguir até ser chamado; e Amy não o chamava, pois exatamente então estava fazendo algumas experiências, que lhe davam vontade de evitar um pouco os olhos zombeteiros do nosso camaradinha. Fred Vaughn tinha voltado e fizera a pergunta a que ela já tinha certa vez decidido responder: ─ Sim obrigada, mas agora, ela disse: ─ Não obrigada, suave, mas firmemente. Com efeito, quando chegou o momento decisivo, faltou-lhe a coragem e. ela compreendeu que era preciso mais alguma coisa do que dinheiro e posição para satisfazer o novo anseio que dominava o seu coração, tão repleto de ternas esperanças e receios. As palavras Fred é um bom rapaz, mas não é de forma alguma o homem que imaginei capaz de lhe inspirar amor e a face de Laurie, quando tinha pronunciado esta frase voltavam ao espirito da moça com tanta persistência
como a sua própria atitude quando dissera no olhar, senão em palavras: ─ Eu me casarei por interesse. Essa lembrança Ihfe perturbava o pensamento, pois semelhante atitude lhe parecia agora bem contrária ao sentimento feminino. Não queria que Laurie a considerasse uma criatura frivola e sem coração. Ser uma rainha da sociedade lhe interessava agora muito menos do que ser uma mulher amorável. Sentiu-se muito alegre por ver que ele não a odiava apesar das coisas horríveis que lhe dissera, porém as aceitava de modo tão gentil, sendo ainda mais carinhoso do que nunca. Suas cartas eram um conforto, pois as que vinham de casa eram muito irregulares e, quando apareciam, não eram tão alegres como as do rapaz. Respondê-las era não só um prazer como também um dever, pois o pobre moço andava desesperado e precisava de quem o aca-rinhasse, uma vez que Jo continuava com o seu coração de pedra. Ela, naturalmente, deve ter-se esforçado para amá-lo, coisa que não devia ser muito difícil e, muita gente ficaria alegre e orgulhosa inspirando interesse a um mocinho tão apreciado; porém Jo não agia nunca como as outras moças e assim só o que havia para fazer era ser boa e tratá-lo como ura irmão. Se todos os irmãos fossem tão bem tratados como Laurie naquele período, seriam naturalmente muito mais felizes do que realmente são. Amy nunca mais fez censuras; perguntava-lhe a sua opinião sobre todos os assuntos; interessava-se por tudo o que ele dizia, fez-lhe encantadores presentinhos e mandava-lhe duas cartas por semana, cheias de agradáveis comentários, fraternais confidencias e esboços deliciosos das mais lindas cenas da redondeza. Como poucas são as irmãs que levam dentro da bolsa as cartas dos irmãos, lendo-as e relendo-as deliciosamente, chorando quando elas são tristes, beijando-as quando são longas e guardando-as cuidadosamente, não queremos insinuar que Amy fez qualquer uma dessas coisas extravagantes. Mas o certo é que ela se tornou um pouco pálida e pensativa naquela primavera, perdeu muito do seu entusiasmo pela sociedade e saia muitas vezes só para compor os seus desenhos. Do que fez não tinha muito para mostrar quando voltasse para casa, mas estava estudando a natureza, creio eu, quando se sentava horas inteiras, com as mãos cruzadas, no terraço de Valrosa, ou rabiscando distraidamente qualquer fantasia que lhe vinha à cabeça um cavalheiro corpulento esculpido sobre um túmulo, um jovem deitado na grama, com o chapéu caido sobre os olhos ou uma moça de cabelos cacheados, magnificamente vestida, descendo a um salão de baile ao braço de um cavalheiro alto. A tia pensava que ela sentia ter dado uma resposta contrária a Pred. Achando inúteis as negativas e impossíveis as explicações, Amy deixava-a pensar o que quisesse, tendo o cuidado, porém de informar Laurie que Fred tinha ido para o Egito. Foi só isso, mas ele compreendeu tudo e pareceu aliviado, quando disse para si mesmo, com ar solene: — Tinha a certeza de que ela havia de pensar melhor. Pobre rapaz! Já ei por isso e posso compreender. Dito isso, soltou um grande suspiro e, depois, como se tivesse cumprido todo o seu dever quanto ao ado, estendeu os pés no sofá e saboreou deliciosamente a carta de Amy. Enquanto essas coisas iam acontecendo no estrangeiro a inquietação chegara em casa; mas a carta em que se dizia que Beth estava para morrer nunca chegou às
mãos de Amy e, quando veio a seguinte, a sua irmãzinha já estava sepultada. A triste notícia foi encontrá-la em Vèvey, pois tinha saído de Nice em maio, por causa do calor e estavam viajando devagar pela Suíça, pelo caminho de Gênova e dos lagos italianos. Ela ou o golpe muito bem e submeteu-se ao decreto da família de que não devia encurtar o eio, .pois, desde que era tarde demais para dizer adeus a Beth, seria melhor continuar no estrangeiro, deixando que a ausência suavizasse a dor. Mas o coração de Amy estava pesado demais; ansiava por voltar para casa e todos os dias ficava a olhar para o lago, esperando que Laurie viesse consolá-la. Ele não tardou a vir; pois o mesmo correio trouxera a carta das March para ele, mas o rapaz se achava na Alemanha e a notícia demorou alguns ,dias para encontrá-lo. Quando leu a carta, arrumou imediatamente a mala, disse adeus aos companheiros de excursão e foi cumprir a sua promessa com o coração cheio de alegria e de tristeza, de esperança e incerteza. Ele conhecia Vevey muito bem; e assim que o barco encostou no pequenino cais, apressou-se em ir ao encontro dos Carrol, que estavam vivendo numa pensão. O gerente explicou-lhe que a família toda tinha ido ear no lago, mas a mocinha loura talvez estivesse no jardim do castelo. Se ele quisesse sentar-se ali para esperar, talvez não demorasse a encontrá-la. Mas o rapaz não quis esperar nem mesmo que o gerente terminasse a explicação e partiu ao encontro da moça. Um velho jardim agradável à margem de um lago pitoresco, com castanheiros murmurejantes, a hera subindo por toda parte e a sombra escura da torre refletindose na água transparente. Num canto do muro largo e baixo havia uma cadeira e ali Amy ficava freqüentemente a ler ou a trabalhar, consolando-se com a beleza de tudo que circundava. Estava ali naquele dia, com a cabeça apoiada na mão, olhar triste e coração saudoso, pensando em Beth e perguntando para si mesma porque Laurie não vinha. Não percebeu o rapaz atravessar o terraço nem o viu parar no vestíbulo do caminho subterrâneo do jardim. Ele deteve-se um minuto, fitando-a de um modo novo, vendo o que ninguém tinha visto antes o lado terno do caráter de Amy. Tudo em torno dela sugeria silenciosamente amor e tristeza. As cartas amassadas no colo, a fita preta que prendia os seus cabelos, a dor e a paciência feminina espalhada no rosto, mesmo a cruzinha de ébano no pescoço impressionaram Laurie, pois foi ele quem lhe dera e ela a usava como seu único ornamento. Se tivesse qualquer dúvida a respeito da recepção que a moça lhe daria, tal incerteza teria desaparecido no momento em que ela levantou os olhos e viu o rapaz; pois, derrubando tudo, correu ao seu encontro, exclamando num tom indisfarçável de amor e de saudade: — Oh! Laurie, Laurie, eu sabia que você havia de vir para mim! Tinha-se a impressão de que tudo seria dito e resolvido então; pois, quando se sentaram juntos, em silêncio, por um momento, com a cabeça de cabelos negros curvada protetoramente sobre a loura, Amy sentiu que ninguém podia confortá-la o ampará-la tão bem como Laurie e Laurie achou que Amy era a única mulher no mundo capaz de tomar o lugar de Jo e fazê-lo feliz. Ele não lhe disse isso, porém ela não teve decepção alguma, pois ambos sentiram a verdade, ficaram satisfeitos e deixara: n alegremente que o silêncio dissesse o resto. Num minuto, Amy voltou ao seu lugar; e, enquanto enxugava as lágrimas, Laurie apanhava os papéis espalhados pelo chão, encontrando naquelas cartas lidas e relidas e nos sugestivos desenhos
bons augúrios para o futuro. Quando se sentou ao lado dela, Amy sentiu-se acanhada de novo e corou vivamente com a lembrança da impulsiva saudação com que recebeu o rapaz. — Não pude evitar isso; sentia-me tão só e tão triste e fiquei tão alegre em vêlo, foi uma surpresa tão grande levantar os olhos e dar com você, justamente quando já estava começando a recear que não viesse.─ Disse ela, tentando em vão falar com perfeita naturalidade. — Vim logo que recebi a notícia. Eu queria dizer-lhe alguma coisa para confortá-la pela perda da Bethzinha querida. Mas, posso apenas sentir e... Não pôde continuar, pois também ficou acanhado de repente e não sabia o que falar. Ansiava por inclinar a cabeça de Amy no seu ombro e dizer-lhe que talvez o pranto a aliviasse, mas não se atreveu a isso; todavia, tomou-lhe a mão, num gesto de simpatia mais expressivo do que qualquer frase. — Você não precisa dizer nada; isto me conforta, disse ela docemente. Beth está bem e feliz no céu e devo conformar-me com a sua ausência; mas tenho medo de voltar para casa, embora sinta tanta vontade de ver todos os meus. Não falemos disso agora, pois me dá vontade de chorar e quero distrair-me enquanto estiver aqui. Você não precisa voltar logo, não é? — Não, se assim deseja, querida. — Desejo, sim, desejo muito. Titia e Fio são muito bons, mas você é como se fosse da família e eu ficaria tâo confortada se o tivesse ao meu lado por algum tempo. Amy parecia na expressão do rosto e no modo de falar uma criança saudosa cujo coração transbordava de sentimento e Laurie esqueceu afinal o seu acanhamento e deu-lhe justamente o que ela queria, o mimo a que estava acostumada e a conversa animada de que sentia falta. — Pobre coraçãozinho, como você está ferida! Vou tratar de curá-lo. Não chore mais, Amy, e venha ear comigo. O tempo está esfriando demais para você continuar aí, disse ele num tom meio enérgico e meio carinhoso que agradou a Amy. Apanhou o chapéu da moça, deu-lhe o braço, e os dois começaram a ear pela estrada batida de sol, sob a folhagem nova dos castanheiros. Andando, Laurie sentiu-se mais à vontade e Amy achou muito agradável ter um braço forte em que se apoiar, um rosto amigo para lhe sorrir e uma voz afetuosa para conversar deliciosamente com ela só. O velho e suave jardim tinha abrigado muitos pares de namorados e parecia feito de encomenda para eles, tão colorido e discreto era, tendo apenas para vigiálos a torre imponente e para levar o eco das suas palavras o lago manso e azul. Durante uma hora, esse novo par caminhava e tagarelava, quando não se debruçava sobre o muro gozando as suaves influências que davam tanto encanto àquele lugar e àquela tarde. E quando uma sineta prosaica anunciou que já era hora do jantar, Amy teve a impressão, ao sair dali, que tinha deixado atrás dela, no jardim do castelo, todo o peso da solidão e da tristeza. No momento em que a sra. Carrol viu a fisionomia alterada da moça, uma nova idéia lhe ou pelo espírito e disse para si mesma: ─ Agora eu compreendo tudo. A pequena estava se consumindo por causa do jovem Laurence. Ora, vejam só! Tal coisa nunca me tinha ado pela cabeça!
Com discrição digna de elogios, a boa senhora não disse nada nem traiu o menor sinal de inteligência; entretanto, pediu cordialmente a Laurie para ficar e aconselhou Amy a valer-se da companhia agradável do rapaz, pois seria certamente muito melhor do que tanta solidão. Amy era o modelo da docilidade e, como a sua tia andava muito ocupada com Fio, dispós-se a entreter o amigo e o conseguiu ainda com maior sucesso do que antes. Em Nice, Laurie tinha mandriado e Amy ralhara. E em Vevey, Laurie nunca se mostrava ocioso, mas estava sempre eando, montando a cavalo, remando ou estudando, da maneira mais enérgica, enquanto Amy irava tudo o que ele fazia e procurava seguir seu exemplo até onde lhe era possivel. Ele disse que a mudança era devida ao clima e ela não o contrariou, gostando de ter uma semelhante desculpa para o restabelecimento da sua saúde e da sua animação. O ar revigorante fez muito bem aos dois e tantos exercícios operaram mudanças sensiveis tanto nos espíritos como nos corpos. Pareciam adquirir noções mais claras da vida e do dever galgando aquelas colinas imperecíveis. As frescas aragens sopravam para longe as dúvidas desani-madoras; as fantasias quiméricas e as névoas da melancolia. O ardente sol da primavera trazia toda espécie de idéias ambiciosas, ternas esperanças e felizes pensamentos. O lago parecia levar as inquietações do ado e as grandes e velhas montanhas olhavam benignamente para eles, como a dizer: ─ Criancinhas, amai-vos um ao outro. Apesar da nova tristeza, foi um tempo feliz, tão feliz que Laurie não se atrevia a perturbá-lo com uma palavra sequer. Tardou um pouco a se restabelecer da surpresa diante da rápida cura do seu primeiro e, como acreditava firmemente, seu último e único amor. Consolou-se pelo que julgava uma deslealdade, com o pensamento de que a irmã de Jo era quase a própria Jo e com a convicção de que lhe seria impossível amar a qualquer outra mulher, exceto a Amy. A sua primeira paixão tinha sido de caráter tempestuoso e voltava as vistas agora para ela, como se já tivessem ado muitos anos, com um misto de compaixão e de mágoa. Não se envergonhava dela, mas a afastava como uma. das experiências agridoces da sua vida, a qual seria grato recordar quando a dor já tivesse ado. Sua segunda paixão, resolvera ele, seria tão calma e tão simples quanto possível. Não havia necessidade de armar uma cena de efeito, quase nem era preciso dizer a Amy que ele a amava. Ela sabia disso, sem que nada fosse dito, e há muito tempo tinha dado a sua resposta. Tudo vinha tão naturalmente, que não havia razão de queixa para ninguém e ela sabia que todos ficariam satisfeitos, inclusive Jo. Mas quando a nossa primeira paixãozinha é espezinhada, somos naturalmente cautelosos e lentos ao fazer uma segunda experiência. Assim, Laurie deixava que os dias assem, gozando todas as horas e deixando ao acaso a declaração de uma palavra que servisse de epílogo à primeira e mais suave parte do romance. Ele imaginava que o desenlaee teria lugar talvez no jardim do castelo, à luz da lua, e da maneira mais graciosa e gentil; mas os seus planos saíram pelo avesso, pois o assunto foi resolvido no lago, ao meio-dia, em algumas palavras francas. Tinham navegado durante toda a manhã, desde o sombrio São Gingolf até o claro Montreux, com os Alpes da Savôia de um lado, o Monte São Bernardo do outro, a
linha Vevey no vale e Lausanne sobre a colina ao longe, o céu de um azul sem nuvens por cima e as águas azuis do lago por baixo, enfeitadas com os botes nitorescos que pareciam garças de asas brancas. Tinham falado de Bonnivard, quando aram por Chillon, e de Rousseau, quando contemplaram Clarens, onde ele escreveu Eloísa. Nenhum dos dois tinha lido o livro, mas sabiam que era uma história de amor e cada qual perguntava intimamente se seria tão interessante como a sua própria. Amy estava brincando com a mão na água, durante o curto silêncio que caiu entre eles e, quando levantou os olhos, Laurie estava inclinado sobre os remos, com uma expressão que fez a moça dizer apressadamente, talvez só para falar qualquer coisa. — Você deve estar cansado; descanse um pouco e deixe-me remar; isso há de me fazer bem, pois, desde que vim, tenho andado sempre ociosa e cheia de mimos. — Não estou cansado, mas pode tomar um remo, se quiser. Aqui há espaço bastante para dois, embora eu tenha de sentar bem perto do meio, para que a barca não vire, respondeu Laurie, parecendo ter gostado pouco do arranjo. Compreendendo que não tinha resolvido o assunto muito bem, Amy tomou a parte que lhe foi oferecida, repuxou o cabelo para trás e aceitou um remo. Ela remava tão bem como fazia muitas outras coisas. E embora empregasse as duas mãos e Laurie apenas uma, os remos batiam na água comadamente e o barco deslizava com facilidade. — Como combinamos com os remos, não é? ─ Disse Amy, que não parecia concordar com o silêncio naquela hora. — Tão bem que é o meu desejo que possamos remar sempre no mesmo barco. Você quer, Amy? ─ Disse Laurie ternamente. — Sim Laurie. ─ Respondeu bem baixinho. Então ambos deixaram de remar e inconscientemente acrescentaram um pequenino quadro de amor e de felicidade humana às imagens da natureza que se refletiam no lago.
CAPITULO XIX Completamente Só Era fácil prometer a renúncia de si mesma quando a personalidade estava absorvida por outra e a alma e o coração eram purificados por um suave exemplo. Mas, quando a voz que ajudava calou para sempre, cessou a lição de cada dia e se foi embora a criatura amada, deixando apenas solidão e tristeza, então Jo sentiu que a sua promessa era difícil de cumprir. Como poderia ela consolar o pai e a mãe, quando o seu próprio coraçãozinso sofria com a saudade incessante da sua irmã; como poderia ela fazer a casa alegre, quando toda a sua luz, todo o seu calor e toda a sua beleza pareciam ter saído de lá desde que Beth trocara o velho por um novo lar; e em que lugar do mundo ela encontraria algum trabalho útil e agradável de
fazer, para substituir o serviço afetuoso que tinha sido a sua própria recompensa? Ela tentava de um modo cego e sem esperança cumprir o seu dever, revoltando-se secretamente contra tudo isso, pois lhe parecia injusto que as suas alegrias já tão' poucas fossem ainda diminuídas, que o seu fardo se tornasse mais pesado e a vida cada vez mais difícil. Parecia-lhe que para algumas pessoas só havia luz do sol e para outras só a sombra. Não era justo, pois tentava mais do que Amy ser boa, porém nunca teve outra recompensa, mas somente decepções, angústias e trabalhos pesados. Pobre Jo! Aqueles dias foram bem sombrios para ela, pois se sentia quase desesperada quando pensava em gastar toda a sua vida naquela casa sossegada, entregue a ocupações insípidas, quase sem divertimento, e com aquele dever que nunca parecia tornar-se mais fácil. — Não posso com isso. Não fui feita para uma vida assim, e sei que não arei isso sempre e hei de fazer qualquer coisa desesperada, se alguém não me vier socorrer; disse ela para si mesma, quando fraquejaram os seus primeiros esforços e caiu nesse estado de espirito sombrio e desanimado que surge muitas vezes quando uma vontade forte tem de ceder diante do inevitável. Mas alguém veio ajudá-la, embora Jo não reconhecesse logo o seu bom anjo, porque ele usava formas familiares. Muitas vezes sobressaltava-se durante a noite, pensando que Beth devia chamá-la; e quando a visão do pequenino leito vazio fazia correr dos seus olhos o amargo pranto de uma tristeza inconsolada, dizendo: ─ Oh! Beth, volta, volta para junto de mim. Não era em vão que estendia os braços ansiosos; pois, sempre prestes a ouvir o seu pranto, como a própria Jo tinha sido em escutar o mais leve suspiro da irmãzinha, a mãe vinha confortá-la, não apenas com palavras, mas também com a ternura paciente que suaviza a dor num gesto e com as lágrimas que eram a muda lembrança de um sofrimento ainda maior do que o de Jo, além de suspiros entrecortados, mais eloqüentes do que as preces, porque a resignação esperançada anda de braços dados com a natural tristeza. Eram momentos sagrados, em que o coração falava ao coração no silêncio da noite, transformando a aflição numa bênção, que expulsava o desespero e fortalecia o amor. Compreendendo isso, o fardo de Jo parecia mais fácil de conduzir, o dever tornou-se mais ameno e a vida mais ável, quando vista do seguro refúgio que eram os braços de sua mãe. Quando o coração dolorido ficava um pouco consolado, o espirito ansioso também encontrava ajuda; pois um dia ela foi ao gabinete e, enclínando-se sobre a boa cabeça grisalha que se erguera para saudá-la com um sorriso tranqüilo, disse muito humildemente: — Papai, fale-me como costumava falar à Beth. Eu preciso agora mais do que ela. — Minha filha querida, nada será mais confortador para mim do que isso, respondeu ele, com a voz emocionada e abraçando Jo, como se também necessitasse de ajuda e não receasse pedi-la. Então, sentando-se na cadeirinha de Beth, bem perto dele, Jo lhe contou todas as suas inquietações, a tristeza amargurada pela perda da irmã, os esforços infrutíferos que lhe tiravam a coragem, a falta de fé que fazia a vida parecer tão escura e toda a melancólica confusão de sentimentos a que dava o nome de desespero. Ela lhe ofereceu as suas mais íntimas confidencias, ela lhe deu t'oda a
ajuda de que necessitava e ambos encontraram conforto naquela troca de idéias. Já tinha havido um tempo em que falavam juntos não somente como pai e filha, mas também como homem e mulher; alegres e capazes de se ajudarem um ao outro com mútua simpatia e com mútuo amor. Felizes e meditativos tempos esses ados ali no velho gabinete, que Jo chamava "a igreja de um só membro" e da qual saía com a coragem restabelecida, o ânimo renovado, e o espírito mais paciente; pois os pais que tinham ensinado uma filha a enfrentar a morte sem medo, tentavam agora ensinar a outra a aceitar a vida sem desânimo ou desconfiança e a aproveitar as suas belas oportunidades com gratidão e energia. Jo teve ainda outras ajudas, obrigações humildes e variadas e prazeres que não lhe negavam a sua parte e que ela com o tempo foi aprendendo a avaliar. Varrer e lavar pratos nunca seriam tarefas tão desagradáveis como antes tinham parecido, pois Beth costumava desempenhá-las; e alguma coisa do seu espírito doméstico parecia demorar-se no pequenino espanador e na velha vassoura que nunca eram abandonados. Ao usar essas coisas, Jo dava para cantarolar, quase inconscientemente, as cançãozinhas preferidas pela irmã ao fazer tais serviços. Ela imitava o modo cuidadoso de Beth, arranjando tudo aqui e ali para dar à casa uma impressão sempre fresca e bem arrumada, que era o primeiro o para fazer o lar agradável. Um dia Hannah falou com um aperto de mão aprovativo: — Você, menina boazinha, resolveu que nós não havíamos de sentir a falta da ovelhinha querida, no que lhe for possível substituí-la. Já percebemos isto, embora sem dizer nada. Deus há de abençoá-la pelo que você está fazendo, porque, lá no alto, Ele também vê, minha filha. Quando se sentaram juntas para costurar, Jo notou como a sua irmã Meg estava melhorada; como falava bem, como conhecia a fundo os pensamentos e os sentimentos femininos, como se mostrava feliz com o marido e os filhos, como todos estavam se entendendo bem em sua casa! — O casamento é uma coisa excelente, afinal de contas. Eu não sei se me daria tão bem como você, se tentasse. ─ Que acha? ─ Disse Jo, enquanto preparava um papagaio de papel para Demi. — É justamente o que você precisa para revelar o lado terno e feminino da sua natureza Jo. Você é como uma avelã. Dura pelo lado de fora, porém macia por dentro. O amor há de expandir o seu coração algum dia e, então, a sua parte suave há de aparecer. — Mas é com uma pancada forte que se quebra a casca das avelãs e eu, francamente, não quero apanhar. ─ Respondeu Jo,tentando soltar o papagaio. Meg sorriu, porque esteve satisfeita por ver novamente um traço do velho espírito de Jo, mas sentiu que era seu dever reforçar a opinião com todos os argumentos de que pudesse dispor. As conversas fraternais nunca eram perdidas, especialmente porque os argumentos melhores de Meg eram os bebês, que Jo amava extremosamente. A dor é a melhor chave para abrir certos corações. E o de Jo estava quase pronto para florescer. Bastava apenas que aparecesse como jardineiro não um menino impaciente, mas um homem experimentado e calmo, capaz de fazer desa-brochar a alma ainda em botão. Se ela desconfiasse disso, com certeza trataria de se defender, mostrando-se cada vez mais inível! Felizmente,
ela não pensava a esse respeito e assim, quando chegou a sua vez, caiu como um patinho. Ora, se ela tivesse sido a heroína de uma novela moralista, deveria nesse período de sua vida tornar-se uma santinha perfeita, renunciando às atrações do mundo e indo espalhar o bem por toda parte. Mas, vocês sabem, Jo não era uma heroína. Era apenas uma jovem humana e combativa, como muitas outras, e agia segundo os impulsos do seu temperamento, sendo melancólica, desanimada, displicente ou enérgica, de acordo com as alterações do seu humor. É uma grande virtude dizer que queremos ser bons, mas não nos podemos transformar de repente. É preciso saltar por cima de muitas dificuldades, antes de atingirmos ao terreno firme aonde queremos chegar. Jo já estava indo muito longe, pois aprendera a fazer a sua obrigação e a sentir-se muito aborrecida quando não a cumpria; mas, quanto a fazê-la alegremente. — Ah! isso é já outra coisa. Dissera ela muitas vezes que desejava fazer algo esplêndido, por mais difícil que isso fosse. Agora tinha o que desejava, pois que seria mais belo do que devotar a sua vida ao pai e à mãe, tentando fazer o lar feliz de novo para eles? E, se as dificuldades eram necessárias para aumentar o esplendor do esforço, que maior sacrifício se poderia exigir de uma moça ambiciosa e ativa do que renunciar às suas próprias esperanças, aos seus próprios planos, e viver alegremente para os outros? A Providência havia interpretado o seu desejo ao pé da letra; ali estava a tarefa para realizar, não a que ela esperava, porém melhor, porque não incluía uma pontinha sequer de egoísmo. Agora, que havia de fazer? Ela decidiu experimentar; e, na sua primeira tentativa, encontrou os auxílios necessários. Ainda outra ajuda lhe foi dada e ela aceitou-a, não como uma recompensa, mas como um consolo, na forma por que o cristão aceitou a sombra concedida pela arvorezinha onde repousava, quando subia a colina que se chama dificuldade. — Por que você não escreve? Isso sempre lhe dava prazer, disse a mãe, certa vez, quando um novo o de desespero sombreava o espírito de Jo. — Não tenho coração para escrever, e mesmo se tivesse, ninguém se importa com as minhas coisas. — Nós nos importamos. Escreva alguma coisa para nós e não ligue ao resto ao mundo. Experimente, querida. Estou certa de que isso há de lhe fazer bem e muito nos agradará. — Não creio que possa, disse Jo, mas depois abriu a escrivaninha e começou a rever os seus manuscritos inacabados. Uma hora depois, a mãe foi espiar e a viu rabiscando, com uma expressão concentrada, que fez a sra. March sorrir e afastar-se devagarinho, muito satisfeita com o êxito da sua sugestão. Jo não soube nunca como isso aconteceu, mas entrou na novela qualquer coisa que tocava de fato aos corações dos que liam, pois quando toda a familia tinha rido e chorado com a história, o pai de Jo enviou a produção, muito contra a vontade da moça, a um dos magazines mais populares e, para grande surpresa dela, não só lhe pagaram a colaboração, como até lhe pediram outras. Cartas de diversas pessoas, cujos elogios eram uma honra, seguiram-se ao aparecimento da historieta, muitos jornais a transcreveram e não só os amigos como
mesmo pessoas estranhas demonstraram a sua iração. Para uma coisa tão pequena era realmente um grande sucesso e Jo ainda ficou mais espantada do que quando a sua novela era encomendada e condenada ao mesmo tempo. — Não posso compreender isso. Que pode haver numa historiazinha tão simples como esta para que seja louvada por tanta gente, dizia ela, um tanto surpresa. — É que há verdade dentro dela, Jo. Este é o segredo. O humor e o patético lhe dão vida e você afinal achou o seu próprio estilo. Você escreve sem idéia de fama ou dinheiro e põe o seu coração na sua obra, minha filha. Você já conheceu o lado amargo, agora vai conhecer o doce. Trabalhe com animação e seja tão feliz como nós já somos com o seu sucesso. — Se há qualquer coisa de bom e de verdadeiro no que eu escrevo, isso não é meu. Devo-o a si, à mamãe e a Beth, disse Jo, mais comovida pelas palavras do pai do que por qualquer soma de elogio que o mundo lhe tivesse dado. Assim, instruída pelo amor e pela tristeza, Jo ia escrevendo as suas historiazinhas e publicando-as para fazer amigos, para elas e para si mesmo, encontrando um mundo muito caridoso para tão humildes peregrinos literários. Os contos eram cordialmente acolhidos e mandavam para casa confortáveis lembranças em mimos para a sua mãe, como filhos corretos que se vêem ajudados pela fortuna. Quando Amy e Laurie escreveram a respeito do seu compromisso, a sra. March receou que seria bem difícil para Jo receber alegremente a notícia, mas o medo da boa senhora logo se desvaneceu; pois, embora Jo se mostrasse sisuda no começo, recebeu a novidade com toda a calma e já estava cheia de esperanças e de planos para as crianças antes de ler a carta pela segunda vez. A tal carta era uma espécie de duelo escrito, na qual cada um glorificava o outro do modo mais amoroso, muito fácil de ler e de satisfazer ao espírito, pois ninguém tinha qualquer objeção a levantar. — Isso lhe agrada, mamãe ? perguntou Jo, quando deixaram a carta de lado e as duas mulreres se entreolharam. — Sim, era o que eu já esperava, desde que Amy escreveu dizendo que tinha recusado Fred. Tinha certeza então de que alguma coisa melhor do que isso que você chama espírito mercenário havia aparecido em seu coração. E indícios aqui e ali nas suas cartas me fizeram suspeitar de que o amor e Laurie ganhariam a partida. — Como a senhora é penetrante, mamãe, e como é discreta. Nunca me disse uma palavra a esse respeito. — As mães têm necessidade de olhos vivos e língua discreta quando têm de vigiar as filhas. Eu andava um tanto receosa de pôr essa idéia na sua cabeça, pois você seria capaz de escrever congratulando-se com eles antes que a coisa ficasse resolvida. — Já não sou a criaturinha precipitada que era antes; pode confiar em mim, pois sou agora bastante discreta e sensata para servir de confidente a quem quer que seja. — Eu sei disso, querida; e teria feito de você minha confidente, se não imaginasse que talvez lhe doesse saber que o seu Teddy amava uma outra. — Ora, mamãe, pensa que eu seria tão tola e egoísta, depois de ter recusado o seu amor, quando era ainda mais novo, senão melhor?
— Eu sabia que você foi sincera então Jo, mas ultimamente tenho pensado que, se ele voltasse e a pedisse outra vez em casamento, você poderia talvez sentir-se inclinada a dar outra resposta. Perdôe-me, meu bem. Não posso evitar de ver que você está muito só e algumas vezes há uma expressão ansiosa nos seus olhos que me toca o coração; imaginei por isso que o seu camaradinha poderia encher o lugar vazio se tentasse novamente. — Não mamãe, é melhor assim e alegra-me saber que Amy aprendeu a amálo. Mas num ponto acertou. Eu me sinto muito só e talvez, se Teddy tivesse experimentado de novo, eu poderia ter consentido, não porque goste mais dele, mas porque agora eu sinto mais desejo de ser amada do que quando ele foi embora. — Isso me alegra Jo, pois mostra que você está mudando.Há muita gente para lhe querer bem, tente satisfazer-se com o pai e a mãe, irmãs e irmãos, amigos e bebês, até que o melhor amor de todos venha dar-lhes a sua recompensa. — As mães são o melhor amor do mundo, E curioso, porém. Quanto mais eu tento satisfazer-me com toda espécie de afeições naturais, tanto mais eu sinto falta delas. Eu não tinha idéia que os corações pudessem abarcar tanto. O meu é tão elástico que nunca parece completamente cheio, agora e, no entanto, eu costumava contentar-me completamente com a minha família. Não posso compreender isso. — Pois, eu compreendo. E a sra. March sorriu o seu sábio sorriso, quando Jo voltou a folhear a carta para ler o que Amy dizia de Laurie. "É tão belo ser amada como Laurie me ama! Ele não é sentimental, não me diz muita coisa sobre o seu amor, porém eu o vejo e o sinto em tudo que ele diz e faz, e isso me torna tão feliz e tão humilde que nem pareço a mesma pequena que era. Eu nunca soubera até agora como êle era bom e generoso e meigo, pois me deixa ler no seu coração e eu o encontro cheio de nobres impulsos, esperanças e intenções, e me orgulho de saber que ele é meu. Ele diz sentir-se como se fizesse agora uma próspera viagem, tendo-me como companheira e levando a bordo um grande carregamento de amor. E eu amo o meu galante capitão, de toda alma e coração, e nunca hei de abandoná-lo em meio da viagem, enquanto Deus nos quiser juntos. Oh! mamãe, eu não sabia antes quanto este mundo se parece com o céu, quando duas pessoas se amam e vivem uma para a outra! — E essa é a nossa fria, reservada e melindrosa Amy! Realmente, o amor faz milagres. Como devem ser felizes, tão felizes! E Jo dobrou as folhas da carta com mão cuidadosa, como alguém ao fechar o volume de um romance adorável, que deixa o leitor impressionado até o fim. Depois, Jo foi para cima, porque estava chovendo e não podia ear. Um espírito inquieto a dominava. Voltou de novo o velho sentimento, não tão amargo como antes, mas numa forma de tristeza paciente, ao não compreender ainda por que uma irmã tinha tudo o que queria e a outra nada. Isso não era verdade; ela bem o sabia e tentava afastar tal idéia, mas a sua ânsia natural por afeto era bem forte e a felicidade de Amy acordou a sua íntima aspiração por alguém a quem pudesse amar de alma e coração e viver ao seu lado enquanto Deus os quisesse juntos. No sótão, onde terminavam sempre os os inquietos de Jo, ficavam numa prateleira quatro pequenos cofres de madeira, cada um marcado com o nome da dona e todos cheios de relíquias da adolescência que agora estava findando para sempre. Jo olhou para eles e, quando chegou ao seu, encostou a cabeça num canto
e contemplou distraida-mente a caótica coleção, até que um pacote dos seus velhos cadernos escolares despertou at sua atenção. Tirou-os todos para fora, folheou-lhes as páginas e reviveu o agradável inverno que ara com a boa senhora Kirke. Sorriu primeiro, depois olhou pensativamente, em seguida ficou melancólica, e, quando viu o pequeno bilhete escrito pela mão do professor, seus lábios começaram a tremer; os cadernos rolaram do colo e ela ficou olhando para as palavras amigas, como se adquirissem um novo sentido e tocassem num ponto sensível do seu coração. "Espera por mim, minha amiga. Poderei chegar um pouco atrasado, mas irei com certeza". — Ora! se ele realmente viesse! Tão bom, tão carinhoso, sempre tão paciente comigo.Meu velho querido Pritz, eu não o apreciei como você merece, mas agora, como eu gostaria de vê-lo, pois parece que todos se afastam de mim e me sinto tão só! E segurando o papelzinho com toda a força, como se fosse ainda uma promessa para ser cumprida, Jo encostou a cabeça confortavelmente num saco de trapos e pôs-se a chorar, como para ficar em harmonia com a chuva que batia nas telhas. Era pena de si mesma, solidão ou desânimo? Ou era o despertar de um sentimento que soubera esperar pela ocasião tão pacientemente como o seu inspirador? Quem saberia responder?
CAPITULO XX Surpresas Ao anoitecer, Jo estava sozinha, recostada num velho sofá, olhando para o fogo e pensando. Era a sua maneira favorita de ar a hora do crepúsculo. Ninguém a perturbava e tinha o hábito de reclinar-se ali sobre o travesseirinho vermelho de Beth, planejando novos contos, sonhando sonhos, ou meditando suaves pensamentos sobre a irmã que nunca parecia estar muito longe. Sua fisionomia mostrava-se cansada, séria e um tanto melancólica, pois no dia seguinte seria o seu aniversário e estivera pensando «orno os anos am depressa, como estava ficando velha e quão pouca coisa tinha realizado até então. Quase aos vinte e cinco anos e ainda nada para mostrar. Nesse ponto Jo estava enganada; havia muita coisa para mostrar e pouco a pouco ela foi vendo isso com prazer. — Uma velha solteirona, eis o que eu vou ser. Uma fiandeira literária, com um tinteiro por esposo, uma família de histórias para crianças e, daqui a vinte anos, talvez um pouquinho de glória; isto é, quando eu, como o pobre Johnson, for velha e não puder gozá-la, for solitária e não puder distribuí-la, for independente e não precisar de liberdade. Bem, eu não preciso ser uma santa martirizada ou uma pecadora egoísta; devo acreditar que as velhas solteironas vivem confortavelmente quando se acostumam com o seu estado; mas Jo suspirou, como se não achasse a perspectiva muito atraente.
Raramente ela pode ser, no começo, e os trinta anos parecem o fim de tudo quando se tem vinte e cinco. Nessa idade, as moças principiam a dizer que vão ficar solteironas, mas no íntimo estão resolvidas a não o ser nunca. Aos trinta anos, não dizem nada sobre o assunto, porém já aceitam calmamente o fato, e, quando são sensíveis, consolam-se com a idéia de que têm ainda vinte anos felizes e úteis, durante os quais poderão aprender a envelhecer graciosamente. Não riam das fiandeiras, leitoras queridas, pois muitas vezes há trágicos romances do sentimento escondidos no fundo dos corações que batem tão sossegadamente sob as suas blusas discretas e muitos sacrifícios silenciosos de mocidade, saúde, ambição, até mesmo de amor, dão aos olhos de Deus beleza a essas faces murchas. Mesmo as irmãs tristes e nervosas devem ser tratadas com bondada, ao menos porque lhes falhou a parte mais suave da vida. E olhando para elas com compaixão, porém sem desprezo, as moças, na sua época florida, devem recordarse também de que pode deixar de aparecer o jardineiro capaz de colhê-las; que as faces rosadas não duram sempre, que os fios de prata aparecem entre os cabelos mais dourados, e que, com o tempo, a bondade e o respeito serão tão agradáveis como agora o amor e iração. Cavalheiros que se julgam rapazinhos, mostram-se corteses com as velhas solteironas, pouco importa que sejam pobres modestas e afetadas, pois o único cavalheirismo digno de de se cultivar é o que está sempre pronto a reverenciar os velhos, proteger os fracos e servir as mulheres, sem consideração de classe, de idade ou de cor. Recordem-se das boas titias, que não só resmungavam e avam sermões, mas também embalavam berços e faziam mimos, muitas vezes sem qualquer agradecimento. Os embaraços de que ajudaram vocês a sair, os bocadinhos gostosos que elas lhes deram do seu pequenino armário de gulodices, as furadelas que tiveram os seus velhos dedos cansados quando costuravam para vocês, os os que por sua causa tiveram de dar aqueles pés fatigados! Recordem-se de tudo isso e paguem agradecida-mente às velhas solteironas as pequeninas atenções que todas as mulheres gostam de receber, qualquer que seja a idade. Os olhos vivos das moças sabem ver tais gestos e gostarão de todos os que procederem assim. Jo deve ter adormecido, como receio que possa fazer qualquer leitor ou leitora durante esse pequenino sermão, pois subitamente o fantasma de Laurie pareceu levantar-se diante dela. Era um fantasma substancial, muito cheio de vida, com o mesmo olhar que costumava ter quando estava muito comovido e não queria demonstrar. No primeiro momento, não quis acreditar no que viam os seus olhos e ficou mirando espantada para o rapaz, em silêncio, até que êle se inclinou e a beijou. .Então, ela viu que era ele mesmo e saltou, gritando alegremente: — Oh! Meu Teddy! Oh, meu Teddy! — Jo querida, então você ficou satisfeita por me ver? — Satisfeita? Oh! meu rapazinho abençoado, não há palavras que possam exprimir a minha alegria. Onde está a Amy? — Sua mãe ficou com ela na casa de Meg. Nós paramos ali no caminho e não houve jeito de arrancar a minha mulher daquelas mãos. — Sua quê? ─ Gritou Jo, pois Laurie pronunciou essas duas palavras com um orgulho e uma satisfação inconscientes que o denunciaram.
— Oh! diabo! Agora já está dito. E parecia tão culpado que Jo caiu sobre ele como um raio. — Então, vocês já se casaram? — Sim. Mas, por favor, não se zangue. Nunca hei de fazer isso outra vez. E ele caiu de joelho, com as mãos erguidas, em sinal de penitência, e a face cheia de culpa, de alegria e de triunfo. — Já estão casados mesmo? — Casadíssimos se me faz favor. — Que Deus nos acuda! Qual é a coisa horrorosa que você pretende fazer na próxima vez? E Jo caiu sentada na cadeira, com um suspiro. — Aí está o que se chama uma felicitação bem característica, embora não muito lisonjeira, retrucou Laurie, ainda na sua atitude de penitência, porém estravasando satisfação. — Que é que você pode esperar quando nos assusta com as suas maluquices? Levante-se, rapazinho ridículo e conte-me tudo. — Nem uma palavra, a menos que me deixe voltar para meu velho lugar de costume, prometendo não fazer barricadas. Jo sorriu com a piada, tal como teria feito nos velhos tempos, e afofou o sofá, convidativamente, dizendo num tom cordial: — O velho travesseiro está agora no sótão, pois já não precisamos dele. Venha, Teddy, e confesse tudo. — Como soa bem aos meus ouvidos você dizer Teddy. Você foi sempre a única a me chamar assim. E Laurie sentou-se com um ar de grande contentamento. — Como é que Amy trata você ? — Meu senhor. — Isso é bem do seu jeito. Depois, assenta em você. E os olhos de Jo traíram claramente que ela achava o seu rapazinho ainda mais garboso do que nunca. Já não havia o travesseiro, porém existia ainda uma barricada, apesar disso uma barreira natural, levantada pelo tempo, pela ausência e pela mudança de sentimentos. Ambos compreenderam isso e por um momento se entreo-Iharam como se essa muralha invisível lançasse uma sombra entre os dois. Ela, porém, desapareceu, quando Laurie disse, num vão esforço para parecer solene: — Eu não pareço um homem casado e chefe de família ? — Nem um pouquinho e nunca há de parecer. Você está mais crescido e mais maneiroso, mas continua a ser o mesmo velhaquinho de sempre. — Ora Jo, realmente! Você me deve tratar com mais respeito agora, começou Laurie, que se divertia imensamente. — Como posso tratá-lo assim, se a simples idéia de vê-lo casado e estabelecido na vida é tão irresistivelmente cômica que nem posso ficar séria? respondeu Jo, rindo tão animadamente que fez o seu amiguinho soltar também outra boa gargalhada. Depois, ficaram numa esplêndida prosa, naquele estilo tão agradável das suas velhas tagarelices. — É inútil você sair com esse frio para ir ver a Amy, pois todos agora devem estar em caminho para cá. Eu é que não podia esperar. Queria ser o primeiro a lhe dizer a grande novidade. — Naturalmente, a novidade valeu. Mas você estragou a sua história,
começando-a pelo meio. Agora, comece de novo, e diga-me como isso aconteceu. Estou doidinha por saber. — Bem, eu fiz isso para agradar à Amy, insinuou Laurie, e com um muxoxo que fez Jo exclamar: — Mentira número um. Amy é que fez isso para agradar a você. Continue e diga-me a verdade, se puder, meu caro senhor. — Lá está ela a me desmentir! Não é melhor esperar que Amy lhe conte tudo? disse Laurie para o fogo e o fogo crepitou e se acendeu ainda mais, como se estivesse de acordo. Tudo dá no mesmo, você sabe, formando ela e eu uma só pessoa. Nós pretendíamos voltar para casa com os Carrol, que tinham viagem marcada para o mês ado, mas subitamente eles mudaram de idéia e resolveram demorar-se mais um inverno em Paris. Ora, vovô queria voltar; você sabe que file só foi para me agradar e eu não podia permitir que regressasse sozinho, nem tinha coragem de deixar a Amy. Mas, a sra. Carrol estava cheia de preconceitos ingleses e outros absurdos e não queria deixar que Amy viesse conosco. Assim resolvi a dificuldade dizendo: ─ Pois então, vamo-nos casar e poderemos fazer o que quisermos. — E naturalmente você fez o que quis. Não encontra embaraços no seu caminho. — Nem sempre é assim. E qualquer coisa na voz de Laurie fez Jo dizer apressadamente: — Como foi que você conseguiu que titia concordasse? — Deu muito trabalho; mas, aqui entre nós, insistimos sempre, porque tínhamos carradas de razão ao nosso lado. Não havia tempo para escrever e pedir consentimento, mas todos gostariam, já tinham consentido indiretamente e estava-se esperando apenas dar tempo ao tempo, como diz minha mulher. — Mas, como foi isso, onde, quando? ─ Perguntou Jo, numa febre de interesse e curiosidades femininas, que ela mesma não percebia. — Há seis semanas adas, no consulado americano de Paris. Foi uma cerimônia muito simples, naturalmente, porque mesmo na nossa felicidade não esquecemos a Bethzinha querida. Jo pôs a sua mão sobre a dele, quando Laurie disse isso, e o rapaz alisou gentilmente a travesseirinho vermelho de que se recordava tão bem. — Por que não nos mandou contar a novidade? ─ Indagou Jo, de modo mais calmo, depois de um minuto de silêncio. — Queríamos fazer uma surpresa. Era nossa idéia voltar para cá, logo depois do casamento. Mas o nosso velho vovô, assim que nos viu casados, achou que não ficaria pronto para a viagem antes de um mês, pelo menos, e nos mandou pasar a lua de mel onde quiséssemos. Amy dissera certa vez que Valrosa era um lugar esplêndido para a lua de mel. Fomos portanto para ali e nos sentimos tão felizes como só se pode ser uma vez na vida. Palavra! Foi um verdadeiro amor entre rosas! Laurie parecia ter esquecido Jo por um momento e a moça gostou disso; pois, contando essas coisas tão natural e desembaraçadamente, Laurie lhe demonstrava que tinha perdoado e esquecido completamente. Ela quis tirar a mão que deixara sobre a dele; mas, como se adivinhasse o pensamento que determinara esse
impulso meio involuntário, Laurie a segurou depressa e disse, com uma seriedade varonil que ela nunca observara antes na sua atitude: — Jo querida, quero estabelecer uma coisa e, depois, não se falará mais nisso. Como lhe contei em minhas cartas, quando escrevi dizendo que Amy tinha sido tão boa para mim, eu nunca deixei de lhe querer bem; mas, o amor to mou outra forma e eu aprendi a ver que é melhor assim. Amy e você trocaram de lugar no meú coração, foi tudo que houve. Penso que devia ser mesmo assim e creio que isso viria naturalmente se tivesse esperado, como tentei fazer, mas nunca fui nem serei paciente e por isso tive os meus dissabores de coração. Era então um menino teimoso e violento; tive uma boa lição para mostrar o meu erro. Pois foi mesmo uma lição, Jo, como você disse, e eu só a compreendi mais tarde, depois de proceder como um louco. Sob minha palavra, eu andei um certo tempo com o espírito tão perturbado que nem sabia a quem amava mais Amy ou você, e tentava amar as duas da mesma forma. Mas, quando eu a vi na Suíça, tudo se esclareceu afinal no meu espírito. Vocês duas ocupam agora os lugares que lhes convém no meu coração e não comecei o meu novo amor antes de ter a certeza de me haver reconciliado com o ve lho e de compreender que posso dividir honestamente a minha alma entre a irmã Jo e a esposa Amy, amando-as ternamente. Você acredita e quer voltar àqueles velhos bons tempos em que nós nos conhecemos um ao outro? — Eu acredito, de todo o meu coração; mas Teddy, nunca poderemos ser de novo um menino e uma menina; os velhos bons tempos não podem voltar e não devemos esperar por eles. Agora somos um homem e uma mulher, com muito trabalho para fazer, pois a época das brincadeiras já ou e devemos abandonar as travessuras. Tenho a certeza de que você compreende isso; vejo que você mudou e há de ver também que mudei. Sentirei falta do meu rapazinho, porém hei de querer ao homem o mesmo bem e hei de irá-lo mais, porque está disposto a ser o que eu esperava que seria. Não poderemos mais ser os companheirinhos de traquinadas dos outros tempos, mas seremos irmão e irmã, amando-nos e ajudando-nos ura ao outro durante toda a nossa vida, não é, Laurie? Ele não disse nada, mas segurou a mão que ela lhe oferecia e abaixou o rosto por um minuto, sentindo que do túmulo da sua paixão infantil se tinha levantado uma amizade forte e bela para abençoá-los a ambos. E Jo disse alegremente, pois não queria que o regresso dele fosse melancólico: — Ainda me custa acreditar que vocês dois, tão crianças, estão realmente casados e vão construir um lar. Parece que ainda foi ontem que eu andava abotoando a gola de Amy e puxando o seu cabelo, Laurie, quando você me aborrecia. Meu Deus! Como o tempo voa! — Como uma das crianças é mais velha do que você, não deve falar assim como se fosse uma vovòzinha. Eu me gabo de ser o homenzinho crescido e, quando você vir a Amy, há de achá-la uma garota um tanto precoce, disse Laurie que parecia divertir-se com o ar maternal de Jo. — Você pode ser um pouco mais velho em anos, mas eu sou muito mais velha em sentimento, Teddy. As mulheres sempre o são; e este último ano foi tão difícil para mim, que eu pareço já ter entrado na casa dos quarenta. — Pobrezinha! Nós deixamos que você asse tudo isso só, enquanto nos
divertíamos! Você está mais velha; aqui está um vinco e aqui está outro; quando você não sorri, seus olhos parecem melancólicos e, agora mesmo, quando toquei na almofada, senti que ela está umedecida pelas lágrimas. Você teve muito que agüentar e agüentou tudo isso sozinha. Que ferazinha egoísta eu tenho sido! E Laurie repuxou o cabelo, com o ar de quem sentia remorsos. Mas Jo apenas virou para o outro lado a almofada denunciadora e respondeu, num tom que tentava fazer o mais alegre possível: — Não, eu tive papai e mamãe para me ajudar, os bebezinhos queridos para me consolar e a idéia de que você e Amy estavam bem e felizes para tornar os aborrecimentos mais fáceis de ar. Sinto-me um tanto só de vez em quando, mas creio que isso é bom para mim e... — Você nunca ficará só outra vez, interrompeu Laurie ando um braço ao redor da moça como para desafiar todo e qualquer mal humano. Amy e eu não poderemos ar sem você. Você deve vir conosco para ensinar as crianças a cuidar da casa e dividir todas as coisas pela metade, como costumávamos fazer. Tem de nos deixar também animá-la um pouco e todos juntos nos sentiremos abençoadamente felizes e amigos. — Se eu não fosse um estorvo no caminho de vocês, isso bem que seria agradável. Já começo a me sentir inteiramente jovem de novo, pois todas as minhas inquietações parecem fugir desde que você voltou. Você sempre foi um consolo para mim, Teddy. E Jo encostou a cabeça no ombro do amigo, tal como fazia anos antes, quando Beth permanecia doente na cama e Laurie lhe dizia que devia levantar-se para ele. O rapaz fitou-a, perguntando a si mesmo se ela recordava aquele tempo, mas, Jo estava sorrindo para si mesma, como se de verdade todas as suas inquietações tivessem desaparecido com a vinda do moço. — Você é ainda a mesma Jo, chorando agora para sorrir no minuto seguinte. Você agora parece um tanto maliciosa: ─ Que é isso, vovozinha? — Estou querendo saber como você e Amy vão se dar juntos. — Como dois anjinhos! — Sim, sem dúvida, no começo; mas, quem é que governa? — Não me importa dizer que é ela, agora; pelo menos, deixo-a pensar assim. Isso lhe agrada, você sabe. Com o tempo nós nos revezaremos, pois o casamento, segundo se diz, corta pela metade os direitos e dobra os deveres de cada pessoa. — Você há de continuar como está começando e Amy o governará durante todos os dias da sua vida. — Bem, ela faz isso tão imperceptivelmente que não me parece que me aborrecerei. Ela é uma mulherzinha que sabe muito bem como governar; de fato, eu até gosto disso, pois ela enrola uma pessoa entre seus dedos tão suave e graciosamente como uma meada de seda e ainda dá a impressão de que ela é que está fazendo o favor de comandar. — Que Deus me dê muita vida para vê-lo como um marido dominado e contente com isso! ─ Exclamou Jo, com as mãos para o ar. Era interessante ver Laurie sacudir os ombros e sorrir com masculino
desprezo dessa insinuação, respondendo com o seu ar altivo e superior: — Amy é muito bem educada para fazer isso e eu não sou dessa espécie de homem que se submetem. Minha mulher e eu nos respeitamos um ao outro bastante para que nunca haja brigas nem tiranias. Jo gostou daquilo e pensou que uma nova dignidade estava se desenvolvendo, mas, o rapazinho parecia transformar-se muito depressa num homem e a sua observação alegre teve uma pontinha de tristeza. — Tenho a certeza disso. Amy e você nunca brigarão, como era de nosso costume. Ela é o sol e eu sou o vento, na fábula, e o sol manejou melhor com o homem como você deve lembrar-se. — Sim, porém ela tanto pode ser o vento como o sol, sorriu Laurie. Nem queira saber o sermão que me ou em Nice! Dou-lhe a minha palavra de que foi muito pior do que qualquer das suas censuras. Um coraçãozi-nho bem regular! Ainda hei de lhe contar tudo isso algum dia. Ela naturalmente não há de querer, porque, depois de dizer que me desprezava e tinha vergonha de mim, entregou o seu coração ao sujeitinho desprezível e casou-se com o tal que não servia para nada. — Que horror! Bem, se ela o amolar, corra para junto de mim que eu o defenderei. — Francamente, eu tenho cara de quem precisa de socorro, tenho? disse Laurie, levantando-se e ostentando uma atitude que subitamente ou de majestosa e entusiástica, quando se ouviu a voz de Amy: — Onde está ela? Onde está a minha velha e querida Jo? A família toda entrou pela casa adentro e houve muitos beijos e abraços e, depois de várias tentativas inúteis, os três viajantes se sentaram para serem observados e elogiados O sr. Laurence, bem conservado e expansivo como nunca,parecia ter aproveitado tanto como os outros o eio pelo estrangeiro, pois o seu mau humor parecia ter ido embora e a sua cortesia um tanto fora de moda ara por um polimento que o tornara mais agradável do que nunca. Fazia bem vê-lo entusiasmado com as minhas crianças, como chamava ao jovem par. E ainda melhor era ver Amy dedicar-lhe todo o afeto e respeito de filha, conquistando assim completamente o coração do velho. Melhor do que tudo, era observar Laurie agitando-se entre os dois, como se nunca se cansasse de gozar o lindo quadro que eles formavam. No minuto em que lançou os olhos sobre Amy, Meg compreendeu que o seu próprio vestido não tinha um ar parisiense, que a jovem sra. Moffat seria inteiramente eclipsada pela jovem sra. Laurence e que a damazinha seria ao mesmo tempo a mulher mais graciosa e a mais elegante do lugar. Observando o par, Jo pensou: Que parzinho encantador formam os dois! Eu tinha razão e Laurie encontrou a moça bonita e distinta que há de fazer o seu lar muito mais agradável do que a velha e desajeitada Jo, sendo um motivo de orgulho e não um tormento para ele. A sra. March e o seu marido sorriram e balançaram a cabeça um para o outro, numa expressão satisfeita, pois viram que a sua caçulinha tinha-se saído bem, não somente nas coisas mundanas, mas também na riqueza melhor do amor, da confiança e da felicidade. Com efeito, a face de Amy espelhava o.doce brilho que vem de um coração tranqüilo, a sua voz tinha uma nova ternura no timbre e a pose fria e afetada se
transformara numa gentil dignidade, bem feminina e bem atraente. Não se via nela o menor exagero e a cordial suavidade dos seus modos era mais encantadora do que a sua nova beleza ou a sua velha graça, pois lhe imprimia afinal a marca inconfundível daquela verdadeira feminilidade que ela tanto esperava conquistar . — O amor tem feito muito por nossa filhinha, disse a mãe docemente. — Ela tem tido sempre um, bom exemplo diante dos olhos, durante toda sua vida, minha querida, murmurou em resposta o sr. March, com um olhar amoroso para a face cansada e a cabeça grisalha que tinha diante dele. Daisy achava impossível desviar os olhos da sua "linda titia" « procurava agarrar-se cada vez mais à maravilhosa caste-lã cheia de tão deliciosos encantos. Demi deteve-se para considerar o novo parente antes de comprometer-se pela aceitação precipitada de um suborno, que tomara a tentadora forma de uma família de ursos de madeira, vinda de Berna. Contudo, um ataque pelo flanco produziu uma capitulação incondicional, pois Laurie sabia onde atingi-lo. — Rapazinho, quando, pela primeira vez, eu tive a honra de lhe ser apresentado, o senhor me bateu em plena face; agora, peço como cavalheiro a satisfação dessa afronta. E com isso o titio começou a arrepiar o cabelo e sacudir o pequenino sobrinho de um modo que desarranjou completamente a sua dignidade filosófica, ao mesmo tempo que divertia a sua alma infantil. — Meu Deus! Pois não é que ela está vestida de seda da cabeça aos pés? Como é engraçado vê-la sentada aí, tão elegante como uma princezinha, e ouvir tanta gente chamar a Amyzinha de sra. Laurence. ─ Resmungou a velha Hannah, que não resistia à tentação de freqüentes espiadas através da fresta da porta, enquanto punha a mesa com o máximo cuidado. Deus nos acuda! Como falaram naquele dia. Primeiro um, depois o outro, e então todos dois ao mesmo tempo, tentando contar em meia hora a história de três anos. Felizmente, o chá foi servido, produzindo uma pausa na conversa e refrescando as gargantas, pois ficariam roucos e cansados se continuassem por mais tempo. Que grupinho feliz entrou na pequena sala de jantar! O sr. March conduzia orgulhosamente a sra. Laurence; a sra. March inclinava-se orgulhosamente sobre o braço do novo filho; o velho cavalheiro escoltava Jo, com um suspiro, você deve ser a minha pequena agora e um olhar para o canto vazio perto da lareira, o que fez Jo murmurar com os olhos trêmulos: — Tentarei preencher o lugar dela, senhor. Os gêmeos ficaram atrás, compreendendo que deviam aproveitar a ocasião, pois todos estavam tão ocupados com os recém-vindos que não tinham tempo de fiscalizar as crianças e elas podiam assim valer-se dessa oportunidade. Houve, então, uma fartura exagerada de docinhos e pudins habilmente surrupiados. Terminado o chá, Amy voltou para a saleta pelo braço do pai Laurence. Os outros voltaram também, aos pares, e com isso deixaram Jo sem acompanhamento. Ela não se importou com isso no primeiro instante, pois se demorou para responder à pergunta curiosa de Hannah: — Será que a sra. Amy ará agora de cupê e usará toda aquela linda prataria da casa do sr. Laurie? — Você não tem do que se irar, mesmo se ela sair numa carruagem puxada por seis cavalos brancos, se comer em pratos de ouro e usar todos os dias
diamantes e colares. Teddy acha que ela merece isso e muito mais, respondeu Jo com infinita satisfação. — E merece mesmo. Você quer picadinho ou bolinhos de peixe para o almoço? ─ Perguntou Hannah, que misturava sabiamente a prosa com a poesia. — Para mim tanto faz. E Jo fechou a porta, sentindo que o assunto de comida não era muito próprio naquele momento. Parou um instante a observar o grupo que terminava de subir a escada, desaparecendo no andar de cima. E quando as perninhas curtas e cansadas de brincar de Demi subiram o último degrau, uma repentina sensação de isolamento assaltou a moça tão fortemente que ela olhou ao redor, com os olhos umedecidos, como a procurar alguma coisa a que se apoiar, pois o próprio Teddy a havia abandonado. Se tivesse sabido que lindo presente estava para chegar no minuto seguinte, não teria dito para si mesma: — Creio que vou chorar um pouco quando me deitar; mas devo conter-me por enquanto. Então, ou a mão pelos olhos, pois um dos seus hábitos antigos era nunca saber onde estava o lenço e tratou de forçar um sorriso quando bateram na porta da rua . Ela abriu-a com hospitaleira pressa e parou espantada, como se outro fantasma tivesse vindo surpreendê-la; pois ali estava um cavalheiro alto, barbado, resplandecendo,diante dela na escuridão,como um sol da meia-noite. — Oh! Sr. Bhaer, como me sinto alegre por vê-lo! ─ Exclamou Jo apertandolhe a mão, como se receasse que a noite o levasse antes que pudesse segurá-lo. — E eu também por ver a srta. March! Mas não, você tem aí uma festinha e o professor deteve-se quando lhe chegou ao ouvido o som das vozes e o como de pés que dançavam. — Não, não há festa, apenas uma reuniãozinha de família. Minha irmã e dois amigos voltaram de uma viagem e estamos todos muito contentes. Entre e faça-nos companhia. Embora fosse um homem muito sociável, penso que o sr. Bhaer teria ido embora discretamente para voltar em outro dia; mas, como podia fazer isso, se Jo fechou a porta, e lhe tomou o chapéu? Talvez a fisionomia da moça tenha influído para o sr. Bhaer ficar pois ela se esqueceu de ocultar a sua alegria ao vê-lo e antes a demonstrou com uma franqueza que era irresistível no homem solitário, cuja recepção tinha excedido as suas mais ousadas esperanças. — Se não faço o papel de um importuno, terei muito prazer em conhecer toda a sua gente. Tem andado doente, minha amiga? Fez essa pergunta, assim repentinamente, porque quando Jo pendurava o seu sobretudo, a luz caiu sobre o seu rosto e ele notou a diferença. — Não doente, porém cansada e triste. Tivemos muitos aborrecimentos desde que o vi pela última vez. — Ah! sim, eu sei. Meu coração sentiu por sua causa, quando ouvi falar no que houve, e ele apertou a mão da moça pela segunda vez, com uma expressão tão simpática que Jo parecia compreender não existir conforto igual ao olhar daqueles olhos tão bons e ao contato daquela mão tão grande e tão quente. — Papai, mamãe, este é o meu amigo, professor Bhaer. ─ Disse ela, demonstrando na face e na voz tão irreprimível orgulho e contentamento, que era a mesma coisa que tocar clarim à sua chegada e recebê-lo com flores na porta.
Se o estrangeiro tivesse tido qualquer dúvida a respeito do acolhimento que teria, ela por certo se desvaneceria imediatamente com as cordiais boas-vindas que recebeu. Todos o trataram afavelmente, no começo em atenção a Jo, mas bem cedo gostaram dele pelas suas próprias qualidades. Nem podia ser de outro modo, pois o professor trazia o talismã que abre todos os corações e aquela gente não tardou a deixá-lo à vontade, demonstrando mesmo ainda maior amizade porque ele era pobre. Pois a pobreza enriquece os que vivem acima dela e é um seguro aporte para almas verdadeiramente hospitaleiras. O sr. Bhaer olhava ao redor com o ar do viajante que bate numa porta estranha e, quando ela se abre, descobre que está em sua própria casa. As crianças correram para ele, como abelhas para um vaso de mel, e, instalando-se confortavelmente, nos joelhos do visitante, começaram a cativá-lo, remexendo nos seus bolsos, segurando-o pela barba e examinando o seu relógio, com toda a infantil audácia. As mulheres tagarelavam a sua aprovação umas às outras e o sr. March compreendendo que estava diante de um espírito bem dotado, abria os seus mais escolhidos armários de erudição em honra do hóspede, enquanto o discreto John escutava com prazer a palestra, sem dizer nada, e o sr. Laurence achava impossível ir deitar-se. Se Jo não estivesse tão absorvida noutra coisa, a conduta de Laurie seria um divertimento para ela; pois um leve toque, não digo de ciúme, mas de desconfiança, fizera esse cavalheiro conservar-se um pouco distante, no princípio, observando o recém-vindo com fraternal circunspecção. Mas isso não durou muito tempo. Sem querer, começou a interessar-se e, distraidamente entrou na rodinha, pois o sr. Bhaer falava bem naquela atmosfera alegre e dava boa impressão de si. Raramente se dirigia a Laurie, porém o fitava freqüentemente. Uma sombra parecia velar-lhe a face, como se lamentasse a sua própria juventude perdida, quando contemplava o moço em toda a sua exuberância de vida. E então, o seu olhar se voltava para Jo tão ansiosamente que ela bem sentia vontade de responder à muda pergunta que lhe era endereçada; mas Jo tinha de tomar cuidado com os seus próprios olhos e, compreendendo que eles não mereciam confiança, tratava de conservá-los presos à costura que estava fazendo, como uma tiazinha modelar. Uma olhadela furtiva, de vez em quando, a refrescava tanto como um copo de água fria depois de um eio num dia de calor, pois tais espiadelas lhe mostravam sinais muito animadores. A fisionomia do sr. Bhaer perdera a sua expressão distraída e parecia animadíssima naquele momento tornando-se moça e bonita, aos olhos de Jo, que se esquecera de compará-lo com a de Laurie, como costumava fazer com outros homens, para grande desvantagem de todos eles. Além disso, o professor parecia realmente inspirado, embora os costumes funerários dos antigos, assunto para o qual descambara a conversação, não pudessem ser considerados como um tema recreativo. Jo resplandeceu triunfalmente quando Laurie foi engasgado por um argumento e, ao observar o rosto interessado do pai, pensou consigo mesma: Como ele gostaria de ter um homem assim como meu professor, para companheiro de palestra, todos os dias! Ultimamente, o professor Bhaer andava vestido com um novo terno escuro, que lhe dava um ar ainda mais distinto. O seu cabelo espesso estava bem aparado e cuidadosamente penteado, mas não ficava em ordem muito tempo, pois, nos seus
momentos mais exaltados, arrepiava-os lá ao seu modo tão divertido: e Jo gostava mais deles assim, eriçados na cabeça, do que bem lisos, porque tinha idéia de que isso lhe dava um aspecto de Júpiter. Pobre Jo! Como glorificava aquele homem tão simples, reparando tudo, enquanto continuava a costurar, não lhe escapando mesmo à observação o fato de que usava agora botões de ouro nos seus punhos imaculados. — Que esplêndido camarada! Não se teria preparado com mais esmero se andasse apaixonado por alguém! disse Jo para si mesma; e, então, uma idéia repentina, nascida de suas próprias palavras, fê-la corar tão vivamente que deixou cair o novelo e abaixou-se para apanhá-lo, com a intenção de esconder o rosto. A manobra, contudo, não deu o bom resultado que ela esperava, pois, justamente no ato de atear fogo numa pira funerária, o professor deixou cair a sua tocha,metaforicamente falando, e inclinou-se para apanhá-la no momento em que caíra o novelo de Jo. Abaixando-se ao mesmo tempo, os dois bateram com a cabeça um no outro, viram estrelas e começaram a rir, muito atrapalhados, voltando para as suas cadeiras, de onde achavam que não deviam ter saído. A noite avançava sem que ninguém desse por isso; pois Hannah afastara habilmente os bebês, quando ainda era cedo, e o sr. Laurence foi para casa repousar.Os outros sentaram-se ao redor do fogo, tagarelando, inteiramente esquecidos do tempo, até que Meg, cujo maternal .espírito estava impressiondo com a firme idéia de que Daisy tinha caído da cama e que Demi tinha ateado fogo na sua cami-sola de dormir, estudando a estrutura dos fósforos, fez um movimento para partir. — Devemos cantar, como nos bons tempos, pois estamos todos juntos mais uma vez, disse Jo, sentindo que uma, boa cantoria, era uma ótima saída pra.as esfusiantes emoções da sua alma. Nem todos estavam ali. Mas ninguém achou que as palavras de Jo fossem insensatas ou inverídicas, pois Beth parecia ainda entre eles, numa pacífica presença, invisível, porém mais querida do que nunca, já que a morte não podia quebrar a união doméstica., que o amor tornara indissolúvel. A sua cadeirinlia continuava no lugur do costume. A cesta de costura, com o retalho da fazenda que ela deixara inacabado quando a agulha se tornou pesada demais para os seus dedos, permanecia ainda na sua costumada prateleira. O amado piano, que agora ficava quase sempre em silêncio, também não tinha sido afastado dali. Sobre ele a face de Beth, serena e risonha, como nos primeiros tempos, olhava para todos, parecendo dizer: Sejam felizes.Eu estou aqui. — Toque alguma coisa, Amy. Mostre como tem melhorado, disse Laurie, com explicável orgulho da sua esperançosa aluna. Mas Amy murmurou, com os olhos úmidos, ao dedilhar o teclado amarelecido: — Hoje não querido. Esta noite eu não saberia tocar direito. No entanto, ela mostrou uma coisa melhor do que habilidade ou brilhantismo, pois cantou as modinhas de Beth com uma terna música na sua voz, que o melhor mestre de canto não lhe teria ensinado, e comoveu o coração dos ouvintes com um sentimento mais suave do que lhe poderia dar outra qualquer inspiração. A sala continuou em silêncio, depois que a clara voz caiu subitamente no último verso do hino favorito de Beth. Era penoso dizer:
A terra não tem tristeza Que o céu não possa curar. E Amy recostou-se ao marido, que estava atrás dela, sentindo que a sua boa vinda ao lar não era perfeita sem o beijo de Beth. — Agora, devemos terminar com a canção de Mignon, pois o sr. Bhaer sabe cantá-la, disse Jo, antes que o silêncio se tornasse doloroso. E o sr. Bhaer experimentou a garganta com um agradecido Hem, quando foi para o canto onde Jo estava, dizendo então: — Quer cantar comigo? Nós entoamos bem. Era aliás, uma gentil invenção do professor pois Jo entendia tanto de música como um gafanhoto. Mas a moça teria consentido, mesmo se ele propusesse^ cantar uma ópera inteira, e garganteou com coragem e superior desprezo pelo como e pela entoação. Isso não tinha muita importância, pois o sr. Bhaer cantava como verdadeiro alemão, bem e com sentimento; e Jo apenas o acompanhava bem baixinho, de modo a poder escutar a voz macia que dava a impressão de cantar só para ela. Conheces a terra onde floresce a limoeiro? Era este o verso favorito do professor, pois a terra para ele queria dizer a Alemanha; mas agora parecia demorar-se, com especial calor e sonoridade nas palavras: Ali, oh! ali, quisera ir contigo, Oh! Minha bem amada. E uma das ouvintes se impressionara tanto com o meigo convite que sentia vontade de dizer que não conhecia a terra e que alegremente partiria para conhecêla, quando ele quisesse. A canção foi considerada um grande sucesso e o cantor cobriu-se de louros. Mas, alguns minutos depois, ele esqueceu inteiramente as suas maneiras e ficou olhando espantado para Amy que punha o chapéu; pois tinha sido ela apresentada simplesmente como minha irmã e ninguém a havia chamado pelo seu novo nome. O professor ainda ficou mais espantado quando Laurie disse, da maneira mais amável ao se despedir: — Minha mulher e eu tivemos muito prazer em conhecê-lo, meu caro senhor. Lembre-se que será sempre recebido com alegria em nossa casa. Então o professor lhe agradeceu a gentileza tão calorosamente e pareceu de súbito iluminado por tamanha satisfação, que Laurie o considerou o camarada mais efusivo e cordial que já havia encontrado em sua vida. — Irei visitá-lo com muito prazer; mas também terei muita satisfação em voltar aqui, se me der licença, minha cara senhora, pois um pequeno negócio nesta cidade me obrigará a demorar aqui alguns dias. Falava para a sra. March, mas o seu olhar se dirigia a Jo; e a voz da mãe deulhe tão cordial consentimento como os olhos da filha, pois a sra. March não era tão cega quanto aos interesses das suas pequenas, como supunha a sra. Moffat. — Parece-me um homem instruído, observou o sr. March, com tranqüila satisfação, depois que o visitante se retirou. -— Tenho a impressão de que é um bom homem, acrescentou a sra. March, com decidida aprovação, quando dava corda no relógio. — Eu sabia que vocês haviam de gostar dele, foi tudo o que disse Jo, ao se
retirar para o seu quarto. Ela perguntava a sj, mesma qual seria o negócio que trouxera o sr. Bhaer à cidade e finalmente se convenceu de que lhe fora concedida alguma grande honraria, que, por modéstia, ele não quisera mencionar. Se tivesse visto a fisionomia do professor quando, no seu quarto, contemplava o retrato de uma jovem um tanto rígida e severa, com uma grande cabeleira, com o olhar perdido na distancia, como a sonhar o futuro, isso teria lançado alguma luz sobre o assunto, especialmente quando elo apagou o candeeiro e beijou o retrato no escuro.
CAPITULO XXI Meu Senhor e Minha Dama — Por favor, querida sogra, queira deixar-me a minha esposa por meia hora. A bagagem chegou e eu ando atrapalhado para encontrar no meio dos objetos de luxo que Amy trouxe de Paris algumas coisas de que preciso, disse Laurie, vindo descobrir no dia seguinte a sra. Laurence sentada no colo da mãe, como se fosse a criancinha de outros tempos. — Pois não. Vá, minha querida. Eu me esqueço que você tem outro lar além deste, e a sra. March apertou a mãozinha branca que usava a aliança, como para lhe pedir perdão pelo seu exagerado interesse maternal. — Eu não teria vindo se pudesse arranjar-me sozinho; mas, sem a minha mulherzinha, eu me sinto tão desarmado como... — Um veleiro quando não há vento, sugeriu Jo, quando ele parou para pensar numa comparação. Jo tinha voltado à sua antiga insolência depois que Teddy voltara. — Exatamente. Pois Amy é que me faz andar. E o nosso barco não conhece tempestade, não é, querida? — Bom tempo sempre; não sei quanto há. de durar isso, mas não tenho medo de tempestade, pois já estou aprendendo como governar o meu navio. Venha comigo, meu bem, que eu encontrarei os seus chinelos: imagino que desarrumação você não fez nas minhas coisas. Os homens são tão desajeitados, mamãe! disse Amy com um ar de dona de casa, que deliciou o marido. — Que é que vocês pretendem fazer, depois que se instalarem? perguntou Jo abòtoando a capa de Amy, como costumava fazer antes com as blusinhas. — Temos os nossos planos, mas não queremos falar muito sobre eles, por enquanto, pois somos marinheiros de primeira viagem. Em todo caso, não pretendemos ficar ociosos. Vou trabalhar com tal entusiasmo que vovô ficará satisfeito e verificará que eu não sou um desleixado. Preciso de qualquer serviço interessante para me conservar ern boa forma. Estou cansado de mandriar e pretendo trabalhar como um homem. — E Amy, que é que ela pretende fazer? ─ Perguntou a sra. March, a quem agradava a decisão de Laurie e a energia com que falara.
— Depois das naturais cortesias e comunicações, nós surpreenderemos vocês todas com a elegante hospitalidade da nossa casa, a brilhante sociedade que manteremos ao redor de nós e a influência benéfica que exerceremos sobre o mundo. Náo é assim, Madame Kécamier? ─ Perguntou Laurie, olhando zombeteiramente para Amy. — O tempo há de mostrar. Venha embora, impertinência, e não aborreça a minha família, dando-me apelidos em sua frente, respondeu Amy, resolvendo que a sua casa seria mais um lar com uma boa esposa para dirigi-lo do que um salão para exibições de uma rainha de sociedade. — Como essas duas crianças parecem felizes juntas! ─ Observou o sr. March, achando difícil continuar absorvido no seu Aristóteles depois que o jovem par tinha saído. — Sim, e creio que a sua felicidade será durável, acrescentou a sra. March, com a expressão serena de um piloto que levou a bom porto o seu barco. — Eu sei que há de durar. Como Amy teve sorte! E Jo suspirou, sorrindo em seguida, muito animada, pois o professor Bhaer abriu o portão com uma empurrada impaciente. Mais tarde, quando seu espirito tinha afinal repousado aobre o assunto do chinelo, Laurie disse subitamente à esposa que estava arrumando os seus novos tesouros: — Sra. Laurence! — Meu senhor! — Aquele homem pretende casar-se com a nossa Jo? — Assim o espero; e você não, querido? — Eu o considero um triunfo, meu amor, no mais completo sentido dessa palavra expressiva, mas gostaria que ele fosse mais moço e também mais rico. — Ora, Laurie, não seja enjoado e cheio de preconceitos mundanos. Se eles se gostam, não quer dizer nada que seja pobre e velhusco. As mulheres nunca deveriam casar-se por interesse. E Amy ficou um tanto embaraçada quando essas palavras lhe escaparam e olhou para o marido, que respondeu com maliciosa gravidade: — Certamente não, embora se ouçam pequenas encantadoras dizendo algumas vezes que pretendem agir assim. Se a minha memória não falha, você mesma já pensou que era seu dever casar-se com um bom partido, isso explica, talvez, porque você se casou com um João Ninguém como eu. — Oh! meu querido, não, não diga isso. Eu esqueci que você era rico quando disse sim. Eu teria casado com você, mesmo que não tivesse um vintém, e às vezes chego a ter vontade que você fosse pobre para que eu pudesse mostrar quanto o amo. E Amy, deu provas convincentes da verdade das suas palavras. — Você pensa realmente que eu andaria no mesmo barco com você, mesmo se fosse o que você pensa? Sentiria o coração despedaçado se você não acreditasse que eu andaria no mesmo barco com você, mesmo se fosse o seu ganha pão remar no lago. — Então, eu sou um idiota e um grosseirão? Como poderia pensar assim, quando você recusou por minha causa um homem mais rico e não me deixa agora lhe dar a metade do que quero, embora eu tenha o direito de fazê-lo? Há moças,
coitadinhas, que só agem por interesse e que aprendem a pensar que isso é para o seu próprio bem; mas você recebeu melhores lições e, embora eu temesse algum tempo por você, não fiquei desapontado, pois a filha soube honrar os ensinamentos da mãe. Foi o que eu disse ontem à sua mãe e ela se mostrou tão alegre e agradecida como se eu lhe tivesse dado um milhão para as suas obras de caridade. Você não está escutando as minhas observações moralistas, sra. Laurence! E Laurie parou, pois os olhos de Amy tinham uma expressão distraída, embora fixos no seu rosto. — Sim, estou. E ao mesmo tempo irando a covinha que você tem na face. Não se faça de convencido, mas devo confessar que tenho mais orgulho do meu lindo marido do que todo o seu dinheiro. Não ria, mas o seu nariz é um consolo tão grande para mim. E Amy acariciou docemente as feições harmoniosas do esposo, com artística satisfação. Embora tivesse recebido muitos elogios em sua vida, nenhum tinha agradado mais a Laurie do que aquele, como demonstrou claramente, embora sorrisse do gosto especial de sua mulher. — Posso fazer-lhe uma pergunta, querido? ─ Disse ela. — É claro que pode. — Você se incomodará se Jo casar com o sr. Bhaer? — Oh! Então é esse o motivo de preocupação? Eu bem pensava que havia na covinha qualquer coisa que não lhe agradava. Sendo o mais feliz dos homens vivos, posso garantir-lhe que dançarei no dia do casamento de Jo com o coração tão leve como os calcanhares. Duvida disso, meu benzinho ? Amy olhou-o e ficou satisfeita; e sua última pontazinha de medo ciumento se tinha desvanecido e ela lhe agradeceu, com a fisionomia toda espelhando amor e confiança. — Eu gostaria de fazer alguma coisa por esse velho e bom professor. Nós não poderíamos inventar um parente rico, que morresse caridosamente lá na Alemanha e deixasse para ele uma fortunazinha apreciável? ─ Disse Laurie, quando os dois começavam a andar de um lado para o outro da sala de braços dados, como gostavam de fazer, relembrando os tempos do jardim do castelo. — Jo descobriria tudo e estragaria o plano; gosta dele, tal como é, e ontem disse que considerava a pobreza uma bela coisa. — Coitadinho daquele coração inexperiente! Ela não há de pensar assim quando tiver dentro de casa um marido literário e uma dúzia de professorezinhos e professorazinhas para sustentar. Não devemos intervir por enquanto, mas esperar por uma boa ocasião, fazendo que apareça o meio de ajudá-los, mesmo se não quiserem. Devo a Jo uma parte da minha educação e ela acha que toda pessoa deve pagar as suas dividas honestamente. E por esse lado que vou encaminhar a questão. — Como é agradável ajudar aos outros, não é? Foi sempre um dos meus sonhos ter oportunidade de dar livremente.E graças a você o sonho tornou-se realidade. — Ah! Faremos uma porção de coisas boas, não é? Há uma espécie de pobreza que eu gosto particularmente de ajudar. Os mendigos sempre se arranjam, mas a gente pobre, que não pode revelar a sua própria miséria, sofre enormemente,
porque não sabe pedir e ninguém ousa oferecer caridade; contudo, há milhares de meios para auxiliá-la, desde que se saiba agir com delicadeza, para não humilhar. Francamente, eu gosto mais de servir um cavalheiro empobrecido do que um mendigo que pede nas ruas. Suponho que isso é errado, mas é assim que procedo, embora seja mais difícil. — É mais difícil porque só um cavalheiro sabe agir assim, acrescentou o outro membro daquela sociedade de iração doméstica. — Muito obrigado, receio desmerecer tão lindo elogio. Mas, devo dizer que, enquanto mandriava no estrangeiro, vi muitos rapazes talentosos fazendo toda espécie de sacrifícios e enfrentando as maiores dificuldades para que pudessem realizar o seu ideal. Eram esplêndidos camaradas alguns deles, trabalhando como verdadeiros heróis, pobres e sem proteção, mas tão cheios de coragem, de paciência e de ambição, que eu me envergonhava de mim mesmo e ansiava para lhes dar uma ajuda qualquer. São pessoas que se tem prazer em auxiliar, pois, se possuem realmente um pouco de gênio, é uma honra poder servi-los, impedindo que essas vocações se percam por falta de cultivo; se eles não têm o gênio que se imagina, é um prazer consolar essas pobres almas e livrá-las do desespero, quando descobrem, a incapacidade. — Sim, sem dúvida; e ainda há outra classe que não sabe pedir e que sofre em silêncio.Conheço um pouco a seu respeito, porque também pertencia ela antes que você me fizesse uma princesa, tal como fez o rei com o mendigo no velho conto. As moças ambiciosas am momentos bem difíceis, Laurie, e muitas vezes vêem ar a mo-cidade, a saúde e ótimas oportunidades, só porque não tiveram no instante preciso um pouco de ajuda. Todos foram muito bons para mim e toda a vez que eu perceber outras moças lutando com dificuldades, como costumávamos fazer, quero ajudá-las, da mesma forma por que eu fui ajudada. — E assim você fará, como um anjo que é! ─ Exclamou Laurie, resolvendo logo, num o de zelo filantrópico, fundar e custear uma instituição para benefício das moças com tendências artísticas. Gente rica não tem o direito de ficar inativa, gozando a vida ou acumulando dinheiro para que outros mais tarde venham a gastar. Muito melhor do que deixar legados quando se morre, é empregar bem o dinheiro enquanto se vive, sentindo-se prazer em fazer a felicidade de outras criaturas. Teremos nós mesmo um tempinho bem bom e acrescentaremos uma satisfação extra ao nosso próprio prazer, dando aos outros o gosto da generosidade. Você quer ser uma pequenina Dorcas, indo esvaziar uma grande cesta de auxílios para enchêla de novo com boas ações? — De todo o meu coração, se você for também um bravo São Martinho, parando na estrada, ao viajar galantemente através do mundo, para dividir o seu manto com o mendigo. — É uma troca e nós havemos de fazê-la muito bem! Com isso os dois se cumprimentaram, começaram a ear de novo com feliz animação, sentindo que o seu larzi-nho ainda era mais agradável, porque tinham a esperança de alegrar outros lares, acreditando que os seus próprios pés andariam mais à vontade através do caminho florido que se estendia diante deles, se amaciassem a estrada escabrosa que outros pés tinham de pisar, e sentindo que os seus corações se uniriam ainda mais pelo amor, que não esquece aqueles que
tiveram menos bênçãos do que eles.
CAPITULO XXII Daisy e Demi Eu não posso considerar como cumprido o meu dever de humilde historiadora da família March sem dedicar pelo menos um capítulo aos seus dois mais preciosos e importantes membros. Daisy e Demi chegaram agora à idade do discernimento, pois entre os três e os quatro ano as crianças mais desenvolvidas afirmam os seus direitos e muitas vezes os conquistam, coisa que nem sempre os mais velhos podem fazer. Ora, nunca houve um par de gêmeos em tanto perigo de ser estragado pelo excesso de mimos e carinhos como os dois rebentos tagarelas dos Brook. Naturalmente, foram as duas crianças mais notáveis que já apareceram neste mundo, como se verá quando eu disser que andavam aos oito meses de idade, falavam fluentemente como um ano de vida e, aos dois anos, tomavam o seu lugar à mesa e procediam com uma correção que encantava todos os espectadores. Aos três anos, Daisy pediu uma agulha e costurou uma sacola com quatro pontos; da mesma forma, brincava de dona-de-casa, arrumando o seu cantinho de bonecas, e tratava de um microscópico fogãozinho com uma habilidade que trazia lágrimas de orgulho aos olhos de Hannah, enquanto Demi aprendia o abc com o avô, que inventou um novo método de ensinar o alfabeto, formando as letras com os braços e as pernas e unindo assim a ginástica para o espírito e para o corpo. O garoto desenvolveu desde cedo uma vocação para a mecânica, que encantava o pai e aborrecia a mãe, pois tentava imitar toda máquina que via e transformava o quarto numa caótica oficina. Embora muito diferentes no caráter, os gêmeos se davam muito bem e raramente brigavam mais de três vezes por dia. É claro que Demi tiranizava Daisy e galantemente a protegia contra qualquer outro agressor, mas a irmã-zinha se fizera uma escrava e adorava o irmão como o ser mais perfeito do mundo. Daisy era uma almazinha rosada, rechonchuda e alegre, que se insinuava no coração de todos. Era uma dessas crianças cativantes, que parecem feitas para ser beijadas e abraçadas, adoradas e adornadas como pequeninas deusas, recebendo a aprovação geral nas ocasiões festivas. Suas virtudezinhas eram tão suaves, que ela seria um ser perfeitamente angélico, se algumas tra-vessurazinhas não lhe conservassem a índole deliciosamente humana. Era sempre dia claro no seu mundo e cada manhã trepava à janela, com a sua camisolinha de dormir, olhando para fora e dizendo, chovesse ou fizesse sol: — Oh! que lindo dia, que lindo dia! Era amiga de toda gente e oferecia beijos aos estranhos tão confiadamente que os mais inveterados celibatários ficavam balançados. — Mim gosta de todos, disse ela uma vez abrindo os braços, com a colherinha numa das mãos e a xícara na outra, como que disposta a abraçar e a
nutrir o mundo inteiro. À proporção que a pequena crescia, a mãe começou a compreender que o ninho seria abençoado pela presença de uma moradora tão serena e tão amável como a que tanto ajudara a fazer da velha casa um lar. E, por isso, rezava para que lhe fosse poupada uma perda igual à que todos tinham experimentado, quando lhes faltou o anjo tão querido. O avô muitas vezes a chamava de Beth e a avó não se cansava de contemplá-la, com enternecimento, como se tentasse recompor noutra figurinha humana a lembrança daquela que se fora. Com um verdadeiro ianque, Demi tinha a mania das perguntas, queria saber de tudo e parecia muitas vezes aborrecido porque não obtinha respostas satisfatórias para o seu perpétuo: ─ Por que, heirn? Possuía também certas tendências filosóficas, para grande contentamento do avô, que costumava entreter com ele conversações socráticas, nas quais o precoce discípulo levava à parede, de vez em quando, o velho professor, produzindo indisfarçada satisfação ao pessoal feminino. — Que é que faz as minhas pernas andarem? Perguntou o jovem filósofo, observando essas partes ativas do seu corpo com ar pensativo, quando, certa noite, resolveu repousar, depois de um escarcéu para não ir para a cama. — É o seu espiritozinho, Demi. ─ Respondeu o sábio, acariciando respeitosamente a cabecinha loura. — Que é um espiritozinho? — É uma coisa que faz o seu corpo mover-se, da mesma forma por que a corda movimenta as rodinhas do meu relógio, como já lhe mostrei. — Então, abra para mim.Quero ver como é que anda. — Oh! Eu não posso fazer isso, assim como você não poderia abrir o relógio. Deus é quem dá corda e você andará até quando Ele quiser. — É mesmo? ─ E os olhos castanhos de Demi cresceram e brilharam como inspirado pela nova idéia. — Também me dão corda como a um relógio? — Sim; mas eu não posso mostrar como é, pois nós não vemos quando isso se faz. Demi examinou-se pelas costas, como para ver se era feito como um relógio e, então, observou gravemente: — Acho que Deus faz isso quando eu estou dormindo. Seguiu-se uma cuidadosa explicação, escutada tão atentamente pelo garoto que a aflita avó teve de dizer: — Meu velho, acha conveniente falar sobre tais assuntos com esse garoto? Ele está ficando com a cabeça cheia de uma porção de coisas e aprendendo a fazer muitas perguntas impossíveis de se responder. — Se ele já tem idade para fazer perguntas, também já está em tempo de receber respostas. Não estou pondo coisa na sua cabecinha, mas ajudando-o a desatar as que já estão lá dentro. Essas crianças são mais sabidas do que vocês pensam e tenho a certeza de que o garoto entende toda palavra que lhe digo. Agora, Demi, responde: onde você guarda o seu espírito?
Se o menino tivesse respondido como Alcibíades: Pelos deuses, Sócrates,não posso responder, o avô não ficaria surpreendido; mas quando, depois de manter-se um momento sobre um pé só, como uma cegonhazinha pensativa, ele respondeu, num tom de calma convicção:na minha barrigazinha, o velho não só compartilhou do riso da avó como também desistiu de ensinar metafísica. Haveria motivo para apreensões maternais, se Demi não desse provas convincentes de que era um verdadeiro garoto ao mesmo tempo que um filósofo em botão. Muitas vezes, realmente, depois de uma discussão que fazia Hannah profetizar balançando a cabeça: esse menino não é deste mundo, o pequeno mudava de atitude e tranqüilizava a boa ama, fazendo uma dessas travessuras com que o querido, mimado e terrível diabrete costumava atormentar e divertir a alma dos pais. Meg elaborou muitas regras morais e tentava aplicá-las. Mas qual a mãe que pode resistir sempre aos ardis astuciosos, aos engenhosos subterfúgios ou à tranqüila audácia de um homenzinho em miniatura? — Deixe de comer tantas as, Demi; você assim fica doente, diz a mamãe ao jovem cidadão, que oferece os seus serviços na cozinha, com infalível regularidade, no dia em que se prepara pudim de ameixas. — Eu gosto de ficar doente. — Mas eu não quero que você fique; vá ajudar Daisy a fazer pastéis. Ele partia com relutância, mas as culpas lhe pesavam no espírito. Por isso, muitas vezes, quando aparecia uma oportunidade para redimir-se, ele envolvia numa astuciosa permuta de cariçias. — Agora, já que procederam como boas criancinhas farei ò que vocês quiserem, diz Meg, quando sobe com o seu ajudante de cozinha, deixando o pudim prudentemente trancado na despensa. — É verdade, mamãe? pergunta Demi, com uma bela idéia na sua cabecinha. — Sim, é verdade. Tudo que quiserem, responde a mama de vistas curtas, preparando-se para cantar "As três gatinhas" meia dúzia de vezes ou para acompanhar a família num eio. Mas Demi a leva para um canto, com a sua fria exigência: — Então, vamos comer todas as as. A tia Dodô era a principal confidente e companheira de. jogos de ambas as crianças e o trio virava a casa de pernas para o ar. A tia Amy era ainda apenas um nome para elas; a tia Beth bem cedo se converteu numa lembrança vaga e agradável, mas a tia Dodô era uma realidade viva e os dois diabretes a aproveitavam enquanto podiam, dando-lhe com isso grande satisfação. Mas, quando chegou o Sr. Bhaer, Jo esqueceu os seus companheiros de brinquedos e a tristeza e a desolação tomaram conta daquelas almazinhas. Daisy, que gostava tanto de sair distribuindo beijos, perdeu a sua melhor freguesa. Demi, com infantil agudeza, bem cedo descobriu que Dodô gostava mais de brincar com o "homem-urso" do que com eles; mas embora ressentido, escondeu a sua angústia, pois não tinha coragem de insultar um rival que trazia uma mina de balas e chocolate no bolso do paletó e um relógio que podia ser tomado e amassado a qualquer hora pelos seus ardentes iradores.
Algumas pessoas podem ter considerado essas liberalidades agradáveis como suborno; mas Demi não tinha esse ponto de vista e continuava a amparar o "homem-urso" com calculada afabilidade, enquanto Daisy não tardou a lhe conceder os seus pequeninos afagos, considerando o seu ombro como um trono, o seu braço como um abrigo e os seus presentes como tesouros de insuperável valor. Os cavalheiros geralmente são arrebatados por súbitos os de iração pelos jovens parentes da dama a que dedicam a honra das suas atenções; mas esse entusiasmo é tão forçado que não engana a ninguém. Contudo, o carinho do sr. Bhaer era sincero e por isso mesmo mais eficiente, pois a honestidade é a melhor política, tanto no amor como na lei. Era um desses homens que se sentem à vontade em companhia de crianças e dão de si ainda melhor impressão quando rostinhos infantis fazem um agradável contraste para o seu varonil semblante. Fosse lá qual fosse, o certo é que o seu negócio detinha de dia para dia, mas rara era a noite que não ia ver bem, ele sempre procurava o sr. March e, por isso, é de supor que fosse ele a atração. O excelente papai também tinha essa ilusão e ava as noites em longas discussões com aquele espírito tão simpático e compreensivo, até que uma observação ocasional do esperto netinho subitamente o esclareceu. O sr. Bhaer parou, certa noite, no limiar do gabinete, espantado com o espetáculo que se oferecia aos seus olhos. O sr. March estava com as mãos no soalho e as pernas para o ar e, ao lado dele, Demi tentava imitar a mesma atitude com as suas perninhas curtas, mostrando-se ambos tão absorvidos no exercício que nem pensavam na possível presença de espectadores. O sr. Bhaer soltou uma das suas boas e sonoras risadas enquanto Jo exclamava escandalizada : — Papai, papai, aqui está o professor! Quando as pernas se abaixaram e á cabeça branca tomou a sua posição natural, o sr. March disse com imperturbável dignidade: — Boa noite, sr. Bhaer. Desculpe-me por um momento. Estamos terminando a nossa lição. — Que fez você hoje de dia, pequeno? perguntou o sr.Bhaer, levantando o jovem acrobata. — Fui ver a Maryzinha. — E que fez com ela? — Beijei-a, começou Demi, com decidida franqueza. — Olalá! Você está começando muito cedo. E que disse a Mary a este respeito? ─ Perguntou o sr. Bhaer continuando a confessar o pequenino pecador, que já estava sentado sobre o seu joelho, explorando o bolso do paletó. — Oh! Ela gostou e me beijou e eu também gostei disso. Os menininhos não devem gostar das menininhas? ─ Acrescentou Demi, com a boca cheia e um ar de suave satisfação. — Oh! Diabinho precoce! Quem meteu isso na sua cabeça? Disse Jo, divertindo-se tanto com as inocentes revelações como o próprio professor. — Isso não está na minha cabeça, mas na minha boca, respondeu Demi, estirando a língua, com a bala de chocolate sobre ela, pensando que Jo aludira ao confeito e não às idéias. — Você deve guardar algumas balas para a sua amiguinha. Os doces são para as pessoas doces, homenzinho, e o sr. Bhaer ofereceu a Jo alguns bombons,
com um olhar que fez a moça perguntar a si mesma se chocolate não era o alimento preferido dos deuses. Demi também viu o sorriso, ficou impressionado e perguntou com simplicidade: — Os meninos grandes também gostam das meninas grandes, fessor ? Como o jovem Washington, o sr. Bhaer não sabia mentir. Por isso deu uma resposta um tanto vaga e atrapalhada, num tom que fez o sr. March deter o seu trabalho de escovar a roupa para ver a face de Jo, e, depois afundou-se: na sua poltrona, como se o precoce diabinho tivesse insinuado em sua cabeça uma idéia que era ao mesmo tempo suave e triste. Porque Dodô, um pouco mais tarde, o abraçou com ternura excessiva e lhe deu um pedaço extremamente generoso de pão com manteiga, foi um dos problemas, que mais deram trabalho ao pequenino cérebro de Demi, que para ele não encontrou solução.
CAPITULO XXIII Debaixo do Guarda-chuva Enquanto Laurie e Amy estavam marcando os sobre o tapete de veludo, pondo a casa em ordem e fazendo planos para um futuro venturoso, o sr. Bhaer e Jo faziam eios deliciosos, através de estradas poeirentas e campos acidentados. — Sempre tive o costume de dar o meu eio de tardinha e não vejo porque devo mudar de hábito, só porque acontece encontrar algumas vezes o professor no caminho, disse Jo para si mesma, depois de dois ou três encontros. Com efeito, embora houvesse dois caminhos para a casa de Meg, tinha ela a certeza de encontrá-lo em qualquer que seguisse, fosse na ida ou na volta. Ele andava sempre muito apressado e nunca parecia vê-la até que estivesse bem perto, quando dava a impressão de que a sua miopia o impedira de reconhecer até aquele momento a dama que se aproximava. Então, se ela ia à casa de Meg, ele tinha sempre alguma coisa para as crianças; se se dirigia para sua própria casa, ele então voltava de contemplar o rio e estava justamente seguindo para a casa dos March, se é que a família ainda não estava muito cansada das suas freqüentes visitas. Nessas circunstâncias, que poderia fazer Jo, se não saudá-lo delicadamente e convidá-lo a entrar? Se ela estava cansada das suas visitas, sabia esconder a sua fadiga com perfeita habilidade e tinha o cuidado de recomendar que se preparasse café para a merenda, pois Friedrich, quero dizer sr. Bhaer não gosta de chá". Na segunda semana, já todos sabiam perfeitamente o que estava acontecendo, mas ninguém demonstrava ter observado a mudança de Jo. Não se perguntava por que ela dera para cantar agora durante o trabalho, por que arranjava o cabelo três vezes por dia, e por que voltava tão satisfeita do seu eio vespertino. Ninguém parecia ter a mais leve suspeita de que o prof. Bhaer, enquanto conversava filosofia com o pai, estava dando lições de amor à filha.
A própria Jo não queria dar demonstrações do seu sentimento e, pelo contrário, tentava severamente dominá-lo. Mas não podendo fazer isso, levava uma vida um tanto agitada. Tinha um medo louco que rissem dela pela sua nova atitude, depois de tantas e tão veementes declarações de independência. Laurie era o seu principal receio; mas, graças à nova domadora ele procedeu com uma discrição digna de elogios, nunca chamou o sr. Bhaer publicamente de um velho e excelente camarada, nunca aludiu, nem de longe, a aparência melhorada de Jo e não exprimia a menor surpresa ao ver o chapéu do professor pendurado no cabide do vestíbulo da casa dos March, quase todas as noites. Entretanto, no íntimo ele exultava, ansiando pelo tempo em que pudesse dar a Jo alguns trotes engraçados. Durante uma quinzena, o professor ia e vinha com a regularidade de um namorado: depois, ou três dias inteiros sem aparecer e não deu sinal de vida, coisa que causou estranheza a todos e fez Jo tornar-se pensativa no começo e, em seguida, muito nervosa. — Desgostou-se, creio eu, e foi embora tão subitamente como veio. Isso não é nada para mim, naturalmente; mas eu pensava que ele nos viesse dizer adeus, como um cavalheiro, disse ela para si mesma, olhando desesperada-mente para o portão, quando punha as suas coisas em ordem para o eio do costume, numa tarde insípida. — Será melhor levar a sombrinha, querida; parece que vai chover, disse a mãe observando que a filha pa o chapéu novo, mas não aludiu ao fato. — Sim, mamãe; quer alguma coisa da cidade? Vou até lá para comprar papel, respondeu Jo, prendendo as fitas do chapéu debaixo do queixo diante do espelho, como uma desculpa para não encarar a mãe. — Sim, quero; traga-me um papel de agulhas número 9 e duas peças de fita estreita. Calçou as suas botinas mais grossas e leva alguma roupa quente debaixo do seu agasalho ? — Acho que sim, respondeu Jo distraidamente. — Se encontrar por acaso o sr. Bhaer, traga-o para tomar chá. Estou sentindo vontade de ver o excelente homem, acrescentou a sra. March. Jo ouviu aquilo, mas sua única resposta foi beijar a mãe e sair apressadamente, pensando com gratidão, apesar da sua mágoa: — Como ela é boa para mim! Como é que se arranjam as moças que não têm mães assim para ajudá-las nas suas aflições? As lojas onde poderia comprar as encomendas não ficam entre os bancos, escritórios e grandes casas comerciais, enfim, nos quarteirões onde os cavalheiros geralmente se encontram; mas Jo se encontrou nessa parte da cidade antes de fazer qualquer compra, andando de um lado para outro como se esperasse alguém, examinando instrumentos de engenharia numa vitrina e amostras de lã em outra, com um interesse que não era muito feminino. Um pingo de chuva no seu rosto desviou os seus pensamentos das esperanças contrariadas para as fitas estragadas; pois os pingos continuaram a cair, e, antes de ser uma namorada, ela compreendeu que, se era tarde demais para salvar o seu coração, ainda era tempo de salvar o chapéu. Lembrou-se então da sombrinha, que tinha esquecido de trazer com a pressa de sair. Mas não adiantava nada lastimar o esquecimento e só o que podia fazer era
tomar emprestado um guarda-chuva ou ficar molhadinha como um pinto. Ela olhou para o céu ameaçador, examinou depois o chapéu, cuja fita carmesim já começava a desbotar, reparou na rua molhada, e depois deu com os olhos no letreiro de um armazém, onde estava escrito: — Hoffmann, Swartz e Co. Então ela disse para si mesma, com ar de censura: — Bem feito! Quem me mandou vestir as minhas melhores roupas e vir ear por aqui na esperança de ver o professor? Jo, você me está envergonhando! Não, você não entrará aí para tomar emprestado um guarda-chuva ou saber dos seus amigos aonde é que ele anda. Você irá embora debaixo da chuva; e se apanhar um resfriado e estragar o chapéu, isso é bem merecido. Com isso, ela atravessou a rua tão impetuosamente que quase foi apanhada por uma carroça e, para se livrar, teve, de precipitar-se nos braços de um velho solene, que disse: Peço-lhe perdão, e parecia mortalmente ofendido. Um tanto atrapalhada, Jo endireitou-se, estendeu o lenço sobre as preciosas fitas, e, resistindo à tentação seguiu debaixo do aguaceiro, abrindo caminho por entre guarda-chuvas. O fato de que um desses guarda-chuvas, um tanto estragado, permanecia em cima do seu chapéu desprotegido, atraiu a sua atenção; levantando os olhos, viu junto dela o sr. Bhaer. — Bem que eu reconheci a moça disposta, que atravessa a rua sem medo dos cavalos, e que anda tão depressa sobre a lama. Que está fazendo aqui, minha amiga? — Fazendo compras. O sr. Bhaer sorriu vendo de um lado uma fábrica de conservas e do outro um armazém de couros, como os únicos estabelecimentos comerciais da rua. Entretanto apenas disse delicadamente; — Você não tem guarda-chuva. Posso acompanhá-la, para levar os embrulhos? — Sim, muito agradecida. As faces de Jo estavam tão vermelhas como a fita do chapéu e a moça perguntava a si mesma o que é que êle pensava a seu respeito; mas isso não lhe preocupou muito pois minutos depois estava eando de braço dado com o seu professor, sorrindo como se o sol tivesse aparecido subitamente com um brilho raro, vendo que tudo ia bem de novo no fundo e que era bem feliz a criatura que podia andar assim acompanhada através da chuva. — Nós pensávamos que tivesse ido embora, disse Jo apressadamente, pois sabia que ele a estava observando. As abas do seu chapéu não eram bastante grandes para lhe ocultar o rosto, e ela temia revelar na sua expressão o seu sentimento. — Acreditou então que eu pudesse ir embora sem me despedir de pessoas que têm sido tão iravelmente gentis comigo? ─ Perguntou ele, tão repreensivamente que a moça sentiu como se o tivesse insultado com aquela sugestão e respondeu calorosamente: — Não, não acreditei; sabia que devia andar muito ocupado com os seus negócios, mas todos nós sentimos a sua falta papai e mamãe especialmente. — E você? — Eu sempre tenho alegria em vê-lo, senhor.
Na preocupação de dar à sua voz um tom perfeitamente calmo, Jo se mostrava um tanto fria e aquele glacial senhor no fim da frase parecia ter congelado o professor, pois o seu sorriso desapareceu quando disse gravemente: — Eu lhe agradeço muito e irei vê-la qualquer dia, antes de partir. — Vai embora, então? — Não tenho mais nenhum negócio para tratar aqui. Já está tudo acabado. — Com bons resultados? disse Jo, pois a amargura do desapontamento estava na curta resposta do amigo. — Devo pensar assim, pois está aberto o caminho no qual poderei ganhar a minha vida e ajudar os meus pequenos sobrinhos. — Oh! Explique-me isso. Eu gosto de caber tudo a respeito dos pequenos, disse Jo arrebatadamente. — É tão bom que tenho o maior prazer em contar-lhe. Alguns amigos me arranjaram um lugar num colégio, onde ensinarei à vontade e ganharei bastante para facilitar a vida de Pranz e Emil. Tenho de ficar agradecido, não tenho? — Naturalmente que sim. Será ótimo, pois você terá um emprego de acordo com a sua vocação e nós poderemos vê-lo muitas vezes, assim como aos pequenos, exclamou Jo, pegando-se nos garotos como uma desculpa para a satisfação que não pôde esconder. — Ah! Mas nós não nos encontraremos muitas vezes, receio eu; esse emprego é no Oeste. — Tão longe assim! exclamou Jo, num tom inconfundível. O sr. Bhaer podia entender muitos idiomas, mas certamente ainda não aprendera a ler a linguagem do sentimento feminino. Ele se gabava intimamente de conhecer Jo muito bem e, no entanto, estava um pouco atônito com as contradições de voz, de fisionomia e de atitudes, que a moça demonstrava numa rápida sucessão naquele dia, variando mais de uma dúzia de vezes o modo de tratá-lo no curso de uma meia hora. Quando o encontrou, ela pareceu surpreendida, embora fosse impossível fugir à suspeita de que viera à cidade já com o propósito de vê-lo. Quando o professor lhe ofereceu o braço, ela o aceitou com um olhar que animou extraordinariamente o amigo. Mas, quando lhe perguntou se sentira a sua falta, ela lhe deu uma resposta tão fria e tão formalizada que o pobre homem ficou desesperado? Quando soube de sua sorte em arranjar um novo emprego, quase bateu palmas. A alegria era só poi causa dos garotos? Então, sabendo que ele ia afastar-se, ela disse: ─ Tão longe assim! Num tom de desespero que levantou novamente o sr. Bhaer às alturas da, esperança. Mas no minuto seguinte, ele rolou lá do alto, quando Jo disse, como se estivesse inteiramente absorvida no assunto: — É aqui o lugar onde devo buscar as encomendas. Quer vir? Não haverá muita demora. Jo orgulhava-se um tanto das suas capacidades de compradora e queria impressionar particularmente o seu escudeiro com a habilidade e a rapidez com que efetuava as compras. Mas, devido ao íntimo abalo por que estava ando, tudo correu ao contrário dos seus desejos; deixou cair os agulheiros, esqueceu-se de receber o troco e ficou toda embaraçada quando foi comprar fitas no balcão reservado para os artigos de algodão. O sr. Bhaer continuava a seu lado, observando
o seu rubor e a sua confusão. E, ao observar tudo isso, o seu espanto ainda persistia, pois estava começando a ver que, em certas ocasiões, as mulheres, como os sonhos, devera ser interpretadas pelo avesso. Quando saíram da loja, ele pôs o embrulho debaixo do braço, com a mais alegre disposição, e enfiava os pés nas poças d'água, como se isso até lhe agradasse. — Não poderíamos também comprar algumas coisinhas para os pequenos e realizar unia festazinha de despedida, hoje à noite, quando eu for pagar a minha última visita à sua casa tão agradável? perguntou ele, parando diante de uma vitrina cheia de frutas e de flores. — Que poderemos comprar? ─ Disse Jo, ignorando a última parte da sua frase e aspirando o pergume das flores, num prazer fingido. — Que diria de laranjas e figos ? ─ Perguntou o sr. Bhaer, com um ar paternal. — Eles comem isso com prazer, quando encontram. — Gosta de castanhas? — Gosto sim. — Oh! Uvas de Hamburgo! Naturalmente havemos de prová-las, em honra da terra natal. Jo achou demais essa extravagância e perguntou se não seria melhor comprar uma cesta de tâmaras, uma caixinha de as e um pacotinho de amêndoas. Diante disso, o sr. Bhaer confiscou a bolsa de Jo, tirando a sua própria carteira e acabou as compras com vários quilos de uvas e mais unia porção de pequeninos mimos e gulodices. Então, abarrotando os bolsos com os pequenos embrulhos, ele abriu o velho guarda-chuva e o par prosseguiu na viagem. — Srta. March, tenho um grande favor para lhe pedir, começou o professor, depois de andarem na chuva por algum tempo. — Pois não. E o coração de Jo pulsou tão fortemente que ela teve medo que o companheiro ouvisse as suas pancadas. — Eu me atrevo a tocar no assunto, apesar da chuva, porque disponho de muito pouco tempo. — Pois não. E Jo, quase que deixou cair o pequeno embrulho que levava, tal a repentina emoção que a assaltava. — Quero comprar um vestidinho para a minha Tina e não sei escolher sozinho. Quer ter a bondade de me ajudar nessa compra.? — Pois não. E Jo mostrou-se tão calma e tão fria como se tivesse entrado de repente numa geladeira. — Talvez deva comprar também um xale para a mãe de Tina. Coitada, ela é tão pobre e tão doente e o seu marido lhe dá tantas dores de cabeça. Sim, sim, um xale bem grosso e bem quente será uma coisa muito boa para a mulherzinha. — Farei isso com prazer, sr. Bhaer, respondeu Jo, que acrescentou para si mesma, ao entrar na loja com uma energir que era agradável de ver: Estou indo muito depressa e ele está se tornando cada vez mais querido. O sr. Bhaer deixou que ela tratasse de tudo. Depois de escolher uma linda camisolinha para Tina, Jo mandou vir os xales para escolher. O caixeiro, por ser um homem casado, resolveu interessar-se pelo par que parecia estar fazendo compras para a família.
— Sua senhora deve preferir este; é um artigo superior, de uma cor bonita e discreta. ─ Fisse ele, desenrolando um confortável xale cinzento e coiocando-o sobre os ombros de Jo. — Este lhe serve, sr. Bhaer? ─ Perguntou ela, dando-lhe as costas e agradecendo muito aquela oportunidade que tivera para ocultar a face ruborizada. — É ótimo; vamos comprá-lo. ─ Respondeu o professor, sorrindo para si mesmo ao pagar a compra. ─ E agora, vamos para o lar? ─ Perguntou ele, como se achasse aquelas palavras bem agradáveis de dizer. — Sim; já é tarde e estou tão cansada! A voz de Jo era mais patética do que ela imaginava; pois agora o sol parecia ter ido embora tão subitamente como viera, o mundo tornou-se de novo lamacento e miserável e pela primeira vez ela descobriu que tinha os pés molhados, a cabeça doendo e o coração mais frio do que os pés, mais dolorido do que a cabeça. O sr. Bhaer ia embora; ele somente gostava dela como de uma amiga; tudo tinha sido um engano e quanto mais cedo acabasse tanto melhor. Com essa idéia na cabeça, ela fez sinal para o ônibus que se aproximava com um gesto tão precipitado que deixou cair o embrulho. — Esse não é o nosso ônibus. ─ Disse o professor, fazendo sinal para que o veículo seguisse e abaixando-se para apanhar o embrulho. — Peço-lhe perdão. Não vi a tabuleta claramente. Não tem importância, posso caminhar. Estou acostumada a patinar na lama. ─ Respondeu Jo com os olhos a piscar, porque não queria deixá-los bem abertos, para que não se vissem as lágrimas que os enevoavam. Mas o sr. Bhaer viu o pranto escorrendo na face da moça, embora ela tivesse virado o rosto. Isso muito o comoveu, pois, parando subitamente, perguntou num tom que queria dizer muito: — Querida do meu coração, por que está chorando? Ora, se Jo tivesse experiência nesse assunto, diria naturalmente que não estava chorando, que resfriara a cabeça ou qualquer outra desculpazinha mentirosa e bem fe-minima, bem apropriada à ocasião. Em vez disso, a criatu-rinha perturbada respondeu com um irreprimível soluço: — Porque você vai embora. — Oh! Meu Deus, isto é uma maravilha! Exclamou o sr. Bhaer, querendo bater palmas de contentamento, apesar do guarda-chuva e dos embrulhos. Jo, eu não tenho nada para lhe dar a não ser um amor muito grande. Eu vim aqui para ver se você se interessava por mim e esperei até ter a certeza de que sou para você mais do que um amigo. Sou mesmo? Pode haver no seu coração um lugarzinho para o velho Pritz? ─ Perguntou ele, sem tomar fôlego. — Oh! Sim! ─ Disse Jo; e o professor ficou satisfeitíssimo, pois ela lhe segurou o braço com as duas mãos e fi-tou-ò o com uma expressão que mostrava claramente como se sentiria feliz se tivesse de caminhar a vida inteira ao seu lado, mesmo se não tivesse melhor abrigo do que o velho guarda-chuva. A declaração amorosa se estava realizando através de muitas dificuldades, pois, mesmo se quisesse, o sr. Bhaer não poderia ajoelhar-se diante da criatura amada, por causa da lama na rua; nem poderia oferecer a Jo, a não ser por hipótese, a sua mão de esposo, pois tanto a direita como a esquerda estavam cheias de
embrulhos. Também não lhe seria possível expandir-se em demonstrações de carinho, em plena via pública, embora fosse bem forte a vontade. Assim, o único meio de exprimir o seu êxtase amoroso era olhar para ela com uma expressão tão luminosa que parecia haver arco-íris nos pingos de chuva que molhavam a sua barba. Se ele não amasse Jo profundamente, nem sei o que teria feito então, pois ela estava muito longe de parecer amorável, com as saias num deplorável estado, as botinas enlameadas até o tornozelo e o chapéu transformado numa verdadeira ruína. Felizmente, o sr. Bhaer a considerava a mulher mais bela do mundo e ela o julgava mais parecido com Júpiter do que nunca, embora o seu chapéu de palha estivesse amolecido completamente, jorrando água pelas abas derreadas, pois inclinara inteiramente o guarda-chuva para o lado de Jo, e todos os dedos das suas luvas precisassem de remendos. Os transeuntes provavelmente os consideraram como um par de inofensivos lunáticos, pois se esqueceram completamente de tomar o ônibus e caminhavam distraidamente, esquecidos do nevoeiro e da chuva. Pouco se importavam com o que os outros pudessem pensar, pois estavam gozando a hora feliz que só aparece às vezes, uma vez na vida, esse momento, mágico que dã juventude ao velho, beleza aos feios, riqueza aos pobres, fazendo o coração humano entrever antecipadamente um pouco do céu. O professor parecia como se tivesse conquistado um reino e o mundo nada poderia lhe oferecer de melhor. Caminhando a seu lado, Jo sentia que esse era o seu verdadeiro papel na vida e não queria outra dádiva da sorte. Sem dúvida, foi ela a primeira a falar pelo menos de um modo inteligível pois as observações comovidas que sucederam ao seu impetuoso oh, sim, não poderiam ser registradas ern forma compreensível. — Frederico, porque você... — Ah! Céu abençoado! Desde que Minna morreu, essa é a primeira vez que alguém me chama por esse nome! ─ Exclamou o professor, parando numa poça d'água, para fitar a moça com agradecida alegria. — Eu sempre lhe dou esse nome, quando falo comigo mesma; distraí-me agora. Mas, se não gosta, deixo de tratá-lo assim. — Mas, eu gosto muito! Para mim não existe nada mais agradável. Trata-me por tu também e ficarei encantado. — Não acha que tu é um tanto sentimental? ─ Perguntou Jo, que intimamente achava adorável o monossilabo. — Sentimental? Pois sim. Graças a Deus, nós, alemães, acreditamos em sentimento e gostamos de cultivá-lo. Trate-me por tu, querida do meu coração, pois isso significa muito para mim. ─ Pediu o sr. Bhaer, parecendo mais um romântico estudante do que um austero professor. — Bem, nesse caso, por que não me trataste também assim, mais cedo? ─ Perguntou Jo, encabuladamente. — Agora, hei de mostrar-te todo o meu coração, com a maior prazer, porque deves tomar conta dele de hoje em diante. Olha, minha Jo. Oh! nomezinho querido e engraçado! Eu tive vontade de te dizer alguma coisa, quando nos despedimos em Nova York; mas pensei que estava comprometida com o teu amiguinho bonito e não disse nada. Terias respondido sim, se eu falasse então? — Não sei; receio que não, pois naquela época ainda não tinha um coração.
— Ora. Não creio nisso. Ele estava adormecido, esperando que o príncipe encantado viesse acordá-lo. Bem, Die erste Liebe ist die beste; mas, não podia esperar tanto. — Sim, o primeiro amor é o melhor; podes ficar contente, porque nunca tive outro. Teddy era apenas um camaradinha e bem depressa se restabeleceu do seu pequeno capricho. ─ Disse Jo, ansiosa por emendar o erro do professor. — Ótimo! Então, posso sossegar, completamente feliz, na certeza de que me dás todo o teu coração. Tenho esperado tanto que me tornei egoísta, como hás de ver, professorinha. — Como eu gosto disso! ─ Exclamou Jo, deliciada com o novo apelido. ─ Dize-me, agora, que te trouxe aqui afinal, quando mais sentia a tua falta? — Isto, e o sr. Bhaer tirou do bolso do colete um papelzinho amassado. Jo desdobrou-o e mostrou-se muito encabulada, porque era uma das suas colaborações para um jornal que costumava pagar alguma coisa por produções em verso. — Como é que isso pôde trazer-te? ─ Perguntou ela, sem compreender a sua explicação. — Encontrei-o por acaso; identifiquei-o pelos nomes e pelas iniciais e haviaaqui um versinho que parecia chamar-me. Vê se o descobre. Jo obedeceu e ou os olhos apressadamente pela poesia que havia escrito e batizado com o título de: No Sótão. — É muito má poesia, porém eu a escrevi com sentimento, num dia em que me vi muito só e chorei um pouco. Nunca pensei que isso havia de cair nas tuas mãos. ─ Disse Jo rasgando os versos que o professor guardara por tanto tempo como um tesouro. — Que desapareçam agora, pois já cumpriram o seu dever, disse o sr. Bhaer, com um sorriso, vendo os fragmentos de papel serem arrastados pelo vento. E acrescentou ardorosamente: — Sim, li esses versos, no caderninho dos teus pequeninos segredos e pensei comigo mesmo: ela tem uma tristeza, ela está só, ela encontrará conforto no verdadeiro amor; eu tenho um coração cheio, tão cheio dela; porque não irei para lhe dizer: Se este coração não é pobre demais para servir de oferta, aceita-o em nome de Deus. — E, assim, vieste descobrir que ele não era nada pobre para mim, mas a coisa mais preciosa de que necessitava. ─ Suspirou Jo. — Não tive a coragem de esperar tanto, embora fosse tão festiva á tua recepção. Mas comecei logo a ter esperança e disse para mim mesmo: Hei de tê-la mesmo se isto me custa a vida, exclamou o sr. Bhaer, com um gesto de desafio, como se as cortinas do nevoeiro fossem barreiras que ele teria de transpor valentemente. Jo achava tudo isso esplêndido e resolveu ser digna do seu cavalheiro. — Por que ficaste afastado por tanto tempo? perguntou ela, achando agradável tocar em assuntos confidenciais e receber agradáveis respostas lisonjeadoras. — Isso me custava muito, mas não tinha coragem de tirar-te de um lar tão feliz antes de ter uma oportunidade para te oferecer outro. Como poderia pedir-te que
deixasses tanta coisa pela companhia de um pobre velho, cuja única fortuna é um pouco do instrução? — A tua pobreza até me dá alegria. Não poderia ar um marido rico, disse Jo firmemente, acrescentando num tom mais doce: Não temas a pobreza. Já a conheci tão de perto que agora não a receio mais, e me sentirei feliz ajudando no trabalho a pessoa que amo. E, por favor, não digas que és velho. Aos quarenta anos é que se chega à floração da vida. E eu não deixaria de amar-te, mesmo se já tivesses setenta! O professor achou isso tão tocante que os seus olhos se marejaram de lágrimas de alegria. Com o seu lencinho Jo enxugou-lhe as pálpebras e disse sorrindo, ao lhe tomar das mãos um ou dois embrulhos: — Ninguém pode dizer agora que eu esteja fora da minha esfera de ação, pois se diz que a tarefa especial da mulher neste mundo consiste em enxugar lágrimas e carregar os fardos da vida. Hei de carregar a minha parte, Friedrich, e ajudar-te a construir o nosso lar. — Havemos de ver. Terás paciência para esperar muito, Jo? Devo partir e realizar sozinho o meu trabalho. Antes de tudo, devo ajudar os meus pequenos, porque, mesmo por ti, não poderia faltar à palavra que dei a Minna. Poderás perdoarme isso e esperar com alegria? — Sim, sei que posso; nós nos amamos e o resto é fácil de ar. Também tenho as minhas obrigações e os meus serviços. Não poderia ser feliz se os abandonasse mesmo por tua causa. Assim, não há necessidade de pressa nem de impaciência. Podes fazer a tua parte no Oeste e eu farei a minha aqui. E desse modo esperaremos felizes pela hora melhor da vida, entregando o futuro a Deus. — Ah! Deste-me tanta esperança e tanta coragem e eu nada tenho para te dar em troca a não ser um coração cheio de duas mãos vazias, exclamou o professor completamente conquistado. Nunca, nunca aprenderei a proceder da acordo com as ocasiões. Quando ele disse aquilo, ela pôs as suas mãos nas dele, cochichando ternamente: — Agora não estão vazias. E, parando subitamente, ela beijou o seu Friedrich, debaixo do guarda-chuva. Foi uma coisa terrível, porém ela o teria feito mesmo se os pardais que a espiavam da sebe fossem seres humanos, pois já tinha ido muito longe e não tomava conhecimento de outra coisa no mundo a não ser da sua própria felicidade. Embora tivesse chegado de um modo tão simples, o momento supremo da vida deles dois foi aquele em que, trocando a noite, a tempestade e a solidão pela luz, pelo calor e pela paz doméstica, que os esperava para receber com um alegre sejam bem-vindos ao lar, Jo guiou para dentro de casa o seu noivo e fechou a porta.
CAPITULO XXIV
Tempo de Colheita Durante um ano Jo e o seu professor trabalharam e esperaram, amaram e fizeram planos para o futuro, encontraram-se de quando em quando e trocaram tão volumosas cartas que, segundo disse Laurie, essa era a causa do aumento do preço do papel. O segundo ano começou um pouco mais discretamente, pois as suas perspectivas não eram brilhantes e a tia March morreu de repente. Quando ou a primeira tristeza, pois todos gostavam da velha, apesar da sua língua azeda descobriram que tinham motivos para regozijo, pois ela deixara Plumfield para Jo, tornando assim possível toda espécie de coisas agradáveis. — É um lugar esplêndido e poderá ser vendido a bom preço, pois naturalmente você pretende desfazer-se da propriedade. ─ Disse Laurie, quando todos discutiam o assunto algumas semanas depois. — Não, não quero vendê-la foi a decidida resposta de Jo. — Então você pretende morar ali ? — Sim, é o que eu vou fazer. — Mas, minha boa cunhadinha, é uma casa imensa e terá de gastar muito dinheiro para pô-la em ordem. Só o jardim e o pomar exigem pelo menos dois ou três empregados e tratar de roça não é a especialidade de Bhaer, creio eu. — Ele há de fazer a experiência, se eu lhe prop. — E você espera viver do produto da propriedade? Bem, isso parece paradisíaco, mas você há de se desesperar com tanto trabalho. — A ceara que havemos de colher será proveitosa. E Jo sorriu. — Em que consiste? — Em crianças. Quero abrir uma escola para garotinhos, uma escola bem boa, e bem feliz, parecida com um lar, da qual serei a zeladora e Fritz o professor. — Eis aí um plano que é bem da Jo! Não é mesmo o que poderia esperar dela? ─ Exclamou Laurie, apelando para a família, que parecia tão surpreendida quanto ele. — Eu gosto disto, declarou com decisão a sra. March. — Eu também, concordou o marido, que já via uma oportunidade para tentar o método socrático da educação na juventude moderna. — Será um encargo enorme para Jo. ─ Disse Meg, alisando a cabeça de um dos seus filhos. — Jo poderá desempenhar essa tarefa e há de sentir-se feliz com ela. E uma idéia esplêndida. Conte-nos tudo sobre o assunto. ─ Pediu o sr. Laurence, que andava ansioso por auxiliar os noivos, embora soubesse que eles recusariam a sua ajuda. — Eu sabia que o senhor ficaria do meu lado. Amy também fica, eu vejo isso nos seus olhos, embora ela espere prudentemente estudar primeiro o assunto antes de se manifestar. E agora, querido pessoal, continuou Jo animadamente, devo explicar que não é uma idéia nova mas um plano que há muito tempo acariciava. Antes de vir o meu Fritz, eu costumava pensar que, quando tivesse feito a minha fortuna e ninguém precisasse mais de mim aqui, eu gostaria de alugar uma casa bem grande para cuidar carinhosamente de alguns meninozinhos pobres e abandonados
que não tivessem mãe. Vejo tantas crianças se estragando, por falta de ajuda; gosto tanto delas; sinto tanto suas dificuldades que gostaria muito de ser uma mãe para elas. A sra. March estendeu a mão para Jo, que a apertou sorrindo, com lágrimas nos olhos, voltando logo ao seu velho estilo entusiástico, que ,há muito tempo não tinha reaparecido. — Contei o meu plano a Fritz e ele disse que esse também era o seu maior desejo, ficando combinado que havia de vir tentã-lo quando fôssemos ricos. Com o seu bom coração, isso tem sido sempre a sua maior ambição na vida ajudar crianças pobres, é claro; não falo de ricas. Ele nunca será rico. O dinheiro não esquenta no seu bolso. Mas, agora, graças à minha boa tia, que me amou mais do que eu mereci, eu estou rica, ou pelo menos me julgo assim, e poderemos viver perfeitamente bem em Plumfield, se tivermos ali uma escola promissora. É um lugar muito apropriado para crianças, pois a casa é grande e o mobiliário simples e resistente. Há muitos quartos e esplêndidos campos de recreio. Os pequenos podem ajudar-me no jardim e no pomar. 32 um trabalho tão saudável, não é? Fritz poderá educá-los a seu modo e papai há de lhe dar auxílio. Tratarei de alimentá-los, diverti-los e acariciá-los, etc, e mamãe será a minha assistente. Sempre gostei de conviver no meio de meninos e nunca tive bastante para a minha companhia. Agora posso sentir a casa cheia e me divertirei a valer com os meus queridinhos. Imaginem que delícia, ter Plumfield como minha propriedade e uma porção de garotos a me fazer companhia! Quando Jo agitou as mãos, no auge do contentamento, a família teve um ataque de hilaridade e o sr. Laurence riu tanto que chegou a engasgar. — Não vejo nada de engraçado. ─ Disse ela, sisudamente, quando conseguiu ser ouvida. É naturalíssimo que o meu professor queira abrir uma escola e que, eu prefira residir na minha propriedade. — Ela já está se dando ares de importância, disse Laurie, que parecia disposto a se divertir com a idéia. Posso perguntar como é que você pretende sustentar o estabelecimento? Se todos os alunos forem esfarrapadinhos, receio muito que a sua obra não será muito proveitosa no sentido prático, sra. Bhaer. — Não seja agora um desmancha prazeres, Teddy. Teremos naturalmente alguns alunos ricos. Talvez teremos de começar só com eles. Então, quando já tiver uma base, poderei tomar por minha conta um ou dois pobrezinhos, só por prazer. Muitas vezes os filhos dos ricos sentem tanta falta de cuidados e conforto como os pobres. Tenho visto muitas criaturinhas infelizes, que os pais entregam inteiramente às criadas. Alguns são estragados por excesso de mimos ou por desleixo da família, e outros não têm mães para cuidar deles. Além disso, o melhor será tomá-los por nossa conta quando já forem taludinhos pois é quando mais precisam de paciência e afeto. A gente crescida troça deles, tenta afastá-los da sua companhia e espera que se transformem logo de uma vez, de criancinhas em homens feitos. Eles não se queixam muito, mas sentem bastante esse tratamento. Já ei por isso e sei muito bem o que é. Sinto um interesse especial por esses rapazinhos e gostaria de demonstrar-lhes que compreendo o coração ardente, puro e bem intencionado dos meninos, apesar das suas tra-vessuras. Além disso, já tenho alguma experiência, pois não eduquei um rapazinho para que ele seja agora o orgulho e a honra da sua família?
— Posso dar o meu testemunho quanto a esta experiência. ─ Disse Laurie com um olhar agradecido . — E o resultado excedeu as minhas expectativas, pois eis você aqui, como um homem de negócios, enérgico e sensível, fazendo uma porção de coisas boas com o seu dinheiro e ganhando, em vez de dólares, as bênçãos dos pobres. Mas você não é apenas um homem de negócios, você aprecia as coisas belas e boas e sabe dividi-las pelo meio com os outros, como nos velhos tempos. Tenho orgulho de você, Teddy, porque melhora cada ano e todos sentem esse aperfeiçoamento, embora você não deixe que ninguém toque no assunto. Pois bem, quando tiver a minha turmazinha de garotos, apontarei para você e direi: Eis aqui o modelo, meus rapazes. O coitado do Laurie não sabia para onde olhar, pois, apesar de homem feito, sentiu voltar um pouco do seu velho acanhamento quando aquela série de elogios fez todas as faces se voltarem aprovativamente para ele. — Ora, Jo, isso também já é demais, começou ele, no seu antigo modo infantil. Você fez tanto por mim que nem sei mesmo como lhe demonstrar a minha gratidão, a não ser fazendo todo o possível para não decepcioná-la. ultimamente, você tem andado um tanto afastada de mim, Jo, mas apesar disso sempre tive uma boa ajuda. Se eu conseguir mesmo vencer, agradeça a estas duas pessoas. E ele pôs delicadamente uma das mãos sobre a cabeça branca do avô e a outra sobre os cabelos dourados de Amy, pois os três nunca se separaram. — Penso que família é a coisa mais bonita do mundo! explodiu Jo, que estava num estado de espírito excepcionalmente exaltado. Quando tiver também a minha família, espero ser tão feliz como as três que eu conheço e que amo tanto. Se John e o meu Fritz estivessem aqui, seria então ouro sobre azul, acrescentou ela mais calmamente. E aquela noite, quando foi para o seu quarto, depois de uma bemaventurada reunião de família, cheia de planos, conselhos e esperanças, o seu coração estava tâo cheio de felicidade que ela só conseguiu tranqüilizá-lo ajoelhando-se diante do leito vazio, sempre perto do seu, pensando doces pensamentos a respeito de Beth. Era realmente um ano extraordinário aquele, pois as coisas pareciam acontecer de um modo invulgarmente rápido e delicioso. Quase antes de acordar do seu sonho, Jo estava casada e instalada em Plumfield. Então, uma família de seis ou sete garotos surgiu como cogumelos e floresceu de modo surpreendente aumentando muito o número dos alunos, tanto os ricos como os pobres, pois o sr. Laurence estava sempre encontrando algum exemplo comovente de abandono e pedindo aos Bhaers para tomar conta da criança, reservando-se porém a alegria de prover ao seu sustento. Desse modo, o bom velho conseguia ajudar a orgulhosa Jo, fornecendo-lhe a espécie de garoto que ela mais apreciava. É claro que no começo o trabalho foi penoso e Jo cometeu alguns erros engraçados, mas o sábio professor a conduziu sã e salva para águas mais tranqüilas e os diabretes mais indomáveis acabaram sendo conquistados. Como Jo se encantava com .aquela porção de meninos e como a pobre e querida tia March teria protestado se estivesse ali para ver o sagrado recinto da sua propriedade tão vistosa e bem cuidada invadido assim por travessos Toms, Dicks e Har-rys. Afinal de contas, havia nisso uma certa justiça poética, pois a velha fora o
terror da pequenada da redondeza; e agora os exilados banquetèavam-se livremente com as ameixas proibidas e brincavam por toda parte, sem encontrar quem os contrariasse. Plumfield tornou-se o paraíso das crianças e Laurie sugeriu que o lugar fosse chamado de "Jardim-Bhaer", em honra dos donos e por ser um nome apropriado. A escola nunca foi aristocrática e dela o professor nunca poderia tirar uma fortuna; mas era justamente o que Jo queria que fosse, um lar feliz para as crianças que sentiam falta de instrução, carinho e cuidados. Não tardaram a se encher todos os quartos do casarão; cada canteiro do jardim teve logo o seu proprietário. Três vezes por dia, Jo sorria para o Fritz da cabeceira de uma longa mesa, onde se alinhavam, de ponta a ponta, duas fileiras de faces jovens e felizes, que se voltavam para ela com olhares afetuosos, palavras de confiança e corações agradecidos, cheios de ternura pela "Mãe Bhaer". Tinha ela agora uma porção de garotos e não se aborrecia com eles, embora não fossem anjos de forma alguma. Havia mesmo alguns que causavam muitos incômodos e apreensões tanto ao professor como à professorinha. Mas, a confiança de Jo no fundo bom que existe no coração dos diabretes mais traquinas e indomesti-cáveis lhe dava paciência e jeito para tratá-los, obtendo, com o correr do tempo, bons resultados. Com efeito, nenhum menino resistiria sempre ao Pai Bhaer sorrindo para ele, tão benevolamente, como o sol, e à Mãe Bhaer perdoando-lhe uma infinidade de vezes. Para Jo não havia nada mais precioso do que a amizade dos rapazinhos, assim como os seus suspiros de arrependimento após as travessuras, suas troças ou as suas tocantes confidenciazinhas, seu agradáveis entusiasmos, suas esperanças e seus projetos; até mesmo seus pequenos infortúnios, pois tudo isso influía para que ela gostasse ainda mais dos pirralhos. Havia meninos retardados e tímidos; meninos débeis e meninos turbulentos; meninos que choramingavam e meninos que gaguejavam; havia também um ou dois aleijadinhos; e, por fim, havia outro demoniozinho alegre, que não era aceito em parte alguma, mas que tinha boa acolhida no "Jardim-Bhaer", embora algumas pesoas profetizassem que a sua issão arruinaria o colégio. Sim, Jo era ali urna mulher felicíssima, apesar do trabalho pesado, de tantas preocupações e da barulheira incessante. Gozava sinceramente com isso e encontrava nos aplausos dos garotos uma satisfação maior do que todos os elogios do mundo. Agora não falava de outra coisa a não ser da sua turminha de entusiásticas iradores e crentes. Quando os anos se aram, dois garotinhos dela vieram aumentar a sua felicidade, Rob chamado assim em honra do avô, e Teddy, um bebezinho venturoso, que parecia ter herdado o temperamento jovial do pai e o espírito animado da mãe. Como eles conseguiram crescer naquele redemoinho de garotos foi um mistério para a avó e as tias; mas o certo é que floresciam como flores na primavera. Havia muitos feriados em Plumfield e um dos mais agradáveis era a festa anual da colheita de maçãs. Neste dia, os March, os Laurence, os Brook e os Bhaer reuniam-se alegremente e trabalhavam com disposição. Cinco anos após o casamento de Jo, deu-se um densos festivais frutíferos. Foi num suave dia de outubro, quando a atmosfera estava impregnada de uma frescura tonificante que levantava., o espírito e fazia o sangue dançar sadiamente nas veias. O velho pomar
apresentava-se com seus enfeites de festa. Arvores floridas por toda a parte; gafanhotos saltavam sobre a relva e grilos trilavam como fantásticos flautistas numa festa; esquilos estavam ocupados com a sua pequenina colheita; os pássaros gorgeavam os seus adeuses dos alamos acolíiedores; e todas as árvores pareciam prontas a deixar cair, ao primeiro balanço, o seu mostruário de maçãs vermelhas e amarelas. Todos estavam ali, todos riam e cantavam, subiam nas árvoreá e delas pulavam; todos declaravam que nunca tinham tido um dia tão agradável e com uma tão boa companhia, e todos se entregavam aos simples prazeres da hora tão livre mente como se não existissem no mundo nem tristezas nem preocupações. O sr. March ava placidamente, fazendo citações eruditas e apropriadas ao sr. Laurence. O professor rodava de um lado para outro, guiando os meninos, numa atividade alegre e buliçosa. Laurie dedicava-se aos garotinhos menores, amparando a pequenina Daisy e protegendo o aventureiro Rob nas suas perigosas aventuras. A sra. March e Meg sentaram-se entre pilhas de maçãs, como um par de Pomonas, separando e classificando as contribuições que vinham chegando; e Amy, com uma bela expressão, desenhava os diversos grupos e observava um pálido garoto que se sentara para adorá-la, com uma pequenina muleta ao lado dele. Jo estava em seu elemento naquele dia, e corria de um lado para outro, com o vestido repuxado para um lado, o chapéu em qualquer parte menos em sua cabeça, e um bebê segurando nos seus braços, pronta para qualquer aventura pitoresca que pudesse aparecer. O pequenino Teddy levava uma vida encantada, mas nunca lhe acontecera nada e Jo nunca sentira qualquer susto quando ele trepava em uma árvore ajudado por um garoto, galopava nas costas de outro ou comia maçãs ainda verdes, dadas pelo seu indul-gente papai que procedia de acordo com a noção germânica de que as crianças podem digerir seja lá o que for, desde conservas até botões, unhas e os seus próprios sapatinhos. Ela sabia que Teddyzinho havia de crescer sadio e rosado, sereno e lambuzadozinho, e sempre o recebia de braços abertos, pois Jo amava ternamente os seus bebês. As quatro horas da tarde, houve uma pausa geral e as cestas ficaram vazias, enquanto os apanhadores de maçãs repousavam e comparavam arranhões e espetadelas. Então, ajudadas por um destacamento de garotos mais crescidos, Jo e Meg prepararam a merenda sobre a relva, para um chá ao ar livre que era sempre o fecho de ouro do dia. Em tais ocasiões, da terra parecia emanar leite e mel, pois os garotos não eram obrigados a sentar-se à mesa, mas tinham o direito de saborear a merenda onde bem quisessem, pois a liberdade é o melhor aperitivo para o paladar infantil. Os pequenos gozavam plenamente desse privilégio, pois alguns tentavam a agradável experiência de beber leite enquanto ficavam de cabeça para baixo; outros achavam um encanto em pular "carniça" comendo empadas nos intervalos do brinquedo; havia pedaços de pão espalhados por toda parte, apanhadores de maçãs comiam trepados nas árvores como uma espécie nova de arinho. Quando ninguém sentia mais vontade de comer, o professor propôs o primeiro brinde da série, que era sempre levantado em tais ocasiões. — Tia March, tia March, Deus a abençoe. Era um brinde erguido de todo o coração pelo bom homem, que nunca esquecia o que a velha lhe dera. — Agora, em honra do sexagésimo aniversário da vovó! Que viva muito ainda para a alegria de todos!
Esse brinde foi levantado com um entusiasmo que é fácil de acreditar e a aclamação não queria parar mais. Be-beu-se à saúde de todos, desde o sr. Laurence, que foi considerado como um paraninfo especial até o espantado porquinho da Índia, que tinha saído da sua própria esfera à procura do seu jovem dono. Demi, como o neto mais velho, presenteou então a rainha do dia com vários mimos, tão numerosos que foram transportados à festiva cena num carrinho de mão. Alguns dos presentes eram bem engraçados, mas o que podia ter defeitos a outros olhos eram ornamentos para os da avó, pois nada apreciava mais do que os mimos das crianças. Todos os bordadinhos feitos pelos dedos pacientes de Daisy nos seus lenços, eram para a sra. March mais preciosos do que o mais fino trabalho de agu lha. A caixa de sapatos de Demi era um milagre de habilidade mecânica, embora a tampa não fechasse. O tamborete de Rob capengava de uma perna, porém ela declarou que assim ainda era mais cômodo. E nenhuma página do livro caro que a filha de Amy lhe deu era tão bela como aquela em que apareceu, em letras maiúsculas enfeitadas, as palavras: "Para a querida vovozinha, da pequenina Beth". Durante essa cerimônia, os garotos tinham desaparecido misteriosamente. E enquanto a sra. March tentava agradecer às suas crianças, sem saber o que dizer, e enquanto Teddy enxugava os olhos dela no seu lenço, o professor começou subitamente a cantar. Então, por cima dele uma voz e mais outra e outra mais tomaram as suas palavras e de árvore em árvore ecoou a música de um coro invisível, quando os meninos cantaram, com todo o coração, o pequeno hino que Jo tinha escrito, e Laurie musicado e o professor ensinara a ser cantado pelas crianças de modo a produzir melhor efeito. Era uma novidade e obteve grande sucesso. A sra. March ainda não restabelecida de tão grata surpresa, queria apertar as mãos de todos aqueles pássaros inplumes. Depois disso os meninos se dispersaram para uma brincadeira final, deixando a sra. March e as filhas sob a árvore festiva. — Acho que nunca mais poderei chamar-me de Jo sem sorte, pois o meu maior desejo foi lindamente realizado, disse a sra. Bhaer, tirando a mãozinha de Teddy de dentro de uma vasilha de leite, que ele se entretinha deliciosamente a remexer. ─ E, no entanto, a sua vida é muito diferente daquela que você imaginava há muitos anos ados. Ainda se lembra dos nossos castelos? Perguntou Amy sorrindo, enquanto observava Laurie e John jogando críquete com os pequenos. — Que esplêndidos companheiros! Faz-me bem ao coração ver como esquecem os negócios e brincam como crianças durante um aia inteiro, respondeu Jo que falava agora de toda a humanidade num estilo maternal. Sim, eu me lembro, acrescentou; mas a vida que eu desejava então agora me parece egoísta, solitária e fria. Ainda não abandonei a esperança de escrever um bom livro, mas posso esperar- e estou certa de que será ainda melhor depois de experiências e ilustrações como esta. E Jo apontou para o seu pai que, de braços dados com o professor, eava de um lado para outro à luz do sol, mergulhados os dois numa dessas palestras que tanto saboreavam. Apontou depois para a sua mãe sentada em torno de suas filhas como num trono, com as suas crianças em seu colo e aos seus pés, como se todos encontrassem ajuda e felicidade na fisionomia que nunca envelhecia para eles. — Meu castelo foi plenamente realizado. É certo que eu pedia coisas
esplêndidas, mas no íntimo do coração tinha certeza de que me contentaria com um pequeno lar e John e alguns filhos queridos como estes. Tenho tudo isso, graças a Deus, e sou a mulher mais feliz do mundo. E Meg ou a mão pela cabeça de um garoto já crescido, com a face irradiando ternura e contentamento. — O meu castelo é muito diferente do que eu planejei. Mas eu não hei de alterá-lo, como Jo. Não abandonei todas as minhas esperanças artísticas nem me limito a ajudar outras pessoas nos seus sonhos de beleza. Comecei a modelar uma figura de criança e Laurie disse que é a coisa melhor que já tenho feito. Sou também dessa opinião; e pretendo á-la para o mármore, pois assim, aconteça o que acontecer, poderei pelo menos guardar a imagem do meu anjinho. Quando Amy falava, uma grande lágrima caiu sobre os cabelos dourados de uma criancinha adormecida em seus braços: a sua filhinha bem-amada era uma criaturinha frágil e o medo de perdê-la sombreava a claridade solar da vida de Amy. Essa aflição mais apurava a alma do pai e da mãe da criança, pois o amor e a tristeza são dois laços de afeto. A natureza de Amy estava-se tornando mais suave, mais profunda, e mais enternecida: Laurie estava-se fazendo mais sério, mais forte e mais firme; e ambos estavam aprendendo que beleza, juventude, fortuna, mesmo o próprio amor, não pode evitar cuidados e sofrimentos, perdas e tristezas. Pois, como diz o poeta: “Em cada vida alguma, chuva deve cair Alguns dias devem ser escuros, tristes e monótonos..." — Ela está ficando melhor, tenho a certeza disso, minha querida. Não desanime, tenha esperança e seja feliz, disse a sra. March, quando a Daisyzinha carinhosa montara sobre o seu joelho para encostar sua facezinha rosada no rosto pálido da sua pequenina prima. — Nunca poderei desanimar, enquanto tiver mamãe para me, dar coragem e Laurie para ar metade do meu fardo, respondeu Amy vivamente. Ele nunca me deixa ver a sua inquietação, mas é sempre tão doce e paciente comigo e tão devotado a Beth, sempre dentro de casa, um esteio e um conforto tão grande que todo o amor que eu lhe der não será bastante. Assim, apesar dessa minha pre ocupação, posso dizer com Meg: Graças a Deus, sou uma mulher feliz. — Eu nem preciso dizer isso, pois todos podem ver que eu sou muito mais feliz do que mereço, afirmou Jo olhando ternamente para o bom marido e para os seus filhos rechonchudos, que pulavam na grama atrás dela. Fritz está ficando grisalho e corpulento; eu estou ficando tão fina como uma sombra e já tenho trinta anos; nunca seremos ricos e Plumfield pode arder qualquer dessas noites, pois o incorrigível Tommy Bangs há de fumar charutos debaixo dos lençóis embora já se tenha queimado três vezes. Mas, apesar desses fatos, não tenho nada de que me queixar e nunca me senti tão bem na minha vida. -—- Sim, Jo. Penso que a sua colheita será muito boa, começou a sra. March espantando para longe um grande grilo negro que estava fazendo Teddy perder a compostura. — Está muito longe de ser tão boa como a sua, mamãe. Eis aqui a sua colheita, e nós nunca lhe poderemos agradecer bastante a paciente semeadura e a ceifa cuidadosa, exclamou Jo com a impetuosidade amorosa que nunca chegava a dominar.
─ Espero que cada ano haja mais trigo e menos joio. ─ Disse Amy docemente. ─ O feixe é grande. Mas eu sei que no seu coração há espaço para ele, mãezinha querida. ─ Acrescentou Meg com a voz mais terna. Tocada no fundo do coração, a sra. March pôde apenas estender os braços, como se quisesse abarcar dentro deles todas as filhas e netos, dizendo então com a face e a voz cheias de maternal amor, de gratidão e de humildade: — Oh! Minhas meninas, enquanto viver, não poderei desejar a vocês felicidade maior do que esta!